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FALSIFICAÇÃO DE DOCUMENTO
ELEMENTOS TÍPICOS DO ILÍCITO
DOCUMENTO ORIGINAL FOTOCOPIADO
DESISTÊNCIA
ARTºS 256º
Nº 3 E 26º DO CP
Sumário
I - Os bens jurídicos protegidos pela incriminação do artigo 256º do CP – falsificação ou contrafação de documento – são a segurança e a credibilidade na força probatória de documento destinado ao tráfico jurídico. II - No que concerne ao grau de lesão dos bens jurídicos protegidos, o crime de falsificação ou contrafação de documento trata-se de um crime de perigo abstrato, no que respeita às condutas típicas previstas nas alíneas a) a d) do nº1 do art. 256º, na medida em que, com a falsificação do documento, apesar de ainda não existir uma violação do bem jurídico, gera-se o perigo dessa violação. Destarte, somente se exige que o documento seja falsificado para que o agente dessa falsificação possa ser punido, para que o ilícito seja consumado, independentemente de o utilizar ou o colocar no tráfico jurídico – consumação formal. III - Quando o crime for cometido nas modalidades típicas previstas nas alíneas e) e f) do nº1 do art. 256º, estamos perante um crime de dano, uma vez que quando o documento é utilizado, posto em circulação, ocorre já uma efetiva afetação do bem jurídico protegido pela incriminação. Nestes casos, verifica-se o resultado a que a incriminação pretende obstar, isto é, a violação da segurança no tráfico jurídico por via da colocação neste do documento falso ou contrafeito. IV – Estando assente que o arguido elaborou ou mandou elaborar cópia de uma certidão predial emitida pela Conservatória Predial ..., na qual, em divergência face ao constante do original da Certidão Predial, fez constar áreas distintas e não reais, ocorreu, por via da elaboração de documento falso, a consumação formal do crime. Provado ainda que o arguido deu entrada desse documento falso na Câmara Municipal de ... a fim de instruir o pedido de licenciamento/autorização das operações urbanísticas constantes do projeto de arquitetura que previamente elaborou, constata-se que, com esse uso, introduziu o documento no tráfico jurídico, o que traduz uma conduta danosa, já violadora do bem jurídico que a norma incriminadora visa proteger, e consubstanciadora da consumação material do ilícito criminal em questão. V – Assim, a anulação do processo administrativo de licenciamento de obras, a requerimento da dona da obra, por alegados “erros de levantamento topográfico e certidão de registo predial”, mostra-se irrelevante, inidónea para produzir os efeitos jurídicos pretendidos pelo recorrente, ou seja, a não punibilidade da conduta por desistência relevante (art. 24º, nº2, do CP), porquanto, desde logo, tal comportamento surge como extemporâneo e incapaz de impedir a consumação material do crime, que já se tinha verificado mediante a apresentação do documento falso para efeitos de instrução (enquanto meio probatório) do procedimento administrativo, que, entretanto, se iniciou. O resultado não compreendido no tipo de crime, o dano efetivo do bem jurídico que a incriminação visava proteger, já se tinha verificado. VI - Verifica-se o dolo específico exigido pelo crime se o arguido, ao atuar do modo descrito, pretendia obter o deferimento do pedido de licenciamento/autorização das operações urbanísticas constantes do projeto de arquitetura que elaborou, e que, de outro modo, com base nas reais áreas do imóvel, não seria aprovado, pois que pretendeu obter um benefício ilegítimo (porque ilícito, desconforme à Lei) para outra pessoa, a dona da obra e requerente no processo administrativo em apreço, para quem prestou serviços no âmbito das suas funções de arquiteto, se não mesmo para ele próprio, visto que visava ainda, implicitamente, a aprovação do respetivo projeto de arquitetura, da sua autoria, e que seria depois implantado em obra, com o correlativo prejuízo para o Estado, porquanto a Autarquia de ..., por causa do documento falsificado em questão, licenciaria as obras de edificação pretendidas em contrário das normas regulamentares vigentes. VII - A falsificação do documento através da fotocópia, utilizada esta como o meio técnico que permite a falsificação, isto é, quando o documento original é fotocopiado e se cria um documento de conteúdo distinto do que constava daquele, mantendo a fotocópia a aparência do original, consubstancia ainda uma falsificação material de documento para efeitos jurídico-penais, integrando, dessarte, o conceito de documento expresso no art. 255º do CP. As asserções contidas na certidão predial relativas às áreas do imóvel, e que foram adulteradas pelo arguido, assumem relevo probatório (independentemente da sua eficácia probatória, plena ou relativa, ou, rectius, do seu concreto ou casuístico alcance probatório) quanto a facto juridicamente relevante, o que notoriamente é revelado pela circunstância de o documento em apreço ter sido utilizado pelo recorrente para instruir, em nome da dona da obra, o processo de licenciamento apresentado junto da competente autoridade administrativa, precisamente como meio probatório, além do mais, das áreas do prédio, fator relevante para a apreciação sobre o mérito do pedido, tanto mais que, perante as reais áreas do imóvel, o requerimento teria de ser indeferido em conformidade com as normas regulamentares vigentes. VIII - O documento que o arguido falsificou, uma certidão predial, constitui um documento autêntico para efeitos do disposto no art. 256º, nº3, do CP. Não é o concreto uso que o arguido fez do documento que falsificou, através de uma fotocópia, que condiciona ou determina, consoante a eficácia probatória que se lhe queira conceder, o tipo do documento falsificado, que se mantém autêntico. A concreta força probatória da fotocópia do documento original, resultando o “novo” documento da adulteração deste, não releva para efeitos de enquadramento da conduta no tipo legal do crime de falsificação, nomeadamente, na sua forma agravada, pois o que determina essa integração é a natureza do documento que se falsificou.
Texto Integral
Acordam, em conferência, os Juízes desta Secção Criminal do Tribunal da Relação de Guimarães:
I – RELATÓRIO: ▪ No âmbito do Processo Comum (Tribunal Singular) nº 22/14.4T9MLG, do Tribunal Judicial da Comarca de Viana do Castelo - Juízo de Competência Genérica de Melgaço, por sentença proferida a 03.10.2019 e depositada no mesmo dia (fls. 333 a 339 e 340, respetivamente; referências 44410541 e 44457344, respetivamente), foi decidido:
▪ Inconformado com tal decisão, dela veio o arguido J. C. interpor o presente recurso, que, após dedução da motivação, culmina com as seguintes conclusões e petitório (fls. 342 a 350 – ref. 33877068) - transcrição:
“1. A sentença quando inicia a análise em concreto dos factos, limita-se a enumerar as provas: testemunhal, as declarações do arguido prestadas perante Magistrada do Ministério Público e a prova documental que enumerou da seguinte forma: -“Denúncia” (fls. 2 e 3); - “Caderneta Predial Urbana” (fls. 45); - “Certidão da ConservatóriadoRegisto Predial …”(fls. 5 a7); -Certificado doRegisto Criminal.
