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CHEQUE
APRESENTAÇÃO A PAGAMENTO
TÍTULO EXECUTIVO
QUIRÓGRAFO
MÚTUO NULO
JUROS
Sumário
I- A questão de saber se foram clausulados juros usurários configura processualmente uma excepção peremptória, que, mesmo que seja uma questão nova por não ter sido suscitada pelas partes nem conhecida na decisão recorrida, é de conhecimento oficioso, pelo que pode e deve ser apreciada em recurso. II. Um cheque que não foi apresentado a pagamento dentro do prazo previsto no art. 29º LUCh não produz efeitos como cheque, não decorrendo dele a típica obrigação abstracta dos títulos de crédito. III. Mas pode valer como quirógrafo, desde que os factos constitutivos da relação subjacente constem do próprio documento ou sejam alegados no requerimento executivo, e assim, será válido como título executivo. IV. Sendo esse o caso, a obrigação exequenda não é a obrigação cartular incorporada no cheque, mas antes a obrigação material subjacente, decorrente do negócio entre as partes.
Texto Integral
Acordam no Tribunal da Relação de Guimarães
I- Relatório
A. F., melhor identificado nos autos principais, onde ocupa o lugar de executado, veio deduzir os presentes embargos de executado contra A. M., exequente nos autos à margem identificados.
Alega para tanto que a execução devia ter sido indeferida liminarmente, pois o exequente não dispõe de título executivo válido para intentar acção executiva contra si. Isto porque o cheque dado à execução está prescrito, e deixou de valer como título cambiário, perdendo as características que a autonomia, abstracção e literalidade lhes conferiam (art. 46º,1,d) da anterior redacção do CPC.
E também não pode valer como mero quirógrafo, (art. 46º,c ou 703º,1,c NCPC). Isto porque a causa do negócio jurídico subjacente é um elemento essencial do documento que serve de base ao título executivo. O negócio jurídico subjacente à declaração de empréstimo junto aos autos é o contrato de mútuo que está especificamente descrito no artigo 1142º do Código Civil. E o artigo 1143º do mesmo diploma exige escritura pública assinada pelo mutuário, ora, o que foi junto pelos exequentes foi um cheque que para valer como título executivo teria que ter sido também junto uma escritura pública de mútuo. Não tendo sido esta a forma utilizada, o contrato é nulo (artigos 1143º, 219º e 220º todos do Código Civil). Estando a obrigação que subjaz ao título executivo ferida de nulidade, não poderá o título ser executivo. E a nulidade não pode ser sanada por confirmação.
Acrescenta ainda que é verdade que solicitou ao exequente o empréstimo do montante de €32 930,00 (trinta e dois mil, novecentos e trinta euros), em Janeiro de 2006, mas já liquidou a totalidade da quantia mutuada, bem como os juros de mora.
Assim, pede a extinção da instância executiva.
O embargado veio contestar, remetendo por uma questão de economia processual para tudo quanto consta do requerimento executivo, designadamente a factualidade alegada nos artigos 4.º a 12.º, pugnando-se assim, pela exequibilidade do cheque dado à presente execução.
No mais, afirma que a verdade é que o embargante não pagou ao embargado qualquer quantia a título de reembolso do capital mutuado. E ao afirmar o contrário, o embargante altera conscientemente a verdade dos factos (pessoais) e deduz intencionalmente (com dolo) embargos de executado cuja falta de fundamento conhece, integrando a sua conduta o estatuído nas alíneas a) e b) do artigo 542.º do C. P. C, pelo que deve o embargante ser sancionado exemplarmente por este Tribunal por manifesta litigância de má-fé.
Foi proferido despacho saneador, no qual foi julgada improcedente a nulidade do título executivo e a excepção da exequibilidade do título executivo.
Realizou-se a audiência de julgamento, finda a qual foi proferida sentença que julgou improcedentes os presentes embargos à execução e, em consequência, determinou o prosseguimento da execução. Igualmente julgou improcedente o pedido de condenação do executado/embargante como litigante de má fé.
