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CRIME DE ABUSO SEXUAL
CRIME CONTINUADO
CRIME HABITUAL
CRIME DE TRATO SUCESSIVO
ABUSO SEXUAL DE MENORES DEPENDENTES
PRESCRIÇÃO DO PROCEDIMENTO CRIMINAL
Sumário
I – Não pode confundir-se o conceito de crime habitual, que supõe uma única resolução criminosa, relativa a um comportamento reiterado e prolongado no tempo, com a pura e simples repetição da prática do mesmo tipo de crime, que supõe várias resoluções criminosas. II – Para que uma conduta possa ser considerada como integradora de um crime habitual é necessário que o tipo de ilícito preveja, expressamente, a prática reiterada de um determinado comportamento ou que a estrutura típica exija uma multiplicidade de actos que revelem uma certa habituação por parte do agente. III – Não encontra cobertura legal a figura do crime habitual como algo paralelo ao crime continuado, que supõe a prática reiterada da mesma conduta, não tendo aplicação quando está em causa a lesão de bens pessoais, tal como sucede nos crimes de abuso sexual de menores dependentes. IV – A jurisprudência tem qualificado condutas reiteradas não como crime habitual, mas como crime de trato sucessivo, considerando que esse comportamento reiterado configura uma única resolução criminosa. V – Para além disso, aquela jurisprudência nunca abrange num único crime de trato sucessivo condutas relativas a diferentes ofendidos. VI – Será difícil considerar fruto de uma única resolução criminosa uma conduta reiterada que se prolonga durante muito tempo.
Texto Integral
Pr1994/18.5T9PRT.P1
Acordam os juízes, em conferência, no Tribunal da Relação do Porto
I – O Ministério Público veiointerpor recurso do douto despacho do Juiz 1 do Juízo de Instrução Criminal do Porto do Tribunal Judicial da Comarca do Porto que não pronunciou B… pela prática de vários crimes de abuso sexual de menores dependentes, p. e p. pelo artigo 172.º, n.º 1, do Código Penal, por que vinha acusado.
São as seguintes as conclusões da motivação do recurso:
«1 – Valendo-se da sua qualidade de professor, o arguido criou as condições para a consumação de crimes de abuso sexual de menores dependentes durante o lapso de tempo (conhecido) compreendido entre 2004 e (pelo menos) 2015, vitimizando (pelo menos) e de forma contínua e, por vezes, cumulativa cinco alunos menores.
2 – O Mmo. Juiz de Instrução considerou que «A acusação, quando foi deduzida, assentou em bases indiciárias sólidas e robustas.»
3 - Não obstante a data de algum dos factos ilícitos supra descritos, mas considerando a perduração (no tempo) por parte de um mesmo autor, decorrente de um mesmo tipo de ímpeto, estamos pois perante «crimes habituais», nos termos referidos pela al. b) do nº 2 do art. 119º do Código Penal, em paralelo (contraposição ou distinção) com o conceito de crime continuado (tal como assim ficou redigido), ou seja, «a realização plúrima do mesmo tipo de crime ou de vários tipos de crime que fundamentalmente protejam o mesmo bem jurídico» (aqui, sem a atenuante da situação exterior de diminua consideravelmente a culpa), o que, no caso, obsta à prescrição de qualquer um daqueles.
4 - É que, «Nos crimes continuados e nos crimes habituais, o prazo de prescrição corre desde a prática do último ato; nestes crimes a prescrição começa a contar com o fim do último ato parcial que integra a continuação ou a habitualidade» (M Miguez Garcia e J. M. Castela Rio, «Código Penal Parte geral e especial», 2ª ed., pag. 482).
5 - Ora, se o legislador considera essa pluralidade de crimes (e não, a situação de crime permanente, prevista na alínea anterior), é esta mesma pluralidade de crimes– ou seja, todos esses crimes – com o elemento aglutinador de habitualidade (ou continuidade), que deverá ser considerada para a consideração da sua prescrição ou não.
E para todos estes crimes (no seu conjunto) vale a regra – não, a da consumação de cada um deles – mas uma realidade naturalística diferente: a «prática do último acto».