2. Não fez qualquer alusão aos documentos que tem extrema importância para a decisão da causa e que constam de fls. 153 a 158 e 290, 291 dos autos.
3. A serem levados em conta tais documentos, com força probatória plena, deveriam constar da matéria provada os seguintes fatos:
a) Por requerimento a dona da obra – N. G. relativa ao processo de obras n.º LE-HAB-19/2014 (ponto 8º dos factos provados) em 20 de agosto de 2014, veio solicitar a anulação do dito processo em “virtude de haver erros de levantamento Topográfico e certidão do registo predial. (fls.155).
b) Na sequência de tal requerimento o Chefe de Divisão de Planeamento disse “não se vê inconveniente no deferimento da pretensão”, (doc. Fls. 154).
c) Por despacho do Presidente da Câmara de ..., de 26 de agosto de 2014, foi deferido o pedido e declarado o processo anulado, sem que tivesse tido qualquer apreciação técnica do Município (dc. Fls. 155).
d) Em 25 de agosto de 2014, foi entregue na Câmara novo projeto com acompanhado da certidão da Conservatória exata (fls. 158 e fls. 290 e 291).
4. Tais fatos resultam de documentos autênticos emitidos pelo Município, não foram contrariados por nenhuma testemunha, antes foram reforçados pelo depoimento de L. L., na altura em funções na Câmara Municipal de ..., quando referiu, como consta da motivação que “lembra-sequehaviadadosquedivergiammasnãoconsegueespecificar–eumanulamentoposterior”.
5. São fatos de suma importância para a descoberta da verdade material, para o correto enquadramento jurídico do caso e para ser apurado se o arguido, pode beneficiar da denominada “Regra da Desistência”, prevista na Lei Penal.
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6. Independentemente da não ampliação da matéria de a conduta imputada aoarguido não é idónea para a verificação do crime a que foi condenado.
7. Para que ocorra tal crime além do mais tem que cumulativamente o agente atuar dolo específico, ou seja com a intenção de causar prejuízo a terceiro, de obter para si ou outra pessoa benefício ilegítimo, ou de preparar, facilitar, executar ou encobrir outro crime.
8. Da análise dos fatos provados, não existem elementos que permitam concluir que o arguido atuou com uma determinada intenção de obter para si ou para outrem um benefício ou que pretendesse causar prejuízo a quem quer que seja.
9. A sentença recorrida apenas se pronuncia sobre o dolo genérico nos pontos provados:11, 12, 13 e 14, sendo totalmente omissa, porque também nenhuma prova se fez, nem testemunhal, nem documental, sobre o denominado doloespecífico.
10. A sentença não representa acontecimentos da vida real, indicando qual o prejuízo,ou qual o benefício; quem foi prejudicado e quem foi beneficiado.
11. Concluir, como se faz no ponto 14 dos fatos “Oquefezcomopropósito,concretizado,decriaraaparênciadecorresponderàcertidãopredialefetivamenterespeitanteaoprédioidentificadoem2.º,oquesabianãocorresponderàverdade,e,dessaforma,intentarobterodeferimentodoreferidopedidodelicenciamento/autorização,oquesabianãoserpossívelcombasenasreaisáreasdoidentificadoprédioporfaltadecumprimentodosíndicesurbanísticosconstantesdoPlanoDiretorMunicipal de ...”, além de não concretizar qual foi o prejuízo nem o benefício, “éformularumjuízoqueincluiuarespostaàquestãoadecidir,limitando-lheoutraçando-lheumdestino” vide acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães de 29/11/2010 (processo 449/07.8 GBAVV.GI, disponível em www.dgsi.pt).
12. “Ludibriarasautoridadesnãoconstitui,emsimesmo,nenhumbenefícioouprejuízo”, tem de ser concretizado. Vide acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra de 28-05-2014 (processo 209/13.7GAFCR-A.C1, disponível em www.dgsi.pt).
13. Na sentença recorrida não há qualquer concretização de benefício ou prejuízo, e não há porque não existe, nenhuma testemunha ou qualquer documento podiam provar tal coisa.
14. Quando a participaçãocrime foi apresentada nos presentes autos, em 21/10/2014, já em 20/08/2014, o recorrente, por motu próprio, havia requerido anulação do projeto licenciamento, junto da Câmara Municipal de ... em virtude de “havererrosdelevantamentotopográficoecertidãodoregistopredial”, requerimento esse que teve prontamente deferimento, cfr.Documentosdefls,153e154,queseencontramnosautos, mas aos quais a Julgadora, aquo, não deu qualquer relevância para fundamentar a matéria de fato.
15. Oquedemonstradapartedoarguidototalfaltadodoloespecífico para que se pudesse verificar o crime de falsificação de documento.
16. O recorrente apercebeu-se do erro, e, espontaneamente, para a reposição da verdade, apresentou um pedido de anulação do processo e apresentou um novo devidamente retificado (documentos juntos aos autos que não relevaram para a Ilustre Julgadora aquo).
17. Nasentença recorrida foi omitidaapronúncia acercado prejuízo/benefício, o dolo específico.
18. O Tribunal deixou de se pronunciar, tendo elementos mais que suficientes para o fazer sobre uma questão que tinha de apreciar, tal atitude configura a nulidade prevista na alínea c) do n,º1 do artigo 379º, nulidadeessaqueaquiseinvocaparaospertinentesefeitos.
19. A sanação desta nulidade mediante aprovadocumental etestemunhal apresentada nos autos, que é unânime em referir que não houve nenhum prejuízo/ benefício resultante da conduta do arguido este terá de necessariamente ser absolvido.
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20. Mais a adulteração da cópia não levou à produção de qualquer resultado porque o arguido tal como conseguiu provar através da junção de documentos autênticos, e como referiu a testemunha L. L., requereu a anulação do processo antes mesmo dele produzir qualquer efeito.
21. A anulação do projeto foi pedida por “virtudedehavererrosdelevantamentotopográficoecertidãoderegistopredial”, anulação essa que foi deferida como está provado por documento autêntico (que faz prova plena art. 371 do CC).
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22. O n.º 2 do artigo 256º do CP, dizer que relativamente ao crime de falsificação “a tentativa é punida”, o certo é que incasu existe uma desistência da prática do crime, com a anulação, com superior relevância jurídica.
23. “A desistênciadepoisdaconsumaçãoformadotipoimpedindoqueseproduzaoresultadodacirculaçãododocumentofalsonotráficojurídicoérelevante”. vide Comentário do Código Penal de Paulo Pinto de Albuquerque 2º edição atualizada a fls.757.