Inconformado com esta decisão, o embargante dela interpôs recurso, que foi recebido como de apelação, com subida imediata nos próprios autos, e com efeito devolutivo – arts. 644º, 645º e 647º do CPC. Termina a respectiva motivação com as seguintes conclusões:
1º: No presente caso, estamos perante um contrato de mútuo que em Janeiro de 2006 o embargado emprestou ao embargante a quantia de €30.000,00 (trinta mil euros), como garantia do pagamento desse empréstimo este entregou aquele um cheque. No início do ano de 2017 o embargante entregou ao embargado um novo cheque para substituição do anterior, agora no montante de €32.930,00 datado de 04/01/2008. 2º: Nos termos do disposto no art.º 1143.º do Código Civil, o contrato de mútuo, à data dos factos, deveria ser celebrado por escritura pública quando o seu valor fosse superior a 20.000,00€ ou por documento assinado pelo mutuário quando o seu valor fosse superior a 2.000,00€. 3º: Ora, tendo em conta o valor envolvido no negócio celebrado entre as partes deste processo (€32.930,00) e o facto de não ter sido celebrado por escritura pública, tendo o acordo sido meramente verbal e titulado apenas pela entrega de um cheque, é o mesmo nulo, nos termos do disposto no art.º 220.º do Código Civil. 4º: Ao cheque dado à execução, o disposto nas normas aplicáveis do Código de Processo Civil, designadamente na da alínea c) do n.º l do respectivo artigo 46° (na redacção anterior à Lei n.° 41/2013 de 26/06), só pode ser interpretado em conformidade com as disposições da LUCh., e no presente caso, o cheque que serve de titulo executivo não foi apresentado a pagamento conforme alega o recorrido no requerimento executivo. 5º: Portanto, tem que ser desconsiderado como título executivo, se perante a LUCh não produz efeitos como cheque (Cfr. artigos 1° e 2° da LUCh), o cheque relativamente aos quais se não verificarem os requisitos de que depende o direito de acção do portador enunciados no artigo 40° da LUCh (por referência aos artigos 29°, 41° e 42, nomeadamente) e, ainda, aqueles relativamente aos quais se tenha verificado o decurso do prazo de prescrição da acção cambiária previsto no artigo 52° da LUCh. 6º Assim, no presente caso a invalidade prescrita na LUCh para o título a que falte qualquer dos requisitos enumerados no artigo 1° da mesma Lei relativamente aos quais se não verifique qualquer das excepções enunciadas no seu artigo 2°. 7º E, nos termos do artigo 52° da mesma LUCh, toda a acção do portador contra os endossantes, contra o sacador ou contra os demais co-obrigados prescreve decorridos que sejam seis meses, contados do termo do prazo de apresentação. 8º Ora, o cheque a que se alude no requerimento executivo não foi apresentado a pagamento no banco sacado. 9º Conforme refere Lebre de Freitas "Os cheques apresentados a pagamento fora do prazo de oito dias, não podem constituir títulos executivos enquanto documentos particulares (quirógrafos), quando referentes a obrigação que emerge de um negócio formal e sempre que a forma legal prescrita não tenha sido observada". 10º O tribunal “a quo “ ao decidir como decidiu violou entre outros, os artigos 70 n.º 1 da Constituição da República Portuguesa, 1º, 2º, 29°, 41°, 42° e 52° da Lei Uniforme Relativa ao Cheque, 777°, 1143° e 2091° do Código Civil, 28°, 46° n.º 1 al. c), 56 n.º 1, 288°, 490°, 494°, 495°, 515°, 568°, 655°, 659° e 662° do Código de Processo Civil, na redacção anterior à Lei n.º 41/2013 de 26 de Junho. 11º Não sendo válida a obrigação cambiária o cheque dado à execução pode continuar a valer como título executivo, agora como escrito particular que documenta e identifica a obrigação subjacente. 12º No presente caso, tendo sido provado que o valor que o recorrido emprestou foi o montante de €30.000,00, em Janeiro de 2006, tendo sido assinada uma declaração de divida e que em 17/02/2007 o recorrente entregou ao recorrido o cheque no montante de €32.930,00 para garantia do pagamento do valor dos €30.000,00 mutuados e juros de mora à taxa de 10%. 13º Ou seja, este cheque passado à ordem do exequente, não se reporta a quantias por este entregues ao executado embargante, mas antes ao montante entregue -€30.000,00 acrescido dos juros e este cheque foi dado em dação em pagamento, traduziu-se em mera datio pro solvendo e sendo nulo o contrato de mútuo é nula será também a cessão do crédito celebrada entre o executado e o exequente. 14º Pelo que, este cheque dado à execução não tem força executiva, logo não é título executivo, assim a execução deverá ser declarada extinta. 15º Sendo responsável pelo pagamento dos juros de mora, os mesmos devem ser fixados, após o prazo previsto contratualmente para cumprimento da prestação, à taxa legal como dispõe o artº 559º nº 1 do C. Civil. 16º Se a taxa for superior ao previsto no artigo 1146º do C. Civil é havia como usurária essa taxa, logo contrária à lei e violadora dos arts. 334º, 559º nº 1, 762º nº 2 e 1146 n.º 1 do Código Civil. 17º Assim, nos termos do artigo 282º do C. Civil é anulável por usura o negócio jurídico quando alguém explorando a situação de necessidade obtiver para si a beneficiação de benefícios excessivos. 18º No caso sub judice sendo anulável o contrato de mútuo e no domínio das relações imediatas, a anulabilidade do contrato de mútuo inquina de invalidade do título que o pretende representar, tornando-o inexequível. 19º O tribunal deu como provado que “Em 07/12/2006, o embargante pagou ao embargado, a título de juros vencidos até essa data, a quantia de €360,00 (trezentos e sessenta euros), através do cheque n.º 8600000050 do Banco ..., da conta n.º 14724926020” 20º Relativamente a este quesito provado impunha-se, salvo o devido respeito, uma decisão diferente. 21º Porquanto sendo a taxa de juro de 10 % usurária, o Tribunal deveria não considerar que toda essa quantia entregue nessa data -07/12/2006 fosse para pagamento de juros à taxa de 10%, ainda que se considerasse que esse montante foi entregue para pagamento de juros, teria que ser apenas à taxa de 4% acrescida de 3% nos termos do disposto no artigo 559º e 1146º n.º 1 do C. Civil e assim o restante valor abatido no pagamento da divida. 22º Também foi dado como provado que “Em 17/02/2007, o embargante pagou ao embargado, a título de juros vencidos até essa data, à taxa acordada de 10%, a quantia de €3 000,00 (três mil euros), através do cheque n.º 9300000060 do Banco ..., da conta n.º 14724926020” 23º Também relativamente a este quesito provado impunha-se, uma decisão diferente, pois, teria que ser dado como provado que o valor de €3000,00 entregues pelo recorrente ao recorrido seria uma parte para pagamento dos juros à taxa de €4% acrescido de mais 3% e o restante valor para redução do da quantia em divida. 24º Assim, ainda que se entendesse que o cheque dado à execução é titulo executivo, situação que só por mera hipótese de raciocínio se admite, teria-se que ao valor da quantia exequenda ser reduzido os valores pagos pelo recorrente ao recorrido em 07/12/2006 e 17/02/2007, na parte excedente aos juros cobrados à taxa de 4%, acrescida de 3%.
