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PROCEDIMENTO CAUTELAR COMUM
PREJUÍZO
NULIDADE DA SENTENÇA
ÓNUS DE IMPUGNAÇÃO DA DECISÃO DE FACTO
REJEIÇÃO DE RECURSO
Sumário
I - Os procedimentos cautelares, pela sua própria natureza, visam, uma solução provisória, tendente a evitar prejuízos que a demora da resolução da ação principal pode ocasionar ao requerente (sem prejuízo da inversão do contencioso – v. nº 1, do artigo 364º, do CPC), sendo, também, instrumentos de eficácia do processo principal. II - O procedimento cautelar comum tem como requisitos: - não estar a providência a obter abrangida por qualquer procedimento cautelar especificado (nº 3, do art. 362º, do CPC), sendo este procedimento destinado a fazer face a situações de “periculum in mora” não especialmente acauteladas através dos procedimentos cautelares especificados na lei; - a existência de um direito (satisfazendo-se a lei com um juízo de probabilidade ou verosimilhança mas exigindo que tal probabilidade seja forte (v. nº 1, do art. 368º, do CPC que estatui “a providência é decretada desde que haja probabilidade séria da existência do direito”- fumus boni iuris); - o atual e fundado ou sério receio de que esse direito sofra lesão grave e de difícil reparação (periculum in mora) - (v. nº 1, do art. 362º e nº 1 do art. 368º, do CPC); - a adequação da providência solicitada a evitar a lesão e a assegurar a efetividade do direito ameaçado (parte final do nº 1, do art. 362º, do CPC); - não resultar da providência prejuízo consideravelmente superior ao dano que ela visa evitar, pois, conforme estabelece o nº 2, do art. 368º, do CPC, a providência deve “ser recusada pelo tribunal quando o prejuízo dela adveniente para o requerido exceda consideravelmente o dano que com ela o requerente pretende evitar”. III - Cabendo aos Requerentes a prova dos factos constitutivos do direito de que se arrogam, nos termos do nº1, do art. 342º, do Código Civil, e cumprido o ónus da prova dos afirmados factos, que integram os mencionados requisitos, a providência solicitada não pode deixar de ser decretada, como peticionado. IV - Ocorre in casu fumus boni iuris, periculum in mora e é adequada e proporcional a proibição do exercício de atividades de manutenção e reparação automóvel em oficina em construção em zona urbana habitacional, com espaços religiosos, sociais e escolares, prevalecendo o direito à saúde, à qualidade de vida e a um ambiente de vida humano, sadio e ecologicamente equilibrado, consagrados nos artigos 64º e 66º, da Constituição Portuguesa, sobre a direito, de livre iniciativa privada, de exploração de oficina de manutenção e reparação automóvel, consagrado no art. 61º, da lei fundamental, não sendo o prejuízo, económico, resultante do decretar da providência consideravelmente superior ao dano, eminentemente pessoal, que com ela se visa evitar.
Texto Integral
Apelação nº 288/19.3T8ESP-A.P1
Processo do Juízo de Competência Genérica de Espinho - Juiz 2
Relatora: Eugénia Maria de Moura Marinho da Cunha
1º Adjunto: Maria Fernanda Fernandes de Almeida
2º Adjunto: António Eleutério
Acordam na 3ª Secção Cível do Tribunal da Relação do Porto
Sumário(elaborado pela relatora - cfr nº 7, do art.º 663º, do CPC):
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I. RELATÓRIO
Recurso independente: Recorrentes: B… e mulher C… Recorridos: D… e mulher E…
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Recurso subordinado: Recorrentes: D… e mulher E… Recorridos: B… e mulher C…
D… e mulher, E…, residentes na Rua …, no …, ….-… …, concelho de Espinho, intentaram o presente Procedimento Cautelar não especificado, contra, B… e mulher, C…, residentes na Rua …, no …, ….-… …, concelho de Espinho, pedindo: a) a suspensão imediata das obras de construção da oficina de manutenção e reparação automóvel dos Requeridos; b) a proibição do exercício de quaisquer atividades de manutenção e reparação automóvel no local previsto para a construção da oficina dos Requeridos.
Alegam, para tanto e em síntese, que são donos e legítimos possuidores do prédio urbano sito na Rua …, no …, União de Freguesias …, Concelho de Espinho, composto por moradia unifamiliar e os Réus donos e legítimos possuidores do prédio rústico sito na Rua …, no …, União de Freguesias …, Concelho de Espinho, composto por terreno de cultura, que estes pediram o licenciamento da construção de um edifício destinado a oficina de manutenção e reparação automóvel no referido prédio, a qual não é adequada ao local por trazer problemas de ruído, contaminação dos solos e riscos de incêndio e explosão, prejudicando todos os moradores da zona e os frequentadores do jardim de infância e da Igreja existentes no local, que uma oficina de reparação e manutenção automóvel do ponto de vista do impacte ambiental é uma unidade capaz de emitir efluentes líquidos, gases, resíduos sólidos, radiações, ruído e vibrações, em medida incompatível com os valores limite de emissão que devem ser estabelecidos em zonas residenciais ou na vizinhança de equipamentos coletivos como um jardim-de-infância ou uma igreja, até porque neste tipo de unidades é habitual a utilização de substâncias perigosas em termos de toxicidade, inflamabilidade e corrosividade, designadamente nas operações de manutenção e reparação de automóveis, e que os impactes ambientais acima referidos, característicos de uma unidade deste tipo e que são potencial fonte de danos ambientais e de perturbações significativas da qualidade de vida da população local e da saúde pública, são causadores de doenças oncológicas, originadas por alguns dos poluentes acima referidos, designadamente os metais pesados, sendo que a construção do edifício onde será instalada a oficina de manutenção e reparação automóvel e a subsequente entrada em funcionamento lhes provocará, e a todos os cidadãos residentes naquele local, graves lesões do seu direito a um ambiente de vida humano, sadio e ecologicamente equilibrado.
Sustentam a providência em fundado receio de lesões do direito a um ambiente de vida humano, sadio e ecologicamente equilibrado e na probabilidade séria da existência do direito ameaçado pela construção e entrada em funcionamento da oficina de manutenção e reparação automóvel numa zona residencial.
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Indeferida liminarmente a providência e interposto recurso de tal despacho, o Tribunal da Relação do Porto determinou o prosseguimento dos autos.
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Os requeridos apresentaram oposição a defender-se por exceção e por impugnação. Invocaram a sua ilegitimidade, por estar em causa uma obra que foi, como os Requerentes reconhecem, licenciada pela autoridade com competência para tal ato administrativo, a Câmara Municipal …, tendo esta entidade de ser demandada judicialmente e também na presente providência, e que a competência é do tribunal administrativo, já que a eventual violação do PDM ou do RGEU que estiveram na origem da concessão da licença de construção, constitui matéria da exclusiva competência da jurisdição administrativa e fiscal.
Sustentam, quanto à verificação da existência de interesses difusos a acautelar e proteger, que os Requerentes apenas pretendem acautelar os seus interesses individuais, fazendo um uso impróprio e ilegal da ação popular e da presente providência, não estando verificados os pressupostos legais suscetíveis de conduzir à procedência da presente providência, a qual deverá ser liminarmente indeferida, nos termos do artigo 13º da LAP.
Mais afirmam que a obra em causa se destina a “oficina de manutenção e reparação automóvel” e tal como se pode ler no Alvará de Licenciamento junto na contestação, as obras “respeitam o disposto no Plano Diretor”.“O PDM é um instrumento de planeamento territorial e de politica ambiental, e no território que ordena visa a existência de um ambiente propício à saúde e bem-estar das pessoas e o desenvolvimento cultural das comunidades, a melhoria da sua qualidade de vida, e a correta expansão das áreas urbanas. E as normas do RGEU (Regulamento Geral das Edificações Urbanas), para além da sua função diretiva, visam tornar os núcleos urbanos mais atraentes, mais saudáveis e com melhor qualidade de vida.” Em parte alguma das suas alegações, os Requerentes demonstram que o PDM ou o RGEU foi violado. Não foi atacado judicialmente o ato administrativo de licenciamento, a entidade licenciadora apreciou o pedido ao abrigo dos mais salutares princípios de ordenamento do território, de defesa do ambiente, da saúde pública, do bem-estar da população e qualidade de vida. Os interesses coletivos estão, assim e por força do licenciamento, devidamente acautelados, como o demonstra a informação técnica dada pela Sra. Vereadora do Pelouro do Urbanismo da Câmara Municipal … e junta na contestação. Se o licenciamento administrativo existe, não podem os tribunais comuns apreciar a sua validade se o próprio ato não está colocado em causa, e com recurso ao procedimento judicialmente capaz para o efeito.
Tudo foi escrupulosamente cumprido, deferido o projeto, com todas as especialidades exigidas para o momento e outras ainda existiram, aquando da conclusão da obra, sendo certo que a oficina está construída em bloco de cimento de 20 cm de espessura e pela face exterior revestida a fachada com 40 milímetros de isolamento térmico, os projetos da especialidade apresentados contemplam uma rede própria de drenagem e limpeza das águas, recolha seletiva e reciclagem de materiais, assim como rede de ventilação dos gases com tubo articulado ligado aos escapes dos carros, sem esquecer o projeto de proteção contra incêndios que criou um marco de boca de incêndio na via pública – que antes não existia e agora beneficia a população local.
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Notificados os Requerentes para se pronunciarem sobre as exceções de ilegitimidade e de incompetência material e impropriedade do procedimento cautelar comum para a defesa dos interesses difusos invocados, defenderam que devem ser improcedentes.
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Procedeu-se à audiência de discussão e julgamento e no início da audiência considerou-se não escritos os pontos 1, 2 e 3 do requerimento de resposta às exceções apresentado pelos Requerentes e, decidiu-se, pela improcedência da ilegitimidade passiva dos requeridos, pela competência do Tribunal Judicial para a apreciação desta questão, e pela legitimidade ativa dos Requerentes, e improcedência da invocada impropriedade do procedimento cautelar comum para a defesa dos interesses difusos invocados.
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Procedeu-se à audiência final, com a observância das formalidades legais.
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Foi proferida sentença com o seguinte dispositivo: Em face do exposto, julgo parcialmente procedente o presente procedimento cautelar e, em consequência decido: 1º- Restringir o exercício da atividade de manutenção e reparação automóvel apenas à manutenção e reparação das partes mecânica e elétrica dos veículos, apenas em relação a veículos automóveis ligeiros, sendo no caso de ligeiros de mercadorias com peso até 2500Kg, ficando impedidos de fazer a manutenção e reparação de veículos ligeiros de mercadorias de peso superior a 2500kg e de veículos pesados quaisquer que sejam as suas características; 2º- Restringir o horário de laboração ao período das 08h30 às 19h00, de segunda a sexta-feira, com encerramento aos sábados, domingos e feriados, sendo que os equipamentos que provoquem ruído constantes, como por exemplo os compressores, devem ser desligados fora de tais dias e horário. 3º- Proibir que se inicie a instalação da oficina no edifício e posteriormente se inicie a atividade sem que estejam instalados mecanismos de controle, gestão e tratamento de emissões gasosas, nomeadamente chaminé adequada; gestão e tratamento de resíduos líquidos e lamas industriais, através de estação de tratamento; colocado isolamento acústico na oficina, por forma a que, durante o dia, o ruído exterior provindo da oficina seja de máximo 45dB(A) e de noite seja o máximo de 24dB(A), tudo independentemente de ser ou não exigido administrativamente; sem que estejam instalados mecanismos de controlo [medição] permanentes de ruido exterior e de poluição do ar, com fornecimento dos dados mensalmente aos Autores. Custas a atender, a final, na ação respetiva [artigo 539º nº 2 do CPC].
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Os Requeridos B… e esposa apresentaram recurso de apelação, pugnando por que se declare nula a sentença e, se tal não vier a ser entendido, seja revogada e substituída por outra que julgue, totalmente, improcedente a providência requerida por falta de verificação dos pressupostos legais, formulando as seguintes CONCLUSÕES:
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Os Requerentes, D… e E…, apresentaram contra-alegações a pugnar por que se negue provimento ao recurso de Apelação e deduziram recurso subordinado solicitando que se dê provimento ao recurso, se revogue a sentença recorrida e se substitua a mesma por decisão que condene nos exatos termos do pedido do procedimento cautelar, mantendo-se a sanção pecuniária compulsória no valor de € 1.000,00 (Mil euros), por cada dia de laboração, no caso de eventual exercício da atividade na oficina de manutenção e reparação automóvel pelos requeridos/recorridos, formulando, para tanto, as seguintes CONCLUSÕES:
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Os Requeridos B… e esposa C… responderam ao recurso subordinado pugnando pela sua improcedência.
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Após, proferiu o Tribunal a quo o seguinte Despacho: “Antes de mais, alertado pelas alegações de recurso apresentadas pelos requeridos com a Refª 9614539, verifica o Tribunal que há manifesto lapso material na sentença ao não fazer constar no dispositivo da mesma a condenação em sanção pecuniária compulsória que em sede do DIREITO se condenou. Tal lapso material está abrangido pelo disposto no artigo 614º nº 1 do CPC. Assim, retificação tal lapso material, no sentido de passar a constar da decisão como ponto nº 4 o seguinte: 4º-Fixar, ao abrigo do disposto no artigo 829º-A do Código Civil, como sanção pecuniária compulsória para o caso de eventual exercício da atividade no edifício em causa nos autos e descrito nos factos indiciariamente provados sob o nº 2, fora as condições fixadas, o montante de 1.000,00€, por cada dia de laboração, sem prejuízo da eventual prática de um crime de desobediência qualificada, previsto e punido pelo artigo 348º nº 1, alínea b), e nº 2, do Código Penal, nos termos do artigo 375º do CPC. Notifique.
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Em cumprimento o disposto no artigo 617º nº 1 do CPC, importa pronunciarmo-nos sobre a nulidade da sentença invocada pelos requeridos nas suas alegações de recurso. Vejamos: Nas conclusões das suas alegações de recurso, na parte que agora interessa, os requeridos expõem que: 1º - Os Apelantes discordam por completo da douta sentença recorrida, a qual é nula. 2º - Por não constar da conclusão final, entendem os Apelantes que não estão condenados em qualquer sanção pecuniária compulsória. 3º - Porém, e não sendo esse o douto entendimento, sempre se dirá que a douta sentença condenou para além do peticionado. 4º - Ao fixar uma sanção pecuniária para o eventual exercício da atividade no edifício em causa nos autos fora das condições fixadas, estamos perante uma sanção pecuniária compulsória inserida no nº 1 do artigo 829-A do CC, sendo que esta só a pedido do credor pode ou deve ser decretada, o que até do próprio texto da lei se depreende quando se lê: “a requerimento do credor”. 5º - Ao não ter sido peticionado, a douta sentença é nula, nos termos da alínea e) do nº 1 do artigo 615º do CPC ao condenar, nesta parte, em objeto diverso do pedido – artigo 609º nº 1 do CPC. 6º - Acresce que o nº 2 do artigo 829º-A do CC apela a critérios de razoabilidade, critérios esses que nunca foram objeto de discussão e do legal contraditório, pelo que a douta sentença violou o artigo 3º nº 3 do CPC, o que constitui nulidade, nos termos do artigo 615º nº 1, alínea d), do CPC. 7º - E como se pode compreender as imposições / restrições sentenciadas e que nunca foram direta ou indiretamente peticionadas? 8º Ao longo do processo nunca se discutiu qual o impacto que a oficina traria se a atividade fosse exercida a veículos ligeiros ou pesados; qual o impacto no seu horário de laboração e muito menos as consequências que advêm do ponto 3 da douta sentença, mais uma vez se violando o princípio do contraditório e condenação para além do pedido. Ora, relativamente à sanção pecuniária compulsória, embora seja certo que os requerentes não peticionaram sanção pecuniária compulsória, o certo é também que os requerentes peticionaram: A suspensão imediata das obras de construção da oficina de manutenção e reparação automóvel dos RR.; e a proibição do exercício de quaisquer atividades de manutenção e reparação automóvel no local previsto para a construção da oficina dos RR.. No entanto, o Tribunal, ponderando os direitos ambientais postos em causa com a atividade e o direito ao livre exercício de uma atividade empresarial por parte dos requeridos, entendeu julgar a providencial cautelar apenas parcialmente procedente e decidir um minus em relação aos pedidos formulados pelos requerentes. OU seja, ainda que tivessem ficado indiciariamente demonstrados potenciais danos ambientais à população com o exercício da atividade de manutenção e reparação automóvel, como era alegado pelos requerentes, não deferiu a pretensão dos mesmos no sentido da suspensão imediata das obras de construção da oficina de manutenção e reparação automóvel e a proibição do exercício de quaisquer atividades de manutenção e reparação automóvel no local previsto para a construção da oficina, mas apenas deferiu o exercício da referida atividade condicionada a determinados limites e à realização de obras e colocação de equipamentos destinados a minorar o impacte ambiental resultante do exercício da atividade. E nessa medida, entendeu o Tribunal que se justificava aplicar uma sanção pecuniária compulsória, por forma a evitar o exercício da atividade fora dos condicionalismos impostos, já que o exercício da atividade fora daqueles condicionalismos causava danos ambientais que depois de causados não seria possível repará-los. Quer isto dizer que se fosse decretada a providência tal como os requerentes pretendiam, ou seja, o impedimento absoluto da conclusão das obras e, em consequência, o impedido da instalação da unidade industrial para a manutenção e reparação automóvel, não se mostraria indispensável a aplicação de uma sanção pecuniária compulsória, pois que concluir as obras ou instalar alguns equipamentos em violação da providência não causava danos irreparáveis ao ambiente e era possível a reposição no estado em que a construção e a instalação da unidade industrial estivessem ao tempo do decretamento, sem a ocorrência de danos ambientais. Ao passo que a decisão proferida pelo tribunal no sentido de permitir a concussão das obras, a instalação da oficina e a laboração nos termos estabelecidos, que é decidir menos do que o peticionado, exigem, para que a providência seja eficaz, a fixação de sanção pecuniária compulsória. Daqui que o Tribunal a tenha fixado, mesmo sem que os requerentes a tivessem peticionado. Assim, entendemos que a decisão proferida, mesmo incluindo a sanção compulsória fixada, é um minus em relação ao pedido inicial. Portanto, não há excesso de pronúncia, nem há violação do artigo 829º-A do Código Civil, quando refere que a sanção pecuniária compulsória deve ser fixada a pedido do credor, pois que é necessário interpretar a norma de modo mais abrangente e não apenas literalmente, na medida em que importa ter em conta o que fariam os requerentes, caso tivessem peticionado que a laboração fosse condicionada nos termos em que o Tribunal decidiu? Não peticionariam a sanção pecuniária compulsória? Certamente que sim. Assim, se face à decisão do Tribunal em julgar parcialmente procedente a providência e em vez de impedir o exercício da atividade no seu todo apenas a condicionou, nasceu com a decisão a necessidade de aplicação de uma sanção pecuniária compulsória e, como tal, caberia ao Tribunal tornar eficaz a sua decisão, ou seja, o adequado cumprimento da decisão. Acresce que também não se justificaria nem se mostrava adequado dar cumprimento ao disposto no artigo 3º nº 3 do CPC, no que diz respeito à sanção pecuniária compulsória, pois que se tal sanção se torna necessária face à decisão do Tribunal de decretar a providência em menos do que o peticionado, como já se referiu, não era viável dar o contraditório, sendo certo que este poderia ser exercido, como foi, pela via do recurso. Conclui-se, por isso, salvo outro e melhor entendimento, que não ocorreu excesso de pronúncia nem a violação do artigo 829º-A do Código Civil, tão pouco a violação do princípio do contraditório do artigo 3º nº 3 do CPC, e consequentemente, por esta razão, não ocorre nulidade da sentença, ao contrário do alegado no recurso.