6 - Deste modo, atentas as considerações supra, em crimes que perduraram por mais de 10 (dez) anos, perpetrados pelo mesmo agente, de modo essencialmente homogéneo, sobre diferentes vítimas, tais crimes enquadrar-se-ão no referido conceito de «crimes habituais» e o prazo de prescrição só se inicia desde o dia da prática do último «acto».
7 - E este «último acto» ocorreu no ano de 2015, sendo o prazo de prescrição de 10 (dez) anos, verifica-se – ainda assim – ter ocorrido a sua interrupção com a constituição de arguido e com a notificação, a este, da acusação deduzida.
8 - Daí que não pode considerar-se prescrito qualquer crime de que o arguido foi acusado, tendo o Mmo. Juiz violado o disposto no nº 2 do art. 119º do Código Penal, bem assim como o nº 1 do art. 286º e nº 1 do art. 308º do Código de Processo Penal.»
O Ministério Público junto desta instância emitiu douto parecer, pugnando pelo não provimento do recurso.
Colhidos os vistos legais, foram os autos à conferência, cumprindo agora decidir.
II – A questão que importa decidir é, de acordo com as conclusões da motivação do recurso, a de saber se deverá, ou não, considera-se prescrito o procedimento criminal relativos aos crimes por que o arguido vinha acusado e por que não foi pronunciado.
III – É o seguinte o teor do da parte do douto despacho de pronúncia de que foi interposto recurso:
«O Tribunal é competente em razão da matéria e do território.
O Ministério Público tem legitimidade para acusar.
Não há nulidades, excepções, ou questões incidentais que importe conhecer.
*
Foi requerida a abertura da instrução pelo arguido B… (fl.s 1066/1073) relativamente à acusação contra si deduzida pelo M. Público pela alegada prática de 573 crimes de abuso sexual de menores dependentes agravado (um deles na forma tentada) – a fl.s 294 v.º/298 - por entender o requerente que se acha prescrito o procedimento criminal relativamente a grande parte desses crimes e que, por outro lado, o crime que se indicia ter sido por si cometido não pode ser aquele que o M. Público lhe imputa.
Por conseguinte, requereu o arguido que sejam arquivados parcialmente os presentes autos e alterada a qualificação jurídica dos crimes não prescritos.
Não requereu a produção de diligências instrutórias.
*
Aberta a instrução, procedeu-se apenas ao debate instrutório, sendo que, no decurso do mesmo o M. Público manifestou o entendimento que não ocorre a invocada prescrição e que a prova recolhida no inquérito permite concluir o arguido praticou os crimes que lhe são imputados na acusação, por isso devendo ser pronunciado; o requerente concluiu como no seu requerimento de abertura de instrução, pelo arquivamento dos autos.
(…)
A defesa do arguido sustenta em primeiro lugar que ocorreu a prescrição dos crimes que lhe são imputados, pois que, em seu entender, à data em que houve a notícia deles (Janeiro de 2018), os ofendidos C… e D… contavam, ambos, 27 anos de idade; no entender do arguido, sendo de 10 anos o prazo prescricional dos crimes acusados e tendo os factos ocorrido entre 2004 e 2006, àquela data (Janeiro de 2018), os referidos ofendidos tinham 27 anos de idade.
Cumpre decidir.
Quer se trate de crime habitual (conforme sustenta o arguido que o M. Público terá vertido na acusação) ou de tantos crimes quantas as ocasiões em que terá praticado actos sexuais de relevo com os ofendidos (que é a tese sufragada pelo M. Público na acusação em crise), o prazo prescricional de 10 anos começou a correr nunca depois de 2006 (pois a acusação situa a comissão dos factos no intervalo temporal de 2004 a 2006); sendo de 10 anos o prazo prescricional do procedimento criminal (art.º 118.º, n.º 1, al. b) do C. Penal), segue-se que, o mais tardar, em 31.DEZ.16 ocorrera tal prescrição.