Não houve contra-alegações.
II
As conclusões das alegações de recurso, conforme o disposto nos artigos 635º,3 e 639º,1,3 do Código de Processo Civil, delimitam os poderes de cognição deste Tribunal, sem esquecer as questões que sejam de conhecimento oficioso.
Da leitura das conclusões de recurso parece, à primeira vista, que o recorrente pretende impugnar a decisão sobre matéria de facto, ao insurgir-se contra os factos provados nº 5 e 6. Porém, da simples leitura da argumentação que apresenta, resulta logo que não estamos perante uma verdadeira impugnação da decisão de matéria de facto, mas sim perante uma questão de direito. O argumento usado pelo recorrente não é o de que a prova apontou em sentido contrário, nem que as testemunhas disseram coisa diversa, nem que o Tribunal interpretou erradamente a prova documental, nem sequer que havendo depoimentos contraditórios, o tribunal atribuiu credibilidade a quem não a merecia. O que o recorrente avança como argumento é um puro conceito de direito, como seja a taxa de juro usurária, e argumentação jurídica retirada dos artigos 559º e 1146º CC.
Não existe, desta forma, verdadeira impugnação da decisão sobre matéria de facto, pelo que a mesma se tem por definitiva.
Outra questão que emerge das conclusões do recorrente é a de saber se a taxa de juros do mútuo é usurária.
Mas primeiro temos de apurar se é possível conhecer dessa questão. Essa questão não faz parte do objecto do processo, pois não foi incluída na petição inicial de embargos, e não foi tratada na sentença recorrida.
É uma nova questão que o recorrente trouxe agora em sede de recurso.
Ora, por definição, a figura do recurso exige uma prévia decisão desfavorável, incidente sobre uma pretensão colocada pelo recorrente perante o Tribunal recorrido. Só se recorre de uma decisão que analisou uma questão colocada pela parte e a decidiu em sentido contrário ao pretendido.
Escreve a propósito Abrantes Geraldes (ob cit, fls. 109): “a natureza do recurso, como meio de impugnação de uma anterior decisão judicial, determina outra importante limitação ao seu objecto, decorrente do facto de, em termos gerais, apenas poder incidir sobre questões que tenham sido anteriormente apreciadas, não podendo confrontar-se o Tribunal ad quem com questões novas”.
A única excepção a esta regra, como bem se compreende, são as questões de conhecimento oficioso, das quais o Tribunal tem a obrigação de conhecer, mesmo perante o silêncio das partes.
E será a questão em causa de conhecimento oficioso ?
Em primeiro lugar, do ponto de vista processual, a questão da taxa de juro ser usurária configura uma excepção peremptória (art. 576º,3 CPC), uma vez que assenta o seu funcionamento na aplicação do direito substantivo, acarreta, caso seja julgada procedente, uma absolvição parcial do pedido, e consiste na invocação de factos que modificam o efeito jurídico dos factos articulados pelo autor.
Ao contrário do que sucede com as excepções dilatórias, das quais o legislador fez no art. 577º uma extensa enumeração, as excepções peremptórias não surgem enumeradas em lado algum da lei. Abrantes Geraldes e outros explicam porquê (CPC anotado, anotação ao art. 578º): “…o legislador nada estabelece quanto às excepções peremptórias. Afinal, as excepções dilatórias são argumentos de natureza processual, sendo natural que a lei do processo proceda à respectiva enunciação (ainda que não taxativa), enquanto as excepções peremptórias são argumentos de direito material desmultiplicando-se em função do quadro normativo mais ou menos complexo de cada caso”.
E dispõe o art. 579º CPC que “o tribunal conhece oficiosamente das excepções peremptórias cuja invocação a lei não torne dependente da vontade do interessado”.
Interpretando este artigo escrevem Lebre de Freitas e Isabel Alexandre (CPC anotado, 3ª edição): “a regra consagrada neste artigo constitui manifestação do princípio jura novit curia: o tribunal conhece, em regra, oficiosamente, do efeito impeditivo, modificativo ou extintivo produzido pelos factos introduzidos no processo pelas partes (art. 5º,1), em que se baseia a excepção peremptória: trata-se, tal como no caso das excepções dilatórias (ver o nº 1 da anotação do art. 578), de aplicar o direito aos factos, o que não está dependente da alegação das partes (art. 5-3) nem da existência de contestação (assim se um dos réus for revel e o outro tiver alegado um facto em que se possa basear uma excepção peremptória – por exemplo o pagamento -, o efeito desse facto é conhecido oficiosamente pelo tribunal mesmo em relação ao réu revel); quando, porém, a norma de direito substantivo faz depender a sua eficácia da manifestação da vontade do interessado, o tribunal só pode reconhecer a produção do efeito quando esta vontade se manifeste. Diz-se objecção a excepção peremptória de conhecimento oficioso e excepção em sentido próprio aquela que está na exclusiva disponibilidade da parte, só relevando quando ela manifesta a vontade de dela se valer (Castro Mendes, Direito processual civil, cit, II, ps. 566-567; Vaz Serra, Compensação, BMJ, 31, ps. 55-57; Varela – Bezerra-Nora, Manual cit, ps. 292-297)”.