24. “Deacordocomosfundamentosquepresidemàregradadesistência,oagenteterádeassumirumcomportamentoótimo,configuradocomooidealparaproteçãodobemjurídico(…).Parapreencherovalordaação,oconceitode“esforçosério”seráprecisoqueoagentetenhaumaatitudepreponderanteeinterventivanaadoçãodamedidaótima”. Vide Duarte Rodrigo em Dissertação em Direito Penal sob a Orientação da Prof. Doutora Susana Maria Aires de Sousa, em 2014/2015, na Faculdade de Direito da Universidade de Coimbra.
25. “Adesistênciavoluntáriaconfiguraumacausadeexclusãopessoaldapunibilidade,comosepodealcançardoCPartigos24ºe25º,etemoseufundamentonadecisãopolítico-criminaldeoperaradissociaçãoentreatentativaeoagente,deforamaprotegerosbensjurídicosligadosàvítimaeaoperaroregressodoagenteaodireitoporviadareversibilidadedalesãoe/ouinversãodoperigo,desdequeadesistênciasejaobrapessoaldoagente.Relevanteparaefeitosdoartigo24ºéqueaconsumaçãoformaloumaterialnãochegueaterlugar.” Vide Vítor de Jesus Ribas Pereira, em Dissertação para a obtenção do grau de mestre em direito penal sob orientação do Prof. Dr. José Francisco de Faria Costa, na Faculdade de Direito da Universidade de Coimbra.
26. Mais, “Oart.º24ºdoCPprevêanãopunibilidadedatentativapordesistênciaativadoagente.Nocasodetentativaacabada(2ªhipóteseprevistanon.º1),sóoimpedimentodaconsumaçãoporpartedoagenteisentadepunição.Paraquetalsucedaé,porém,necessárioqueeledesenvolvaumacondutaprópriaeespontânea,emboraeventualmentecomacolaboraçãodeterceiros,aseupedido,quesejaidóneaaevitaraconsumação,equeestaefetivamenteocorra.Oagentedeve,pois,paraserconsideradodesistenteebeneficiardaimpunidade,dominar,ou,nomínimocondominaroprocessodesalvamentodobemjurídicoameaçadopelasuaconduta”. Vide acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de Justiça de 18/04/2012 (Processo 274/10.9 JACBR.C1. S1, disponível em www.dgsi.pt).
27. Com a anulação do processo de licenciamento ocorreu, o salvamento do bem ameaçado, ou seja, a circulação de uma cópia de um documento adulterada, que podia iludir a segurança e credibilidade no tráfico jurídico documental.
28. Deveria o Tribunal ter aplicado a regra da desistência, nos termos que vimos explanando, acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de Justiça de 18/04/2012 (Processo 274/10.9 JACBR.C1. S1, disponível em www.dgsi.pt) mas, pelo contrário, não lhe deu qualquer relevância, violando o disposto no artigo 24º do C.P.
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29. Uma Certidão do Registo Predial, não faz prova em lado nenhum, por si só, relativamente a confrontações e áreas dos prédios constantes do registo predial “pornãoseratribuível,nesseespecto,àcertidão,forçaprobatóriaplena” vide acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de Justiça de 01/10/1991 (Processo 274/10.9 JACBR.C1. S1, disponível em www.dgsi.pt), emuitomenosfaráprovaumasimplesfotocópiadeumacertidão.
30. “Oregistopredialpressupõequeodireitoexisteepertenceaotitularinscrito,masnãoabrangeaáreaeasconfrontaçõesdosprédios” acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de Justiça de 01/10/1991 (Processo 274/10.9 JACBR.C1. S1, disponível em www.dgsi.pt).
31. A cópia referida no ponto 6º dos factos provados, não tinha aptidão, conferida juridicamente, para fazer qualquer prova relativamente a áreas ou confrontações do prédio (art.º 371º do CC, art.º 7 do CRP).
32. Mais uma simples cópia de uma certidão do registo predial, ainda que adulterada, apenas no respeitante às áreas, não é um instrumento idóneo para enganar e,desta maneira, para cometer qualquer crime.
33. Não é considerada um documento para efeitos jurídico-penais (art. 255º do C. Penal) a fotocópia simples (quer de documento autêntico, quer particular), cuja conformidade com o original não se encontre certificada ou atestada (nãoestáprovadoquetalcópiatenhasidocertificadaouatestada).
34. Ocrimedefalsificação dedocumento previsto epunido pelo art.º 256º do C. Penal não se reporta a qualquer declaração, mas apenas à falsificação de declaraçãoidóneaaprovarfactojuridicamenterelevante, uma simples cópia, de uma certidão, não pode ter mais força probatória que uma certidão, ou seja, ter capacidade para fazer prova das áreas do prédio a que diz respeito.
35. As áreas apostas na cópia, nenhuma prova fazem, nem legalmente podiam fazer, ainda que se tratasse de uma certidão, nem, nenhuma relevância jurídica civil tem e muito menos penal podem ter.
36. A douta sentença ao não absolver o arguido do crime de falsificação de documento, além de nula, viola o preceituado nos artigos 125º, 127º e 379º CPP e 256º, 255º, 24º e 25º CP, 371 do CC e 7º do CRP. Impõe-se,pois,aabsolviçãodoarguido.”
Conclui pedindo a procedência do recurso e, em consequência, a revogação da decisão proferida, absolvendo-se o arguido”.
▪ Na primeira instância, a Digna Magistrada do MP, notificada do despacho de admissão do recurso apresentado pelo arguido, nos termos e para os efeitos do artigo 413.º, n.º 1 do CPP, apresentou resposta em que, invocando também pertinente doutrina e jurisprudência, pugna pela improcedência do recurso e confirmação da sentença recorrida (fls. 352 a 359 - ref. 6570).
▪ Neste Tribunal da Relação o Exmo. Procurador-Geral Adjunto emitiu douto parecer em que, concordando com a resposta apresentada pelo MP em primeira instância e adicionando ajustada jurisprudência, pugna igualmente pela improcedência do recurso (fls. 362 a 366 - ref. 6819825).
▪ Cumprido o disposto no Artº 417º, nº 2, do C. P. Penal, o recorrente respondeu ao sobredito parecer renovando os argumentos já antes aduzidos no recurso interposto.
▪ Efetuado exame preliminar e colhidos os vistos legais, foram os autos submetidos à conferência, cumprindo, pois, conhecer e decidir.
