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FIANÇA
DECLARAÇÃO DE VONTADE
Sumário
I - Como decorre expressamente do disposto no artigo 628, n.º 1 do CC, a vontade de prestar fiança tem de ser expressamente declarada. II – Tal não sucede quando os recorridos, ainda que referenciados como fiadores num contrato de arrendamento e tendo-o assinado como terceiros outorgantes não prestaram uma só declaração de onde aquela vontade pudesse resultar.
Texto Integral
Processo n.º 9512/17.6T8VNG.P2
Recorrentes – B… e C…
Recorridos – D… e E…
I – Relatório
1 – B… e C… instauraram a presente ação contra D… e E… e pediram a condenação dos mesmos a pagar aos autores a) O capital em débito de 36.800,00€, b) Os juros de mora vencidos e vincendos e c) As custas, encargos e despesas judiciais.
2 – Fundamentando o pretendido, alegam que, por contrato de arrendamento, datado de 27.07.2011, deram de arrendamento à sociedade comercial “F…, LDA.”, o imóvel correspondente a um estabelecimento comercial e para o exercício da atividade por si desenvolvida; que o contrato teve início no dia 1.07.2011 e foi celebrado pelo prazo de 4 anos, “renovando-se automaticamente no fim do prazo, por períodos iguais e sucessivos de cinco anos, enquanto não for validamente denunciado”; que estipularam, ainda, que a denúncia do mesmo, por qualquer um dos contraentes, só operava quando efetuada com um prazo de pré́-aviso de 18 meses. Acrescentam que, “no âmbito do mesmo contrato, os RR. aceitaram, sem reservas, serem fiadores e principais pagadores do bom cumprimento de todas as obrigações que, por aquele contrato e suas renovações, impenderam sobre a arrendatária” e, “embora não tenham renunciado ao benefício de excussão prévia, assumiram-se principais pagadores de um contrato de arrendamento comercial, nos termos do art. 101.º do Código Comercial, atento o escopo do arrendamento em causa” (cfr. doc. n.º 3). Dizem também que a arrendatária denunciou o contrato, incumprindo o período de denúncia e não pagou as rendas já vencidas nem a indemnização a que alude o n.º 1 do art. 1041 do Código Civil.
3 – Os réus contestaram em longo articulado e defenderam a inviabilidade da ação, desde logo porque nunca prestaram a favor dos autores uma válida declaração de fiança, que tinha de assumir a forma escrita, exigida para a obrigação principal e acrescentam que, de todo o modo, sempre a pretensa fiança há muito se havia extinto. Dizem ainda que, ao contrário do defendido pelos autores, e ainda que a sociedade arrendatária fosse uma sociedade comercial, estamos perante uma relação meramente civil e, por outro lado, os autores nunca demandaram a pretensa devedora, não demonstrando que tenham sobre esta qualquer crédito. Defendem também que a arrendatária rescindiu o contrato com causa bastante significativa, tendo sofrido elevados prejuízos, que tem direito a reclamar dos senhorios, e sempre cumpriu as suas obrigações. Terminam a sustentar que os autores agem em abuso do direito e pretendem enriquecer sem causa.
4 – Autorizados a tanto, e no exercício do contraditório, os autores responderam à contestação. Defendem que o arrendamento comercial que invocam integra o arrendamento para outros fins, que os réus reconhecem no seu artigo 10.º e que o mesmo deixou de estar sujeito a escritura pública. Acrescentam que os réus assumiram inequivocamente a qualidade de fiadores e não gozam do benefício da excussão.
5 – O tribunal entendeu que podia ser dispensada a audiência prévia pois “as partes já́ exerceram o contraditório relativamente a todas as questões levantadas e que já́ apresentaram os respectivos requerimentos probatórios” e notificou as partes para se pronunciarem sobre essa dispensa.
6 – Os réus responderam àquela notificação dizendo nada terem opor e, em despacho subsequente, solicitou-se aos autores um esclarecimento [Estão os autos em fase de saneamento. Compulsados os autos verifica-se que a causa de pedir, nos moldes articulados pelos autores, assenta na cessação de um contrato de arrendamento por denúncia da arrendatária em que esta não procedeu ao pagamento das rendas vencidas que os autores elencam, pretendendo os autores, através da presente ação, ser ressarcidos dos valores que resultam do incumprimento do alegado contrato de arrendamento acionando os seus garantes. Ora, o contrato de arrendamento tem é por natureza contínuo. Os autores alegam que «encontra-se por pagar todas as rendas vencidas e não pagas referentes aos meses de Agosto, Outubro, Novembro e Dezembro de 2015». O Tribunal não compreende o motivo de – até pelo cotejo do demais alegado – o mês de Setembro de 2015 não comportar o elenco dos meses do alegado incumprimento. Portanto, nos termos da alínea b) do n.º 2 do artigo 590, do Código de Processo Civil, notifique os autores para esclarecer a questão suscitada], o que sucedeu em pronúncia imediata [1. A renda de Setembro relativa ao prédio objecto dos presentes autos foi paga pelos RR. 2. Daí que, em consequência, o identificado mês não se encontra no leque de meses em incumprimento e cujo respectivo pagamento é peticionado].
7 – Foi então proferida sentença que, “Nos termos conjugados do n.º 1 do artigo 628.º e artigo 631.º, do Código Civil, e nos termos do previsto na alínea b), do n.º 1, do artigo 595.º, do Código de Processo Civil, julgo a presente ação improcedente e, por isso, absolvo o réus do pedido que os autores contra si formularam. Custas pelos autores. Registe e notifique”.
8 – Inconformados com a decisão, os autores apelaram, pedindo a revogação da sentença e a sua substituição por outra que adite aos factos provados o seguinte “No contrato estipularam ainda, à frente da identificação dos RR, que estes intervinham na qualidade de fiadores” e, consequentemente, reconhecer-se a qualidade de fiadores dos recorridos e, por essa via, serem condenados no pedido ou “subsidiariamente ser declarada nula a decisão recorrida, com todas as consequências legais”.
9 – Por acórdão proferido nesta Relação a 6.05.2019 foi deliberado “julgar parcialmente procedente o recurso interposto pelos AA., consequentemente anulando-se a decisão recorrida e determinando-se que seja designado dia para a realização da audiência prévia para os fins previstos no artigo 591.º do CPC. Custas do recurso pelos recorridos”.