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Também nas alegações de recurso é invocado que o nº 2 do artigo 829º-A do CC apela a critérios de razoabilidade, invocando os requeridos que 1.000,00€ por cada dia de incumprimento não é razoável, nem proporcional ou adequado ao caso concreto, por a oficina, com as dimensões físicas que possui e estão espelhadas nos documentos camarários, não consegue sequer faturar aquela quantia diária, pelo que também, por isso, a decisão é nula. Ora, a sanção pecuniária compulsória apenas é devida se houver violação das obrigações que são impostas, pelo que não pode ter a ver com os rendimentos da atividade, mas tem que ser adequada a persuadir os requeridos de violarem a decisão proferida. OU seja, se os requeridos mão têm rendimentos que lhes permitam suportar a sanção pecuniária não violam o estabelecido. Acresce que, se em regra a sanção pecuniária compulsória, deve ser fixada de acordo com a vantagem que o incumpridor obteve com tal violação, o certo é que estamos perante uma situação que colide com direitos ambientais de uma comunidade e também direitos de personalidade da vizinhança, que se impõe que não sejam violados, pelo que se justifica uma sanção manifestamente persuasiva. Assim, não há violação do nº 2 do artigo 829º-A do Código Civil, consequentemente também não há qualquer nulidade por tal razão”.
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Após os vistos, cumpre apreciar e decidir o mérito do recurso interposto.
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II. FUNDAMENTOS - OBJETO DO RECURSO
Apontemos as questões objeto do presente recurso, tendo presente que o mesmo é balizado pelas conclusões das alegações do recorrente, estando vedado ao tribunal conhecer de matérias nelas não incluídas, a não ser que se imponha o seu conhecimento oficioso, acrescendo que os recursos não visam criar decisões sobre matéria nova, sendo o seu âmbito delimitado pelo conteúdo do ato recorrido – cfr. arts 635º, nº4, 637º, nº2 e 639º, nºs 1 e 2, do Código de Processo Civil. Assim, as questões a decidir, referentes ao recurso independente e subordinado, são as seguintes: 1ª- Da nulidade da sentença por ter decidido para além do pedido (ultra petitium, com excesso de pronuncia e condenando em objeto diverso), padecendo das nulidades previstas nas alíneas d) e e), do nº1, do artigo 615º, do CPC, e em violação do contraditório; 2º - Da verificação de definitiva fixaçãoda matéria de facto, porfalta de preenchimento dos ónus impostos, sequer existir manifestação de pretensão de reapreciação; 3º - Do erro de direito e da modificabilidade da decisão de mérito, por preenchimento dos requisitos consagrados para o procedimento cautelar comum.
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II.A – FUNDAMENTAÇÃO DE FACTO 1. FACTOS PROVADOS
São os seguintes os factos que foram considerados sumariamente provados pelo Tribunal de 1ª instância, com relevância para a decisão (transcrição): 1. Os Requerentes D… e E… são donos e legítimos possuidores do prédio urbano sito na Rua …, no …, União de Freguesias …, Concelho de Espinho, composto por moradia unifamiliar, “casa de cave, um pavimento com anexos, destinada a habitação, logradouro destinado a jardim e quintal”, com a área total de 590 m2, descrito na Conservatória do Registo Predial de Espinho pelo no 173/19970205 da União de Freguesias … e inscrito na matriz predial urbana das mesmas freguesias sob o artigo 551. 2. Os Requeridos são donos e legítimos possuidores do prédio rústico sito na Rua …, no …, União de Freguesias …, Concelho de Espinho, composto por terreno de cultura com a área total de 1190 m2, descrito na Conservatória do Registo Predial de Espinho pelo no 464/20060726 da União de Freguesias … e inscrito na matriz predial rústica da mesma freguesia sob o artigo 503. 3. Em 2 de Dezembro de 2014 o Requerido B… deu entrada na Câmara Municipal … de um pedido de licenciamento de obra de edificação a construir no prédio rústico identificado em 2. 4. O processo de licenciamento tomou o nº LE-EDI-../2014, estando instruído no Departamento de Ordenamento e Ambiente da Câmara Municipal … e diz respeito à construção de um edifício destinado a oficina de manutenção e reparação automóvel. 5. Conforme consta do processo de licenciamento, o pedido de licença visava a construção de um edifício destinado a oficina de manutenção e reparação automóvel, composto por um único piso, com um pé-direito mínimo de 4 metros e uma área total de 304 m2, onde estão incluídos 12 m2 de área administrativa. 6. Fazem igualmente parte do edifício balneários com 7,2 m2, destinando-se a 4 trabalhadores, bem como 3 áreas, sendo a maior com 181,5 m2 destinada a oficina propriamente dita, a intermédia com 73 m2 destinada à recolha dos veículos e a menor, com 15,1 m2, destinada a ferramentaria. 7. Refere-se ainda naquele processo de licenciamento a construção de um logradouro composto por 2 plataformas, uma impermeabilizada e destinada a 5 lugares de estacionamento descoberto e uma permeável destinada a espaço verde, sendo que este logradouro será servido por 3 rampas, duas de acesso ao exterior e uma de acesso ao edifício. 8. A solução adotada para a obra, referida na memória descritiva e justificativa do projeto como económica e eficaz, é constituída por uma estrutura metálica revestida por chapa, também metálica, com isolamento térmico e lacada, e por uma parede simples em blocos de betão até 2,10 m de altura. 9. A cobertura prevista será também em chapa metálica dupla com isolamento térmico alternada com chapa translúcida para iluminação natural. 10. A memória descritiva do projeto refere ainda que os pavimentos, designadamente da oficina e da ferramentaria serão em betão afagado, “com a resistência indicada para o fim a que se destina”. 11. Quanto às redes de águas e saneamento, a memória descritiva do projeto refere que o abastecimento de água será feito a partir da rede pública existente e que os esgotos serão encaminhados para a rede pública de saneamento “após tratamento e recolha adequada dos hidrocarbonetos”. 12. Quanto ao abastecimento de energia elétrica está previsto que o mesmo seja feito através da rede de distribuição existente na zona, que é puramente residencial, sendo todos os ramais e redes executados de acordo com o projeto da especialidade. 13. A ventilação dos espaços da oficina será feita de forma natural através de aberturas nas fachadas e na cobertura, com exceção dos compartimentos interiores que serão providos de ventilação mecânica. 14. Do ponto de vista da proteção civil e no que respeita à segurança contra incêndios, a memória descritiva do projeto refere que serão tomadas medidas de segurança ativa e passiva, e asseguradas as boas normas de construção, bem como a legislação em vigor. 15. O prédio objeto da pretensão encontra-se inserido no Plano Diretor Municipal … em espaço classificado como “ESPAÇO URBANO DOMINANTE”. 16. Refere a informação técnica da Divisão de Obras Particulares e Licenciamentos da Câmara Municipal …, elaborada em 9 de dezembro de 2014 e constante do respetivo processo de licenciamento, que da análise dos elementos apresentados no pedido de licenciamento se verifica que a utilização pretendida para a edificação em causa não contraria o disposto no artigo 22º do Regulamento do Plano Diretor Municipal … (Aprovado pela Assembleia Municipal … em 3/01/1994 e ratificado pela Resolução do Conselho de Ministros no 36/94, de 21 de abril), e que a implantação proposta respeita os afastamentos indicados no artigo 24º do mesmo Regulamento e o alinhamento pretendido para o local, pelo que propõe o deferimento do projeto de arquitetura e a notificação ao requerente, ora Requerido, para apresentação dos projetos de especialidades no prazo de 6 meses, conforme estipulado no nº 4 do artigo 20º do Regime Jurídico da Urbanização e Edificação (RJUE - DL nº 555/99, de 16 de dezembro). 17. A pretensão apresentada pelos Requeridos em 2 de dezembro de 2014, foi deferida, em 15 de dezembro de 2014, por despacho exarado pelo Sr. Presidente da Câmara Municipal … nas condições da informação técnica prestada em 9 de dezembro de 2014 acima referida. 18. Ficou assim o Requerido notificado para no prazo de 6 meses apresentar os respetivos projetos de engenharia das especialidades, nos termos do disposto no nº 5 do ponto 11º da Portaria nº 232/2008, de 11 de março. 19. Os referidos projetos das especialidades foram apresentados pelo Requerido em 4 de março de 2015, abrangendo o projeto de estabilidade, o projeto de alimentação e distribuição de energia elétrica, o projeto de instalação de gás, o projeto de redes prediais de água e esgotos, o projeto de rede de águas pluviais, o projeto de arranjos exteriores, o projeto de estudo de comportamento térmico, o projeto de segurança, o projeto acústico e o projeto de resíduos sólidos. 20. Em 27 de agosto de 2015 o mesmo técnico superior da Divisão de Obras Particulares e Licenciamentos da Câmara Municipal… emitiu nova informação técnica, através da qual propôs o deferimento final do pedido de licenciamento condicionado ao cumprimento das seguintes imposições:
i. Apresentação de uma avaliação acústica efetuada por uma entidade acreditada, aquando do pedido de autorização de utilização, a atestar o cumprimento do critério de incomodidade;
ii. Do parecer da Divisão de Serviços Básicos e Ambiente indicado na informação técnica de 2 de junho de 2015;
iii. Do parecer da EDP de 16 de março de 2015;
iv. Do parecer da Divisão de Obras Municipais de 16 de março de 2015 relativo ao projeto de arranjos exteriores;
v. Do parecer da Autoridade Nacional de Proteção Civil de 23 de março de 2015;
vi. Do disposto no nº 4 da informação técnica da Divisão de Obras Particulares e Licenciamentos de 9 de dezembro de 2014;
vii. O alinhamento e a quota de soleira serem dados no local pelos Serviços de Topografia da Câmara Municipal. 21. Com base na informação técnica acima referida, o Sr. Vice-Presidente da Câmara Municipal …, em 31 de agosto de 2015, exarou despacho de aprovação do projeto, comunicando ao requerente, ora Requerido, que a partir daquela data poderia no prazo de um ano solicitar a emissão do respetivo alvará de licença de construção, conforme o disposto no nº 1 do artigo 76º do supracitado RJUE. 22. Após prorrogação do prazo para emissão do alvará de licença de construção referido anteriormente o requerente, ora Requerido, solicitou, finalmente, em 30 de agosto de 2017 o alvará de licença de construção juntando os elementos necessários à emissão daquele título e anexando o plano de segurança e saúde, com a participação de que os trabalhos se iniciariam em 1 de janeiro de 2018. 23. Em 5 de setembro de 2017 o Sr. Presidente da Câmara Municipal … profere despacho ordenando a emissão do respetivo alvará, o qual é passado em 23 de outubro de 2017, condicionado às informações prestadas em 27 de agosto de 2015. 24. Em 3 de novembro de 2017, o alvará de licença de obras de edificação no ../17, emitido em 23 de outubro de 2017 e o Livro de Obra no ../17, relativo àquele mesmo alvará, foram levantados pela Requerida C…, que na mesma data entregou na Câmara Municipal … o projeto de arranjos exteriores corrigido para dar cumprimento ao ofício no …/17, de 23/10/2017. 25. Em 10 de janeiro de 2018 foi redigida a folha de alinhamento dos serviços de topografia da Câmara Municipal …, ficando assim a obra em condições de poder ser iniciada. 26. Apesar da efetivação do licenciamento, acima referida, só em finais de novembro de 2018 é que o terreno foi vedado e colocada uma placa impressa com informação do alvará de licença de obras no ../17, para a construção de uma oficina de manutenção e reparação automóvel. 27. Na sequência desta vedação do terreno a obra teve o seu início em meados de janeiro de 2019. 28. Os Requerentes adquiriram o prédio urbano identificado em 1. em 12 de agosto de 2016 sem saberem que se encontrava a decorrer um processo de licenciamento de uma oficina de manutenção e reparação automóvel na Câmara Municipal …, por não existir qualquer placa que informasse do decurso desse mesmo processo de licenciamento. 29. Só no mês de novembro de 2017 é que foi colocada no terreno dos Requeridos uma placa “datilografada” com indicação do alvará de obras. 30. Placa essa que foi substituída posteriormente pela placa referida no artigo 26º, esta já impressa e com a informação legalmente exigida. 31. Colocados perante a possibilidade de construção em frente à sua casa, numa zona habitacional de moradias unifamiliares, de uma oficina de manutenção e reparação automóvel, os Requerentes iniciaram então uma série de diligências junto da Câmara Municipal …, mas também junto de outras entidades administrativas, no sentido de averiguar da licitude daquela construção. 32. Em 26 de outubro de 2018 os REQUERENTES apresentaram na Câmara Municipal … uma reclamação através da qual chamavam a atenção de que a construção daquela oficina automóvel não era adequada ao local pois traria problemas de ruído, contaminação dos solos e riscos de incêndio e explosão, prejudicando todos os moradores da zona e os frequentadores do jardim de infância e da Igreja existentes no local. 33. Esta mesma reclamação foi enviada para a Junta de Freguesia …, para a Comissão de Coordenação e Desenvolvimento Regional do Norte (CCDR-N), para o Instituto de Apoio às Pequenas e Médias Empresas e ao Investimento (IAPMEI), para a Agência Portuguesa do Ambiente (APA) e para a Inspeção Geral da Agricultura, do Mar, do Ambiente e do Ordenamento do Território (IGAMAOT). 34. No seguimento destas reclamações, os REQUERENTES receberam respostas da IGAMAOT, e da CCDR-N, informando que o licenciamento daquela oficina de manutenção e reparação automóvel era da total responsabilidade e competência da Câmara Municipal …. 35. Não obstante a Câmara Municipal … nunca ter respondido à primeira reclamação dos REQUERENTES, obrigando estes a redigir uma nova reclamação no livro de reclamações da Câmara Municipal … em 10 de dezembro de 2018, estes foram informados pela Secretária da Vereadora do Urbanismo do agendamento de uma reunião, que teve lugar em 19 de dezembro de 2018. 36. Nessa reunião, estiveram presentes os REQUERENTES, a Sra. Vereadora do Urbanismo e o Chefe da Divisão de Obras Particulares e Licenciamentos, tendo-lhes sido referido que o licenciamento do projeto tinha sido concedido ao abrigo do Plano Diretor Municipal de 1994, o qual permitia o licenciamento daquele tipo de construção não habitacional naquele local. 37. Não obstante, a Sra. Vereadora do Urbanismo sugeriu aos REQUERENTES que, face ao desagrado destes e dos restantes moradores daquela zona habitacional com a construção de uma oficina de reparação e manutenção automóvel naquele local, deveriam entregar na Câmara Municipal … um abaixo-assinado a pedir a anulação daquela decisão de licenciamento. 38. Depois desta reunião, os REQUERENTES receberam finalmente resposta da Câmara Municipal … à sua reclamação e após alguma troca de correspondência entre estes e a Câmara, entregaram em 15 de fevereiro de 2019 o abaixo-assinado acima referido, subscrito por 58 cidadãos, vindo a desistir da subscrição do mesmo alguns dos anteriores subscritores. 39. O abaixo-assinado supra referido, independentemente da questão da licitude do licenciamento da obra acima referida à luz do Plano Diretor Municipal da Câmara Municipal …, teve por base a preocupação dos REQUERENTES e dos cidadãos subscritores do mesmo de o equipamento a construir – uma oficina de manutenção e reparação automóvel – ser incompatível com uma área urbana residencial por causa do ruído, dos maus cheiros, dos fumos, dos resíduos, dos problemas de trânsito e estacionamento e dos riscos de toxicidade, incêndio e explosão que uma unidade deste tipo poderá causar. 40. A referida oficina de reparação e manutenção automóvel corresponde a unidade industrial, ainda que prestadora de serviços, sendo que do ponto de vista do impacte ambiental trata-se de uma unidade capaz de emitir efluentes líquidos, gases, resíduos sólidos, radiações, ruído e vibrações. 41. Quando a referida oficina de manutenção e reparação de automóveis estiver em funcionamento poderá executar as seguintes atividades:
- A realização de testes aos motores dos veículos em reparação, inclusivamente em banco de ensaio.
- A operação de prensas e máquinas hidráulicas;
- Operações de bate-chapas;
- Operações de pintura;
- E a estampagem de chapa;
- Mudanças de óleos.
- Substituição de baterias. 42. E poderá executar as referidas atividades quer em veículos automóveis ligeiros ou pesados. 43. A existência da referida oficina de manutenção e reparação automóvel no referido local provocará aumento do tráfego automóvel. 44. Todas estas atividades gerarão ruídos, vibrações, fumos, águas contaminadas com detergentes, com óleos, bem como outros químicos perigosos, como por exemplo os que fazem parte das baterias. 45. Os referidos ruídos, vibrações, fumos, águas contaminadas com detergentes, com óleos, bem como outros químicos perigosos, como por exemplo os que fazem parte das baterias, provocam alterações da qualidade ambiental na área envolvente significativas e muito superiores às que ocorrem nos meios urbanos e habitacionais, nomeadamente:
- O que resulta das emissões de efluentes gasosos originados quer no funcionamento em regime de teste dos motores de combustão interna, quer nas operações de manutenção que envolvem tratamento térmico, quer ainda nas operações de pintura dos veículos em jato sob cortina de água, sendo certo que, neste tipo de emissões gasosas é frequente encontrar elevadas concentrações de partículas sub-micrónicas, óxidos de azoto e de enxofre, e compostos orgânicos voláteis, poluentes em relação aos quais a lei estabelece valores-limite de emissão muito rigorosos.