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II – ÂMBITO OBJETIVO DO RECURSO (QUESTÕES A DECIDIR):
É hoje pacífico o entendimento doutrinário e jurisprudencial de que o âmbito do recurso é delimitado pelas conclusões extraídas pelo recorrente da respetiva motivação, sendo apenas as questões aí inventariadas (elencadas/sumariadas) as que o tribunal de recurso tem de apreciar, sem prejuízo das de conhecimento oficioso, designadamente dos vícios indicados no Artº 410º, nº 2, do Código de Processo Penal (ulteriormente designado, abreviadamente, C.P.P.)(1).
Assim sendo, no caso vertente, as questões que importa dilucidar são as seguintes:
A) Da invocada falta de exame crítico das provas e de insuficiência da fundamentação da sentença recorrida e da pretendida alteração da matéria de facto - Desistência relevante por via da apresentação do requerimento de anulação do procedimento administrativo.
B) Da invocada nulidade da sentença por omissão de pronúncia acerca da intenção subjacente à atuação do arguido - causação de prejuízo/obtenção de benefício -, o dolo específico (art. 379º, nº1, al. c), do Código de Processo Penal).
C) Falta de idoneidade da conduta imputada ao recorrente para o preenchimento do tipo de crime de falsificação de documento autêntico, p. e p. pelo art. 256º, nºs 1 e 3, do Código Penal. Inaptidão do documento para enganar terceiros (não integração do mesmo no conceito de “documento” para efeitos jurídico-penais).
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III – APECIAÇÃO:
► Da invocada falta de exame crítico das provas e de insuficiência da fundamentaçãoda sentença recorridae da pretendida alteração da matéria de facto:
Nas conclusões 1ª a 5ª do douto recurso, alega o recorrente que na fundamentação da sentença recorrida o tribunal a quo se limitou a enumerar as provas, designadamente, testemunhal, declarações do arguido prestadas perante Magistrada do Ministério Público e a prova documental que enumerou da seguinte forma: - “Denúncia” (fls. 2 e 3); - “Caderneta Predial Urbana” (fls. 45); - “Certidão da Conservatória do Registo Predial ...” (fls. 5 a7); - Certificado do Registo Criminal, omitindo qualquer alusão aos documentos que constam de fls. 153 a 158 e 290, 291 dos autos e que, no seu entendimento, têm extrema importância para a decisão da causa.
Aduz que, a serem levados em conta tais documentos, com força probatória plena, deveriam constar da matéria provada os seguintes factos:
a) Por requerimento a dona da obra – N. G. relativa ao processo de obras n.º LE-HAB-19/2014 (ponto 8º dos factos provados) em 20 de agosto de 2014, veio solicitar a anulação do dito processo em “virtude de haver erros de levantamento Topográfico e certidão do registo predial. (fls.155);
b) Na sequência de tal requerimento o Chefe de Divisão de Planeamento disse “não se vê inconveniente no deferimento da pretensão” (doc. Fls. 154);
c) Por despacho do Presidente da Câmara de ..., de 26 de agosto de 2014, foi deferido o pedido e declarado o processo anulado, sem que tivesse tido qualquer apreciação técnica do Município (dc. Fls. 155);
d) Em 25 de agosto de 2014, foi entregue na Câmara novo projeto acompanhado da certidão da Conservatória exata (fls. 158 e fls. 290 e 291).
Segundo o recorrente, tais factos resultam de documentos autênticos emitidos pelo Município, não foram contrariados por nenhuma testemunha, antes foram reforçados pelo depoimento de L. L., na altura em funções na Câmara Municipal de ..., quando referiu, como consta da motivação que “lembra-se que havia dados que divergiam, mas não consegue especificar – e um anulamento posterior”. E são factos de suma importância para a descoberta da verdade material, para o correto enquadramento jurídico do caso e para ser apurado se o arguido, pode beneficiar da denominada “Regra da Desistência”, prevista na Lei Penal.
Assim, intimamente conexionada com tal alegação recursiva surge a matéria alegada pelo recorrente nas conclusões 22ª a 28ª, em que pugna pela aplicação ao caso do art. 24º do Código Penal, onde se prevê a não punibilidade da tentativa por desistência ativa do agente, decorrente do impedimento da produção de qualquer resultado por via da conduta típica, do salvamento do bem jurídico ameaçado, em virtude da apresentação de requerimento a peticionar a anulação do processo administrativo antes mesmo dele produzir qualquer efeito, anulação que foi deferida.
Primeiramente, urge referir que, como bem nota o Ministério Público na douta resposta ao recurso formulada em primeira instância, o recorrente, apesar de alegar, nos preditos termos,a falta de exame crítico das provas e a insuficiência da fundamentação da sentença recorrida, não retira daí qualquer conclusão jurídico-processualmente relevante, ou seja, não sustentou em tal fundamento qualquer pedido integrado com as supostas normas violadas. Não arguiu expressamente qualquer nulidade da sentença recorrida, designadamente a constante da al. a) do nº1, do art. 379º do CPP, por referência ao art. 374º, nº2 do mesmo diploma legal, ou outro vício da decisão recorrida, como se impunha (cf. art. 412º, nº2, al. a), do CPP).
Sucede que, as nulidades da sentença, elencadas no nº1 do art. 379º do Código de Processo Penal, não são de conhecimento oficioso, devendo ser arguidas pelo interessado no recurso que interponha da decisão, conforme decorre do nº2 do mesmo preceito legal, onde a menção alternativa “ou conhecidas” se reporta unicamente ao poder de cognição do tribunal superior no caso de nulidade de decisão da sua lavra, e não à consagração da oficiosidade do conhecimento daquelas nulidades – Cfr., por todos, Paulo Pinto de Albuquerque, ob. cit., anotação 7 ao art. 379º, p. 965, anotação 301 ao art. 410º, p. 1122; e acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa de 18/06/2015, processo nº 205/14.7PLLRS.L1-9, disponível em www.dgsi.pt.
De todo o modo, para que a questão de fundo suscitada pelo recorrente não fique sem apreciação por este Tribunal, sempre se dirá que, no nosso entendimento, a sentença recorrida não padece de falta de exame crítico das provas e de insuficiência da fundamentação.
A Lei ordinária portuguesa, como corolário do disposto no art. 205º, nº1, do Texto Fundamental (Constituição da República Portuguesa), consagra expressamente o dever de fundamentação das decisões finais, sentenças e acórdãos – art. 374º, nº2 do CPP, bem como aponta a fundamentação como requisito essencial na apreciação da prova produzida em audiência – art. 365º, nº2 -, e na escolha e determinação da sanção a aplicar ao arguido – art. 375º, nº1.
O Supremo Tribunal de Justiça, em diversas decisões, tem consubstanciado o dever de fundamentação da sentença do seguinte modo: para além da indicação dos factos provados e não provados e da indicação dos meios de prova, a sentença deve conter os elementos que, em razão das regras da experiência ou de critérios lógicos, constituam o substrato racional que conduziu a que a convicção do Tribunal se formasse em determinado sentido ou valorasse de determinada forma os diversos meios de prova apresentados na audiência (2).