Mesmo considerando o disposto no n.º 5 do referido art.º 118.º do C. Penal, a referida prescrição ocorreria a 31.JAN.2013, data em que aqueles ofendidos (gémeos) perfizeram 23 anos, pois que nasceram em 31.JAN.90; assim sendo, é o prazo de 10 anos, disposto no art.º 118.º, n. 1, al. b) do C. Penal, que releva.
Como o presente procedimento criminal se iniciou a 07.JAN.2018, é inevitável concluir que, relativamente aos ofendidos C… e D… se havia extinguido a possibilidade de o M. Público exercer a acção penal contra o arguido B…, sendo certo não ter ocorrido entretanto qualquer situação susceptível de interromper ou suspender o curso daquele prazo prescricional.
No que respeita ao ofendido E… (relativamente ao qual a acusação situa os actos praticados pelo arguido entre 2005 e 2006), ocorre idêntica situação: contando 10 anos a partir de 2006, segue-se ter-se verificada a prescrição do procedimento criminal em 2016, antes, pois, da data da notitia criminis.
Tendo o referido ofendido nascido a 22.AGO.1986, perfez 23 anos em 22.AGO.2009, pelo que a prorrogação do prazo prescricional também não opera.
(…)
Por isso impõe-se a pronúncia do arguido, ainda que limitada aos factos relativos aos ofendidos F…, G… e H….
*
Assim, pelo exposto, uma vez que esta fase da instrução é ainda meramente indiciária, de comprovação judicial de indícios, e por efectivamente esses indícios se afigurarem suficientes, nos termos dos art.º 307.º, n.º 1 e 308.º, n.º 1, 1.ª parte, do C. Pr. Penal, PRONUNCIA-SE oarguido B… relativamente aos factos constantes da acusação de fl.s 962/984 (salvo os constantes dos pontos 1. a 3. - fl.s 964/969 - referentes aos ofendidos C…, D… e E…) e que consubstanciam a prática de vinte e quatro crimes de abuso sexual de menores dependentes, previsto e punido nos art.ºs 172.º, n.º 1 do C. Penal (relativamente aos ofendidos F…, G… e H…) e no art.º 172.º, n.º 2 do mesmo código (relativamente aos ofendidos G… e H…).».
IV – Cumpre decidir.
Vem o recorrente Ministério Público alegar que não deve considerar-se prescrito o procedimento criminal relativo a qualquer dos crimes por que o arguido vinha acusado, pois todo o comportamento deste descrito na acusação (quer o relativo aos ofendidos C…, D… e E…, em relação ao qual ele não foi pronunciado, quer o relativo aos ofendidos F…, G… e H…, em relação ao qual ele foi pronunciado) constitui um único crime habitual, cujo último ato parcial (já não relativo a qualquer dos ofendidos C…, D… e E…) foi praticado em 2005, sendo que só a partir da data desse último ato deverá contar-se a prescrição do procedimento criminal, nos termos do artigo 119.º, n.º 1, b), do Código Penal. Alega que estaremos perante uma situação paralela e contraposta à do crime continuado: paralela porque estaremos perante a realização plúrima do mesmo tipo de crime, e contraposta porque a repetição dos atos não ocorre no quadro de uma situação exterior que diminua consideravelmente a culpa do agente.
Vejamos.
Afigura-se-nos que o recorrente confunde o conceito de crime habitual (que supõe uma única resolução criminosa relativa a um comportamento reiterado e prolongado no tempo) com a pura e simples repetição da prática do mesmo tipo de crime (que supõe várias resoluções criminosas).
Como se refere no douto parecer do Ministério Público junto desta instância, para que uma conduta possa ser considerada como integradora de um crime habitual, é necessário que o tipo de ilícito preveja, expressamente, a prática reiterada de um determinado comportamento ou que a estrutura típica exija uma multiplicidade de atos que revelem uma certa habituação por parte do agente. Claramente, o tipo legal do crime de abuso sexual de menores dependentes, p. e p. pelo art.º 172.º, n.º 1, do Código Penal, não exige, para preenchimento da sua estrutura típica, a prática de uma multiplicidade de atos, de forma reiterada.