- O que resulta dos efluentes líquidos, sendo certo que uma oficina de reparação e manutenção automóvel gera águas residuais resultantes da lavagem dos equipamentos, dos veículos e dos pavimentos que contêm normalmente elevados teores de substâncias poluentes, uma vez que regista-se neste tipo de águas residuais a presença de hidrocarbonetos, óleos e gorduras, sólidos em suspensão e metais pesados resultantes da lixiviação dos materiais componentes dos automóveis, designadamente peças metálicas, travões, pneus, entre outros, e que incluem o zinco (Zn), o cobre (Cu), o chumbo (Pb), o cádmio (Cd) e o crómio (Cr).
- O que resulta da produção de quantidades apreciáveis de resíduos sólidos contendo substâncias classificadas como perigosas, nomeadamente resultantes da desmontagem e desmantelamento de automóveis, da limpeza de veículos e equipamentos utilizando materiais têxteis absorventes e desperdícios, bem como, dos sistemas de recolha de poeiras e partículas captadas na limpeza das máquinas e pavimentos, sendo certo que tais resíduos, contendo óxidos de metais pesados, partículas metálicas e compostos orgânicos de elevado peso molecular, são classificados como resíduos perigosos tipo III, não podendo ser encaminhados para um aterro sanitário comum, mas apenas para aterros controlados aptos a receber resíduos de elevada perigosidade ambiental. 46. Numa oficina de manutenção e reparação automóvel verifica-se com frequência a presença de hidrocarbonetos de baixo ponto de inflamação, nomeadamente nos depósitos dos veículos em manutenção e reparação e nos depósitos de armazenagem de combustíveis e lubrificantes. 47. O projeto apresentado pelos Requeridos na Câmara Municipal … e que foi, entretanto, aprovado é omisso quanto à descrição das atividades a exercer e dos sistemas de proteção ambiental previstos para o tratamento de efluentes líquidos, gases e resíduos. 48. Como é omisso quanto ao sistema de vigilância e reação em caso de incêndio ou de explosão. 49. O jardim de infância e futura escola básica, para além das 30 que já frequentam, vai ter mais 60/70 crianças no próximo ano letivo, fica situada a cerca de 50 m da oficina de reparação e manutenção de automóveis. 50. A igreja e o salão paroquial ficam a cerca de 70 m da oficina. 51. O cemitério fica a cerca de 50 m da oficina. 52. A habitação dos Requerentes D… e E…, fica a cerca de 10 m da oficina, sensivelmente do lado oposto à oficina, tendo entre elas apenas a rua. 53. Na zona envolvente à oficina, num raio de 100m, há cerca de 30 moradias. 54. A rua que serve a oficina, a habitação dos Requerentes D… e E… é uma das principais ruas da freguesia … e com mediana circulação automóvel, tem dois sentidos de trânsito, com a largura que varia, conforme o local, entre 4, 5 e 6 metros, não tem passeios, com exceção dos passeios construídos pelos Requeridos na extensão da frente da oficina. 55. Atualmente, o trânsito já causa, por vezes, algum estrangulamento e constrangimento. 55. As pessoas quando vão para a igreja e para o cemitério a pé ou de carro em regra circulam pela rua em causa. 56. Também há várias pessoas que quando vão para o infantário também circulam pela mesma rua, embora a entrada principal do mesmo tenha acesso por outra rua. 57. Os fumos dos escapes dos automóveis a funcionar dentro da oficina irão diretamente para a atmosfera sem qualquer tratamento, pois que será feita uma ligação do escape a um tubo que está embutido no piso da oficina e que tem saída direta para o exterior, sem qualquer tratamento. 58. Não existe equipamento para o tratamento das águas resultantes da limpeza das instalações ou da lavagem dos carros se a houver. 59. Os ruídos provocados pela atividade de manutenção e reparação automóvel atingem, no exterior, por vezes 80/90 decibéis [dB]. 60. Em tempos, até há mais de 10/15 anos atrás, no terreno onde foi feita a construção em apreciação nestes autos, havia uma pequena construção com cobertura em chapa, onde chegou a ser exercida a atividade de oficina de reparação automóvel, que nos últimos anos era local de guarda de carros. 61. Na zona envolvente à oficina há habituais constrangimentos quer com as águas quer com os esgotos, sendo que estando em funcionamento a oficina causará maior fluxo de águas residuais, que aumentará o caudal e consequentemente agravará os constrangimentos. 62. Não existe nem está prevista estação de tratamento de águas residuais provenientes da oficina de reparação automóvel. 63. A oficina está construída em bloco de cimento de 20 cm de espessura e pela face exterior revestida a fachada com 40 milímetros de isolamento térmico. 64. A área de construção implantada é de 300 m2, a área de laboração é de 260 m2. 65. A oficina tem logradouro em todo o seu perímetro, destinado ao estacionamento de veículos, que suporta cerca de 20 viaturas. 66. Na via pública foram criados mais 3 lugares de estacionamento, num espaço que antes não tinha nenhum estacionamento, por cedência ao domínio publico de terreno, por parte dos Requeridos, para construção da bainha de estacionamento e dos passeios. 67. Os requeridos apresentaram os seus projetos da especialidade que lhe foram impostos pela Câmara Municipal …, nomeadamente o projeto de estabilidade; projeto de águas pluviais; projeto de águas residuais (aqui se prevendo a construção de uma câmara de decantação); projeto de abastecimento de águas; telecomunicações e TED; segurança contra incêndios; ficha eletrotécnica e projeto de arranjos exteriores, os quais foram deferidos, razão pela qual foi emitido o alvará de licença de construção. 68 Os Requeridos iniciaram a obra em janeiro de 2019. 69. A obra a que se referem os autos está orçamentada em cerca de 139.500,00€, a que acrescem 1.500,00€ de boca de incêndio e 7.000,00€ de projetos de arquitetura e de especialidade. 70. Ao tempo da contestação do procedimento cautelar a obra encontrava-se na fase dos acabamentos e com pelo menos 100.000,00€ já gastos, uma vez que o edifício estava construído, as instalações elétricas encontravam-se concluídas, as louças sanitárias estavam colocadas, mas ainda não estavam colocados os sistemas de segurança externos. 71. Os Requeridos alargaram a rua na frente da sua propriedade, construíram passeios e baias de estacionamento para 3 viaturas. 72. Colocaram na rua, próximo da oficina uma boca de incêndio. 73. Está prevista a instalação de câmara de recolha de hidrocarbonetos, que serão tratados pelo método de decantação e só depois é que entram no saneamento. 74. As paredes da construção foram feitas até ao topo.
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2. FACTOS NÃO SUMARIAMENTE PROVADOS
a)- Esta excluída da construção e instalação da oficina de manutenção e reparação de veículos automóveis a componente de chapeiro e pintura.
b)- Os Requeridos publicitaram, através da fixação da devida placa em lugar visível, a entrada de um projeto de licenciamento, logo no final do ano de 2014.
c)- Em novembro de 2017 foi colocada a placa informativa da concessão de licença de obras.
d)- O requerido marido encontra-se desempregado.
e)- As paredes têm sistema de contenção acústica.
f)- O valor de incomodidade sonora exterior no período diurno das 8h00 às 20h00, é de 23dB(A).
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II.B - FUNDAMENTAÇÃO DE DIREITO 1º- Da nulidade da sentença
Arguem os Requeridos/Apelantes, no recurso independente, a nulidade da sentença por a mesma padecer dos vícios previstos na alínead) e e) do nº1, do art.º 615.º, do Código de Processo Civil, diploma a que pertencem todos os preceitos citados sem outra referência.
Invocada a referida nulidade, tal questão é a que primeiro cumpre apreciar, pois que, contendendo com a validade da própria decisão, só se concluirmos pela sua validade, ao menos parcial, se passa à apreciação das demais questões suscitadas, o que de outro modo fica prejudicado.
Sustentam aqueles que a sentença é nula, nos termos da alínea e) do nº 1 do art. 615º do CPC, pois condenou em objecto diverso do pedido, tendo condenado para além do peticionado ao fixar sanção pecuniária para o eventual exercício da atividade no edifício em causa nos autos fora das condições fixadas, pois que tal não foi peticionado, sendo que o nº 2 do art. 829º-A do CC apela a critérios de razoabilidade, critérios esses que nunca foram objecto de discussão e do legal contraditório, pelo que a sentença violou o artigo 3º nº 3 do CPC, o que constitui nulidade, nos termos do artigo 615º nº 1 al. d) do CPC.
Cumpre apreciar se se verifica a invocada nulidade da sentença.
O nº1, do art.º 615º, que consagra as “Causas de nulidade da sentença”, estabelece que é nula a sentença quando: (…) “d) O juiz deixe de pronunciar-se sobre questões que devesse apreciar ou conheça de questões de que não podia tomar conhecimento. e) O juiz condene em quantidade superior ou em objeto diverso do pedido”.
As nulidades de decisão são vícios intrínsecos (quanto à estrutura, limites e inteligibilidade) da peça processual que é a própria decisão (trata-se, pois, de um error in procedendo), nada tendo a ver com os erros de julgamento (error in iudicando) seja em matéria de facto seja em matéria de direito.
As nulidades da sentença são vícios formais, intrínsecos de tal peça processual, taxativamente consagrados no nº1, do art. 615º, sendo tipificados vícios do silogismo judiciário, inerentes à sua formação e à harmonia formal entre premissas e conclusão, não podendo ser confundidas com hipotéticos erros de julgamento (error in judicando) de facto ou de direito[1].
Assim, as nulidades da sentença, como seus vícios intrínsecos, são apreciadas em função do texto e do discurso lógico nela desenvolvidos, não se confundindo com a errada aplicação das normas jurídicas aos factos, erros de julgamento, estes, a sindicar noutro âmbito.
Há nulidade da sentença quando a sua parte dispositiva está em contradição com as premissas efetivamente adotadas pelo juiz e não com as premissas que ele poderia ter adotado, no entender de uma das partes, mas não adotou.
Os referidos vícios respeitam “à estrutura ou aos limites da sentença. Respeitam à estrutura da sentença os fundamentos das alíneas b) (falta de fundamentação), c) (oposição entre os fundamentos e a decisão). Respeitam aos seus limites os das alíneas d) (omissão ou excesso de pronúncia) e e) (pronúncia ultra petitum)”[2].
Trata-se de vícios que “afetam formalmente a sentença e provocam a dúvida sobre a sua autenticidade, como é o caso da falta de assinatura do juiz, ou a ininteligibilidade do discurso decisório por ausência total de explicação da razão por que se decide de determinada maneira (falta de fundamentação), quer porque essa explicação conduzir logicamente a resultado oposto do adotado (contradição entre os fundamentos e a decisão), ou uso ilegítimo do poder jurisdicional em virtude de pretender resolver questões de que não podia conhecer (excesso de pronúncia) ou não tratar de questões que deveria conhecer (omissão de pronúncia)”[3].
Tais vícios não se confundem com erros de julgamento (error in judicando), que são erros quanto à decisão de mérito explanada na sentença, decorrentes de má perceção da realidade factual (error facti) e/ou na aplicação do direito (error juris), de forma que o decidido não corresponde à realidade ontológica ou normativa.
Efetivamente as causas de nulidade da decisão, taxativamente enumeradas nesse artigo 615º, conforme se escreve no Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 17/10/2017, “visam o erro na construção do silogismo judiciário e não o chamado erro de julgamento, a injustiça da decisão, ou a não conformidade dela com o direito aplicável, nada tendo a ver com qualquer de tais vícios a adequação aos princípios jurídicos aplicáveis da fundamentação utilizada para julgar a pretensão formulada: não são razões de fundo as que subjazem aos vícios imputados, sendo coisas distintas a nulidade da sentença e o erro de julgamento, que se traduz numa apreciação da questão em desconformidade com a lei. Como tal, a nulidade consistente na omissão de pronúncia ou no desrespeito pelo objecto do recurso, em directa conexão com os comandos ínsitos nos arts. 608º e 609º, só se verifica quando o tribunal deixe de pronunciar-se sobre questões ou pretensões que devesse apreciar e cuja apreciação lhe foi colocada”.
Nos erros de julgamento assiste-se a uma deficiente análise crítica das provas produzidas ou a uma deficiente enunciação e/ou interpretação dos institutos jurídicos aplicados ao caso concreto. Esses erros, por não respeitarem já a defeitos que afetam a própria estrutura da sentença, mas o mérito da relação material controvertida nela apreciada, não a inquinam de invalidade, mas de error in judicando atacáveis em via de recurso[4].
Analisemos o referido apontado vício que respeita aos limites da sentença. Quanto ao vício consagrado na al. d): omissão ou excesso de pronúncia, cumpre referir, quanto à omissão de pronúncia, que “devendo o juiz conhecer de todas as questões que lhe são submetidas, isto é, de todos os pedidos deduzidos, todas as causas de pedir e exceções invocadas e todas as exceções de que oficiosamente lhe cabe conhecer (art. 608-2), o não conhecimento de pedido, causa de pedir ou exceção cujo conhecimento não esteja prejudicado pelo anterior conhecimento de outra questão constitui nulidade, já não a constituindo a omissão de considerar linhas de fundamentação jurídica, diferentes da sentença, que as partes hajam invocado”[5].
Como se refere no Acórdão da Relação de Guimarães, em que a ora relatora foi adjunta, proferido na processo nº 1799/13.0TBGMR-B.G1, “Devendo o tribunal conhecer de todas as questões que lhe são submetidas (art. 608º, n.º 2 do CPC), isto é, de todos os pedidos deduzidos, todas as causas de pedir e exceções invocadas e de todas as exceções de que oficiosamente lhe cabe conhecer, o não conhecimento de pedido, causa de pedir ou exceção (desde que suscitada/arguida pelas partes) cujo conhecimento não esteja prejudicado pelo anterior conhecimento de outra questão, constitui nulidade por omissão de pronúncia, já não a constituindo a omissão de considerar linhas de fundamentação jurídica, diferentes da sentença, que as partes hajam invocado, uma vez que o juiz não se encontra sujeito às alegações das partes no tocante à indagação, interpretação e aplicação das regras de direito (art. 5º, n.º 3 do CPC)[6].
Acresce que, como já referia Alberto dos Reis[7], impõe-se distinguir, por um lado entre “questões” e, por outro, “razões ou argumentos”. “…Uma coisa é o tribunal deixar de pronunciar-se sobre questões que devia apreciar, outra invocar razão, boa ou má, procedente ou improcedente, para justificar a sua abstenção (…). São, na verdade, coisas diferentes: deixar de conhecer a questão de que devia conhecer-se, e deixar de apreciar qualquer consideração, argumento ou razão produzida pela parte. Quando as partes põem ao tribunal determinada questão, socorrem-se, a cada passo, de várias razões ou fundamentos para valer o seu ponto de vista; o que importa é que o tribunal decida a questão posta; não lhe incumbe apreciar todos os fundamentos ou razões em que elas se apoiam para sustentar as suas pretensões”.
Apenas a não pronúncia pelo tribunal quanto a questões que lhe são submetidas determina a nulidade da sentença, mas já não a falta de discussão das “razões” ou “argumentos” invocados para concluir sobre as questões.
Acresce que a jurisprudência é uniforme no sentido de que a nulidade por omissão de pronúncia supõe o silenciar, em absoluto, por parte do tribunal sobre qualquer questão de cognição obrigatória, isto é, que a questão tenha passado despercebida ao tribunal, já não preenchendo esta concreta nulidade a decisão sintética e escassamente fundamentada a propósito dessa questão[8].
Significa isto, que caso o tribunalse pronuncie quanto às questões que lhe foram submetidas, isto é, sobre todos os pedidos, causas de pedir e exceções que foram suscitadas, ainda que o faça genericamente, não ocorre o vício da nulidade da sentença, por omissão de pronúncia, mas o que poderá existir é um mero erro de julgamento, atacável em via de recurso, onde caso assista razão ao recorrente, se impõe alterar o decidido, tornando-o conforme ao direito aplicável”.
A nulidade da sentença (por omissão ou excesso de pronuncia) há de, assim, resultar da violação do dever prescrito no n.º 2 do referido artigo 608º do Código de Processo Civil do qual resulta que o juiz deve resolver todas as questões que as partes tenham submetido à sua apreciação, excetuadas aquelas cuja decisão esteja prejudicada pela solução dada a outras, e não pode ocupar-se senão das questões suscitadas pelas partes, salvo se a lei permitir ou impuser o conhecimento oficioso de outras.
Mas, a resolução das questões suscitadas pelas partes não pode confundir-se com os factos alegados, os argumentos suscitados ou as considerações tecidas.
A questão a decidir está diretamente ligada ao pedido e à respetiva causa de pedir, não estando o juiz obrigado a apreciar e a rebater cada um dos argumentos de facto ou de direito que as partes invocam com vista a obter a procedência da sua pretensão, ou a pronunciar-se sobre todas as considerações tecidas para esse efeito. O que o juiz deve fazer é pronunciar-se sobre a questão que se suscita apreciando-a e decidindo-a segundo a solução de direito que julga correta.
Se eventualmente não faz referência a todos os argumentos invocados pela parte tal não determina a nulidade da sentença por omissão de pronúncia, sendo certo que a decisão por si tomada quanto à resolução da questão poderá muitas vezes tornar inútil o conhecimento dos mesmos, designadamente por opostos à solução adotada.
Face ao que dispõe o nº2, do art. 608º, do CPC,“O juiz resolve todas as questões que as partes tenham submetido à sua apreciação, excetuadas aquelas cuja decisão esteja prejudicada pela solução dada a outras”[9].
E, na verdade, não se verifica omissão de pronúncia quando o não conhecimento de questões fique prejudicado pela solução dada a outras[10] e o dever de pronúncia obrigatória é delimitado pelo pedido e causa de pedir e pela matéria de exceção[11].
O dever imposto no nº2, do artigo 608º diz respeito ao conhecimento, na sentença, de todas as questões de fundo ou de mérito que a apreciação do pedido e da causa de pedir apresentadas pelo autor (ou, eventualmente, pelo réu reconvinte) suscitam. Só estas questões é que são essenciais à solução do pleito e já não os argumentos, razões, juízos de valor ou interpretação e aplicação da lei aos factos. Para que este dever seja cumprido, é preciso que haja identidade entre a causa petendi e a causa judicandi, entre a questão posta pelas partes e identificada pelos sujeitos, pedido e causa de pedir e a questão resolvida pelo juiz[12].
A sentença deve, pois, “começar pelo conhecimento das questões processuais que podem conduzir à absolvição da instância, devendo nela ser consideradas todas as que as partes tenham deduzido, a menos que prejudicadas pela solução dada a questão anterior de que a absolvição tenha já resultado. Se, porém, puder ter lugar uma decisão de mérito inteiramente favorável à parte cujo interesse a exceção dilatória vise tutelar, o juiz deve proferi-la em vez de absolver o Réu da instância (nº5, do art. 278).