Paulo Saragoça da Matta (3) entende que a fundamentação das sentenças consistirá:
«(a) num elenco das provas carreadas para o processo;
(b) numa análise crítica e racional dos motivos que levaram a conferir relevância a determinadas provas e a negar importância a outras;
(c) numa concatenação racional e lógica das provas relevantes e dos factos investigados (o que permitirá arrolar e arrumar lógica e metodologicamente os factos provados e não provados); e,
(d) numa apreciação dos factos considerados assentes à luz do direito vigente»
Pertinente também, e por nós acolhido, o entendimento que sobre a fundamentação tem José Mouraz Lopes (4), nos seguintes termos:
«No processo de elaboração da fundamentação da decisão o procedimento tem de fundar-se na fundamentação lógica e racional do raciocínio do juiz, em função da prova que foi produzida e do modo como se chegou à decisão tomada. Na fundamentação assume especial importância a demostração da prova que sustenta os factos.
Deverá sempre explicar-se o porquê de determinada valoração, e porque não outra. O que levou o tribunal a decidir-se por esta ou aquela opção de prova através de um exame crítico das provas produzidas».
Por outro lado, a motivação não tem de ser extensa, exaustiva e pormenorizada. Basta que seja razoável, aceitável, do ponto de vista do normal e da suficiência, o que sucederá sempre que do seu conteúdo se consiga extrair as razões subjacentes à decisão tomada pelo julgador.
No caso vertente, analisada a motivação da decisão de facto adiantada pelo tribunal a quo, verifica-se que a exma. julgadora elencou, de forma nominativa, a prova testemunhal, documental e por declarações, no caso, do arguido, produzida nos autos, que serviu para formar a sua convicção, explicitou a razão de ciência das testemunhas, fez uma resenha do teor desses depoimentos e declarações, e expôs, numa análise crítica e racional, apelando às regras da experiência comum e da lógica, os motivos que a levaram a conferir relevância aos mencionados depoimentos e documentos e a descredibilizar as declarações prestadas pelo arguido no que tange à negação dos factos imputados relativos ao desiderato e método de fabricação do documento em apreço.
Em conformidade, a sobredita fundamentação apresenta-se como aceitável, suficiente e racionalmente lógica, permitindo a quem lê a decisão apreender e compreender as razões subjacentes à decisão tomada pelo julgador.
E não colhe a versão do recorrente de que os factos que alegadamente resultariam provados da consideração que faltou fazer dos documentos juntos a fls. 153 a 158, 290 e 291, reconduzindo-se à apresentação de requerimento a peticionar a anulação do processo administrativo antes mesmo dele produzir qualquer efeito, anulação que foi deferida, são relevantes para a descoberta da verdade material, para o correto enquadramento jurídico do caso e para ser apurado se o arguido pode beneficiar da denominada “regra da desistência”, prevista no artigo 24º do Código Penal, com a sua consequente absolvição por não punibilidade da sua conduta.
Preceitua o art. 24º do Código Penal, com a epígrafe «Desistência»:
«1 – A tentativa deixa de ser punível quando o agente voluntariamente desistir de prosseguir na execução do crime, ou impedir a consumação, ou, não obstante a consumação, impedir a verificação do resultado não compreendido no tipo de crime.
2 – Quando a consumação ou a verificação do resultado forem impedidos por facto independentemente da conduta do desistente, a tentativa não é punível se este se esforçar seriamente por evitar uma ou outra.»
A desistência voluntária é um pressuposto negativo da punibilidade, assumindo a forma de uma causa pessoal de exclusão da pena.
Os bens jurídicos protegidos pela incriminação do artigo 256º do CP – falsificação ou contrafação de documento – são a segurança e a credibilidade na força probatória de documento destinado ao tráfico jurídico – assim, Eduardo Correia, in “Direito Criminal”, Tomo I, p. 288, Helena Moniz, in “Comentário Conimbricense do Código Penal”, Parte Geral, Tomo II, pp. 679 e 680, e Paulo Pinto de Albuquerque, in “Comentário do Código Penal”, anot. 2 ao art. 256º, p. 672.
No que concerne ao grau de lesão dos bens jurídicos protegidos, o crime de falsificação ou contrafação de documento trata-se de um crime de perigo, no que respeita às condutas típicas previstas nas alíneas a) a d) do nº1 do art. 256º, na medida em que, com a falsificação do documento, apesar de ainda não existir uma violação do bem jurídico, gera-se o perigo dessa violação. E é um crime de perigo abstrato porque a causação de perigo, em concreto, não constitui elemento do tipo, “ficcionando” desde logo o legislador a probabilidade da sua ocorrência e de lesão do bem jurídico para antecipar a tutela punitiva penal.
Destarte, somente se exige que o documento seja falsificado para que o agente dessa falsificação possa ser punido, para que o ilícito seja consumado, independentemente de o utilizar ou o colocar no tráfico jurídico – consumação formal.
Quando o crime for cometido nas modalidades típicas previstas nas alíneas e) e f) do nº1 do art. 256º, estamos perante um crime de dano, porquanto, quando o documento é utilizado, posto em circulação, ocorre já uma efetiva afetação do bem jurídico protegido pela incriminação. Nestes casos, verifica-se o resultado a que a incriminação pretende obstar, isto é, a violação da segurança no tráfico jurídico por via da colocação neste do documento falso ou contrafeito.
Ressuma do exposto que a violação do bem jurídico não é concomitante da falsificação do documento, só acontecendo com a ulterior introdução do documento falso ou falsificado no tráfico jurídico, por exemplo, por via do seu uso, facto que, como decorre da alínea e) do nº1 do art. 256º do CP, não constitui em si mesmo uma falsidade ou uma falsificação, antes pressupondo uma dessas condutas anteriormente perpetradas. Já há um crime, de perigo, só com a falsificação, sendo que a posterior introdução, pelo uso, no tráfico jurídico, consubstancia um outro crime, de dano, através do qual a perigosidade específica daquela se realiza no concreto, desencadeando a referida violação – neste sentido, Victor de Sá Pereira e Alexandre Lafayette, in “Código Penal, Anotado e Comentado”, 2ª Edição, anot. 8 ao art. 256º, p. 718.
Conforme refere Helena Moniz (ob. cit., p. 689), “[A] tentativa começa com a preparação do documento (não com a preparação dos instrumentos para proceder ao ato material de falsificação) e está acabada logo que o agente termina o ato material de falsificação. Após a falsificação o crime está formalmente consumado, embora seja relevante a desistência se se impedir a consumação material, isto é, se se impedir a produção do resultado não compreendido no tipo de crime – isto é, a circulação do documento falso no tráfico jurídico-probatório, destruindo o documento, por exemplo” (sublinhado nosso).