10 – Na sequência do deliberado, foi designada e teve lugar a audiência prévia, nos termos que a respetiva ata documenta.
11 – Conclusos os autos, foi proferida sentença, que assim decidiu “Nos termos conjugados do n.º 1 do artigo 628.º e artigo 631.º, do Código Civil, e nos termos do previsto na alínea b), do n.º 1, do artigo 595.º, do Código de Processo Civil, julgo a presente ação improcedente e, por isso, absolvo o réus do pedido que os autores contra si formularam. Custas pelos autores. Registe e notifique”.
II – Do Recurso
12 - Inconformados com a decisão antes referida, os autores interpuseram recurso de apelação, formulando as seguintes Conclusões:
i. Os recorrentes são donos e legítimos proprietários do prédio urbano, composto por casa de cave, rés-do-chão e andar, com logradouro, sito na Rua …, n.ºs …, …, … e … da freguesia …, concelho de Vila Nova de Gaia, inscrito na matriz sob o artigo urbano n.º 2006 daquela freguesia e descrito na Conservatória do Registo Predial de Vila Nova de Gaia sob o n.º 27942.
ii. Os recorrentes prometeram dar de arrendamento, no pretérito dia 02.07.2010, à sociedade comercial por quotas “F…, LDA.”, representada pela Exma. Senhora G…, sócia-gerente com poderes para o ato, o imóvel identificado correspondente a um estabelecimento comercial e para o exercício da atividade por si desenvolvida.
iii. Os recorrentes deram de arrendamento, no pretérito dia 27.07.2011, à sociedade comercial por quotas “F…, LDA.”, representada pela Exma. Senhora G…, sócia-gerente com poderes para o ato, o imóvel correspondente a um estabelecimento comercial e para o exercício da atividade por si desenvolvida, tendo o contrato início no dia 01.07.2011 e foi celebrado pelo prazo de 4 (quatro) anos, “renovando-se automaticamente no fim do prazo, por períodos iguais e sucessivos de cinco anos, enquanto não for validamente denunciado”.
iv. No contrato estipularam as partes, ainda, que a denúncia do mesmo, por qualquer um dos contraentes, só operava quando efetuada com um prazo de pré-aviso de 18 (dezoito) meses face ao momento para o qual pretendessem a produção dos seus efeitos.
v. Tudo o que desde já se alega encontra-se assente nos presentes autos, quer por via do Tribunal a quo ter dado como provado o contrato de arrendamento celebrado e junto aos autos com a petição inicial quer porque, no que respeita à promessa de arrendamento de 02.07.2010, os RR. não impugnaram o alegado pelos AA. no requerimento de 01.03.2018 com referência “CITIUS” n.º 17947331.
vi. No âmbito do contrato de arrendamento, os recorridos aceitaram, sem reservas, serem fiadores e principais pagadores do bom cumprimento de todas as obrigações que, por aquele contrato e suas renovações, impenderam sobre a arrendatária “F…, LDA.”, tal como já o tinham declarado no aludido contrato-promessa de arrendamento.
vii. A arrendatária denunciou o contrato, por carta datada de 14.12.2015, abandonando o imóvel no dia 31.12.2015, não tendo pago as rendas já́ vencidas e respeitantes aos meses de agosto, outubro, novembro e dezembro de 2015, nem a indemnização a que alude o n.º 1 do art. 1041 do Código Civil (CC), situação da qual os recorridos têm perfeito, na medida em que disso foram informados pelos recorrentes e por notificação judicial avulsa do passado dia 16.10.2017 (cuja cópia foi junta com a petição inicial).
viii. São, portanto, devidas todas as rendas vencidas e não pagas referentes aos meses de agosto, outubro, novembro e dezembro de 2015, data em que operou a denúncia (14.12.2015) do contrato de arrendamento, que se computam no montante de EUR. 6.400,00 (EUR. 1.600,00 x 4) a que acresce o montante de EUR. 3.200,00 (três mil e duzentos euros), também em dívida, respeitante à indemnização prevista no n.º 1 do art. 1041 do CC [(EUR. 1.600,00 / 2) x 4].
ix. De outra sorte, a denúncia efetuada pela arrendatária ocorreu no dia 14.12.2015 com o objetivo de abandonar o locado no dia 31.12.2015, o que efetivamente aconteceu, pelo que, nos termos contratuais e legais a denúncia só produziria efeitos relativamente aos recorrentes a partir do passado dia 30 de Junho de 2017, o que não aconteceu, sendo, portanto, os recorrentes credores da quantia equivalente a 17 (dezassete) meses de renda, concretamente, EUR. 27.200,00 (EUR. 1.600,00 x 17).
x. Desta feita, nos precisos termos expostos, encontra-se em dívida, a título de capital, a quantia total de EUR. 36.800,00 (EUR. 6.400,00 + EUR. 3.200,00 + EUR. 27.200,00), à qual acresce os juros de mora vencidos e vincendos, à taxa legal em vigor, até efetivo e integral pagamento, sendo responsáveis pelo pagamento quer os arrendatários, quer os fiadores – ora recorridos – naquela mesma qualidade.
xi. O Tribunal a quo olvidou acrescentar aos factos dados como provados que no contrato consta no seu introito a seguir à identificação dos recorridos a seguinte expressão: «na qualidade de fiadores» (sublinhado nosso) (cfr.Doc. n.º 3 junto com a petição inicial).
xii. Pelo que deverá, em concomitância ser aditado um novo facto aos factos provados, o seguinte: «No contrato de arrendamento celebrado estipularam, ainda, à frente da identificação dos RR., que estes intervinham na qualidade de fiadores».
xiii. Está expressamente dito no introito do aludido contrato que os terceiros outorgantes, ora recorridos, assumem a qualidade de fiadores, o que foi omitido na redação da decisão em crise.
xiv. Os recorridos estavam certos e cientes da responsabilidade que assumiam e na qual incorriam, sendo cristalino de ver que a única intervenção se deve exclusivamente à prestação da garantia em causa, daí declararem intervir na qualidade de fiadores, apondo, de livre vontade, a sua assinatura no contrato objeto dos autos, pelo que não será́ de aceitar a tomada de posição do Tribunal a quo.