Concordamos integralmente com esta leitura da lei, que nos parece, aliás, incontornável. A apreciação de uma excepção peremptória acaba por ser, na esmagadora maioria dos casos, a pura e simples aplicação do direito substantivo ao caso concreto. E como tal, incorpora em si a essência do acto de julgar. Daí que, por definição, seja de conhecimento oficioso. Só assim não será se - usando as palavras do legislador – “a lei tornar o seu conhecimento dependente da vontade do interessado”.
Ora, olhando para o regime jurídico dos juros usurários, que se insere no capítulo dedicado ao contrato de mútuo (arts. 1142º a 1151º CC), e salvo melhor opinião, nada vemos no sentido de o legislador ter feito depender o conhecimento dessa questão da vontade do interessado, no caso, do mutuário.
O que vemos, numa breve síntese, é que “é havido como usurário o contrato de mútuo em que sejam estipulados juros anuais que excedam os juros legais, acrescidos de 3% ou 5%, conforme exista ou não garantia real” (art. 1146º,1 CC). E, acrescenta o nº 3, para o que agora nos interessa, “se a taxa de juros estipulada (…) exceder o máximo fixado nos números precedentes, considera-se reduzido a esses máximos, ainda que seja outra a vontade dos contraentes”.
E ainda, com relevo, o nº 4: “o respeito dos limites máximos referidos neste artigo não obsta à aplicabilidade dos artigos 282º a 284º”. Estes três artigos contêm o regime jurídico dos negócios usurários, estabelecendo a favor do lesado a figura da anulabilidade do negócio, ou a sua modificação segundo juízos de equidade.
Sabendo nós que o regime jurídico da anulabilidade não permite o conhecimento oficioso (art. 287º,1), poderíamos, numa leitura apressada e superficial, ser levados a pensar que estaria assim afastada a possibilidade de conhecimento oficioso da questão.
Porém, não é assim: basta atentar na argumentação exposta no Acórdão do TRL de 19 de Maio de 2020 (Relator: Carlos Oliveira). Baseando-se na distinção que Chiovenda fazia entre excepções em sentido próprio e excepções em sentido impróprio, em que as primeiras, de que é exemplo clássico a prescrição (art. 303º CC), têm de ser alegadas pela parte interessada, em cumprimento do seu ónus de alegação e prova, já o mesmo não sucedendo com as segundas, que pressupõem a alegação de factos cuja eficácia opera ipso jure, e das quais o juiz pode e deve conhecer ex officio, escreve: “se, por exemplo, forem alegados certos factos com eficácia impeditiva, modificativa ou extintiva do direito, independentemente de quem os alega ou deles tenha ónus de prova, como sejam factos relativos ao pagamento, à remissão ou à simulação, e mesmo que a parte não alegue o correspondente efeito jurídico, o juiz não poderá deixar de conhecer da excepção oficiosamente, sob pena de proferir uma decisão injusta. Importa assim para o caso apreciar o enquadramento jurídico processual da possibilidade de apreciação da excepção peremptória relativa à usura. No caso dos negócios jurídicos usurários, o art. 282º,1 CC sujeita os mesmos à cominação da anulabilidade, que não é de conhecimento oficioso (v.g. art. 287º,1 CC), havendo mesmo a possibilidade de modificação do negócio assim viciado (v.g. art. 283º CC). Neste caso a relevância da usura está formalmente dependente de um conjunto de requisitos que pressupõem pelo menos a manifestação de vontade expressa da pessoa em benefício da qual esse vício está estabelecido (vide: Pedro Pais Vasconcelos in “Teoria Geral do Direito Civil”, 3.ª Ed., págs. 463 a 468). Pelo que, trata-se de excepção em sentido próprio, não podendo o tribunal “ex officio” anular ou modificar um negócio jurídico com fundamento na verificação do vício de usura. O art. 282º,2 CC, no entanto, ressalva do regime geral aplicável à usura os regimes especiais previstos nos arts. 559º-A e 1146.º CC, reportando-se o último deles à específica regulamentação dos juros e cláusulas penais usurárias. Em suma, o regime especial estabelecido no art. 1146º,1,2,3 CC prevalece sobre a previsão do art. 282º,1 CC, afastando da equação o disposto no art. 287º CC, no que se refere à anulabilidade dos negócios jurídicos (vide: Pires de Lima e Antunes Varela in “Código Civil Anotado”, Vol. I, 4.ª Ed., pág. 261; e Santos Justo in “Manual de Contratos Civis”, pág. 368). Estamos assim, neste segundo caso, perante uma excepção em sentido impróprio, em que o tribunal não pode deixar de dela tomar conhecimento, sob pena de proferir decisão injusta”.
Assim, apesar de ser uma questão nova, por não ter sido tratada na decisão recorrida, nem ter sido colocada perante o Tribunal a quo, é questão que processualmente pode ser conhecida.
Assim, e, considerando as conclusões de recurso, as questões a decidir são:
a) validade do título executivo b) saber se a taxa de juros do mútuo é usurária.