Não havendo lugar à absolvição da instância, segue-se a apreciação do mérito da causa.
O juiz vai agora respondendo aos pedidos deduzidos pelo autor e pelo réu reconvinte, a todos devendo sucessivamente considerar, a menos que, dependendo algum deles da solução dada a outro, a sua apreciação esteja prejudicada pela decisão deste, assim acontecendo quando procede o pedido principal, não havendo lugar à apreciação do pedido subsidiário (ver o nº2, do art. 554), quando, ao invés, não é atendido um pedido prejudicial relativamente a outro cumulativamente deduzido (ver o nº3 do art. 555) e quando identicamente, a procedência ou, ao invés, a improcedência do pedido principal acarreta a não apreciação do pedido reconvencional (…) O mesmo fará relativamente às várias causas de pedir invocadas, se mais do que uma subsidiariamente fundar o pedido, bem como quanto às exceções perentórias que tenham sido deduzidas pelo Réu ou pelo autor reconvindo e àquelas de que deva tomar conhecimento oficioso. (…)“Resolver todas as questões que as partes tenham submetido à sua apreciação” não significa considerar todos os argumentos que, segundo as várias vias, à partida plausíveis, de solução do pleito, as partes tenham deduzido ou o próprio juiz possa inicialmente ter admitido: por um lado, através da prova, foi feita a triagem entre as soluções que deixaram de poder ser consideradas e aquelas a que a discussão jurídica ficou reduzida; por outro, o juiz não está sujeito às alegações das partes quanto à indagação, interpretação e aplicação das normas jurídicas (art. 5-3) e, uma vez motivadamente tomada determinada orientação, as restantes que as partes hajam defendido, nomeadamente nas suas alegações de direito, não têm de ser separadamente analisadas (Alberto dos Réis. CPC anotado cit., V. p. 143)”[13], até porque a sentença não é uma “obra doutrinária: o juiz tem de resolver um litígio concreto e não deve perder de vista que o deve fazer com economia processual”[14].
Relativamente ao excesso de pronúncia, diga-se que “Não podendo o juiz conhecer de causas de pedir não invocadas, nem de exceções não deduzidas na exclusiva disponibilidade das partes (art. 608-2), é nula a sentença em que o faça”[15]. Quanto ao vício consagrado na al. e): condene em quantidade superior ou objeto diverso do pedido diga-se que “É também nula a sentença que, violando o princípio do dispositivo na vertente relativa à conformação objetiva da instância (…), não observe os limites impostos pelo art. 609-1, condenando em quantidade superior ao pedido ou em objeto diverso do pedido”[16].
O pedido é, conforme resulta do nº3, do art. 581º, o efeito jurídico que se pretende obter com a demanda.
Ora, o que os Requerentes pretendem com o presente procedimento cautelar são, tão só, as seguintes providências: a) a suspensão imediata das obras de construção da oficina de manutenção e reparação automóvel dos requeridos; b) a proibição do exercício de quaisquer atividades de manutenção e reparação automóvel no local previsto para a construção da oficina dos requeridos, não formulando, sequer, qualquer pedido condenatório.
Nada mais solicitaram pelo que, na verdade, nenhuma sanção pecuniária compulsória podia ser arbitrada, desde logo porque pedida não foi e se não trata de qualquer medida cautelar.
O Tribunal a quo decidiu: “1º- Restringir o exercício da atividade de manutenção e reparação automóvel apenas à manutenção e reparação das partes mecânica e elétrica dos veículos, apenas em relação a veículos automóveis ligeiros, sendo no caso de ligeiros de mercadorias com peso até 2500Kg, ficando impedidos de fazer a manutenção e reparação de veículos ligeiros de mercadorias de peso superior a 2500kg e de veículos pesados quaisquer que sejam as suas características; 2º- Restringir o horário de laboração ao período das 08h30 às 19h00, de segunda a sexta-feira, com encerramento aos sábados, domingos e feriados, sendo que os equipamentos que provoquem ruído constantes, como por exemplo os compressores, devem ser desligados fora de tais dias e horário. 3º- Proibir que se inicie a instalação da oficina no edifício e posteriormente se inicie a atividade sem que estejam instalados mecanismos de controle, gestão e tratamento de emissões gasosas, nomeadamente chaminé adequada; gestão e tratamento de resíduos líquidos e lamas industriais, através de estação de tratamento; colocado isolamento acústico na oficina, por forma a que, durante o dia, o ruído exterior provindo da oficina seja de máximo 45dB(A) e de noite seja o máximo de 24dB(A), tudo independentemente de ser ou não exigido administrativamente; sem que estejam instalados mecanismos de controlo [medição] permanentes de ruido exterior e de poluição do ar, com fornecimento dos dados mensalmente aos Autores. 4º- Fixar, ao abrigo do disposto no artigo 829º-A do Código Civil, como sanção pecuniária compulsória para o caso de eventual exercício da atividade no edifício em causa nos autos e descrito nos factos indiciariamente provados sob o nº 2, fora as condições fixadas, o montante de 1.000,00€, por cada dia de laboração, sem prejuízo da eventual prática de um crime de desobediência qualificada, previsto e punido pelo artigo 348º nº 1, alínea b), e nº 2, do Código Penal, nos termos do artigo 375º do CPC.
A decisão padece, pois, da apontada nulidade, tendo havido pronúncia ultra petitum e efetiva condenação em objeto diverso do pedido, sendo que a pretensão cautelar formulada se reportava tão só a suspensão de obras e a proibição de exercício de atividades.
Condenou o Tribunal a quo para além do peticionado, sendo que, na verdade fixou uma sanção pecuniária para o eventual exercício da atividade no edifício em causa nos autos fora das condições fixadas, sanção pecuniária compulsória inserida no nº 1 do art. 829-A do CC, sendo, até, que esta só a pedido do credor podia ser decretada, como resulta da lei que, expressamente, consagra a necessidade de requerimento - “a requerimento do credor”.
Padece, pois, nessa parte, a decisão do vício consagrado na alínea e), do nº 1, do art. 615º, tendo havido condenação em objeto diverso do pedido – nº1, do art. 609º.
Concluímos, assim, padecer a sentença da apontada nulidade, tendo o juiz conhecido de questão que lhe não foi colocada pelas partes e condenado em objeto diverso do pedido.
Procedem, por conseguinte, as referidas conclusões da apelação, ocorrendo a violação dos normativos invocados pelos apelantes, tendo, por isso, a decisão recorrida de ser revogada na parte que fixou sanção pecuniária compulsória.
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2º - Da verificação de definitiva fixação da matéria de facto
Cumpre deixar claro que não tendo sido deduzida impugnação da matéria de facto e não sendo caso de se proceder, oficiosamente, à sua alteração (cfr. nº 1 do art. 662º do CPC)[17], tem a factualidade dada como provada de se manter nos termos fixados em 1ª instância. E mesmo que se pudesse considerar ser intenção dos Apelantes/Requeridos impugnar a decisão da matéria de facto, nunca seria de conhecer da impugnação, pois que os mesmos não deram satisfação aos ónus para tal impostos.
Analisemos.
Face às conclusões formuladas no recurso independente, designadamente à 16ª, e a fim de se determinar, definitivamente, qual a matéria de facto a considerar para a análise da modificabilidade da fundamentação jurídica, antes de mais, cumpre decidir se os Requeridos/Apelantes observaram os ónus legalmente impostos em sede de impugnação da decisão da matéria de facto, que vêm enunciados nos arts 639º e 640º, do Código de Processo Civil, abreviadamente CPC, diploma a que pertencem todos os preceitos citados sem outra referência, os quais constituem requisitos habilitadores a que o tribunal ad quem possa conhecer da impugnação, a entender-se que a houve, e decidi-la.
O nº1, do art. 639º, consagrando o ónus de alegar e formular conclusões, estabelece que o recorrente deve apresentar a sua alegação, na qual conclui, de forma sintética, pela indicação dos fundamentos por que pede a alteração ou anulação da decisão, sendo as conclusões das alegações de recurso que balizam a pronúncia do tribunal.
E o art. 640º, consagra ónus a cargo do recorrente que impugne a decisão relativa à matéria de facto, estabelecendo no nº1, que, quando seja impugnada a decisão sobre a matéria de facto, deve o recorrente obrigatoriamente especificar, sob pena de rejeição: a)- os concretospontos de facto que considera incorretamente julgados; b)- os concretos meios probatórios, constantes do processo ou de registo ou gravação nele realizada, que impunham decisão sobre os pontos da matéria de facto impugnados diversa da recorrida; c)- a decisão que, no seu entender, deve ser proferida sobre as questões de facto impugnadas (negrito nosso).
O n.º 2, do referido artigo, acrescenta que: a) … quando os meios probatórios invocados como fundamento do erro na apreciação das provas tenham sido gravados, incumbe ao recorrente, sobpena de imediata rejeição do recurso na respetiva parte, indicar com exatidão as passagens da gravação em que se funda o seu recurso, sem prejuízo de proceder à transcrição dos excertos que considere relevantes (negrito nosso).
Como resulta do referido preceito, e seguindo a lição de Abrantes Geraldes, quando o recurso verse a impugnação da decisão da matéria de facto deve o recorrente observar as seguintes regras: a) Em quaisquer circunstâncias, o recorrente deve indicar sempre os concretos pontos de facto que considera incorrectamente julgados, com enunciação na motivação do recurso e síntese nas conclusões; (negrito nosso) b) Deve ainda especificar, na motivação, os meios de prova constantes do processo ou que nele tenham sido registados que, no seu entender, determinam uma decisão diversa quanto a cada um dos factos;
c) Relativamente a pontos de facto cuja impugnação se funde, no todo ou em parte, em provas gravadas, para além da especificação obrigatória dos meios de prova em que o recorrente se baseia, cumpre-lhe indicar com exactidão, na motivação, as passagens da gravação relevantes e proceder, se assim o entender, à transcrição dos excertos que considere oportunos;(…)
e) O recorrente deixará expressa, na motivação, a decisão que, no seu entender, deve ser proferida sobre as questões de facto impugnadas, tendo em conta a apreciação crítica dos meios de prova produzidos, exigência que vem na linha do reforço do ónus de alegação, por forma a obviar a interposição de recursos de pendor genérico ou inconsequente;[18].
Com a reforma introduzida ao Código de Processo Civil pelos Decretos-Leis n.ºs 39/95, de 15/02 e 329-A/95, de 12/12, o legislador consagrou o registo da audiência de discussão e julgamento, com a gravação integral da prova produzida, e conferiu às partes duplo grau de jurisdição em sede de matéria de facto. O tribunal de segunda instância passou a fazer um novo julgamento da matéria impugnada, assegurando um efetivo duplo grau de jurisdição, sendo isto que resulta do estatuído no art. 662º, n.º 1, quando nele se expressa que a Relação deve alterar a decisão proferida sobre a matéria de facto, se os factos tidos como assentes, a prova produzida ou um documento supervenientes impuserem decisão diversa.
Comparando o anterior regime com o atual (cfr. o art. 712º, do anterior CPC, com o art. 662º do atual), verificamos que a possibilidade de alteração da matéria de facto, que era excecional, passou a ser função normal do Tribunal da Relação, elevado a verdadeiro Tribunal de substituição, verificados os referidos requisitos legais. Conferiu-se, assim, às partes um duplo grau de jurisdição, por forma a poderem reagir contra eventuais e hipotéticos erros de julgamento, com vista a alcançar uma maior certeza e segurança jurídicas e a, desse modo, obter decisões mais justas, alcançando-se, assim, uma maior equidade e paz social, sempre buscadas pelo Estado, verdadeiro interessado na realização da justiça.
O duplo grau de jurisdição em sede de matéria de facto pressupõe novo julgamento quanto à matéria de facto impugnada e “somente será alcançado se a Relação, perante o exame e análise crítica das provas produzidas, a respeito dos pontos de facto impugnados, puder formar a sua própria convicção, no gozo pleno do princípio da livre apreciação das prova, sem estar limitada pela convicção que serviu de base à decisão recorrida, em função do princípio da imediação da prova, princípio este que tido por absoluto transformaria este duplo grau de jurisdição em matéria de facto, numa garantia praticamente inútil”[19].
Tendo o recurso por objeto a impugnação da matéria de facto, a Relação deve proceder a um novo julgamento, limitado à matéria de facto impugnada, procedendo à efetiva reapreciação da prova produzida, devendo nessa tarefa considerar os meios de prova indicados no recurso, assim como, ao abrigo do princípio do inquisitório, outros que entenda relevantes, apreciando livremente as provas segundo a sua prudente convicção acerca de cada facto impugnado, exceto no que respeita a factos para cuja prova a lei exija formalidades especiais ou que só possam ser provados por documentos ou que estejam plenamente provados por documento, acordo ou confissão (art. 607º, n.º 5 do Cód. Proc. Civil).
Contudo, o legislador, ao impor ao recorrente o cumprimento das referidas regras, visou afastar soluções que pudessem reconduzir-nos a uma repetição dos julgamentos, tal como foi rejeitada a admissibilidade de recursos genéricos contra a errada decisão da matéria de facto, tendo o legislador optado por restringir a possibilidade de revisão de concretas questões de facto controvertidas relativamente às quais sejam manifestadas e concretizadas divergências pelo recorrente.[20].
Não se consagra a possibilidade de repetição do julgamento e de reapreciação de todos os pontos de facto, mas, apenas e só, a reapreciação pelo tribunal superior e, consequente, formação da sua própria convicção (à luz das mesmas regras de direito probatório a que está sujeito o tribunal recorrido) quanto a concretos pontos de facto julgados provados e/ou não provados pelo tribunal recorrido. A possibilidade de reapreciação da prova produzida em 1ª instância, enquanto garantia do duplo grau de jurisdição em sede de matéria de facto, nunca poderá envolver a reapreciação global de toda a prova produzida, impondo-se, por isso, ao impugnante, no respeito dos princípios estruturantes da cooperação e da lealdade e boa-fé processuais, a observância das citadas regras. O Tribunal da Relação, sendo de 2ª instância, continua a ter competência residual em sede de reponderação ou reapreciação da matéria de facto[21], estando subtraída ao seu campo de cognição a matéria de facto fixada pelo tribunal a quo que não seja alvo de impugnação.
Em suma, deve, assim, o recorrente, sob cominação de rejeição do recurso, para além de delimitar com toda a precisão os concretos pontos da decisão que pretende questionar, deixar expressa a decisão que, no seu entender, deve ser proferida sobre as questões de facto impugnadas, como corolário da motivação apresentada, sendo que, como refere Abrantes Geraldes, esta última exigência (plasmada na transcrita alínea c) do nº 1 do art. 640º) vem reforçar o ónus de alegação imposto ao recorrente (…) por forma a obviar a interposição de recursos de pendor genérico ou inconsequente, devendo ser apreciada à luz de um critério de rigor enquanto decorrência do princípio da auto-responsabilidade das partes, impedindo que a impugnação da decisão da matéria de facto se transforme numa mera manifestação de inconsequente inconformismo[22].
É entendimento doutrinal e jurisprudencial uniforme que, nas conclusões das alegações, que têm como finalidade delimitar o objeto do recurso (cfr. nº4, do art. 635º, do CPC) e fixar as questões a conhecer pelo tribunal ad quem, o recorrente tem de delimitar o objeto da impugnação de forma rigorosa, indicando os concretos pontos da matéria de facto que considera incorretamente julgados, sob pena de rejeição do recurso, como a lei adjetiva comina no nº1, do art. 640º.
Não obstante o NCPC proceder, como vimos, ao alargamento e reforço dos poderes da Relação no domínio da reapreciação da matéria de facto, deve ser rejeitado o recurso, no atinente a tal ponto, quando o recorrente não cumpra os ónus impostos pelos nº1 e 2, a), do art. 640º [23]. E impõe-se a rejeição total ou parcial do recurso respeitante à impugnação da decisão da matéria de facto quando ocorra:
a) falta de conclusões sobre a impugnação da matéria de facto (art. 635º, n.º 4 e 641º, n.º 2, al. b);
b) falta de especificação, nas conclusões, dos concretos pontos de facto que o recorrente considera incorretamente julgados (art. 640º, n.º 1, al. a));
c) falta de especificação (que pode constar apenas na motivação), dos concretos meios probatórios constantes do processo ou nele registados (v.g. documentos, relatórios periciais, registo escrito, etc.);
d) falta de indicação exata, (que pode constar apenas na motivação), das passagens da gravação em que o recorrente se funda;
e) falta de posição expressa, (que pode constar apenas na motivação), sobre o resultado pretendido a cada segmento da impugnação”[24], critérios estes que têm sido aplicados pelo Supremo Tribunal de Justiça[25], vindo este Tribunal Superior a distinguir, quanto aos ónus a cargo do recorrente que impugne a decisão relativa à matéria de facto, entre:
- ónus primário ou fundamental, que se reportam ao mérito da pretensão;
- ónus secundários, que respeitam a requisitos formais.
Quanto aos requisitos primários, onde inclui a obrigação do recorrente de formular conclusões e nestas especificar os concretos pontos de facto que considera incorretamente julgados e a falta de especificação, na motivação, dos concretos meios probatórios constantes do processo ou nele registados e falta de posição expressa, na motivação, sobre o resultado pretendido relativamente a cada segmento da impugnação, requisitos estes sobre que versa o n.º 1 do art. 640º, do CPC, a jurisprudência tem considerado que aquele critério é de aplicar de forma rigorosa, pelo que sempre que se verifique o incumprimento de algum desses ónus por parte do recorrente se impõe rejeitar o recurso – cfr. Acs. do STJ de 27/10/2016, Processo 110/08.6TTGM.P2.S1 e Processo 3176/11.8TBBCL.G1.S1, in dgsi.net.
Assim, e como se decidiu no Ac. do STJ proferido em 3/5/2016, Processo 17482/13: Sumários, Maio/2016, p 2 “I. O apelante pretendendo que o Tribunal da Relação reaprecie o julgamento da matéria de facto, para dar cabal cumprimento ao preceituado na al. c) do nº1, do art. 640º, do NCPC (2013), deve ser claro e inequívoco, afirmando que os pontos da matéria de facto impugnados deveriam ter as respostas que segundo a sua apreciação deveriam ter tido, indicando-as, de harmonia com as provas que indicou. II. Tal ónus não se satisfaz expressando o recorrente meras apreciações discordantes do julgamento e juízos de valor críticos, referidos aos depoimentos das testemunhas indicadas. III. A mera indicação de que certos pontos da matéria de facto, que são indicados, não deveriam ter tido as respostas que tiveram, sem se dizer quais as respostas que numa correta apreciação deviam merecer, não cumpre aquele ónus”.