xv. Não existe, portanto, qualquer vicio da vontade, até porque tal nem tampouco é alegado pelos recorridos, sendo que estes representaram e sopesaram a garantia que ali prestavam, dado que, inclusive, tiveram 20 dias para analisar e meditar sobre quais as consequências jurídicas da sua posição de fiadores no espaço temporal que mediou entre a assinatura do contrato-promessa de arrendamento (02.07.2010) e a assinatura do contrato de arrendamento (27.07.2011), período mais que suficiente para, inclusive, se aconselharem/informarem junto de quem bem entendesse quanto a tal matéria.
xvi. O Tribunal a quo desconsiderou, assim, o texto do contrato de arrendamento junto aos autos, bem como a interpretação do mesmo em conjugação com a interpretação do disposto n.º 1, do art. 628 do CC, tomando posição ao arrepios de basilares princípios do Direito como sejam o princípio da conservação dos negócios jurídicos e a teoria da impressão do declaratário.
xvii. In casu, a solidariedade por parte dos recorridos relativamente à arrendatária, ocorre na medida em que estamos perante um contrato de arrendamento não habitacional, com o escopo mercantilista, outorgado por duas sociedades comerciais (art. 13, 2.º § do Código Comercial), motivo pelo qual será́ de aplicar o art. 101 do Código Comercial.
xviii. Atentando, desde logo, no título do contrato de arrendamento objecto do presente litígio, o mesmo é claro ao denominar-se de “Contrato de Arrendamento Comercial”, sendo que, além disso, o contrato é objetivamente comercial e as partes que nele intervêm, designadamente a arrendatária, é também ela comerciante.
xix. Dispõe o art. 101 do Código Comercial que “Todo o fiador de obrigação mercantil, ainda que não seja comerciante, será́ solidário com o respectivo afiançado”, pelo que, para os presentes autos, é inclusive inócuo que os ora recorridos sejam ou não comerciantes (como de resto pacificado na jurisprudência), pelo que os recorridos respondem solidariamente com o afiançado, o que acarreta que haja uma derrogação legal do benefício de excussão prévia.
xx. Ainda, e nos termos do art. 634 do Código Civil, com a prestação da fiança os recorridos assumiram a obrigação de principais pagadores a qual cobre todas as consequências jurídicas do incumprimento contratual por parte da locatária.
xxi. Conforme os recorrentes já deixaram grafado supra, afirma-se, com toda a afouteza que lhes é legítima, que da simples leitura do contrato de arrendamento junto aos autos infere-se clara e inequivocamente a declaração expressa emitida pelos recorridos, no sentido de assumirem-se como fiadores dos principais devedores, pelo que está plenamente cumprido o previsto no art. 682 do Código Civil, atendendo a que encontra-se vertido no introito do contrato: “D… e E…, casados no regime de comunhão geral, com os NIF ……… e ……… e BI n.º ……. de 28.02.2002 dos SIC de Lisboa e ……. de 28.02.2002 dos SIC de Lisboa, na qualidade de fiadores”.
xxii. O introito do contrato é parte integrante do mesmo e, como tal, terá́ que ser devidamente sopesado quando analisado e interpretado o escopo, substância e alcance do acordado pelas parte na sua integralidade tendo o Tribunal a quo desaplicado tais critérios da boa interpretação dos negócios jurídicos, não relevando a declaração dos terceiros outorgantes (ora recorridos) de que outorgavam o contrato na qualidade de fiadores.
xxiii. Foi descurado pelo Tribunal a quo, portanto, o que resulta por mera e obrigatória leitura do contrato, sendo que o seu conteúdo foi trazido, aceite, pregado e não impugnado pelas próprias partes para os autos.
xxiv. Importa desde logo referir que não subsiste na Lei qualquer forma sacramental para a declaração de fiança (neste sentido, MANUEL JANUÁRIO DA COSTA GOMES, Assunção Fidejussória de Dívida, 2000, Almedina).
xxv. Da melhor doutrina infere-se que existe a necessidade de a declaração da fiança ser prestada por escrito, com vista a funcionar, apenas, como uma medida de proteção, o que ocorreu no caso sub judice, dado que os recorridos outorgaram o contrato na qualidade de fiadores, o que não ignoravam nem podiam ignorar atento até o período sabático decorrido entre a outorga do contrato-promessa de arrendamento e o contrato definitivo.
xxvi. A outorga do contrato de arrendamento na qualidade de fiadores, qualidade essa devida e expressamente identificada no aludido documento não deixa de ser um comportamento positivo, exteriorizado direto e imediato de manifestação de livre vontade, sendo a sua solenidade superior pelo facto de ter sido feito por escrito.
xxvii. Ao acoplar-se, em sufixo, à identificação dos recorridos que os mesmos intervinham «na qualidade de fiadores», é inquestionável que se dissiparam quaisquer dúvidas sobre o propósito da vinculação dos mesmos.
xxviii. Estando em causa uma declaração negocial a mesma terá́ de ser interpretada à luz do artigo 236 ss. do CC, pelo que, havendo dúvidas quanto ao sentido e alcance de uma declaração negocial interpretar-se-á́ a mesma à luz daquilo que ser percebido pelo homem médio declaratário.
xxix. Aqui chegados, outra não seria a impressão de um declaratório que não seja o de que os recorridos outorgaram o contrato na qualidade de fiadores, dado que contrataram de livre e informada vontade, uma vez que, no aludido contrato, aparece expressamente declarado que o outorgam na qualidade de fiadores.
xxx. Os demais elementos apontados pela Doutrina para se apurar o sentido da declaração apontam, de forma inequívoca, no sentido que ter que aos recorridos ser-lhe confinada a qualidade e posição de fiadores, sendo justamente nesses termos que outorgaram o aludido negócio.
xxxi. No que respeita as circunstâncias que antecederam a celebração, denote-se que 20 dias antes do negócio definitivo os recorridos intervieram na celebração do contrato-promessa de arrendamento, outorgando os mesmos na qualidade de fiadores, sendo que a declaração de vontade no contrato-promessa foi posteriormente decalcada no contrato definitivo.