III A decisão recorrida considerou provados os seguintes factos:
1- O executado dedicava-se, pelo menos até ao ano de 2010, à actividade de construção civil. 2- O exequente entre Janeiro de 2006 e Julho de 2010 foi funcionário do executado. 3- Em Janeiro de 2006, o embargado emprestou ao embargante o valor de 30.000,00 euros, a uma taxa de juro de 10% ao ano. 4- Na sequência desse acordo, o embargante assinou uma declaração de dívida, junta aos autos – dia da audiência de julgamento – como documentos n.ºs 1 e 3, cujos dizeres se dão aqui por integralmente reproduzidos. 5- Em 07/12/2006, o embargante pagou ao embargado, a título de juros vencidos até essa data, a quantia de € 360,00 (trezentos e sessenta euros), através do cheque n.º 8600000050 do Banco ..., da conta n.º 14724926020, junto com a contestação como documento n.º 1, cujos dizeres se dão aqui por integralmente reproduzidos. 6.- Em 17/02/2007, o embargante pagou ao embargado, a título de juros vencidos até essa data, à taxa acordada de 10%, a quantia de € 3.000,00 (três mil euros), através do cheque n.º 9300000060 do Banco ..., da conta n.º 14724926020, junto com a contestação como documento n.º 2, cujos dizeres se dão aqui por integralmente reproduzidos. 7.- Após, para liquidar a dívida e juros acordados e vencidos até essa data, o embargante emitiu e entregou ao embargado o cheque n.º 4100000055, sacado sobre o Banco ..., S.A., datado de 04.01.2008, do montante total de 32.930,00 €. 8.- O executado comprometeu-se pagar a referida quantia identificada em 7. ao exequente até ao dia 4 de Janeiro de 2008, o que não aconteceu. 9.- Para pagamento dos créditos laborais devidos ao embargado, o embargante entregou-lhe o cheque n.º 0797961647 da Caixa …, da conta n.º 00006252630, do valor de € 1.185,00 (mil, cento e oitenta e cinco euros), junto com a contestação como documento n.º 3, cujos dizeres se dão aqui por integralmente reproduzidos. 10.- O exequente, por declaração datada de 15 de Junho de 2015, reconheceu expressamente que recebeu todos os créditos salariais, não lhe serem devidos quaisquer outros créditos salariais e renúncia ao recebimento de quaisquer outras contrapartidas financeiras pela cessão do contrato, conforme declaração junta com a petição de embargos como documento n.º 5, cujos dizeres se dão aqui por integralmente reproduzidos.
Factos não provados com relevância para a decisão da causa:
Não se provaram os demais factos alegados pelas partes que não estejam mencionados nos factos provados ou estejam em contradição com estes. Nomeadamente, não se provaram os pagamentos alegados pelo embargante, que ele teria feito por conta do capital em dívida.
IV Conhecendo do recurso.
Está em causa, em primeiro lugar, saber se o exequente apresentou título executivo válido.
Olhando para o requerimento executivo, e para o documento que lhe está anexo, verificamos que esta execução assenta num cheque, sacado pelo executado e ora embargante, sobre o Banco ..., contendo uma ordem de pagamento a favor do exequente, e ora embargado, do montante de € 32.930,00. A data aposta no cheque é a de “4.1.2008”, sendo que é possível ver que o algarismo “4” foi aposto por cima de um “8”, com traço mais carregado.
No requerimento executivo propriamente dito, pode ler-se a descrição dos factos alegados pelo exequente, e que, em resumo, são estes: o executado solicitou ao exequente um empréstimo no valor de € 32.930,00, para financiar a sua actividade de construção civil. O exequente entregou-lhe essa quantia em Janeiro de 2006, com o compromisso do executado de pagar essa quantia ao exequente até ao dia 4.1.2008. Para o efeito, o executado preencheu, assinou e entregou ao exequente o cheque ora dado à execução. Porém, no dia 4.1.2008 o executado pediu ao exequente que não apresentasse tal cheque a pagamento, pois não tinha a respectiva conta provisionada, situação que se repetiu ao longo de alguns meses. E o exequente acedeu, não apresentando o cheque a pagamento, deixando assim passar o prazo previsto no art. 29º LUCh. A quantia em causa não lhe foi paga.
Ficou provada a existência do acordo de empréstimo, mas apenas pelo valor de € 30.000,00 e ainda que na sequência desse acordo o embargante assinou uma declaração de dívida, junta aos autos no dia da audiência de julgamento; trata-se de documento intitulado “Confissão de dívida”, no qual se pode ler: “A. F., viúvo, residente no Lugar de …, Freguesia de …, Concelho de Esposende, contribuinte nº ……, declara que é devedor da quantia de € 32.930,00 a A. M., casado, residente na Rua da …, freguesia da …, Concelho de Esposende. A supra referida quantia será paga pelo devedor ao credor, no domicílio do credor acima referenciado, no dia 4.01.2007”. E o documento em causa surge assinado pelo ora embargante, e datado de 4.1.2006.
A sentença recorrida recordou que na petição de embargos o embargante invocou a nulidade do título executivo por vício de forma, mas que já foi proferida decisão em sede de despacho saneador, nos seguintes termos: “por força do acórdão de uniformização do S.T.J. n.º 3/2018, publicado no Diário da República n.º 35/2018, Série I de 2018-02-19, «o documento que seja oferecido à execução ao abrigo do disposto no artigo 46.º, n.º 1, alínea, c), do Código de Processo Civil de 1961 (na redacção dada pelo Decreto-Lei n.º 329-A/95, de 12 de Dezembro), e que comporte o reconhecimento da obrigação de restituir uma quantia pecuniária resultante de mútuo nulo por falta de forma legal goza de exequibilidade, no que toca ao capital mutuado». Dito isto, é manifesto que a excepção alegada pelo embargante terá de ser julgada improcedente.