A delimitação tem de ser concreta e específica e o recorrente têm de indicar, com clareza e precisão, os meios de prova em que fundamenta a sua impugnação, bem como as concretas razões de censura. Tal tem de ser especificado quanto a cada concreto facto. Não pode ser efetuado em termos conclusivos, latos, genéricos e em bloco por referência a “factos provados” ou “factos não provados”.
Analisando as conclusões das alegações dos Requeridos/Apelantes, entendemos que os Recorrentes, no recurso independente, verdadeiramente não impugnam a decisão da matéria de facto. E não fazem, com relação ao referido em a), supra, referência aos concretos pontos da matéria de facto que considera incorretamente julgados indicando, justificadamente, os elementos probatórios que conduziriam à alteração de cada concreto ponto e a decisão que devia ter sido proferida quanto a cada concreto facto, procedendo a uma análise critica das provas e indicando a decisão que devia ter sido proferida sobre as concretas questões de facto impugnadas, em obediência às três alíneas do nº1, do referido art. 640º.
Na verdade, e após o que referem no corpo das alegações, formulam os Requeridos/Apelantes as conclusões supra referidas, que como se referiu, delimitam o objeto do seu recurso.
E, efetivamente, verifica-se que os recorrentes:
- não indicamespecificadamente concretos pontos de facto incorretamente julgados;
- não especificam os meios probatórios que determinariam decisão diversa da tomada em Primeira Instância para cada um dos factos; - e não especifica, para cada um deles, a decisão que, no seu entender, deveria ser proferida sobre as questões de fato que pretendem impugnar.
Concluem os Requeridos/Apelantes que “os fatos constantes dos itens 40, 41 (na perspectiva de fisicamente será impossível a execução de todas aquelas atividade no local concreto), 43, 44, 45, 46 e 61 nunca deveriam ter sido considerados como provados, pois não resulta de qualquer prova credível”, sem que, contudo tenham cumprido os ónus de impugnação da matéria de facto, sequer peticionaram, na verdade, a reapreciação da mesma. A falta de indicação por parte dos apelantes quer dos concretos pontos, quer dos elementos probatórios que conduziriam à alteração de cada um desses pontos nos termos por eles propugnados, quer da decisão que, no seu entender, deveria sobre eles ter sido proferida, relativamente a cada facto concreto, situação esta que se verifica in casu, tem, como consequência, a imediata rejeição do recurso, na parte respeitante aos pontos da matéria de facto relativamente aos quais se verifica a omissão, pois que quanto ao recurso da matéria de facto não existe despacho de aperfeiçoamento ao contrário do que sucede quanto ao recurso em matéria de direito, por aplicação do disposto no art. 639º, nº3, do CPC.
Acresce que os Recorrentes não fazem, também, qualquer apreciação crítica dos meios de prova produzidos, quanto a cada concreto facto, a justificar o erro de julgamento que invocam, em termos genéricos, tendo de o fazer, pois que só assim cumpririam a exigência de obrigatória especificação imposta pelo nº1, do art. 640º.
E, como se decidiu no Ac. da Relação de Lisboa de 13/3/2014, Processo 569/12.dgsi.net “I. Ao impugnar a decisão de facto, à luz do NCPC, cabe ao recorrente, em sede conclusiva, expressar o sentido da decisão que, no seu entender, deve ser proferida sobre as questões de facto impugnadas, como corolário da motivação apresentada, tendo em conta a apreciação crítica, de que não poderá demitir-se, dos meios de prova produzidos/invocados – exigência nova de reforço do ónus de alegação e conclusão, por forma a obviar à interposição de recursos de pendor genérico ou inconsequente – sob pena de rejeição da impugnação, por insuficiência ou obscuridade, na parte não fundamentada em exame crítico das provas. II. Tais exigências devem ser apreciadas à luz de um critério de rigor, em decorrência do princípio da auto-responsabilidade das partes, impedindo que a impugnação da decisão de facto se transforme em simples manifestação de inconsequente inconformismo[26].
No mesmo sentido se orienta toda a jurisprudência – v., designadamente Ac. da Relação de Guimarães de 3/3/2016, Processo 283/08 e de 4/2/2016:Processo 283/08.8TBCHV.A.G1, ambos in dgsi.net – onde se refere que “Tal como se impõe, por mor do preceituado no nº4, do art. 607º, do CPC, que o tribunal de 1ª instância faça a análise crítica das provas (de todas as provas que se tenham revelado decisivas) também o recorrente, ao enunciar os concretos meios de prova que devem conduzir a uma decisão diversa, deve fundamentar tal pretensão numa análise (crítica) dos meios de prova, não bastando reproduzir um ou outro segmento descontextualizado dos depoimentos.
Não cumpre o ónus de impugnação da decisão relativa à matéria de facto a que se refere a al. b), do nº1, do art. 640º, do NCPC, o recorrente que se limita a transcrever uma parte … do depoimento, aí partindo para a formulação da sua pretensão de modificação de diversos pontos da matéria de facto que indicou em bloco”.
E, servindo as conclusões para delimitar o objeto do recurso, nelas devem ser identificados com precisão os pontos de facto que são objeto de impugnação (quanto aos demais previstos no art. 640º, é suficiente que constem de forma explícita na motivação do recurso)[27].
Sendo função das conclusões do recurso indicar, embora de forma sintética, os fundamentos porque se pede a alteração (seja de facto seja de direito) da decisão, nelas tem o recorrente, que impugna a matéria de facto, de especificar os concretos factos que entende estarem mal julgados. A aferição deste mau julgamento é a questão colocada à decisão do tribunal de 2ª instância e, como tal, tem de constar das conclusões ou estará fora do objeto do recurso. Já a especificação dos concretos meios de prova que impunham decisão diversa e o cumprimento da exigência indicada na al. a), do nº2, do art. 640º do NCPC têm a sua sede própria no corpo da alegação. Acresce, ainda, que cabe ter em conta, que, quanto ao recurso da decisão da matéria de facto, não existe a possibilidade de despacho de convite ao aperfeiçoamento, sendo este tipo de despacho reservado somente aos recursos em matéria de direito. A falta de especificação nas conclusões dos factos concretos que se consideram mal julgados não dá lugar a despacho de aperfeiçoamento no quadro do nº3, do art. 639º do NCPC,[28].
Deste modo, verifica-se que não foram cumpridos os ónus impostos pelo artº 640º, do C.P.C. e, efetivamente, apesar do referido pelos Recorridos/Apelantes, nem impugnada foi, sequer, na verdade, a decisão da matéria de facto.
E vigorando no processo civil o princípio da auto-responsabilidade das partes, cabia ao recorrente especificar, nas alegações e nas conclusões de recurso os pontos que pretendia ver abordados[29], e deixar claro que pretendia ver reapreciada a matéria de facto.
O Requeridos apelantes omitem os concretos pontos fácticos que querem ver alterados e nada dizem acerca da matéria que, em substituição do julgamento fático feito, deve concretamente ser considerada efazem comentários à análise probatória vertida na sentença recorrida,omitindo o que pudesse “impor” decisão diversa, não indicando, concretamente, qual deva ser.
Bem se considerou no Acórdão de 17.12.2018, proc 1398/11.0TBBGC.G1, da Relação de Guimarães, que “I- Deve ser rejeitado o recurso genérico da decisão da matéria de facto apresentado pelo Recorrente quando, para além de não se delimitar com precisão os concretos pontos que se pretendem questionar, não se deixa expressa a decisão que, no entender do mesmo, deve ser proferida sobre as questões de facto impugnadas. II. No que concerne à referida delimitação dos concretos factos impugnados exigida pelo art. 640º, nº 1, al. a) do CPC, o que o legislador pretende é que o Impugnante o faça por remissão para o elenco de factos estabelecidos na decisão Recorrida – como provados, ou como não provados – ou, se os factos não estiverem mencionados na decisão sobre a matéria de facto, por remissão para os factos oportunamente alegados. III. No entanto, nos casos em que a matéria de facto considerada como não provada resulta da resposta positiva restritiva a determinada matéria alegada, aquela indicação tem de ser efectuada com referência àquele ponto da matéria de facto considerada como provada, defendendo-se que a “resposta restritiva” devia ser alterada no sentido de ser dada como provada toda a matéria de facto que pertinentemente havia sido alegada. IV. Noutros casos, se tal não puder ser efectuado, terá o Recorrente que indicar que a matéria de facto alegada em determinado item dos articulados – que não se mostra mencionada na decisão sobre a matéria de facto proferida pelo Tribunal Recorrido – devia ser considerada como provada. V. Estas regras processuais não podem ser entendidas como dispensáveis ou menores, apelando-se a argumentos de mera razoabilidade, permitindo-se que os Recorrentes as infrinjam, de uma forma directa, e imputando ao Tribunal de Recurso a árdua tarefa de “procurar”, na peça processual apresentada, quais são, afinal, os pontos da matéria de facto que os Recorrentes pretendem impugnar; e com o risco, aliás, de, na ausência de especificação concreta dos pontos da matéria de facto, entender que determinados pontos da matéria de facto teriam sido impugnados, mas de uma forma que não correspondia à vontade daqueles, violando, além do mais, o princípio do contraditório, pois que sobre eles a parte contrária não se chegou a pronunciar, por não ter logrado entender quais eram os pontos da matéria de facto que estariam em causa. VI. Na verdade, é aos Recorrentes que o Legislador inequivocamente atribui essa tarefa de delimitação do objecto da Impugnação da matéria de facto, sendo bem explícito e concreto quando estabelece esses ónus processuais no art. 640º do CPC - que, aliás, não são difíceis de cumprir”.
No seguimento do que acima se deixou dito, perante a omissão pelos Requeridos recorrentes do cumprimento dos ónus estatuídos nas als a) a c), do nº1 e nº2, do art. 640º, pois que nada referiram, especificadamente, para cada facto, impunha-se rejeitar o recurso da matéria de facto, sendo que, contudo, nem verdadeiramente, peticionam, sequer a sua reapreciação, nãoversando, pois, o recurso a impugnação da decisão da matéria de facto.
Assim, por falta de observância do disposto no nº1 e 2, al. a), do art. 640º, do CPC, nos termos supra expostos, a poder entender-se que vêm impugnar a decisão da matéria de facto, rejeita-se o recurso, no respeitante à reapreciação de tal matéria.
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3º - Do erro da decisão de mérito: do integral preenchimento dos requisitos consagrados para o procedimento cautelar comum
Insurgem-se ambas as partes contra o enquadramento jurídico efetuado pelo Tribunal a quo, cabendo, definida que se encontra a matéria de facto, analisar da modificabilidade da decisão de mérito, desde logo por se mostrem preenchidos os requisitos da solicitada providência.
Consagra o nº1, do artigo 342º, do C. Civil, que regula a questão do ónus da prova, que “Àquele que invocar um direito cabe fazer a prova dos factos constitutivos do direito alegado”.
Cumpre, pois, analisar se, face aos factos, sumariamente, provados, se encontram demonstrados os factos constitutivos do direito alegado e, como tal, se a decisão de mérito do procedimento cautelar deve ser alterada e a providência solicitada decretada.
Vejamos a fundamentação da decisão recorrida, ressaltando, desde logo, como não podia deixar de ser em face da matéria sumariamente provada, que considerou o Tribunal a quo verificados os pressupostos do fumus boni iuris e do periculum in mora, bem referindo:
“Os procedimentos cautelares, em regra, exigem dois requisitos para poderem ser decretados. Em primeiro lugar, é necessário que exista “fumus boni iuris”, ou seja, que o requerente invoque a probabilidade séria da existência de um direito. Em segundo lugar, tem de existir “periculum in mora”, tendo o requerente que invocar um fundado receio de que a demora natural do pleito lhe cause um prejuízo irreparável ou muito difícil de reparar. Ou, se quisermos dizer de outro modo, segundo a jurisprudência, toda a providência cautelar tem como objetivo a garantia do efeito útil da ação, prevenindo a ocorrência ou a continuação de danos ou antecipando os efeitos que as medidas definitivas buscam, por forma a evitar o periculum in mora, traduzido no fundado receio de ocorrência de lesão grave e dificilmente reparável do direito que se pretende acautelar com a delonga da ação. No fundo, procura a imediata tutela do direito afetado em moldes tais que, se a mesma não ocorrer, o requerente suportará uma lesão grave e irreparável ou cuja reparação se mostre difícil [artigo 362º do CPC]. No plano da sua função, distinguem-se dois tipos diferenciados de providências: as conservatórias e as antecipatórias [artigo 362º, 1, do CPC]. As primeiras visam acautelar o efeito útil da ação principal, assegurando a permanência do quadro existente quando se despoletou o litígio, e as segundas garantem a antecipação da realização do direito que previsivelmente será reconhecido na ação principal. A Constituição da República Portuguesa [CRP] estabelece no seu artigo 64º que “Todos têm direito à proteção da saúde e o dever de a defender e promover” [nº 1], sendo que esse direito à saúde é realizado “Através de um serviço nacional de saúde universal e geral e, tendo em conta as condições económicas e sociais dos cidadãos, tendencialmente gratuito” [nº 2, alínea a)] e “Pela criação de condições económicas, sociais, culturais e ambientais que garantam, designadamente, a proteção da infância, da juventude e da velhice, e pela melhoria sistemática das condições de vida e de trabalho, bem como pela promoção da cultura física e desportiva, escolar e popular, e ainda pelo desenvolvimento da educação sanitária do povo e de práticas de vida saudável” [nº 2, alínea b)], sublinhado nosso. Por seu lado, o artigo 66º da CRP dispõe que “Todos têm direito a um ambiente de vida humano, sadio e ecologicamente equilibrado e o dever de o defender” [nº 1] e “Para assegurar o direito ao ambiente, no quadro de um desenvolvimento sustentável, incumbe ao Estado, por meio de organismos próprios e com o envolvimento e a participação dos cidadãos, prevenir e controlar a poluição e os seus efeitos e as formas prejudiciais de erosão” [nº 2, alínea a)], “Ordenar e promover o ordenamento do território, tendo em vista uma correta localização das atividades, um equilibrado desenvolvimento socioeconómico e a valorização da paisagem [nº 2, alínea b)] e “Promover, em colaboração com as autarquias locais, a qualidade ambiental das povoações e da vida urbana …” [nº 2, alínea e)]. A política do ambiente visa a efetivação dos direitos ambientais através da promoção do desenvolvimento sustentável, suportada na gestão adequada do ambiente, em particular dos ecossistemas e dos recursos naturais, contribuindo para o desenvolvimento de uma sociedade de baixo carbono e uma «economia verde», racional e eficiente na utilização dos recursos naturais, que assegure o bem-estar e a melhoria progressiva da qualidade de vida dos cidadãos [artigo 2º nº 1 da Lei de Bases do Ambiente (LBA), aprovada pela Lei nº 19/2014, de 14 de abril]. Acresce que os princípios materiais do ambiente são, nomeadamente, a prevenção e da precaução, que obrigam à adoção de medidas antecipatórias com o objetivo de obviar ou minorar, prioritariamente na fonte, os impactes adversos no ambiente, com origem natural ou humana, tanto em face de perigos imediatos e concretos como em face de riscos futuros e incertos, da mesma maneira como podem estabelecer, em caso de incerteza científica, que o ónus da prova recaia sobre a parte que alegue a ausência de perigos ou riscos [artigo 3º, alínea c), da LBA]. No caso dos autos, uma vez que é a instalação da oficina de reparação e manutenção automóvel que causará danos ambientais que violam o direito da comunidade da localidade de …, mais propriamente a zona urbana habitacional e de serviços públicos [igreja, centro social e paroquial e jardim de infância e futura escola do ensino básico], situadas na zona onde vai ser instalada a referida unidade industrial, a um ambiente de vida humano, sadio e ecologicamente equilibrado [artigo 66º nº 1 da CRP], e não a construção do edifício onde a oficina vai ser instalada, estamos, por isso, perante uma providência antecipatória ou preventiva, porquanto a oficina ainda não está instalada e a atividade ainda não foi iniciada. Por outro lado, para a procedência da providência cautelar antecipatória ou preventiva, exige-se que estejam verificados os principais pressupostos, quais sejam o fumus boni iuris, o periculum in mora, a proporcionalidade e a adequação. Vejamos então: Porque estamos perante uma providência cautelar no âmbito da ação popular, que pretende evitar a degradação ambiental da localidade de …, mais propriamente da população que habita e frequenta com os serviços coletivos existentes na área próxima do local da unidade industrial a instalar [nomeadamente igreja, cemitério, centro social e paroquial e jardim de infância com prevista instalação de escola do ensino básico], dúvidas não existem que o direito que a comunidade envolvente pretende ver acautelado são os seus direitos fundamentais: o repouso e o sossego que cada pessoa necessita de desfrutar no seu lar para se retemperar do desgaste físico e anímico que a vida no seu dia a dia provoca no ser humano, que é algo de essencial a uma vida saudável, equilibrada e física e mentalmente sadia. O direito ao repouso, ao sossego e ao sono são uma emanação da consagração constitucional do direito à integridade física e moral da pessoa humana e a um ambiente de vida sadio. Na verdade, como já se deixou referido, todos têm direito à proteção da saúde e o dever de a defender e promover, o que passa pela criação de condições ambientais, económicas e sociais que garantam a melhoria das condições de vida, e pelo direito ao ambiente e qualidade de vida [artigo 64 nº 1 da CRP] e todos têm direito a um ambiente de vida humano, sadio e ecologicamente equilibrado e o dever de o defender [artigo 66º nº 1 da CRP]. Como resulta do artigo 5º da Lei de Bases do Ambiente “Todos têm direito ao ambiente e à qualidade de vida, nos termos constitucional e internacionalmente estabelecidos” [nº 1], sendo que “O direito ao ambiente consiste no direito de defesa contra qualquer agressão à esfera constitucional e internacionalmente protegida de cada cidadão, bem como o poder de exigir de entidades públicas e privadas o cumprimento dos deveres e das obrigações, em matéria ambiental, a que se encontram vinculadas nos termos da lei e do direito” [nº 2]. São estes os direitos que têm os cidadãos pertencentes à comunidade onde se situará a unidade industrial a instalar de oficina de reparação e manutenção automóvel. Para isso é necessário que a qualidade do ar seja a mais adequada, as águas estejam livres de quaisquer contaminações ou fontes poluidoras, o ruído seja o menor possível de dia e de noite, os resíduos sejam devidamente tratados, devendo manterem-se sempre e necessariamente com os padrões, no mínimo, iguais aos existentes sem a atividade a instalar. Na verdade, a política de ambiente tem por objeto os componentes ambientais naturais, como o ar, a água e o mar, a biodiversidade, o solo e o subsolo, a paisagem, e