xxxii. Quanto à finalidade, usos e costumes, note-se que é um facto notório e de comum conhecimento que, atualmente, é geral a exigência dos senhorios no sentido que os arrendatários garantam as suas obrigações através dos fiadores, sendo essa realidade necessariamente do conhecimento dos recorridos.
xxxiii. A atuação dos recorridos tanto no período pré-negocial (designadamente no contrato-promessa de arrendamento) como no próprio ato de redução do contrato a escrito, manifestando sempre a vontade de se constituírem fiadores dos recorrentes e o teor da redação da identificação dos recorridos revela que os mesmos tinham conhecimento, sabendo inclusive que a prestação de fiança era um requisito necessário para que os recorrentes celebrassem com a devedora principal o contrato de arrendamento, o que criou, necessariamente, nos recorrentes confiança no sentido de que os recorridos iriam obrigar-se no contrato, de acordo com a vontade manifestada e pretendida por ambas as partes.
xxxiv. Uma interpretação diferente do que ora se propugna colide frontalmente com as legítimas expectativas, com a confiança legitimamente criada e com boa-fé com que os recorrentes contrataram, além de ser um mau augúrio para a tão necessária segurança do tráfico jurídico e comercial e com a interpretação conforme a lei dos negócios jurídicos.
xxxv. Acresce que a fiança em causa é horizontal e verticalmente determinada, ficando determinada, por efeito da Lei e do contrato, qual a medida, sentido e alcance da obrigação assumida pelos recorridos.
xxxvi. Recorda-se que as partes não têm de prever no contrato aquilo que já se encontra previsto legalmente, sendo, inclusive, uma boa aplicação do princípio da economia e da simplicidade deixar na Lei aquilo que ali já se encontra previsto, evitando-se replicações desnecessárias e prolixas a nível contratual.
xxxvii. Acresce a tudo que a decisão acaba por atropelar outro princípio elementar de Direito Civil: o princípio da conservação dos negócios jurídicos, o qual tem por base a intenção do legislador em perturbar o mínimo possível o tráfico jurídico e proteger a boa-fé de quem, com essa mesma forma, assim contratou (chamando-se à colação a decisão do STJ de 16.06.2015, Proc. 1909/07.6TBVFR.P1.S1, relator: Maria Clara Sottomayor num caso em que tudo terá́ de semelhante com os presentes autos e que, por via disso, daquela decisão deverão ser transpostos os respectivos ensinamentos).
xxxviii. A interpretação do Tribunal a quo acarretaria que seria de nenhum efeito a expressão “na qualidade de fiadores” que as partes especificamente apuseram no contrato, sendo que o mesmo resultou da livre negociação entre as mesmas ocorrida, interpretação que atenta contra a interpretação dos negócios jurídicos e contra as regras de experiência comum, ditando estas que as partes não clausulam aquilo que não dotam de qualquer importância.
xxxix. O princípio da conservação dos negócios jurídicos impõe que haja a menor intervenção na alteração dos negócios jurídicos já́ celebrados e, a haver necessidade de bulir nos mesmos, tal intervenção deverá ser feito de modo a conservar e ir de encontro aos efeitos queridos pelas partes (coordenadas jurídicas manifestamente violadas).
xl. Os contratos são um todo unitário, não estão subordinados a qualquer consagração de formatação do seu conteúdo e deverão ser interpretado de forma conjugada, integral e unitária, pautando-se por um dos mais elementares princípios do Direito Civil, em geral, e dos contratos, em particular: o princípio pacta sunt servanda, claramente descurado pelos recorridos, frustrando as legítimas expectativas que os recorrentes criaram com a assunção da garantia pessoal prestada por aqueles.
xli. É assim desnecessário a existência de uma cláusula autónoma em que aquele que se pretende vincular como fiador aí o declare, como resulta cabalmente do exposto e que é escorado em ensinamentos da doutrina e jurisprudência mais autorizada, tendo o Tribunal a quo refugiado-se quase numa questão meramente estilística e de arrumação do contrato.
xlii. Na verdade, os próprios recorridos, atendendo ao modo como formataram o contrato de arrendamento, consideraram ser despicienda a redação de uma cláusula atomística de fiança (por ser sobejamente conhecida a sua vontade real, a qual bem frisada no dito contrato-promessa), a qual, de resto, e uma vez que não se vislumbra ser da vontade deles estabelecer qualquer redução ou exclusão da sua responsabilidade enquanto fiadores seria repetitivo, e por este facto, inócua e apenas relevaria para a aplicação do brocardo quod abundat non nocet.
xliii. Ressalta à vista desarmada e a um declaratário na posição de homem médio que os recorridos quiseram de forma consciente afiançar o arrendamento sob escrutínio, manifestando expressamente essa vontade, por escrito, e por duas vezes.
xliv. Aqui chegados, a decisão proferida pelo Tribunal a quo não pode manter-se por tudo o quanto se alegou acima, devendo ser revogada e substituída por outra que adite aos factos dados como provados, o seguinte: «No contrato estipularam, ainda, à frente da identificação dos RR., que estes intervinham na qualidade de fiadores».
xlv. A sentença de que ora se recorre está dotada de altaneiras insciências por arbítrio do Tribunal a quo, o que não se alcança, porquanto mais elementos probatórios haveria no processo caso o Tribunal a quo tivesse determinado a sua produção, sendo que os recorrentes desde logo juntaram o competente requerimento probatório com o respectivo articulado, os quais poderiam elucidar os presentes autos da justa interpretação e compreensão do contrato de arrendamento e da qualidade e razão com que os recorridos o outorgaram, bem como as circunstâncias da fase pré-negocial que o antecederam.
xlvi. Não tendo o Tribunal a quo procedido à produção da prova requerida, incorre a sentença recorrida em nulidade, a qual desde já se argui para todos os efeitos legais, dado que omitiu a prática de um ato que influiu, de forma determinante, no exame e na decisão da causa (art. 195, n.º 1 do CPC).
xlvii. A decisão é ainda nula por enfermar do vício previsto no art. 615, n.º 1, c) do CPC dado haver uma manifesta contradição entre os factos, o direito aplicado, a jurisprudência e doutrina citada e a decisão tomada a final, o que acarreta uma inexistência de coerência logica entre o argumentação utilizada e a sentença propriamente dita, tudo conforme exposto nas alegações, a qual desde já́ se argui.
xlviii. Foram violados, entre outros, arts. 224, 236 e segs. e 628 do Código Civil e arts. 195, n.º 1 e 615, n.º 1, c) do Código de Processo Civil.