Não se nos afigura que encontre cobertura legal uma figura de crime habitual como algo paralelo ao crime continuado. O crime continuado supõe a prática reiterada de vários crimes (e, portanto, de sucessivas e autónomas resoluções criminosas) que é unificada (com o que se beneficia o agente) apenas pela circunstância de essa reiteração ser favorecida por uma circunstância exterior que diminui consideravelmente a culpa. Ora, não se verificando nenhuma circunstância exterior que diminua consideravelmente a culpa do agente (como sucede, claramente, no caso em apreço) nunca se justificaria uma unificação de condutas que venha a beneficiar o agente.
De resto, esse benefício em que se traduz a unificação inerente à figura do crime continuado está excluído quando estão em causa crimes praticados contra bens pessoais. E são crimes contra bens pessoais os que também estão em causa no caso em apreço.
Na verdade, a tese do recorrente, que, nesta situação e apenas para o efeito da não prescrição do procedimento criminal em relação a alguns dos crimes, seria desfavorável ao arguido, já o beneficiaria injustificadamente se não se colocasse essa questão da prescrição do procedimento criminal. É de salientar, até, que essa tese não foi seguida pelo Ministério Público na acusação, só o foi para o efeito do recurso ora em apreço, relativo a tal prescrição. Não se compreenderia a opção por tal tese apenas para um efeito, e não para todos, em coerência.
Também é certo que a jurisprudência tem qualificado condutas reiteradas semelhantes àquela de que o arguido vinha nestes autos acusado não como crime habitual, nos termos em que pretendidos pelo recorrente, mas como um crime de trato sucessivo, considerando que esse comportamento reiterado configura uma única resolução criminosa. Também não foi essa a qualificação por que optou neste caso a acusação (nem a pronúncia), Na verdade, será difícil considerar fruto de uma única resolução criminosa uma conduta reiterada que se prolonga durante tanto tempo, como a que se verifica no caso em apreço.
Mas, de qualquer modo, nunca essa jurisprudência abrange num único crime de trato sucessivo (e, portanto, numa única resolução criminosa) condutas relativas a diferentes ofendidos (como sucede no caso em apreço).
Podem ver-se, a este respeito, e a título de exemplo, os acórdãos do Supremo Tribunal de Justiça de 30 de janeiro de 2016, proc, n.º 444/15.3JAPRT.G1.S1, relatado por Pires da Graça, e desta Relação de 13 de março de 2019, proc. n.º 3908/16.7APRT.P2, relatado por Maria Dolores da Sila e Sousa, e de 25 de setembro de 2019, proc. n.º 245/18.8JAPRT.P1, relatado por Moreia Ramos (todos acessíveis em www.dgsi.pt). Nas situações em apreço nesses processos, semelhantes à dos presentes autos, foi excluída a qualificação como crime de trato sucessivo por se verificarem várias resoluções criminosas, e não uma única. Já nos acórdãos do Supremo Tribunal de Justiça de 14 de janeiro de 2016, proc. n.º 414/12.3TANCN.S1, e de 27 de novembro de 2019, proc. n.º 748/18.0JAPRT.G1.S1, ambos relatados por Manuel Augusto de Matos, e de 12 de junho de 2013, proc. n.º 1291/10.4DLSB.S1, este relatado por Isabel Pais Martins (todos também acessíveis em www.dgsi.pt), se afirmou que a figura do crime de trato sucessivo estará afastada sempre que estiverem em jogo, como se verifica no caso em apreço, bens pessoais (pelas mesmas razões porque está afastada a figura do crime continuado sempre que se estiverem em jogo bens pessoais).
Assim, a decisão recorrida não é merecedora de reparo.
Deverá ser negado provimento ao recurso.
Não há lugar a custas (artigo 522.º, n.º 1, do Código de Processo Penal)
V – Pelo exposto, acordam os juízes do Tribunal da Relação do Porto em negar provimento ao recurso, mantendo a douta decisão recorrida.
Notifique
Porto, 18/5/2020
(processado em computador e revisto pelo signatário)
Pedro Vaz Pato
Eduarda Lobo