reconhece e valoriza a importância dos recursos naturais e dos bens e serviços dos ecossistemas [artigo 10º da LBA] Por outro lado, na política ambiental, uma das componentes associadas a comportamentos humanos é a redução da exposição da população ao ruído que será assegurada através da definição e aplicação de instrumentos que assegurem a sua prevenção e controlo, salvaguardando a qualidade de vida das populações e a saúde humana [artigo 11º, alínea c), da LBA]. A qualidade do ar ambiente é uma componente ambiental determinante, em particular para a saúde pública e para a qualidade de vida dos cidadãos, sendo que a avaliação e gestão do risco associado aos elementos e produtos químicos, biológicos e radioativos, aos organismos geneticamente modificados, e à incorporação de novas tecnologias, durante o seu ciclo de vida, de modo a garantir a proteção do ambiente e da saúde humana [artigo 11º, alínea d), da LBA]. A qualidade da água deve ser assegurada através da proteção e a gestão dos recursos hídricos que visa também salvaguardar o direito humano, consagrado pelas Nações Unidas, de acesso a água potável segura, bem como o acesso universal ao saneamento, fundamental para a dignidade humana e um dos principais mecanismos de proteção da qualidade dos recursos hídricos. Portanto, impõe-se a gestão de águas poluentes, nomeadamente as produzidas em qualquer atividade industrial. Ora, é sabido, pois tal resulta das regras da experiência comum e da normalidade, que a instalação de uma unidade industrial, qualquer que ela seja, provoca uma alteração ambiental quer em termos de ruído [desde o ruído da laboração, ao ruído dos equipamentos mesmo em stand by, ao trafego automóvel], quer em termos de poluição do ar [emissão de gases provenientes dos fumos dos escapes, de tintas, de óleos, etc. bem como cheiros incomodativos], quer em termos da poluição das águas subterrâneas e das águas superficiais, através do aumento do caudal das águas residuais [pois que, uma unidade fabril tem trabalhadores ao serviço, que fazem as suas necessidades fisiológicas, que se tomam banho ou lavam as mãos; a lavagem de motores e outras peças, de viaturas, lavagem das instalações, etc], com o consequente perigo de contaminação do subsolo. No caso presente, a instalação de uma unidade industrial do tipo da atividade de reparação e manutenção automóvel provoca alterações ambientais significativas, por maioria de razão em zonas urbanas habitacionais e de serviços [veja-se, nomeadamente o Acórdão do STJ de 5/04/2018, processo nº 1853/11.2TBVFR.P2.S1, em www.dgsi.pt] Acresce que, face à factualidade indiciariamente provada, a atividade a instalar – oficina de reparação e manutenção automóvel –, quando a mesma estiver em funcionamento poderá executar as seguintes atividades: a realização de testes aos motores dos veículos em reparação, inclusivamente em banco de ensaio; a operação de prensas e máquinas hidráulicas; a operações de bate-chapas; as operações de pintura; a estampagem de chapa; mudanças de óleos; substituição de baterias [factos indiciariamente provados sob o nº 41]; poderá executar as referidas atividades quer em veículos automóveis ligeiros ou pesados [factos indiciariamente provados sob o nº 42]; Por outro lado, a existência da referida oficina de manutenção e reparação automóvel no referido local provocará aumento do tráfego automóvel [factos indiciariamente provados sob o nº 43]. Ora, todas as referidas atividades gerarão ruídos, vibrações, fumos, águas contaminadas com detergentes, com óleos, bem como outros químicos perigosos, como por exemplo os que fazem parte das baterias [factos indiciariamente provados sob o nº 44]; os referidos ruídos, vibrações, fumos, águas contaminadas com detergentes, com óleos, bem como outros químicos perigosos, como por exemplo os que fazem parte das baterias, provocam alterações da qualidade ambiental na área envolvente significativas e muito superiores às que ocorrem nos meios urbanos e habitacionais, nomeadamente: o que resulta das emissões de efluentes gasosos originados quer no funcionamento em regime de teste dos motores de combustão interna, quer nas operações de manutenção que envolvem tratamento térmico, quer ainda nas operações de pintura dos veículos em jato sob cortina de água, sendo certo que, neste tipo de emissões gasosas é frequente encontrar elevadas concentrações de partículas sub-micrónicas, óxidos de azoto e de enxofre, e compostos orgânicos voláteis, poluentes em relação aos quais a lei estabelece valores-limite de emissão muito rigorosos; o que resulta dos efluentes líquidos, sendo certo que uma oficina de reparação e manutenção automóvel gera águas residuais resultantes da lavagem dos equipamentos, dos veículos e dos pavimentos que contêm normalmente elevados teores de substâncias poluentes, uma vez que regista-se neste tipo de águas residuais a presença de hidrocarbonetos, óleos e gorduras, sólidos em suspensão e metais pesados resultantes da lixiviação dos materiais componentes dos automóveis, designadamente peças metálicas, travões, pneus, entre outros, e que incluem o zinco (Zn), o cobre (Cu), o chumbo (Pb), o cádmio (Cd) e o crómio (Cr); o que resulta da produção de quantidades apreciáveis de resíduos sólidos contendo substâncias classificadas como perigosas, nomeadamente resultantes da desmontagem e desmantelamento de automóveis, da limpeza de veículos e equipamentos utilizando materiais têxteis absorventes e desperdícios, bem como, dos sistemas de recolha de poeiras e partículas captadas na limpeza das máquinas e pavimentos, sendo certo que tais resíduos, contendo óxidos de metais pesados, partículas metálicas e compostos orgânicos de elevado peso molecular, são classificados como resíduos perigosos tipo III, não podendo ser encaminhados para um aterro sanitário comum, mas apenas para aterros controlados aptos a receber resíduos de elevada perigosidade ambiental [factos indiciariamente provados sob o nº 45]. Também resulta indiciariamente provado que, numa oficina de manutenção e reparação automóvel verifica-se com frequência a presença de hidrocarbonetos de baixo ponto de inflamação, nomeadamente nos depósitos dos veículos em manutenção e reparação e nos depósitos de armazenagem de combustíveis e lubrificantes [factos indiciariamente provados sob o nº 46]. Por tudo isto se conclui que a instalação da oficina na referida zona urbana habitacional e de serviços religiosos e sociais e de jardim de infância, bem como futura escola do ensino básico, provoca necessariamente alterações ambientais negativas e de monta. Resulta dos factos indiciados, mas também das regras da experiência comum e da normalidade, que tais alterações ambientais são potenciadoras da violação do direito da comunidade da localidade de …, mais propriamente a zona urbana habitacional e de serviços públicos [igreja, centro social e paroquial e jardim de infância e futura escola do ensino básico], situadas na zona onde vai ser instalada a referida unidade industrial, a um ambiente de vida humano, sadio e ecologicamente equilibrado, que os artigos 64º e 66º da CRC lhes concedem, na medida em que o jardim de infância e futura escola básica, para além das 30 crianças que já frequentam, vai ter mais 60/70 crianças no próximo ano letivo, fica situada a cerca de 50 m da oficina de reparação e manutenção de automóveis [factos indiciados sob o nº 49]; a igreja e o salão paroquial ficam a cerca de 70 m da oficina [factos indiciados sob o nº 50]; o cemitério fica a cerca de 50 m da oficina [factos indiciados sob o nº 51]; a habitação dos Requerentes D… e E…, fica a cerca de 10 m da oficina, sensivelmente do lado oposto à oficina, tendo entre elas apenas a rua [factos indiciados sob o nº 52]; na zona envolvente à oficina, num raio de 100m, há cerca de 30 moradias [factos indiciados sob o nº 53]. Por outro lado, a rua que serve a oficina, a habitação dos Requerentes D… e E… e muitas das habitações existentes no local, é uma das principais ruas da freguesia … e com mediana circulação automóvel, tem dois sentidos de trânsito, com a largura que varia, conforme o local, entre 4, 5 e 6 metros, não tem passeios, com exceção dos passeios construídos pelos Requeridos na extensão da frente da oficina [factos indiciados sob o nº 54]; atualmente, o trânsito já causa, por vezes, algum estrangulamento e constrangimento [factos indiciados sob o nº 54]; as pessoas quando vão para a igreja e para o cemitério a pé ou de carro em regra circulam pela rua em causa [factos indiciados sob o nº 55]; também há várias pessoas que quando vão para o infantário também circulam pela mesma rua, embora a entrada principal do mesmo tenha acesso por outra rua [factos indiciados sob o nº 56]; os fumos dos escapes dos automóveis em reparação vão diretamente para a atmosfera sem qualquer tratamento, pois que é feita uma ligação do escape a um tubo que está embutido no piso da oficina e que tem saída direta para o exterior, sem qualquer tratamento [factos indiciados sob o nº 57]; não existe equipamento para o tratamento das águas resultantes da limpeza das instalações ou da lavagem dos carros se a houver [factos indiciados sob o nº 58]; os ruídos provocados pela atividade de manutenção e reparação automóvel atingem, no exterior, por vezes 80/90 decibéis [dB] [factos provados sob o nº 59]. Acresce que, na zona envolvente à oficina, há habituais constrangimentos quer com as águas quer com os esgotos, sendo que estando em funcionamento a oficina causará maior fluxo de águas residuais, que aumentará o caudal e consequentemente agravará os constrangimentos [factos indiciados sob o nº 61]; e não existe nem está prevista estação de tratamento de águas residuais provenientes da oficina de reparação automóvel [factos indiciados sob o nº 62]. Do que se vem expondo, conclui-se indiciariamente que há uma probabilidade séria de ocorrer um agravamento acentuado das condições ambientais existentes na área envolvente à oficina de reparação e manutenção automóvel, agravamento este que resulta também indiciariamente que provocará uma acentuada degradação ambiental da comunidade da localidade de …, mais propriamente da população que habita e frequenta os serviços coletivos existentes na área próxima do local da unidade industrial a instalar [nomeadamente igreja, cemitério, centro social e paroquial e jardim de infância, com prevista instalação de escola do ensino básico], com a consequente degradação da qualidade de vida da população envolvente, nomeadamente e em relação aos habitantes da área envolvente: menor qualidade do repouso, do sossego e do sono, enquanto que, em relação às crianças, também uma diminuição do repouso, do sossego, do sono, para os professores também o repouso e o sossego, provocando maior desgaste físico e psíquico da população que vive ou frequenta a zona envolvente à oficina. Na verdade, quando o Estado e os cidadãos deviam criar condições para uma diminuição dos atos e meios de poluição ambiental, nas suas diversas componentes, do ar, da água, do ruído, promovendo uma maior qualidade de vida, como a melhoria da qualidade ambiental, no caso presente está indiciariamente demonstrado o contrário, ou seja, verifica-se um agravamento da qualidade de vida e uma acentuada diminuição da qualidade ambiental. E não se diga que o facto de os REQUERIDOS terem construído a oficina com paredes em bloco de cimento de 20 cm de espessura e pela face exterior revestida a fachada com 40 milímetros de isolamento térmico [factos indiciariamente provados sob o nº 63], terem construído as paredes exteriores do edifício até ao topo [factos indiciados sob o nº 74]; a oficina ter um logradouro em todo o seu perímetro, destinado ao estacionamento de veículos, que suporta cerca de 20 viaturas [factos indiciados sob o nº 65]; terem alargado a rua na frente da sua propriedade, construíram passeios e baias de estacionamento para 3 viaturas, num espaço que antes não tinha nenhum estacionamento, por cedência ao domínio publico de terreno, por parte dos Requeridos, para construção das baias de estacionamento e dos passeios [factos indiciados sob os nºs 66 e 71], terem colocado na rua, próximo da oficina uma boca de incêndio [factos indiciados sob o nº 72], e estar prevista a instalação de câmara de recolha de hidrocarbonetos, que serão tratados pelo método de decantação e só depois é que entram no saneamento [factos indiciados sob o nº 73], eliminaram as potenciais alterações negativas resultantes da instalação da oficina de reparação e manutenção automóvel. Na verdade, em relação à limitação do ruído que virá para o exterior, não resulta indiciado que tenha sido colocado qualquer material para insonorização, pois que o revestimento térmico que é referido não reduz o ruído para o exterior. Por outro lado, a unidade industrial tem janelas e portas, algumas delas largas, o que faz com que o ruído se exteriorize por esses elementos do edifício. Em relação aos gases emitidos pelas viaturas a trabalhar, não existem chaminés para o tratamento dos mesmos, pois que como ficou indiciado os gases dos escapes, a ser utilizado o mecanismo previsto, que na prática assim não vão proceder, está previsto ligar um tubo ao cano de escape das viaturas e liga-lo a um outro tubo colocado no solo da oficina e sai diretamente para a atmosfera. Relativamente às águas provenientes das lavagens de peças e motores e de partes ou da totalidade das viaturas e do piso da oficina, as mesmas não sofrem tratamento adequado, sendo certo que indiciariamente a referida decantação não evita que várias partículas e químicos utilizados sejam totalmente filtrados. Na verdade, impunha-se uma estação de tratamento de águas residuais. Quanto ao fluxo de trânsito, o facto de na frente do edifício do lote onde foi feita a construção ter sido feito alargamento, feitos passeios e baias de estacionamento para 3 viaturas, tal não resolve minimamente os problemas de trânsito, pois que, a rua da igreja que serve a unidade industrial e bem assim várias habitações situadas na zona envolvente, é em vários locais estreita em que mal se cruzam duas viaturas automóveis, nem tem passeios, nem tem baias de estacionamento, sendo certo que os veículos que passam a frente da oficina têm que seguir e aí ocorrem os problemas de circulação. Portanto, a melhoria apenas em frente à oficina não resolve os problemas já existentes do trânsito e que com a atividade da oficina ficam acentuadamente agravados. Do que se vem de dizer verifica-se fortemente indiciado que a instalação da oficina de reparação e manutenção automóvel em apreciação neste procedimento cautelar, e de acordo com os meios e equipamentos de controlo do ruído, do ar e das águas residuais previstos quer nos projetos de arquitetura, quer nos projetos de especialidade, violará de forma relevante os direitos ambientais da população de …, mais especialmente a população residente na área envolvente à oficina, as crianças, os educadores e demais funcionários do jardim de infância, as pessoas que frequentam a igreja, o cemitério, o centro social e paroquial, consagrados na Constituição da República Portuguesa. Na verdade, o ruído exterior da unidade industrial será substancialmente superior ao ruído atual e incompatível com o local onde a unidade se insere que é num aglomerado urbano e com equipamentos públicos e sociais, desde o jardim de infância, a igreja, o centro paroquial e social e o cemitério, portanto fonte de diminuição da qualidade ambiental noa zona, provocando maiores dificuldades no repouso, no sossego, no sono da população. Também a alteração do ruído do trafego automóvel será bastante superior ao atual, atendendo ao maior fluxo de trânsito e aos constrangimentos que surgirão. Os gases e cheiros lançados pela unidade industrial para a atmosfera, nomeadamente os fumos resultantes dos escapes das viaturas que virão do interior da oficina diretamente para a atmosfera, bem como os fumos dos escapes das viaturas face ao futuro maior tráfego automóvel. Como também os cheiros das tintas que poderão igualmente surgir, dos óleos e dos demais químicos que sejam utilizados na unidade industrial. O maior consumo de água, consequente aumento do caudal de águas residuais, quando resulta indiciado que o saneamento da zona tem variados constrangimentos. Para além do aumento da poluição das águas residuais com químicos utilizados na unidade industrial, sem que haja tratamento dessas águas. Posto isto, resulta fortemente indiciada a probabilidade séria da existência do direito da população à manutenção e melhoria da qualidade ambiental, por forma beneficiarem de um ambiente de vida humano, sadio e ecologicamente equilibrado. Também resulta fortemente indiciado que a instalação da oficina de reparação e manutenção automóvel causará fortes e relevantes alterações negativas da qualidade ambiental da mesma população de …. Consequentemente mostra-se fortemente indiciado o perigo de violação dos direitos ambientais da referida população, no caso da instalação da unidade industrial de reparação e manutenção automóvel. Por outro lado, uma vez que a construção do edifício estará na fase final, logo se seguirá o licenciamento das instalações oficinais e a sua instalação, com equipamentos e entrada em funcionamento. Assim sendo, porque a instalação e entrada em funcionamento da oficina causará danos ambientais, alterações negativas da qualidade ambiental na zona envolvente quer para as populações residentes, quer para as pessoas que frequentam a zona, nomeadamente para irem à igreja, para irem ao cemitério, para irem às atividades no centro paroquial e social, a que acresce, e é de monta, altera a qualidade ambiental para as crianças de tenra idade que frequentam o jardim de infância a poucas dezenas de metros do local de instalação da oficina, bem como aos educadores e auxiliares, como também aos pais que vão levar e buscar as crianças ao jardim de infância. Impõe-se, por isso, tomar medidas urgentes, com vista a evitar os danos ambientais que se preveem virem a acontecer. Tanto mais que, de acordo com o atual regime de licenciamento industrial, a instalação e funcionamento de oficinas de reparação e manutenção automóvel, para iniciarem a laboração, não necessitam de prévio licenciamento, bastando-se a comunicação prévia da instalação da oficina, nos termos do DL nº 48/2011, de 1 de abril. Acresce que, é sabido que uma ação de processo comum não é urgente, leva a eventuais perícias, a um maior número de testemunhas e diligências de prova, o prazo para proferir sentença também é, por vezes, mais longo, os prazos de recurso são mais longos, as decisões nos Tribunais Superiores, como se compreende, também serão mais demoradas, pelo que, estando perante a possibilidade séria de serem violados direitos ambientais e ocorrer poluição ambiental, há um perigo acentuado uma maior demora na decisão, pois que sem uma decisão judicial os requeridos não ficariam impedidos de iniciar a laboração com as consequências ambientais e violadoras do direito da comunidade respetiva a uma qualidade ambiental adequada e do direito à saúde, à integridade pessoal e a um ambiente sadio e equilibrado, consagrados nos artigos 64º e 66º da CRP, que jamais poderiam vir a ser reparados”.
Ora, tendo os Requerentes logrado provar os factos constitutivos do direito de que se arrogam, como acabou de se expor e bem explanou o Tribunal a quo, não pode, como veremos, deixar de ser decretada a providência cautelar requerida, nenhuma restrição ou limitação devendo ser introduzida ao peticionado.