13 - Os réus responderam ao recurso e, defendendo a sua improcedência e a manutenção da decisão recorrida, concluíram:
I. O presente recurso é insuscetível de ser apreciado, desde logo por violação da previsão do art. 639 do CPC, conforme invocado.
II. De facto, as conclusões dos AA. como que reproduzem o corpo das suas alegações, o que os tribunais têm entendido corresponder a incumprimento do referido normativo e assim à própria deserção do recurso. Sem prescindir
III. O recurso tal como apresentado pelos AA. é inviável, insuscetível de apreciação ou pelo menos inepto, pelo menos quanto à reapreciação da questão de facto.
IV. Os recorrentes no seu recurso pretendem sindicar a solução de facto constante da decisão recorrida, mas não cumpriram igualmente o comando normativo do art. 640 do CPC, pelo que esta vertente de recurso não pode também ser apreciada. Sem prescindir
V. Os recorrentes continuam a pretender apresentar a Juízo uma questão nova é o que consta de resto logo em diversas das sua conclusões, v.g. conclusões v, xi, xiii, xiv, xxi, e xxxiii, etc..
VI. Os recorrentes vêm ao arrepio do que pediram na ação, também quanto ao pedido, pretender reforma-la (à causa de pedir) de novo, invocando uma causa de pedir diversa.
VII. Como é unanimemente reconhecido, são as conclusões que fixam o objeto do recurso.
VIII. Pelo que o recurso assim interposto é ilegal, inconcludente, insuscetível de apreciação ou pelo menos inepto.
IX. Os recorrentes pretendem ainda socorrer-se de documento que não pode ser atendido nos autos, conforme decisão transitada em julgado neles lavrada, por acórdão da Relação do Porto.
X. Por outro lado, pretendem os recorrentes também que o Tribunal da Relação aprecie questões novas, cujo conhecimento lhes está vedado em função, desde logo, do principio da estabilidade da instância.
XI. A alteração da decisão quanto à questão de facto pretendida pelos recorrentes para além de insuscetível apreciação é absurda, não tendo qualquer suporte de prova.
XII. Sem prejuízo, em ampliação de recurso, nos termos do artigo 636 do CPC, se tal se vier a mostrar necessário mais deve ser retirada dos factos assentes a matéria da alínea D), com os fundamentos expostos no presente recurso. Quanto à questão de Direito
XIII. Na relação sujeita a Juízo não existe qualquer declaração de fiança, nos termos da lei, válida e legalmente imputável aos recorridos.
XIV. No caso concreto, a lei impunha que tal declaração fosse inequivocamente expressa, proferida na forma escrita – o que não se verifica.
XV. A pretensa fiança atribuída aos recorridos além de inexistente seria sempre nula por falta de forma.
XVI. Em qualquer caso, os recorridos nunca poderiam ser “responsabilizados” pelos recorrentes, pelas sucessivas razões constantes da sua contestação.
XVII. Ao contrário do pretendido também pelos recorrentes, a sentença é coerente, inexistindo qualquer nulidade, maxime por oposição entre a fundamentação e a decisão.
XVIII. E também e por maioria de razão, pela suposta omissão de ouvir as partes e as testemunhas, quer porque tal não constitui qualquer nulidade da sentença, quer porque em qualquer caso tal audição era irrelevante para a boa decisão da causa. Sem prescindir
XIX. Não assiste razão aos recorrentes em qualquer caso, como não lhes assiste fundamento, para a presente ação que, sempre, em vária sede, deve julgar-se improcedente, nos termos expostos.
XX. Improcedem pois todas as conclusões formuladas no recurso pelos recorrentes.
XXI. A decisão recorrida, não violou as normas indicadas pelos recorrentes, nem quaisquer outras, pelo que não merece censura.
14 – O recurso foi recebido nos termos legais, em despacho cujos termos foram mantidos nesta Relação, não obstante a posição dos apelados, a que se fará renovada referência.
15 – Os autos correram Vistos e entendemos que nada obsta à apreciação do mérito do recurso.
16 – Tendo em conta a posição tomada pelos apelados, importa saber se o recurso é admissível e sendo-o, o seu objeto traduz-se em saber se o tribunal recorrido, ao decidir como decidir cometeu alguma nulidade processual ou da sentença e se esta deve ser revogada porque, ao contrário do fundamento essencial da decisão recorrida, os apelados intervieram no contrato de arrendamento validamente como fiadores.
III – Apreciação III.I – Admissibilidade do recurso
17 – Na sua resposta às alegações, os apelados sustentam que “O presente recurso é insuscetível de ser apreciado, desde logo por violação da previsão do art. 639 do CPC, conforme invocado”, já que “as conclusões dos AA. como que reproduzem o corpo das suas alegações, o que os tribunais têm entendido corresponder a incumprimento do referido normativo e assim à própria deserção do recurso”.
18 – Ainda que no despacho do relator que recebeu o presente recurso, mantendo o despacho com o mesmo objeto que o tribunal recorrido proferiu, se tenha logo afirmado a admissibilidade do mesmo, não obstante a resposta dos apelados, cumpre agora, mantendo a mesma conclusão, acrescentar o que se segue.
19 – Os apelados, na oposição que antes transcrevemos, referem-se especialmente ao disposto no artigo 639, n.º 1 do Código de Processo Civil (CPC) na parte onde se determina que as alegações do recorrente devem concluir-se de forma sintética, com “indicação dos fundamentos por que pede a alteração ou anulação da decisão”.
20 – O n.º 3 do mesmo normativo impõe ao relator o dever o dever de convidar o recorrente a completar, esclarecer ou sintetizar as conclusões quando estas sejam deficientes obscuras ou complexas, “sob pena de se não conhecer do recurso, na parte afetada”.
21 – Do normativo acabado de citar decorre a correspondência direta entre “complexidade” e “falta de síntese”, o que não sendo evidente em linguagem comum, torna patente que as conclusões, por deverem ser sintéticas, não devem ser a reprodução, total ou parcial, dos argumentos apresentados na motivação do recurso.