Também Paulo Pinto Albuquerque, in “Comentário do Código Penal”, anot. 18 ao art. 256º, p. 674, após relembrar que a tentativa é punível (nº2 do mesmo normativo), toma como relevante, para efeitos do disposto no art. 24º, nº1, in fine, do CP, a desistência que ocorre depois da consumação formal do tipo, impedindo que se produza o resultado da circulação do documento falso no tráfico jurídico.
Posto isto, in casu, sem nos determos no caráter voluntário imposto no nº1 do art. 24º do CP como imprescindível para a relevância da desistência (5) e consequente não punibilidade do facto tentado, e que, no entendimento de Jorge de Figueiredo Dias (6), não constitui um mero requisito (a par de outros), mas a verdadeira ratio essendi do instituto e do seu específico efeito privilegiador, cumpre desde logo analisar a conduta do arguido (recorrente) dada definitivamente por provada, uma vez que aquele não impugnou a matéria de facto, para aquilatar se a factualidade que o mesmo pretende ver agora indagada, apreciada e aditada pelo tribunal aos factos provados, assume a relevância que o recorrente lhe confere, ou seja, é suscetível de enquadrar juridicamente uma desistência relevante, nos termos e para efeitos do disposto no art. 24º, nº1, do CP.
E a resposta terá de ser forçosamente negativa.
A factualidade dada por provada pelo tribunal a quo nos nºs 1 a 16 do Ponto III, al. A), traduz indubitavelmente, do ponto de vista jurídico, uma consumação formal e material do tipo de crime em apreço (7).
Com efeito, está assente que o arguido elaborou ou mandou elaborar cópia de uma certidão predial emitida pela Conservatória Predial ..., na qual, em divergência face ao constante do original da Certidão Predial, fez constar áreas distintas e não reais (factos nºs 1 a 6, 9 e 10), assim ocorrendo, por via da elaboração de documento falso, a consumação formal do crime.
Acresce que foi provado que o arguido deu entrada desse documento falso na Câmara Municipal de ... a fim de instruir o pedido de licenciamento/autorização das operações urbanísticas constantes do projeto de arquitetura que previamente elaborou (factos nºs 7, 8 e 13), pelo que, com esse uso, introduziu o documento no tráfico jurídico, o que traduz uma conduta danosa, já violadora do bem jurídico que a norma incriminadora visa proteger (i.e., a segurança e credibilidade do tráfico jurídico probatório no que respeita à prova documental), e consubstanciadora da consumação material do ilícito criminal em questão (8).
Donde, a matéria de facto que o recorrente pretende ver apreciada e dada como provada, resultante dos documentos de fls. 153 a 158, 290 e 291 dos autos, concernente à anulação do processo administrativo de licenciamento de obras, a requerimento da dona da obra, por alegados “erros de levantamento topográfico e certidão de registo predial” (e que o recorrente pretende ver ajuizado como um ato seu), mostra-se irrelevante, inidónea para produzir os efeitos jurídicos pretendidos pelo recorrente, porquanto, como vimos, ainda que se considerasse a predita atuação como integrante de uma desistência voluntária do arguido, o que é, no mínimo, discutível, face ao teor do pedido de anulação, e que sempre importaria a indagação sobre a eventual postura ativa adotada pelo recorrente para efeitos de apresentação daquele requerimento, o certo é que tal comportamento surge como extemporâneo e incapaz de impedir a consumação material do crime, que já se tinha verificado anteriormente mediante a apresentação do documento falso para efeitos de instrução (enquanto meio probatório) do procedimento administrativo, que, entretanto, se iniciou. O resultado não compreendido no tipo de crime, o dano efetivo do bem jurídico que a incriminação visava proteger, já se tinha verificado.
Consequentemente, não pode o arguido/recorrente beneficiar do instituto da desistência previsto no art. 24º do Código Penal.
Improcede, nesta parte, o douto recurso.
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Apesar de não se traduzir numa questão suscitada pelo arguido no douto recurso, poderia colocar-se a hipótese de a factualidade que o recorrente pretende seja dada por provada – que não constava da acusação e que não foi por si invocada na contestação deduzida nos autos (cfr. fls. 320) – e aditada aos factos provados ser relevante para efeitos de dosimetria da pena a aplicar-lhe, designadamente, funcionando como circunstância atenuante geral, nos termos e para efeitos do disposto no art. 71º, nº2, al. e), do CP, ou, se se entendessem preenchidos os pressupostos previstos no art. 72º, nºs 1 e 2, al. c), do mesmo diploma legal, como causa de atenuação especial da pena.
Nessa sequência, colocar-se-ia a hipótese de este tribunal de recurso conhecer oficiosamente do vício de insuficiência para a decisão da matéria de facto provada, previsto no art. 410º, nº2, al. a), do CPP.
Contudo, e não entrando na apreciação de mérito sobre a idoneidade daquela factualidade para gerar, no caso concreto, um efeito atenuativo, de menor ou maior alcance, relativamente à sanção penal aplicável, cumpre dizer que nos está vedado proceder ao conhecimento dessa questão por via da indagação sobre a verificação do apontado vício, na medida em que o mesmo não resulta do texto da decisão recorrida.
É consabido que os vícios do art. 410º, nº2 do CPP hão de revelar-se do próprio texto decisório, sem recurso a quaisquer provas documentadas, o que não sucede in casu como se demonstra desde logo pela necessidade que o recorrente sentiu de invocar elementos probatórios de índole documental carreados para os autos e que o tribunal não considerou na decisão recorrida.
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► Da invocada nulidade da sentença por omissão de pronúncia (art. 379º, nº1, al. c), do Código de Processo Penal):
Nas conclusões 6ª a 19ª da douta motivação do recurso, alega o arguido, resumidamente, que nos factos provados na sentença recorrida não constam elementos que permitam concluir que o arguido atuou com uma determinada intenção de obter para si ou para outrem um benefício ou que pretendesse causar prejuízo a quem quer que seja.
Segundo o recorrente, a sentença recorrida apenas se pronuncia sobre o dolo genérico nos pontos provados 11, 12, 13 e 14, sendo totalmente omissa, porque também nenhuma prova se fez, nem testemunhal, nem documental, sobre o denominado dolo específico. A sentença não representa acontecimentos da vida real, indicando qual o prejuízo, ou qual o benefício, quem foi prejudicado e quem foi beneficiado.
Em conformidade com o raciocínio que ali expende, o recorrente entende que o tribunal a quo deixou de se pronunciar, tendo elementos suficientes para o fazer, sobre uma questão que tinha de apreciar, o que configura a nulidade prevista na alínea c) do n.º 1 do artigo 379º, que expressamente invoca no recurso, para os pertinentes efeitos.