O Tribunal a quo analisando quenos procedimentos cautelares as medidas a decretar devem ser proporcionais e adequadas considerando que “os REQUERIDOS fizeram um elevado investimento na construção do edifício com vista à instalação” e atentando na consagração dos “direitos constitucionais à iniciativa económica e à propriedade privada [artigos 61º e 62 da CRP]” entendeu estar-se “perante uma colisão de direitos, por um lado, o direito dos requerentes [enquanto comunidade local da zona envolvente da oficina] a verem preservado o seu direito à saúde, à integridade pessoal e a um ambiente sadio e equilibrado, consagrados nos artigos 64º e 66º da CRP, e, por outro lado, o direito dos requeridos a explorar a sua unidade industrial [oficina] consagrado no artigo 61º da CRP. Este último direito constitucional cede em relação ao direito constitucional referido em primeiro lugar [artigo 335º do Código Civil]”, sendo que este se sobrepõe àquele.
No entanto, não decretou integralmente a providência solicitada, antes restringiu, nos termos supra referidos, a atividade a exercer no local, considerando dever chamar-se à colação o princípio da proporcionalidade consagrado no artigo 18º da CRP., referindo “O princípio da proporcionalidade [também chamado princípio da proibição do excesso] desdobra-se em três subprincípios: a) princípio da adequação, isto é, as medidas restritivas legalmente previstas devem revelar-se como meio adequado para a prossecução dos fins visados pela lei (salvaguarda de outros direitos ou bens constitucionalmente protegidos); b) princípio da exigibilidade, ou seja, as medidas restritivas previstas na lei devem revelar-se necessárias (tornaram-se exigíveis), porque os fins visados pela lei não podiam ser obtidos por outros meios menos onerosos para os direitos liberdades e garantias; c) princípio da proporcionalidade em sentido restrito que significa que os meios legais restritivos e os fins obtidos devem situar-se numa “justa medida”, impedindo-se a adoção de medidas legais restritivas desproporcionadas excessivas, em relação aos fins obtidos”. Tal princípio da proporcionalidade estabelece que “A lei só pode restringir os direitos, liberdades e garantias nos casos expressamente previstos na Constituição, devendo as restrições limitar-se ao necessário para salvaguardar outros direitos ou interesses constitucionalmente protegidos” [artigo 18º da CRP]. Ora, é certo que a Câmara Municipal licenciou a construção do edifício com destino à instalação de uma oficina de manutenção e reparação automóvel. Também é certo que resulta provado que os REQUERIDOS apresentaram todos os projetos da especialidade que lhe foram impostos pela Câmara Municipal …, nomeadamente o projeto de estabilidade; projeto de águas pluviais; projeto de águas residuais (aqui se prevendo a construção de uma câmara de decantação); projeto de abastecimento de águas; telecomunicações e TED; segurança contra incêndios; ficha eletrotécnica e projeto de arranjos exteriores, os quais foram deferidos, razão pela qual foi emitido o alvará de licença de construção [factos indiciados sob nº 67]; apresentaram também o relatório de incomodidade sonora. Consequentemente os REQUERIDOS apresentaram todos os documentos necessários ao licenciamento para a construção do edifício industrial e para virem a obter a licença de utilização. Ou seja, do ponto de vista administrativo os REQUERIDOS cumpriram o estabelecido pela Câmara Municipal. Porém, o facto de estar legalizada a construção do edifício e de vir a ser obtida a licença de utilização, para posterior comunicação do inicio da atividade de reparação e manutenção automóvel, tal legalidade administrativa [portanto licitude administrativa] não implica que, caso sejam postos em causa direitos fundamentais, tais como por exemplo os já referidos direitos à saúde, à integridade pessoal e a um ambiente sadio e equilibrado, consagrados nos artigos 64º e 66º da CRP, não possa haver ilegalidade civil [ilicitude civil]. Ou seja, mesmo que administrativamente licenciado o exercício de uma atividade pode a mesma ser civilmente impedida, desde que violados direitos fundamentais dos cidadãos, nomeadamente a qualidade ambiental com reflexos nos seus direitos de personalidade [direito ao repouso, ao sossego, ao sono], bem como direitos fundamentais do coletivo [à saúde, à integridade pessoal e a um ambiente sadio e equilibrado da comunidade]. Na verdade, mesmo que relativamente ao ruído, à quantidade de partículas emitidas ou outras emissões gasosas para a atmosfera e às águas residuais, os parâmetros estejam dentro dos limites legalmente previstos, e como tal a atividade geradora dessa poluição ambiental tenha sido administrativamente autorizada, se essa atividade provocar danos com reflexo negativo para o meio ambiente, a chamada agressão ambiental, e ofensa de direitos de personalidade das populações residentes nas zonas envolventes ou que essas mesmas zonas frequentem ou a violação de quaisquer relações de vizinhança, pode sempre haver oposição à laboração dessa atividade [veja-se, por exemplo, o Acórdão do STJ de 22/09/2005, processo nº 04B4264, em www.dgsi.pt . Por exemplo, o Regulamento Geral do Ruído fixa regras próprias disciplinadoras do ruído, regulando as atividades sociais de modo que certas atividades, nomeadamente, não excedam determinado grau de ruído. O seu âmbito é administrativo e não colide com as demais tutelas dos direitos de personalidade, nomeadamente não colide nem comprime a tutela civil dispensada aos direitos de personalidade [veja-se, nomeadamente, o Acórdão do STJ de 17/10/2002, processo nº 02B2255, em www.dgsi.pt, Acórdão do STJ de 29/11/2012, processo nº 1116/05.2TBEPS.G1.S1, em www.dgsi.pt]. Acresce referir que, entende a jurisprudência do STJ que, mesmo que não seja possível apurar a intensidade do ruído ouvido no interior das habitações, não poderia levar a concluir-se que não havia ilicitude na laboração da atividade. Na verdade, a ilicitude civil de laboração devida a ruído dispensa a aferição do nível de ruído pelos padrões legais estabelecidos: a ilicitude de um comportamento ruidoso que prejudique o repouso, a tranquilidade e o sono de terceiros está, precisamente no facto de, injustificadamente, se lesar um dos direitos integrados no feixe dos direitos, liberdades e garantias pessoais veja-se o Acórdão do STJ de 02/07/2009, processo nº 09B0511, em www.dgsi.pt]. Conclui-se, por tanto, que um estabelecimento industrial, mesmo que licenciado, não dispensa quem o explora de cumprir os deveres de modo a evitar que o ruído dele emanado para o exterior não prejudique o direito ao repouso, sossego e sono de quem habita nas imediações [veja-se o Acórdão do STJ de 29/11/2012, processo nº 1116/05.2TBEPS.G1.S1, em www.dgsi.pt]. Isto porque, há diferença estruturante entre a ilicitude administrativa e a ilicitude civil em matéria de ruído. Aquela reporta-se sobretudo ao exercício de atividades económicas que geram poluição sonora; esta, a ilicitude civil, reporta-se à inadmissível lesão do direito fundamental de personalidade. Pode ocorrer ilicitude civil até sem ocorrer ilicitude administrativa [veja-se o Acórdão do STJ de 08/04/2019, processo nº 1715/03.7TBEPS.G1.S1, em www.dgsi.pt]. Portanto, é inequívoco que o direito ao exercício de uma atividade económica [mesmo que licenciada] e o direito de propriedade cedem, quanto estiverem em causa dos direitos de personalidade, de vizinha, ou seja, os direitos de à saúde, à integridade pessoal e a um ambiente sadio e equilibrado, consagrados nos artigos 64º e 66º da CRP, sem prejuízo do que resulta do disposto no artigo 335º do Código Civil. Em todo o caso, voltando ao princípio da proporcionalidade, entende-se que, apesar de estar indiciariamente demonstrado que a instalação da oficina de manutenção e reparação de automóveis viola os direitos da população da comunidade que pertence e frequenta a zona envolvente do local onde irá ser instalada a oficina, não deve ser determinado a proibição da instalação da oficina e consequentemente a proibição do exercício da atividade, mas antes impedir que essa atividade seja instalada e inicie a laboração sem que proceda a medidas de minimização e adequação da atividade por forma a compatibilizar a atividade com os direitos à saúde, à integridade pessoal e a um ambiente sadio e equilibrado, consagrados nos artigos 64º e 66º da CRP. [veja-se, por exemplo, o Acórdão do STJ de 3/05/2018, processo nº 2115/04.7TBOVR.P3.S1, em www.dgsi.pt, bem como a demais jurisprudência no mesmo vertida]. Na verdade, deve-se ter em conta, por um lado, o direito ao exercício de uma atividade, e, por outro lado, o elevado investimento realizado pelos requeridos, embora seja certo que deveria a Câmara Municipal ter recusado o licenciamento, pois tinha obrigação de privilegiar a qualidade ambiental da localidade em detrimento da construção da oficina no local, ainda que, no PDM, o local permitisse construção diferente da habitação, mas nunca deveria ser uma atividade industrial, pequena que fosse, pois não se coaduna com a política ambiental nacional e comunitária. Nesse sentido, importa, por um lado, restringir a atividade a exercer no local apenas à manutenção e reparação de veículos, parte mecânica e de eletricidade, ficando impedidos de exercerem a atividade de chaparia e pintura. A oficina não deve laborar aos sábados, aos domingos e feriados e o horário de laboração deverá ser restringido ao período entre as 8h30m e as 19h00m, sendo que os equipamentos que provoquem ruído constantes, como por exemplo os compressores, devem ser desligados fora de tais dias e horário. Também importa restringir a atividade no sentido de que a manutenção e reparação apenas pode ser em relação a veículos automóveis ligeiros, sendo no caso de ligeiros de mercadorias com peso até 2500Kg, ficando impedidos de fazer a manutenção e reparação de veículos ligeiros de mercadorias de peso superior a 2500kg e de veículos pesados quaisquer que sejam as suas características, uma vez que os arruamentos são relativamente estreitos e por vezes há condicionamento de trânsito e, consequentemente, maior poluição de ar e de ruído. Acresce que também só deve ser instalada a oficina e posterior inicio da laboração quando estiverem instalados mecanismos de controle, gestão e tratamento de emissões gasosas, nomeadamente chaminé adequada; gestão e tratamento de resíduos líquidos e lamas industriais, através de estação de tratamento; colocado isolamento acústico na oficina, por forma a que, durante o dia, o ruído exterior provindo da oficina seja de máximo 45dB(A) e de noite seja o máximo de 24dB(A), independentemente de ser ou não exigido administrativamente. Mais se determina que sejam instalados mecanismos de controlo [medição] permanentes de ruido exterior e de poluição do ar, com fornecimento dos dados mensalmente aos Autores. Quanto à requerida suspensão das obras de construção do edifício: Atendendo a que resultou dos autos que a construção estava praticamente concluída, ainda que faltassem os acabamentos, entende-se não ser de suspender as obras de construção do edifício. No entanto, como se deixou referido, não deve ser instalada a oficina, sem que sejam instalados mecanismos de controle, gestão e tratamento de emissões gasosas, nomeadamente chaminé adequada; gestão e tratamento de resíduos líquidos e lamas industriais, através de estação de tratamento; colocado isolamento acústico na oficina, por forma a que, durante o dia, o ruído exterior provindo da oficina seja de máximo 45dB(A) e de noite seja o máximo de 24dB(A”)”,
Analisemos das restrições a impor ou se, ao invés, cabia, efetivamente, em vez de impor exigências, garantias e limitações ao exercício da atividade, decretar a providência cautelar solicitada para acautelar a situação até à decisão definitiva, caminho que, adiante-se, os alegados factos constitutivos do direito, que resultaram provados, parece apontar.
O que os Requerentes pretendem com o presente procedimento cautelar comum é: a) a suspensão imediata das obras de construção da oficina de manutenção e reparação automóvel dos Requeridos; b) a proibição do exercício de quaisquer atividades de manutenção e reparação automóvel no local previsto para a construção da oficina dos Requeridos.
Procedimentos cautelares são instrumentos processuais destinados à obtenção de uma providência ou medida para acautelar a eficácia de uma decisão judicial. São a vertente adjetiva das medidas cautelares, conjunto de atos processuais tendentes à obtenção da pretensão de direito material deduzida, sendo esta a providência (pedido) que é solicitada para acautelar o direito material a definir na ação principal.
Destinam-se a garantir a utilidade prática da ação principal. São garantia do direito à efetiva tutela jurisdicional, que se visa obter com o processo principal, evitando danos, que possam advir da demora, para o efeito útil da ação. São, pois, instrumentos de eficácia do processo principal. Recorre-se às providências cautelares quando a regulação dos interesses não pode aguardar pela decisão definitiva, sendo necessária, para assegurar a utilidade da decisão final e a efetividade da tutela jurisdicional, uma composição provisória do litígio, que vai acautelar a situação até à decisão definitiva.
O processo cautelar é o instrumento de preservação do fim do processo – tutela jurisdicional do caso concreto. É “…na expressiva síntese de CALAMANDREI, “garantia da garantia”, caracterizando-se a sua natureza por uma dupla instrumentalidade”, tendo por fim a proteção da garantia, isto é, através da sua garantia, do seu fruto (a providência cautelar), garantir a produção do efeito útil final – a decisão da ação principal[30].
Permite assegurar a validade e eficácia da decisão através da adoção de medidas (providências) que atuam ao nível da realidade prática por forma a preservar, acautelar, o efeito útil a produzir pela ação principal. A decisão cautelar não traduz, em regra[31], uma antecipação da decisão principal, embora possa, conduzir à produção de alguns dos efeitos próprios desta. Antes tem uma natureza preventiva, pois visa acautelar e prevenir que, no período que decorre entre o momento em que a providência é proposta e aquele em que a decisão da ação principal produz efeitos, não ocorra situação que inviabilize a utilidade da mesma.
A reger os procedimentos cautelares temos o princípio da legalidade, consagrando a lei um comum, de aplicação subsidiária.
O procedimento cautelar comum tem como requisitos:
- Não estar a providência a obter abrangida por qualquer procedimento cautelar especificado, acima referido (nº 3, do art. 362º), sendo este procedimento destinado a fazer face a situações de “periculum in mora” não especialmente acauteladas através dos procedimentos cautelares especificados na lei (prevenidas no Capítulo II ou em legislação avulsa), sendo uma “verdadeira ação cautelar geral”;
- A existência de um direito (satisfazendo-se a lei com a emissão de um juízo de probabilidade ou verosimilhança, mas exigindo que tal probabilidade seja forte, pois consagra (nº 1, do art. 368º) que “a providência é decretada desde que haja probabilidade séria da existência do direito…” (fumus boni iuris);
- O atual e fundado ou sério receio de que esse direito sofra lesão grave e de difícil reparação (periculum in mora) - (nº 1, do art. 362º e nº 1 do art. 368º);
- A adequação da providência solicitada a evitar a lesão e assegurar a efetividade do direito ameaçado (parte final do nº 1, do art. 362º);
- Não resultar da providência prejuízo consideravelmente superior ao dano que ela visa evitar, pois, conforme estabelece o nº 2, do art. 368º, a providência deve ser recusada pelo tribunal quando o prejuízo dela resultante para o requerido exceda consideravelmente o dano que com ela o requerente pretende evitar.
Dentro dos procedimentos cautelares regulados no Código de Processo Civil, as providências cautelares não especificadas surgem como um procedimento cautelar subsidiário, só aplicável quando o caso se não subsumir a qualquer outro. Só pode recorrer-se ao procedimento cautelar comum quando a situação de “periculum in mora” não esteja especialmente tutelada por medida prevista nos procedimentos cautelares típicos nem por medida prevista em legislação avulsa. A subsidiariedade pressupõe que não haja nenhuma providência nominada que abstratamente seja aplicável[32]. Consagra-se “a vigência de uma “cláusula geral” em sede de justiça cautelar, implicando a atribuição às partes de um poder genérico de requerer as medidas cautelares mais adequadas à garantia da efectividade de todo e qualquer direito ameaçado, com o consequente poder-dever do juiz de decretar a providência concretamente mais adequada à prevenção do risco de lesão invocado”[33].
Destinam-se a tutelar o efeito da ação, a assegurar o direito à efetiva tutela jurisdicional, isto é, a garantir o efeito útil da ação principal que vai regular definitivamente o direito. O nº1, do art. 362º, consagra, que “Sempre que alguém mostre fundado receio de que outrem cause lesão grave e dificilmente reparável ao seu direito, pode requerer a providência conservatória ou antecipatória concretamente adequada a assegurar a efetividade do direito ameaçado”. E o nº 1, do artigo 364º, que “Exceto se for decretada a inversão do contencioso, o procedimento cautelar é dependência de uma causa que tenha por fundamento o direito acautelado e pode ser instaurado como preliminar ou como incidente de ação declarativa ou executiva”.
Todos os procedimentos cautelares, salvo decretação da inversão do contencioso, estão numa relação de dependência perante uma causa que tenha por fundamento o direito acautelado, pois que visa acautelar os efeitos da decisão definitiva favorável a proferir no processo principal.
A providência pode ser conservatória ou antecipatória. Por providência conservatória entende-se aquela que visa manter inalterada a situação, de facto ou de direito, existente, evitando alterações prejudiciais[34]. Por providência antecipatória entende-se aquela que antecipa a decisão ou uma providência executiva futura, sem prejuízo de, no primeiro caso, poder também antecipar, de outro modo, a realização do direito acautelado[35]. Deste modo, constituindo a providência cautelar, sem prejuízo do regime da inversão do contencioso (art. 369), a antecipação duma providência definitiva, de natureza declarativa ou executiva (…), o procedimento que visa a sua obtenção está sempre na dependência duma ação em que o autor faz valer o direito – ou o interesse tutelado – que através dele visa acautelar[36].
É de atentar na relação de dependência existente entre o procedimento cautelar e a ação principal(instrumentalidade do procedimento em relação à ação principal), pois ambos os processos estão intimamente relacionados, sendo que a produção do efeito útil da ação principal depende da eficácia da decisão do procedimento cautelar. Existe, pois, dependência do procedimento cautelar, expressa através da identidade entre o direito ou interesse acautelado a aquele que se faz valer na ação.
A causa de pedir do procedimento e a da ação coincidem, ao menos em parte, sendo que, por definição, não coincide, normalmente, o pedido formulado.
Na verdade, no procedimento cautelar tem de ser requerida uma medida cautelar e não, em regra, desde logo, aquilo que se pretende na ação principal.
Efetivamente, no procedimento não se pode pedir, desde logo, pela própria natureza das providências, o efeito definitivo que se pretende com a ação declarativa de condenação (definitiva), mas apenas que o tribunal conceda uma providência ou medida cautelar. Os procedimentos cautelares, pela sua própria natureza, visam apenas uma solução provisória, tendente a evitar prejuízos que a demora da resolução da ação principal pode ocasionar ao requerente.
Os requisitos de procedência de uma ação cautelar analisam-se na reunião de três condições: fumus boni iuris, periculum in mora e princípio da proporcionalidade, sendo que os dois primeiros requisitos permitem aferir da necessidade de decretamento da medida cautelar e o último da adequação ao fim que se propõe alcançar.