22 – Note-se, no entanto que, “Apesar de constituir uma técnica manifestamente errada e violadora das exigências de sintetização (...), a circunstância de, em sede de conclusões, o recorrente reproduzir a motivação vertida na alegação propriamente dita não configura um caso de falta de alegações”[1], sendo que esta falta ou mesmo a falta de conclusões é geradora do indeferimento do recurso, nos termos da alínea b) do n.º 2 do artigo 641 do CPC.
23 – No nosso entendimento, reconhecendo embora que as conclusões apresentadas pelos apelantes não primam pela síntese e, o que coisa diversa, aduzem factos e argumentos que se revelam novos nesta sede recursória, não vemos razão bastante para fazer uso do disposto no artigo 639, n.º 3 do CPC e, por isso e maioria de razão, não são causa de não conhecimento do mérito do recurso.
III.II – Da inatendibilidade do documento invocado pelos apelantes.
24 – Na conclusão “IX” da sua resposta, os apelados vêm dizer que os recorrentes “pretendem ainda socorrer-se de documento que não pode ser atendido nos autos, conforme decisão transitada em julgado neles lavrada, por acórdão da Relação do Porto”.
25 – Não vemos, porém, que os recorrentes hajam requerido a junção de qualquer documento e, percorrendo as suas conclusões o que constatamos é que os apelantes referem no ponto “v” das mesmas que “Tudo o que desde já́ se alega encontra-se assente nos presentes autos, quer por via do Tribunal a quo ter dado como provado o contrato de arrendamento celebrado e junto aos autos com a petição inicial quer porque, no que respeita à promessa de arrendamento de 02.07.2010, os RR. não impugnaram o alegado pelos AA. no requerimento de 01.03.2018”.
26 – Ora, o requerimento de 1.03.2018 consubstancia a resposta dos autores à contestação, autorizada no exercício do contraditório (a que se fez referência no ponto 4 do relatório), pela qual, aliás, não se junta nenhum documento e que, naturalmente, não admitia nova resposta dos réus[2].
27 – É certo que, conforme referem os recorridos, a questão da junção de documentos e concretamente do alegado contrato promessa de 2.07.2010, já foi objeto de apreciação no anterior acórdão proferida nesta Relação e nestes autos, tendo-se dito, além do mais: “E em sustentação desta nova factualidade juntaram os recorrentes o doc. 1 [contrato promessa - vide ponto 7 do corpo alegatório] e o doc. 2 [documentos relativos à instauração da mencionada ação declarativa - vide ponto 101 do corpo alegatório]. Tal factualidade porquanto se traduz na apreciação de questões novas não submetidas à apreciação do tribunal a quo, não é admissível. E como tal considera-se excluída dos fundamentos do recurso. Excluída dos fundamentos do recurso a factualidade nova alegada, desde já se adianta, também a junção dos documentos oferecidos pelos recorrentes em sede de recurso em sustentação de tal factualidade terá́ de claudicar (...) Da conjugação destes normativos resulta que a junção de documentos – para prova dos fundamentos da ação ou da defesa - em sede de recurso, com as alegações só́ é permitida: - quando tal apresentação não tenha sido possível até à apresentação do recurso; ou - quando a sua junção se tenha tornado necessária em virtude do julgamento proferido na primeira instância. Na medida em que os documentos em análise visam demonstrar factualidade nova alegada em sede de recurso mas não admissível, conclui-se também pela não admissibilidade da sua junção. Consequentemente não se admite a junção de tais documentos que como tal deverão ser devolvidos ao apresentante” (sublinhados nossos).
28 – Sem prejuízo de, também agora, não podermos deixar de entender que quaisquer questões novas, não submetidas ao juízo do tribunal recorrido, não poderem fundar o recurso – o que, em concreto, melhor se dirá adiante – a questão da junção de qualquer documento ou do seu uso nesta sede, mostra-se prejudicada, pois nem sequer decorre da apelação dos autores.
III.III – Das alegadas nulidades
29 – Nas conclusões “xlvi” e “xlvii” os apelantes alegam que “Não tendo o Tribunal a quo procedido à produção da prova requerida, incorre a sentença recorrida em nulidade, a qual desde já se argui para todos os efeitos legais, dado que omitiu a prática de um ato que influiu, de forma determinante, no exame e na decisão da causa (art. 195, n.º 1 do CPC)” e acrescentam que “A decisão é ainda nula por enfermar do vício previsto no art. 615, n.º 1, c) do CPC dado haver uma manifesta contradição entre os factos, o direito aplicado, a jurisprudência e doutrina citada e a decisão tomada a final, o que acarreta uma inexistência de coerência lógica entre o argumentação utilizada e a sentença propriamente dita, tudo conforme exposto nas alegações, a qual desde já́ se argui”.
30 – O tribunal recorrido apreciou o mérito da ação em sede de despacho saneador (aliás, como haviam requerido os ora apelantes).
31 – Nos termos do artigo 595, n.º 1, alínea b) do CPC, o despacho saneador destina-se a “Conhecer imediatamente do mérito da causa, sempre que o estado do processo permitir, sem necessidade de mais provas, a apreciação, total ou parcial do ou dos pedidos deduzidos ou de alguma exceção perentória”.
31 – A apreciação do mérito da causa no despacho saneador pressupõe, como decorre do normativo citado, que o estado do processo permita essa apreciação, sem necessidade de mais provas. Se, conhecendo o mérito, como aqui sucedeu, o tribunal respeitou o pressuposto enunciado (desnecessidade de mais provas) e se o fez em decisão que deverá manter-se ou ser revogada é precisamente o objeto desta apelação, e não se traduz, em si mesma, em qualquer nulidade processual atípica.
32 – A sentença aqui em causa, por outro lado e ao contrário do também sustentado pelos apelantes, não padece da nulidade prevista no artigo 615, n.º 1, alínea c), que ocorre quando “Os fundamentos estejam em oposição com a decisão ou ocorra alguma ambiguidade ou obscuridade que torne a decisão ininteligível”.
33 – Ora, da leitura da sentença fica claro que o tribunal entendeu (e citamos) que “Do contrato junto aos autos não resulta que os réus tenham manifestado de forma expressa a sua vontade, tão pouco qual a medida da sua obrigação”, concluindo daí que “não há́ fiança validamente constituída” e que, por isso, “não há́ viabilidade da presente ação”.