Vem o embargante dizer, nas suas conclusões de recurso, em síntese, que estamos perante um contrato de mútuo, que, nos termos do disposto no art. 1143º CC deveria ter sido celebrado por escritura pública, que não foi, pelo que é o mesmo nulo, nos termos do disposto no art.º 220.º do Código Civil.
É verdade.
Acrescenta que o cheque que serve de título executivo não foi apresentado a pagamento, e portanto perante a LUCh não produz efeitos como cheque, donde não tem valor como título executivo.
É verdade que não produz efeitos como cheque.
Mas, vejamos melhor.
De acordo com o art. 703º,1,c CPC, à execução podem servir de base os títulos de crédito, ainda que meros quirógrafos, desde que, neste caso, os factos constitutivos da relação subjacente constem do próprio documento ou sejam alegados no requerimento executivo. O cheque é um título de crédito (cfr. Pinto Furtado, Títulos de crédito, Almedina, fls. 231). E nos termos do art. 40º LUCh “o portador poderá exercer os seus direitos de acção contra os endossantes, sacador e outros co-obrigados, se o cheque, apresentado em tempo útil, não for pago e se a recusa de pagamento for verificada” pelas formas aí previstas.
Sabemos que o cheque não foi apresentado a pagamento, pelo que não vale como título cambiário.
Mas, face à redacção actual da lei, pode valer como quirógrafo, desde que os factos constitutivos da relação subjacente constem do próprio documento ou sejam alegados no requerimento executivo.
Ora, fez-se a prova nos autos da relação causal subjacente, que é um contrato de mútuo, nulo por desrespeito da forma legal prescrita.
E, por exemplo, para recorrer à doutrina, é o próprio Prof. Lebre de Freitas, citado pelo recorrente, quem coloca a questão de forma clara, escrevendo (A acção executiva, 7ª edição, fls. 75): “prescrita a obrigação cartular constante de uma letra, livrança ou cheque, poderá o título de crédito continuar a valer como título executivo, desta vez enquanto escrito particular consubstanciando a obrigação subjacente ? Assim foi entendido na vigência do CPC de 1961, antes e depois da revisão de 1995-96, embora com vozes discordantes. E é essa orientação que claramente se vê hoje consagrada no art. 703º,1,c. Quando o título de crédito mencione a causa da relação jurídica subjacente, o título prescrito vale como documento particular respeitante à relação jurídica subjacente. Quanto aos títulos de crédito prescritos dos quais não conste a causa da obrigação, há que distinguir consoante a obrigação a que se reportam emerja ou não dum negócio jurídico formal. No primeiro caso, uma vez que a causa do negócio jurídico é um elemento essencial deste, o documento não constitui título executivo (arts. 221º,1 CC e 223º,1 CC). No segundo caso, porém, a autonomia do título executivo em face da obrigação exequenda e a consideração do regime do reconhecimento de dívida (art. 458º,1 CC) leva a admiti-lo como título executivo, sem prejuízo de a causa da obrigação dever ser invocada na petição executiva, e poder ser impugnada pelo executado; mas se o exequente não a invocar, ainda que a título subsidiário, no requerimento executivo, não será possível fazê-lo na pendência do processo , após a verificação da prescrição da obrigação cartular e sem o acordo do executado (art. 264º), por tal implicar alteração da causa de pedir”.
Recorrendo à jurisprudência, vamos ver o acórdão do STJ de 21.10.2010 (Relator: Lopes do Rego), que coloca a questão de forma exaustiva e estruturada:
“Procurando aprofundar e sistematizar esta matéria, afigura-se que a matéria da exequibilidade dos títulos de crédito pode encarar-se segundo três perspectivas jurídicas bem diferenciadas. Assim: A) Em primeiro lugar, podem os mesmos surgir na execução como verdadeiros e próprios títulos de crédito, sendo invocados pelo exequente como modo de demonstração da respectiva relação cambiária, literal e abstracta, que constitui verdadeira causa de pedir da acção executiva – sendo, para tal, obviamente necessário que se mostrem integralmente respeitados todos os pressupostos econdições de que a respectiva lei uniforme faz depender o exercício dos direitos que confere ao seu titular ou portador legítimo. Nesta situação, o título executivo é uma peculiar categoria de documentos particulares, regidos por uma disciplina específica, decorrente da sua especial segurança formal e fiabilidade, e a «causa petendi » da acção executiva é a relação creditória neles incorporada, com as suas características próprias, em larga medida decorrentes da literalidade e abstracção das obrigações cartulares por eles documentadas. B) Em segundo lugar – e não se verificando algum dos requisitos ou condições imperativamente previstos na respectiva LU para o exercício do direito e acção conferido ao titular ou portador legítimo do título – pode valer tal título de crédito como mero quirógrafo ou documento particular, assinado pelo devedor, que contenha ou implique o reconhecimento daobrigação causal subjacente – desde logo, como declaração unilateral de reconhecimento de uma dívida, sem indicação da respectiva causa, submetida à disciplina jurídica contida no art. 458º do CC, ou seja, implicando a dispensa de o credor provar a relação fundamental, desde que não sujeita a específicas formalidades legais, cuja existência se presume até prova em contrário.