Analisemos os referidos requisitos:
1º- O requisito do fumus boni iuris “torna a concessão de uma providência cautelar dependente da possibilidade de se discernir a aparência de titularidade de bom direito por parte do requerente. Visando o processo cautelar salvaguardar o efeito útil de um processo principal, importa indagar se este efeito útil se revela susceptível de vir a ser produzido, sob pena de, vindo a concluir-se em sentido negativo, passar a carecer de justificação a concessão da providência cautelar requerida.
O pressuposto em causa constitui, nesta medida, reflexo da natureza duplamente instrumental do processo cautelar (aqui se revelando a segunda dimensão da instrumentalidade), da natureza hipotética dessa instrumentalidade e da recíproca relação de dependência entre processo principal e processo cautelar. (…) Incumbe ao requerente demonstrar a probabilidade de procedência da ação principal (…) a perfunctoriedade da análise e do grau de convencimento respeita aos factos correspondentes à titularidade do direito, considerando-se suficiente que se gere no tribunal a convicção, não de que o requerente é titular do direito que invoca, mas de que é verosímil ou altamente provável que assim venha a ser declarado, pelo que importará que, quanto a este requisito, assim atenuado (por respeitar à aparência de titularidade do direito e não à efetiva titularidade do direito), se forme no espírito do julgador o grau de certeza especial, que permite a pronúncia no sentido de que os factos que lhe estão associados se consideram provados”[37].
2º - O requisito do periculum in mora “corresponde ao pressuposto característico dos processos cautelares, dado nele se sintetizar a fonte primária da probabilidade de dano que preside à concepção da tutela cautelar (…). O perigo em causa assume, porém, uma tripla particularidade, na medida em que a sua caracterização impõe que cumulativamente, se considerem a sua fonte, o seu grau e o seu objecto.
Tratar-se-á, respectivamente, de perigo decorrente do decurso do tempo processual da acção principal (fonte), que se reflicta negativamente, de forma grave e dificilmente reparável (grau) no efeito útil de tal acção (objecto). (…) Importa que o julgador se convença de que existe perigo, isto é, que considere provados factos que permitam concluir existir um conjunto de circunstâncias que torna altamente possível a ocorrência de um dano futuro.
Dir-se-ia que no espírito do julgador não deve remanescer qualquer dúvida razoável relativamente à verosimilhança do futuro dano. O mesmo é dizer que o decretamento da providência cautelar deverá pressupor que o juiz fique especialmente convencido da existência de perigo formulando, embora, um juízo de mera verosimilhança quanto à ocorrência futura de dano”[38].
3º- O requisito do princípio da proporcionalidade demanda “avaliar se a medida requerida é adequada à prossecução do fim cujo alcance se visa e, na hipótese afirmativa, se é a mais adequada.
Concluindo-se em sentido negativo, poderá, ainda assim, o decisor conceder uma outra providência que não a requerida.
Tudo por forma a (atenta a natureza puramente hipotética – e, portanto, incerta do direito invocado) assegurar a tutela dos alegados interesses do requerente, mediante a mínima ingerência possível na esfera jurídica do requerido.
Na hipótese de se concluir estarem verificados todos os mencionados pressupostos, cumprirá indagar se a medida a decretar se revela proporcional, o que se aferirá sopesando os prejuízos que resultariam, para o requerente, da não concessão da providência cautelar e as desvantagens que decorreriam, para o requerido, da concessão da providência cautelar, sendo que a medida não será decretada se este último prejuízo for consideravelmente superior ao primeiro”[39].
Bem decidiu o Tribunal a quo pela probabilidade da existência do direito dos requerentes referindo “mesmo que administrativamente licenciado o exercício de uma atividade pode a mesma ser civilmente impedida, desde que violados direitos fundamentais dos cidadãos, nomeadamente a qualidade ambiental com reflexos nos seus direitos de personalidade [direito ao repouso, ao sossego, ao sono], bem como direitos fundamentais do coletivo [à saúde, à integridade pessoal e a um ambiente sadio e equilibrado da comunidade]. Na verdade, mesmo que relativamente ao ruído, à quantidade de partículas emitidas ou outras emissões gasosas para a atmosfera e às águas residuais, os parâmetros estejam dentro dos limites legalmente previstos, e como tal a atividade geradora dessa poluição ambiental tenha sido administrativamente autorizada, se essa atividade provocar danos com reflexo negativo para o meio ambiente, a chamada agressão ambiental, e ofensa de direitos de personalidade das populações residentes nas zonas envolventes ou que essas mesmas zonas frequentem ou a violação de quaisquer relações de vizinhança, pode sempre haver oposição à laboração dessa atividade” (…) é inequívoco que o direito ao exercício de uma atividade económica [mesmo que licenciada] e o direito de propriedade cedem, quanto estiverem em causa dos direitos de personalidade, de vizinha, ou seja, os direitos de à saúde, à integridade pessoal e a um ambiente sadio e equilibrado, consagrados nos artigos 64º e 66º da CRP, sem prejuízo do que resulta do disposto no artigo 335º do Código Civil”.
Mais afirma “estar indiciariamente demonstrado que a instalação da oficina de manutenção e reparação de automóveis viola os direitos da população da comunidade que pertence e frequenta a zona envolvente do local onde irá ser instalada a oficina” e ser “certo que deveria a Câmara Municipal ter recusado o licenciamento, pois tinha obrigação de privilegiar a qualidade ambiental da localidade em detrimento da construção da oficina no local,(…), pois não se coaduna com a política ambiental nacional e comunitária”.
Quanto às consequências negativas que se visam evitar deve “o justo receio resultar objetivamente da matéria de facto apurada, em conjugação com as regras da experiência. Mas tanto podem valer os efeitos negativos de ordem patrimonial como não patrimonial, desde que a sua gravidade, projetada pelo que já ocorreu ou possa vir a ocorrer o justifique[40].
Bem decidiu o Tribunal a quo ao julgar terem ficado sumariamente demonstrados os alegados potenciais danos ambientais à população com o exercício da atividade de manutenção e reparação automóvel, como alegado pelos requerentes, considerando estarem verificados todos os requisitos exigidos para poder ser decretada a providência requerida.
Decidiu, porém, apenas, restringir a atividade a exercer no local. Ora, na verdade, mesmo “que verificados os respetivos pressupostos legais, a providência cautelar será recusada se o tribunal adquirir a convicção de que o seu decretamento é suscetível de causar ao requerido um prejuízo que excede consideravelmente o dano que se pretende evitar, em aplicação do princípio da adequação ou da proporcionalidade. Mas, em regra, as desvantagens de ordem patrimonial do lado do requerido devem ceder perante interesses de natureza não patrimonial prosseguidos pelo requerente e que sejam considerados relevantes para o deferimento da medida cautelar. Só uma considerável desproporção relativamente às consequências para o requerido será capaz de justificar a recusa da providência[41] (negrito e sublinhado nosso). Deve prevenir-se “o risco inerente a uma utilização abusiva de medidas de natureza cautelar cujo decretamento, fora do quadro de razoabilidade que a lei supõe, é suscetível de determinar um desequilíbrio entre as partes, levando o requerente a obter benefícios injustificados na medida equivalente à cedência a que a contraparte é forçada. Os instrumentos processuais devem estar ao serviço do direito de ação, mesmo na sua vertente provisória, mas não mais do que isso, sob pena de reverterem contra o outro sujeito, determinando-lhe perdas que nem sequer possam ser posteriormente compensadas”[42].
Entendemos ser de deferir a pretensão dos requerentes no sentido da suspensão imediata das obras de construção da oficina de manutenção e reparação automóvel e a proibição do exercício de quaisquer atividades de manutenção e reparação automóvel no local previsto para a construção da oficina, pois que preenchidos se encontram, como bem foi decidido e acima se citou, todos os supra referidos requisitos consagrados na lei, que, por verificados, determinam que decretada tenha de ser a providência solicitada, necessária, adequada e proporcional a acautelar os graves, potenciais e muito prováveis danos que resultaram demonstrados, acima referidos.
Não cabia decretar medidas e condicionantes ambientais tendentes a possibilitar a entrada em funcionamento da oficina, no local em causa, nenhuma compressão devendo ser feita, in casu, ao direito fundamental dos Apelados e restantes cidadãos de … a um ambiente de vida humano, sadio e ecologicamente equilibrado, pois que uma compatibilização entre os direitos em causa não se revela adequada a acautelar o direito que nos autos se pretende fazer valer, devendo ser decretada a total proibição da instalação e funcionamento da oficina de manutenção e reparação automóvel naquele local.
A providência requerida só deveria ser recusada se o prejuízo dela resultante para os requeridos excedesse consideravelmente o dano que com ela os requerentes pretendem evitar (v. nº 2, do art. 368º). Só se a providência requerida não fosse adequada à prossecução do fim cujo alcance se visa é que o julgador devia conceder uma outra providência que não a requerida que tutelasse os interesses dos requerentes, mediante a mínima ingerência possível na esfera jurídica dos requeridos. E não resulta da providência requerida prejuízo consideravelmente superior ao dano que ela visa evitar. Ao invés ponderando este dano, de natureza eminentemente pessoal e de toda a coletividade, nunca aquele prejuízo, relacionado com interesses (individuais) dos requeridos e meramente patrimoniais, relacionados com iniciativas empresariais, poderia ser tido como “consideravelmente superior”, sequer superior, antes sendo, mesmo, de grau, manifestamente, inferiore a ponderar noutra sede que não nos presentes autos de natureza cautelar.
Por integralmente preenchidos todos os requisitos de que depende o decretar da providência requerida, perfeitamente adequada e proporcional, cumprida se mostrando a regra do ónus da prova consagrada no nº1, do art. 342º, do Código Civil, alterada tem de ser a decisão recorrida.
Conclui-se, pois, nesta parte, pela improcedência do recurso independente e pela procedência do subordinado, sendo de decretar, integralmente, a providência requerida.
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III. DECISÃO
Pelos fundamentos expostos, os Juízes desta Secção Cível do Tribunal da Relação do Porto acordam em julgar procedente a arguida nulidade da sentença, na parte que fixou sanção pecuniária compulsória e, no mais, a apelação referente ao recurso independente improcedente e em julgar a apelação referente ao recurso subordinado procedente e, em consequência, decreta-se a providência requerida.
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Custas pelos Requeridos (B… e mulher C…), pois que ficaram vencidos – art. 527º, nº1 e 2, do CPC.
Porto, 30 de abril de 2020
Assinado eletronicamente pelos Juízes Desembargadores
Eugénia Cunha
Fernanda Almeida
António Eleutério
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[1] Cfr., entre muitos, Ac. do STJ de 1/4/2014, Processo 360/09: Sumários, Abril /2014, p1 e Ac. da RE de 3/11/2016, Processo 1070/13:dgsi.Net. [2] José Lebre de Freitas e Isabel Alexandre Código de Processo Civil Anotado, volume 2º, 3ª Edição Almedina, pág 735 [3] Abílio Neto, in “Novo Código de Processo Civil Anotado”, 2ª ed., janeiro/2014, pág. 734. [4] Ac. STJ. 08/03/2001, Proc. 00A3277, in base de dados da DGSI. [5] Ibidem, pág 737 [6] Neste sentido Alberto dos Reis, “Código de Processo Civil Anotado, 5º vol., págs. 142 e 143, onde pondera: “Esta nulidade está em correspondência direta com o 1º período da 2ª alínea do art. 660º. Impõe-se aí ao juiz o dever de resolver todas as questões que as partes tiverem submetido à sua apreciação, excetuadas aquelas cuja decisão esteja prejudicada pela solução dada a outras” e onde aponta como exemplo de nulidade por omissão de pronúncia, o seguinte caso retirado da prática judiciária: “Deduzidos embargos a posse judicial com o fundamente de posse baseada em usufruto, se o embargado alegar que este não podia produzir efeitos em relação a ele por não estar registado à data em que adquiriu o prédio e a sentença ou acórdão deixar de conhecer desta questão, verifica-se a nulidade (…). O embargado baseara a sua defesa na falta de registo do usufruto; pusera, portanto, ao tribunal esta questão de direito: se a falta de registo do usufruto tinha como consequência a ineficácia, quanto a ele, da posse do usufrutuário, o tribunal estava obrigado, pelo art. 660º, a apreciar e decidir esta questão; desde que a não decidiu, a sentença era nula”. Ac. RC. de 22/07/2010, Proc. 202/08.1TBACN-B.C1, in base de dados da DGSI: “…O juiz deve, antes de tudo, tomar em consideração as conclusões expressas nos articulados, já que a função específica destes é a de fornecer a delimitação nítida da controvérsia. Mas não só; é necessário atender, também aos fundamentos em que essas conclusões assentam, ou, dito de outro modo, às razões e causas de pedir invocadas (…). Em última análise, questão será, pois, tudo o que respeite ao litígio existente entre as partes, no quadro, tanto do pedido e da causa de pedir, como no da defesa por exceção”. [7] Alberto dos Reis, in ob. cit., 5º vol., págs. 55 e 143. [8] Acs. STJ. de 01/03/2007. Proc. 07A091; 14/11/2006, Proc. 06A1986; 20/06/2006, Proc. 06A1443,in base de dados da DGSI. [9] Cfr. Ac. do STJ de 24/6/2014, Processo 125/10: Sumários, Junho de 2014, pag 38, em que se decidiu Não há nulidade do acórdão, por omissão de pronúncia, se o tribunal se limitou a cumprir o preceituado no art. 608º, nº2, do NCPC (2013), considerando prejudicado apreciar o argumento do valor das indemnizações arbitradas por ter decidido não existir fundamento legal para responsabilizar as Rés… [10] Ac. do STJ, de 30/9/2014, Processo 2868/03:Sumários, Setembro 2014,pag 39 [11] Ac. da Relação de Lisboa de 17/3/2016, Processo 218/10:dgsi.net [12] Ac. do STJ, de 20/10/2015, Processo 372/10: Sumários, 2015, p.555 [13] José Lebre de Freitas e Isabel Alexandre, idem, pág 712-713 [14] Ibidem, pág 714 [15] José Lebre de Freitas e Isabel Alexandre, idem, pág 737 [16] Ibidem, pág 737 [17] Sobre os casos de alteração oficiosa, v. Abrantes Geraldes, in “Recursos no Novo CPC”, págs. 241 e ss., onde se refere “quando o Tribunal recorrido tenha desrespeitado a força plena de determinado meio de prova” (ex. um documento com valor probatório pleno), “quando tenha sido desatendida determinada declaração confessória constante de documento ou resultante do processo (art. 358º do CC e arts. 484º, nº1 e 463º do CPC) ou tenha sido desconsiderado algum acordo estabelecido entre as partes nos articulados quanto a determinado facto (art. 574º, nº 2 do CPC)”, “nos casos em que tenha sido considerado provado certo facto com base em meio de prova legalmente insuficiente” (por ex. presunção judicial ou depoimento testemunhal nos termos dos arts. 351 e 393º do CC).” e, ainda, “quando for apresentada pelo Recorrente documento superveniente que imponha decisão”. “Em qualquer destes casos, a Relação, limitando-se a aplicar regras vinculativas extraídas do direito probatório material deve integrar na decisão o facto que a primeira instância considerou provado ou retirar dela o facto que ilegitimamente foi considerado provado (sem prejuízo da sustentação noutros meios de prova), alteração que nem sequer depende da iniciativa da parte, sendo que a nenhuma das situações de alteração oficiosa se subsume o caso sub judice. [18] Abrantes Geraldes, Recursos no Novo Código de Processo Civil, 4ª Edição, pags 155-156 [19] Ac. STJ. de 14/02/2012, Proc. 6823/09.3TBRG.G1.S1, in base de dados da DGSI. [20] Abrantes Geraldes, Recursos no Novo Código de Processo Civil, 4ª Edição, 2017,pag. 153 [21] Ibidem, pág. 153. [22] Ibidem, pags 155 e seg e 159 [23] Ac. da Relação do Porto de 18/12/2013, Processo 7571/11.4TBMAI.P1.dgsi.Net [24] Abrantes Geraldes, idem, pags 155-156 [25] Cfr. Acs. proferidos em 18/11/2008, Proc. 08A3406; em 15/09/2011, Proc. 1079/07.0TVPRT.P.S1; em 04/03/2015, Proc. 2180/09.0TTLSB.L1.S2; em 01/10/2015, Proc. 824/11.3TTLSB. L1. S1; em 26/11/2015, Proc. 291/12.4TTLRA.C1; em 03/03/2016, Proc. 861/13.3TTVIS.C1.S1; 11/02/2016; Proc. 157/12.8TUGMR.G1.S1, em 12/5/2016: Processo 324/10.9TTALM.L1:S1; em 31/5/2016: Processo 1184/10,5TTMTS.P1:S1, todos in dgsi.net. [26] Abílio Neto, Código de Processo Civil anotado, 4ª Ed. 2017, Ediforum, Edições Jurídicas, Lda pag 999 [27] Cfr. Ac. Da Relação de Évora de 3/11/2016, processo 1070/13. dgsi.Net [28] Acórdão do STJ de 3/5/2016, Processo 145/11, Sumários, Maio/2016, p.3 [29] Acórdão do STJ de 11/2/2016, Processo 5001/07: Sumários, Fevereiro/2016, p 28 citado por Abílio Neto, Novo Código de Processo Civil Anotado, 4ª Edição, 2017, pág 996. [30] Lucinda D. Dias da Silva, Processo Cautelar Comum, Princípio do Contraditório e dispensa de audição prévia do requerido, Coimbra, Coimbra Editora, 2009, p. 113. [31] Cfr, contudo, o art. 369º, do Código de Processo Civil, com a epígrafe “Inversão do contencioso” [32] Cfr. Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 8/04/97, processo 96A940, in www.dgsi.pt. [33] Carlos Lopes do Rego, Comentários ao Código de Processo Civil, 2ª ed., vol. I, Coimbra, Almedina, 2004, p. 341. [34] José Lebre de Freitas e Isabel Alexandre, Código de Processo Civil Anotado, Vol. 2º, 3ª Edição, 2017, Almedina, pag. 10 [35] Ibidem, pag. 10 [36] Ibidem, pag. 19 [37] Lucinda D. Dias da Silva, Idem, pág. 141 e segs [38] Ibidem, pág. 146 [39] Ibidem, pág. 146 [40] Abrantes Geraldes, Temas da Reforma do Processo Civil, vol.III, 4ª ed., pp. 237 e ss.). [41] Ibidem, pág 245 e seg, [42] António Santos Abrantes Geraldes, Paulo Pimenta e Luís Filipe Pires de Sousa, O Código de Processo Civil Anotado, vol I, Almedina, pág 429