34 – Parece-nos evidente, concorde-se ou não com a decisão, que não existe qualquer oposição entre esta e os seus fundamentos, nem se vislumbra qualquer obscuridade ou ambiguidade que a torne ininteligível, ou seja, não ocorre a nulidade invocada pelos apelantes.
III.IV – Fundamentação de facto
35 – Nas suas conclusões “xi” e “xii” os apelantes vêm dizer que “O Tribunal a quo olvidou acrescentar aos factos dados como provados que no contrato consta no seu introito a seguir à identificação dos recorridos a seguinte expressão: «na qualidade de fiadores» (cfr. doc. n.º 3 junto com a petição inicial)” e que “deverá, em concomitância ser aditado um novo facto aos factos provados, o seguinte: «No contrato de arrendamento celebrado estipularam, ainda, à frente da identificação dos RR., que estes intervinham na qualidade de fiadores».
36 – Ainda que os apelantes não tenham cumprido o ónus de quem impugna a decisão sobre a matéria de facto, como os recorridos alertam, a questão que suscitam apenas remete para o documento (contrato) que a decisão recorrida apreciou e no qual fundou a sua decisão.
37 – É evidente para nós que a pretensão dos recorrentes não pode significar, mormente nesta sede fáctica, que o sentido da “qualidade de fiadores” seja o da intervenção dos demandados validamente enquanto fiadores, pois essa é a questão jurídica em causa na ação e no recurso.
38 – Mas nada obsta – até porque está pressuposta a remissão para o documento n.º 3 – que se esclareça e acrescente a qualidade em que os recorridos são referenciados no contrato.
39 – Em conformidade, são os seguintes os factos que relevam à apreciação da causa:
39.A - Por contrato de arrendamento datado de 27 de julho de 2011, os autores deram de arrendamento à sociedade comercial por quotas que atua sob a designação “F…, LDA.”, devidamente representada por G…, sócia gerente com poderes para o ato, o imóvel identificado no antecedente artigo 1.º correspondente a um estabelecimento comercial e para o exercício da atividade por si desenvolvida.
39.B - O contrato teve início no dia 1 de julho de 2011 e foi celebrado pelo prazo de 4 (quatro) anos, “renovando-se automaticamente no fim do prazo, por períodos iguais e sucessivos de cinco anos, enquanto não for validamente denunciado”.
39.C - No contrato estipularam, ainda, que a denúncia do mesmo, por qualquer um dos contraentes, só operava quando efectuada com um prazo de pré-aviso de 18 (dezoito) meses face ao momento para o qual pretendessem a produção dos seus efeitos.
39.D - A arrendatária denunciou o contrato, por carta datada de 14.12.2015 em violação da cláusula primeira do referido contrato, no que concerne ao período de denúncia do mesmo.
39.E – Os apelados, conforme documento n.º 3 junto com a petição, são referenciados como fiadores e assinam enquanto terceiros outorgantes.
III.V – Fundamentação de Direito
40 – Embora já se tenha adiantado anteriormente, convém repetir que o objeto do recurso não pode versar sobre um conjunto de alegações que os recorrentes fazem nesta sede, e apenas nesta sede recursória: referimo-nos ao alegado contrato-promessa que antecedeu o contrato de arrendamento aqui em causa.
41 – Efetivamente, o tribunal de recurso não aprecia questões novas, uma vez que os recursos são “Meios que visam modificar as decisões recorridas, que não criar decisões sobre matéria nova, não podendo assim neles ser versadas questões que não hajam sido suscitadas perante o tribunal recorrido (isto salvas as questões de natureza adjetivo-processual e substantivo-material que sejam de conhecimento oficioso)”[3].
42 – Assim, o objeto material desta apelação é, como se referiu oportunamente, saber se pelos dizeres do contrato em que os réus intervieram como terceiros outorgantes, os mesmo se constituíram fiadores, e o processo haverá de prosseguir, ou não se constituíram, e a sentença deve ser confirmada.
43 – Os fundamentos em que assentou a decisão apelada são os que decorrem da transcrição que, com alguma síntese, agora fazemos: “No contrato os réus surgem identificados como «terceiros outorgantes». O contrato comporta, depois, as declarações dos primeiros outorgantes e da segunda outorgante. No que diz respeito aos fiadores nada se clausulou. Sendo que os terceiros outorgantes o assinaram. Ora, o n.º 1 do artigo 628, do Código Civil, é claro quando refere que a vontade de prestar fiança deve ser expressamente declarada pela forma exigida para a obrigação principal. No caso do contrato destes autos não há́ nenhuma declaração que permita concluir que estes quiseram prestar fiança. Não basta aparecerem indicados como terceiros contraentes que apõem a sua assinatura no documento. Não há́ nenhuma cláusula no contrato que permita a quem quer que o lê concluir que os réus se pretenderam obrigar a garantir a obrigação da devedora principal (...) a responsabilidade do fiador há́-de estar expressa e delimitada de modo claro de onde se evidencie a assunção por parte do fiador de um dever de cumprir especialmente conotado com o dever de cumprir do devedor, o que no contrato dos presentes autos não acontece.
É facto que a obrigação do fiador tem normalmente o mesmo objecto da obrigação do devedor principal: a fiança comporta uma absoluta identidade qualitativa entre a prestação do devedor principal e a do fiador, ainda que não necessariamente do mesmo perfil quantitativo, por isso, não está dispensada a declaração expressa da constituição da vontade do fiador e do quantum da prestação por que responde (cfr. artigo 631, do Código Civil).