Reclama ainda a sanação dessa nulidade mediante recurso à prova documental e testemunhal apresentada nos autos, que, nas suas palavras, é unânime em referir que não houve nenhum prejuízo/benefício resultante da conduta do arguido, com a sua consequente absolvição.
Apreciando:
Estipula o art. 379º do Código de Processo Penal, na parte que aqui releva:
«1 – É nula a sentença:
…
c) Quando o tribunal deixe de pronunciar-se sobre questões que devesse apreciar ou conheça de questões de que não podia tomar conhecimento.
2 – As nulidades da sentença devem ser arguidas ou conhecidas em recurso, devendo o tribunal supri-las, aplicando-se, com as necessárias adaptações, o disposto no nº4 do artigo 414º.
…»
A alegada nulidade foi tempestivamente arguida – cf. nº2 do sobredito preceito legal.
Nos termos do nº1 do art. 256º do CP, «[Q]uem, com intenção de causar prejuízo a outra pessoa ou ao Estado, de obter para si ou para outra pessoa benefício ilegítimo, ou de preparar, facilitar, executar ou encobrir outro crime», adotar uma das condutas típicas previstas nas alíneas a) a f) do mesmo normativo, é punido com pena de prisão até três anos ou com pena de multa.
Assim, temos que o elemento subjetivo do tipo de crime de falsificação ou contrafação de documento se preenche pelo dolo, em qualquer das suas modalidades (previstas no art. 14º, nº1 do CP: direto, necessário ou eventual), exigindo-se ainda uma específica intenção do agente, ou seja, o denominado dolo específico (também designado por elemento subjetivo especial do tipo).
No que concerne ao dolo genérico (ou dolo do tipo), a sua verificação pressupõe que o agente tenha atuado com conhecimento (previsão ou representação) das circunstâncias de facto que integram o tipo de crime e dos elementos normativos da ação típica – elemento intelectual do dolo – e, outrossim, que aja com vontade de praticar o facto – elemento volitivo do dolo.
Por outro lado, o tipo legal exige, para além do dolo do tipo, que o agente atue com a intenção de produção de um resultado que, contudo, não faz parte do tipo de ilícito.
O crime de falsificação de documento é, por isso, um crime de intenção ou resultado cortado, porquanto a norma incriminadora não exige para o preenchimento da conduta típica punível que se verifique, em concreto, o prejuízo efetivo de outra pessoa ou do Estado, nem o benefício ilegítimo do agente ou de outrem e nem mesmo a perpetração de outro crime.
Na douta sentença recorrida, o tribunal a quo verteu a factualidade atinente ao tipo subjetivo do crime de falsificação de documento em apreço nos pontos 10 a 16 dos factos provados, nos seguintes termos:
«10. O arguido sabia que tais inscrições [as referidas nos nºs 6 e 9] não traduziam a realidade.
11. Sabia igualmente não ser possível o deferimento o pedido de licenciamento/autorização identificado no artigo 7.º com base nas reais áreas do prédio urbano referido e, portanto, mediante apresentação da Certidão Predial original, por falta de cumprimento dos índices urbanísticos constantes do Plano Diretor Municipal de ...;
12. O arguido conhecia todos os factos descritos;
13. Agiu de forma livre, deliberada e consciente, bem sabendo que o documento identificado no artigo 6.º que, nas circunstâncias de tempo indicadas, deu entrada na Câmara Municipal de ..., a fim de instruir o pedido de licenciamento/autorização das operações urbanísticas constantes do projeto de arquitetura que previamente elaborou, continha elementos não conformes à realidade e, por isso, falsos;
14. O que fez com o propósito, concretizado, de criar a aparência de corresponder à certidão predial efetivamente respeitante ao prédio identificado no artigo 2.º, o que sabia não corresponder à verdade, e, dessa forma, intentar obter o deferimento do referido pedido de licenciamento/autorização, o que sabia não ser possível com base nas reais áreas do identificado prédio por falta de cumprimento dos índices urbanísticos constantes do Plano Diretor Municipal de ...;
15. Pondo, dessa forma, em causa a credibilidade daquele documento;
16. O arguido quis agir como agiu, bem sabendo que a sua conduta é proibida por lei e criminalmente punida;»
Na predita factualidade, mais especificamente nos nºs 10 a 13, 15 e 16 (primeira parte), encontra-se concretizado o dolo genérico (do tipo), nos seus momentos cognitivo e volitivo.
Por outro lado, salvo melhor opinião, o teor do facto provado sob o nº14, espelha, suficiente e corretamente, a intenção subjacente à atuação do arguido (o dolo específico).
Com efeito, ali se concretiza que o ora recorrente, ao atuar do modo descrito, pretendia obter o deferimento do pedido de licenciamento/autorização das operações urbanísticas constantes do projeto de arquitetura que elaborou, e que, de outro modo, com base nas reais áreas do imóvel, não seria aprovado.
Ou seja, ressuma cristalino da predita factualidade que oarguidopretendeu obter um benefício ilegítimo (porque ilícito, desconforme à Lei) para outra pessoa, a dona da obra e requerente no processo administrativo em apreço, para quem prestou serviços no âmbito das suas funções de arquiteto, se não mesmo para ele próprio, visto que visava ainda, implicitamente, a aprovação do respetivo projeto de arquitetura, da sua autoria, e que seria depois implantado em obra, com o correlativo prejuízo para o Estado, porquanto a Autarquia de ..., por causa do documento falsificado em questão, licenciaria as obras de edificação pretendidas em contrário das normas regulamentares vigentes.
E, como acima expusemos, para o preenchimento do tipo de crime de falsificação não é exigível que o resultado visado pelo agente se concretize, bastando que ele atue com o propósito tipificado na norma incriminadora.
Não assiste, pois, razão ao recorrente, julgando-se inexistente a alegada nulidade de omissão de pronúncia prevista no art. 379º, nº1, al. c), do Código de Processo Penal.
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► Da alegada falta de integração do documento falsificado em apreço no conceito de “documento” para efeitos jurídico-penais e no conceito de “documento autêntico”:
Nas conclusões 29ª a 35ª do douto recurso, invoca o recorrente que uma Certidão do Registo Predial, não faz prova em lado nenhum, por si só, relativamente a confrontações e áreas dos prédios constantes do registo predial, por não ser atribuível, nesse aspecto, à certidão, força probatória plena, pelo que muito menos fará prova uma simples fotocópia de uma certidão, como a referida no ponto 6º dos factos provados.
Assim, no entendimento do recorrente, uma simples cópia de uma certidão do registo predial, ainda que adulterada, apenas no respeitante às áreas, também não é um instrumento idóneo para enganar e, desta maneira, para cometer qualquer crime.