Nesta peculiar situação, a presunção de existência da relação fundamental, decorrente do regime estabelecido no referido art. 458º, implica a dispensa de o credor exequente invocar os respectivos factos constitutivos, recaindo naturalmente sobre o executado o ónus de ilidir ou afastar tal presunção no âmbito da oposição à execução que deduza. Ou seja: valendo o título ou documento particular invocado pelo exequente como declaração unilateral de reconhecimento de uma dívida, a execução está em condições de prosseguir mesmo que a relação subjacente não conste do documento que corporiza essa declaração unilateral, nem seja explicitamente afirmada, nos seus factos constitutivos, pelo exequente no requerimento executivo – implicando a presunção legal, afirmada pelo referido art. 458º, que compete ao executado pôr em causa tal presunção, demonstrando a inexistência ou invalidade do débito aparentemente confessado ou reconhecido pela declaração unilateral invocada pelo credor / exequente. C) Em terceiro lugar, podem valer os títulos de crédito que não obedeçam integralmente aos requisitos impostos pela respectiva LU como quirógrafos da relação causal subjacente à respectiva emissão, desde que os factos constitutivos desta resultem do próprio título ou sejam articulados pelo exequente no respectivo requerimento executivo, revelando plenamente a verdadeira «causa petendi» da execução e propiciando ao executado efectiva e plena possibilidade de sobre tal matéria exercer o contraditório : como é evidente, esta terceira perspectiva funcionará nos casos em que a declaração de vontade consubstanciada no título de crédito não puder valer como declaração unilateral de reconhecimento do débito subjacente à respectiva emissão, não beneficiando, consequentemente, da presunção afirmada pelo art. 458º do CC – o que naturalmente implicará para o exequente o ónus de invocar e demonstrar os factos constitutivos da relação fundamental que constitui a verdadeira causa de pedir da execução.
Neste caso, o documento assinado pelo devedor constitui quirógrafo de uma obrigação causal cujos elementos constitutivos essenciais têm de ser processualmente adquiridos, em complemento do título executivo, por iniciativa tempestiva e processualmente adequada do próprio exequente, sendo articulados no requerimento executivo sempre que não resultem do próprio título ; é, aliás, neste tipo de situações que ressalta, com maior evidência, a diferenciação e autonomia entre os conceitos de título executivo e de causa de pedir da acção executiva, sendo o primeiro integrado por um documento particular, assinado pelo devedor, que - embora não contenha um expresso e directo reconhecimento da dívida exequenda - indicia a existência de uma relação obrigacional que o vincula no confronto do exequente; e a segunda consubstanciada pela própria relação obrigacional que, não resultando, em termos auto-suficientes, daquele título, é introduzida no processo através de um verdadeiro articulado, complementar do documento em que execução se funda. Saliente-se que esta terceira e ampla perspectiva acerca da delimitação doelenco dos títulos executivos extrajudiciais foi possibilitada – e decorre directamente – do objectivo, prosseguido pelo legislador na reforma de 1995/96, de ampliação das condições de exequibilidade dos documentos particulares, assinados pelo devedor e que indiciem, com um razoável grau de probabilidade, a existência da obrigação exequenda, com vista a evitar a duplicação das vias declaratória e executiva, embora com o inevitável custo de uma maior litigiosidade no enxerto declaratório que possibilita ao executado controverter a existência da obrigação que surge como causa de pedir da execução: embargos de executado e actual oposição à execução. E este entendimento tem sido acolhido e desenvolvido pela doutrina e jurisprudência, claramente maioritárias, (veja-se, de forma paradigmática, o Ac. do STJ de 19/12/06, proferido no P.06B3791) que não têm interpretado a norma constante da al. c) do art. 46º do CPC com o sentido , nomeadamente, de o acto recognitivo - reconhecimento da dívida - constante do título ter de ser expresso , directo , inequívoco e auto-suficiente, admitindo, consequentemente, que possam valer como títulos executivos documentos que reconheçam, embora não de forma cabalmente expressa e categórica, a obrigação exequenda - e que careçam, para serem perfeitamente concludentes quanto à realidade desta, de ser conjugados com elementos fácticos complementares, estranhos ao próprio título, a introduzir e fazer adquirir processualmente pelo exequente através da alegação fáctica no requerimento executivo e de uma ulterior actividade probatória a seu cargo”.
Sendo óbvio no caso em apreço que está excluído o primeiro cenário, o do cheque valer como verdadeiro título de crédito, está porém garantido que o cheque em causa pode valer como título executivo, quer se opte pela segunda, quer pela terceira das perspectivas jurídicas citadas.
Com efeito, se optarmos pela terceira via, podemos dizer, como se diz no Acórdão do TRP de 19 de Junho de 2006 (Relator: António José Pinto da Fonseca Ramos), que “sendo o cheque um título abstracto, não constando dele, por isso, a causa da obrigação que esteve na base da sua emissão, apenas pode servir de título executivo, como documento particular assinado pelo devedor, se o exequente, no requerimento executivo, invocar, expressamente, a relação subjacente que esteve na base da respectiva emissão”. Que é justamente o que fez o ora exequente/embargado, que alegou no requerimento executivo os factos constitutivos da relação jurídica subjacente.
Se, ao invés, optarmos pela segunda perspectiva, tenderemos a afirmar que o cheque em causa, ainda que não reúna condições para valer como título de crédito, pode servir de título executivo, já que implica o reconhecimento unilateral de uma dívida (artigo 458º CC), não sendo sequer necessária a invocação da relação subjacente.