Por outro lado, prescreve o artigo 457, do mesmo Código Civil, que a promessa unilateral de uma prestação só obriga nos casos previstos na lei, e, como afirma Henrique de Mesquita «Fiança» CJ ano XI/4/24, a lei consagrou o princípio do contrato ou do numerus clausus dos negócios unilaterais como ato gerador de obrigações. Hoje, interpretando os normativos citados, a Jurisprudência e a Doutrina defendem a natureza contratual da fiança. É que, necessitando a obrigação principal de constar de documento escrito assinado por ambas as partes, igual forma deve revestir o contrato de fiança, sob pena de nulidade: nulidade que persiste, mesmo havendo declaração escrita do fiador. O certo é que se tem entendido que apesar da natureza contratual da fiança, só a declaração do fiador carece de ser prestada por escrito e não já́ a do credor a favor de quem a mesma é prestada, o que se compreende, tendo em conta que quando o fiador é chamado a responder perante o credor, nenhum benefício tira do negócio primitivo entre os contratantes primitivos, portanto, o fiador há́-de ter não só devidamente delineada a sua prestação, como há́-de manifestar a sua vontade de modo expresso. Do contrato junto aos autos não resulta que os réus tenham manifestados de forma expressa a sua vontade, tão pouco qual a medida da sua obrigação. Portanto, não há́ fiança validamente constituída. Logo, não há́ viabilidade da presente ação, sendo, pois, procedente a exceção invocada pelos réus”.
44 – Os apelantes, nas conclusões “xxiv”, “xxvii” e “xxviii” do seu recurso, dizem que “não subsiste na Lei qualquer forma sacramental para a declaração de fiança (neste sentido, MANUEL JANUÁRIO DA COSTA GOMES, Assunção Fidejussória de Dívida, 2000, Almedina)” e que “Ao acoplar-se, em sufixo, à identificação dos recorridos que os mesmos intervinham «na qualidade de fiadores», é inquestionável que se dissiparam quaisquer dúvidas sobre o propósito da vinculação dos mesmos”, acrescentando que “Estando em causa uma declaração negocial a mesma terá́ de ser interpretada à luz do artigo 236 ss. do CC, pelo que, havendo dúvidas quanto ao sentido e alcance de uma declaração negocial interpretar-se-á́ a mesma à luz daquilo que ser percebido pelo homem médio declaratário”.
45 – A citação do referido autor e da obra em causa, composta de mais de 1.200 páginas, sem localização da referência feita, pode desvirtuar o sentido desta, mas efetivamente é dito a págs. 471 que não há “palavras ou fórmulas sacramentais que devam ser utilizadas pelo fiador (como por qualquer declarante em geral)”.
46 – Não é essa, porém, a questão relevante nestes autos. A questão relevante prende-se – como assinala a sentença – com o disposto no artigo 628, n.º 1 do Código Civil (CC): “A vontade de prestar fiança deve ser expressamente declarada pela forma exigida para a obrigação principal”.
47 – E mais especificamente, não com a forma a que deve obedecer a declaração, mas com a sua natureza de declaração expressa e não tácita.
48 – Como refere Manuel Januário da Costa Gomes (ob. cit.) a declaração do fiador “tem de ser exteriorizada através de um meio direto, por palavras, por escrito ou qualquer outro meio frontal e imediato de expressão de vontade, não satisfazendo o requisito legal a declaração de prestar fiança cujo sentido se depreende a latere de factos concludentes” (pág. 468), pois “O que não é possível é considerar eficaz, como declaração de fiança, uma vontade que resulte deduzida – indiretamente, portanto – de facta concludentia” (págs. 471/472).
49 – Mais adiante, referindo-se aos elementos ou dados que devem constar da declaração e sem os quais a mesma não pode valer como declaração de fiança, o autor considera que, em princípio “a declaração do fiador deve identificar a dívida garantida, o devedor, o credor e o tempo de vinculação” (pág. 515).
50 – Ora, no caso presente, ainda que os recorridos venham referenciados como fiadores, não há, em todo o contrato de arrendamento junto com a petição (doc. n.º 3), qualquer declaração de vontade dos mesmos. Não há qualquer declaração de vontade dos recorridos e, assim, não há uma só declaração de vontade deles da qual possa resultar a (sua) vontade de prestar a fiança.
51 – Não estando em causa qualquer declaração de vontade, é evidente que não pode ser interpretada à luz do disposto no artigo 236 do CC, como sustentam os apelantes.
52 – Por isso, também não colhe a citação do acórdão do STJ de 16.06.2015 (conclusão “xxxvii”), pois nesse acórdão, onde se considerou ser fiança o que os ali declarantes chamaram aval, havia uma expressa declaração de vontade, concretamente a que citamos: “Por escrito particular, correspondente ao documento de fls. 53 dos autos, o 2. º Réu, como sócio-gerente da 1.ª Ré, e a 3.ª Ré, como sócia da 1.ª R., declararam que: “Dão o seu aval pessoal como garantia às Firmas ‘EE, …, Ld.ª’ e a ‘EE …, Ld.ª’, em todas as compras feitas ou a efectuar pela ‘BB, … de ..., Ld.ª’ e tituladas por factura até ao montante de cento e vinte e cinco mil euros””.
53 – Em suma, não podemos deixar de concordar com o decidido, porquanto, no contrato de arrendamento, no qual os recorrentes consideram estar declarada a vontade de prestar fiança, essa declaração não existe de todo, nem existe qualquer declaração dos recorridos que possa ser interpretada, pois não existe e, nos termos do artigo 628, n.º 1 do CC a vontade de prestar fiança deve ser expressamente declarada.
54 – Não há, por isso e como bem concluiu a 1.ª instância, uma fiança que responsabilize os apelados.
55 – Em conformidade, o recurso é improcedente.
56 – As custas do recurso são devidas pelos apelantes, atento o seu decaimento.
IV - Dispositivo
Pelas razões ditas, acorda-se na Secção Cível do Tribunal da Relação do Porto em julgar improcedente a presente apelação e, em conformidade, confirma-se a sentença recorrida.
Custas pelos apelantes.
Porto, 15.06.2020
José Eusébio Almeida
Carlos Gil
Carlos Querido
____________ [1] António Santos Abrantes Geraldes/Paulo Pimenta/Luís Filipe Pires de Sousa, Código de Processo Civil Anotado, Vol. I, Almedina, 2018, pág. 768. [2] Sintomaticamente, os autores terminam esse requerimento com os seguintes dizeres: “Que V. Exa. se digne a admitir a junção aos autos do presente requerimento com todas as legais consequências, designadamente decidindo por despacho saneador do mérito da causa, na medida em que toda a defesa assenta em questões jurídicas, s.m.e.”. [3] Francisco Manuel Lucas Ferreira de Almeida, Direito Processual Civil, Volume II, 2.ª Edição, Almedina, 2019, pág. 463.