É neste último sentido que se pronuncia Abrantes Geraldes, in Títulos Executivos, Revista “Themis”, ano IV – nº 7 (2003), 60-65: “(…) encarados os documentos (impressos de letra, livrança ou cheque) sem a valoração consentida pela sua sujeição ao regime jurídico das respectivas Leis Uniformes, facilmente se pode visionar em cada um deles uma promessa de cumprimento ou o reconhecimento de uma dívida: na livrança a promessa de pagamento da quantia, por parte daquele que a subscreve, a favor de quem nela é indicado; na letra, a promessa (do aceitante) de que pagará a quantia àquele que figura na qualidade de sacador; mesmo num cheque (nominativo), com relativa facilidade se antolha por detrás da ordem de pagamento dada pelo sacador ao banco sacado, o reconhecimento, ainda que por interposta pessoa, de uma dívida. Em qualquer destas situações, abstraindo da génese de cada um dos referidos documentos, jorra deles uma declaração de dívida que, independentemente da sua causa, vincula o respectivo subscritor ao pagamento de uma determinada quantia, sem prejuízo da invocação, no âmbito da defesa, de facto impeditivos dos efeitos pretendidos (…)”.
Estamos pois em condições de concluir que, no caso dos autos, o documento apresentado à execução, conjugado com o requerimento executivo, constitui título executivo bastante para fundar a presente acção executiva.
Claro que a obrigação exequenda não é a obrigação cambiária decorrente do cheque, mas antes a obrigação de restituição emergente da nulidade do contrato de mútuo celebrado entre as partes. Uma vez que o contrato de mútuo de valor superior a € 25.000,00 só é válido se for celebrado por escritura pública (art. 1143º CC, na redacção do Decreto-Lei nº 116/2008, de 4 de Julho), e o contrato dos autos foi meramente verbal, tal contrato é nulo por inobservância da forma imposta por lei (art. 220º CC). Essa nulidade tem como efeito a obrigação de restituir o que tiver sido prestado (art. 289º CC).
Daí que, como se escreve no Acordão de Fixação de Jurisprudência do Supremo Tribunal de Justiça nº 3/2018 (Revista 1181/13.TBMCN-A.P1.S1), depois de elencar as correntes jurisprudenciais existentes na matéria: “segundo pensamos, o apontado dissídio jurisprudencial deve resolver-se no sentido de que, uma vez constatada a nulidade do negócio subjacente ao título executivo apresentado e sendo esse vício do conhecimento oficioso, tal título pode valer de fundamento, não para o cumprimento específico do contrato, mas para a restituição do que houver sido prestado, como consequência legal da nulidade, nos termos do art. 289.º, n.º 1, do CC. Daí que o título não possa valer, designadamente, para exigir os juros que tenham sido estipulados no contrato, por este ser nulo, mas apenas os juros de mora, à taxa legal desde a citação para a acção executiva, por força do que dispõem os arts. 805.º, n.º 1, e 806.º do mesmo código.
Ora, o exequente veio alegar, no seu requerimento executivo: “a nulidade do mútuo, por falta de forma legal, não retira assim exequibilidade a tais documentos, pois que por força do Assento do STJ nº 4/95 (hoje AUJ), a obrigação de restituição sempre existirá ao abrigo do artigo 289º, nº 1, do CC, sendo avesso à celeridade e economia de meios obrigar o exequente a deitar mão da acção declarativa para obter a prestação”. E tem toda a razão.
Mas depois acrescenta: “por conseguinte, deve o executado ao exequente a quantia de 32.930,00 €, cujo pagamento se reclama. São também abrangidos pela respectiva força executiva os juros de mora peticionados a partir da data em que aquele cheque deveria ser pago”.
Mas aqui já não lhe assiste razão, sendo até a sua pretensão intrinsecamente contraditória. Estando em causa não o cumprimento coercivo do contrato, mas sim a obrigação de devolução decorrente da nulidade do mesmo, a obrigação exequenda resume-se à devolução do que foi prestado; acresce que, como decorre do AUJ citado, o título executivo não vale para exigir os juros remuneratórios que tenham sido estipulados no contrato, por este ser nulo, mas apenas os juros de mora, à taxa legal desde a citação para a acção executiva, por força do que dispõem os arts. 805.º, n.º 1, e 806.º do mesmo código.
Donde, apesar de termos inicialmente concluído que era processualmente possível conhecer da questão dos juros usurários, temos agora de concluir que, apesar de possível, estar a apreciar se a cláusula de juros constante do contrato é usurária é actividade totalmente inútil, pois não estão a ser cobrados nestes autos quaisquer juros remuneratórios, apenas sendo devidos os juros moratórios, à taxa supletiva legal.
Resumindo e concluindo, e tendo presentes os factos que ficaram provados, a aplicação do Direito aos mesmos, e ainda a Jurisprudência obrigatória decorrente do AUJ nº 3/2018, o documento apresentado pelo exequente é válido como título executivo, só que a obrigação exequenda que o mesmo comprova - e permite executar - não é a obrigação decorrente do contrato de mútuo, acrescida dos juros remuneratórios, mas sim a obrigação de devolução do que foi prestado (€ 30.000,00) decorrente da nulidade do mútuo celebrado, acrescida dos juros de mora, à taxa supletiva legal, desde a citação para a acção executiva até integral pagamento.
Os embargos de executado, que assentavam na alegação de invalidade do título executivo e na alegação da taxa de juros ser usurária, improcedem.
V- DECISÃO
Por todo o exposto, este Tribunal da Relação de Guimarães decide julgar o recurso improcedente, e, confirmando a sentença recorrida, determina o prosseguimento da execução, mas pela quantia exequenda de € 30.000,00, acrescida dos juros de mora, à taxa supletiva legal, desde a citação para a acção executiva até integral pagamento.