Mais alega que não é considerada um documento para efeitos jurídico-penais (art. 255º do C. Penal) a fotocópia simples (quer de documento autêntico, quer particular), cuja conformidade com o original não se encontre certificada ou atestada (não está provado que tal cópia tenha sido certificada ou atestada).
Vejamos:
Preceitua o art. 256º, nº1, alíneas b) e e), e nº3, do Código Penal (redação conferida pela Lei nº 59/2007, de 04.09):
“1 - Quem, com intenção de causar prejuízo a outra pessoa ou ao Estado, ou de obter para si ou para outra pessoa benefício ilegítimo, ou de preparar, facilitar, executar ou encobrir outro crime:
…
b) Falsificar ou alterar documento ou qualquer dos componentes que o integram;
…
e) Usar documento a que se referem as alíneas anteriores;
…
é punido com pena de prisão até três anos ou com pena de multa.
…
3 – Se os factos referidos no nº1 disserem respeito a documento autêntico ou com igual força, a testemunho cerrado, a vale do correio, a letra de câmbio, a cheque ou a outro documento comercial transmissível por endosso, ou a qualquer outro título de crédito não compreendido no artigo 267º, o agente é punido com pena de prisão de seis meses a cinco anos ou com pena de multa de 60 a 600 dias”.
O conceito de documento é fornecido pela al. a) do art. 255º do C.P. como sendo “a declaração corporizada em escrito, ou registada em disco, fita gravada ou qualquer outro meio técnico, inteligível para a generalidade das pessoas ou para um certo círculo de pessoas, que, permitindo reconhecer o emitente, é idónea para provar facto juridicamente relevante, quer tal destino lhe seja dado no momento da sua emissão quer posteriormente; e bem assim o sinal materialmente feito, dado ou posto numa coisa para provar facto juridicamente relevante e que permite reconhecer à generalidade das pessoas ou a um certo círculo de pessoas o seu destino e a prova que dele resulta”.
Desde logo, face a este concreto objeto do recurso, cumpre notar que, como alertam Figueiredo Dias/Costa Andrade, in “Direito Penal – Questões Fundamentais. A Doutrina do Crime”, 1996, p. 22, “a progressiva autonomização do direito penal relativamente aos restantes ramos do direito tem-se revelado prenhe de consequências, nomeadamente no que respeita à libertação dos conteúdos e das técnicas conceituais tanto em face do direito privado, como do direito público (…) [Compreende-se, assim, que] nenhum conceito extrapenal possa ser transposto para o direito penal, na parte incriminatória, sem antes ser determinado, através de cuidada hermenêutica, se ele corresponde por inteiro à intencionalidade e à teologia específicas do ilícito jurídico-penal”.
Assim, como sagazmente observa Helena Moniz, in “Comentário Conimbricense do Código Penal”, Parte Especial, Tomo II, p. 664, “(…) enquanto a noção de documento do direito civil [art. 362º do Código Civil] dá um relevo primordial à sua função como objeto de representação ou de reprodução, no direito penal o papel principal cabe ao documento como declaração. Por isso, documento no direito civil é o objeto que representa a declaração, e no direito penal é a declaração contida no documento”.
Destarte, a noção de documento em direito penal transporta-nos para a ideia de declaração de um facto juridicamente relevante (independentemente do suporte material em que está integrada).
A noção de documento integra não só o documento autêntico ou autenticado do direito civil, que têm força probatória plena, mas qualquer outro que incorpore uma declaração idónea a provar um facto juridicamente relevante (função probatória) e a reconhecer o respetivo emitente (função de garantia).
Por outro lado, a falsificação do documento através da fotocópia, utilizada esta como o meio técnico que permite a falsificação, isto é, quando o documento original é fotocopiado e se cria um documento de conteúdo distinto do que constava daquele, mantendo a fotocópia a aparência do original, consubstancia ainda uma falsificação material de documento para efeitos jurídico-penais, integrando, dessarte, o conceito de documento expresso no art. 255º do CP – assim, Helena Moniz, ob., cit., pp. 670 e 671, e Paulo Pinto de Albuquerque, in “Comentário do Código Penal”, anot. 11 do art. 255º, p. 670, e Victor de Sá Pereira e Alexandre Lafayette, ob. cit., anot. 10 ao art. 255º, pp. 713 e 714; na jurisprudência, entre outros, os acórdãos do Supremo Tribunal de Justiça de 20/12/2016, processo nº 06P3663, e do Tribunal da Relação de Évora de 22/01/2019, processo nº PBFAR.E1, ambos disponíveis em www.dgsi.pt.
No caso vertente, foi provado que o arguido elaborou uma cópia da certidão predial emitida pela Conservatória do Registo Predial ... relativa ao prédio urbano que seria objeto do pedido de licenciamento de operações urbanísticas apresentado na Câmara Municipal de ..., na qual, mantendo integralmente a aparência do documento original, alterou as inscrições concernentes às áreas do imóvel.
Ademais, as mencionadas asserções contidas na certidão predial relativas às áreas do imóvel, e que foram adulteradas pelo arguido, assumem relevo probatório (independentemente da sua eficácia probatória, plena ou relativa, ou, rectius, como abaixo melhor se explanará, do seu concreto ou casuístico alcance probatório) quanto a facto juridicamente relevante, o que notoriamente é revelado pela circunstância de o documento em apreço ter sido utilizado pelo recorrente para instruir, em nome da dona da obra, o processo de licenciamento apresentado junto da competente autoridade administrativa, precisamente como meio probatório, além do mais, das áreas do prédio, fator relevante para a apreciação sobre o mérito do pedido, tanto mais que, perante as reais áreas do imóvel, o requerimento teria de ser indeferido em conformidade com as normas regulamentares vigentes. Como, aliás, bem sabia o arguido, que, por isso mesmo, procedeu, conscientemente, à falsificação do conteúdo do documento original, na parte em que descrevia as áreas do prédio urbano em causa.
Note-se até que o recorrente não invoca que a instrução do processo administrativo em causa impusesse, para prova dos factos atinentes às áreas do imóvel, outros elementos probatórios.
Por conseguinte, contrariamente ao defendido pelo arguido, a fotocópia de certidão predialem questão integra, seguramente, o conceito de “documento” vertido no art. 255º, al. a), do CP para efeitos de preenchimento da tipicidade do crime de falsificação de documento, p. e p. pelo art. 256º, nº1, do mesmo diploma legal.
Vejamos agora se tal documento assume a natureza de documento autêntico ou equiparado para efeitos do preenchimento da circunstância qualificadora agravante do nº3 do art. 256º do CP.
Salvo o devido respeito pelo (defensável) entendimento do recorrente, cremos que o mesmo reflete uma sobreposição de conceitos que não permite destrinçar, como se impõe, a natureza do documento que foi falsificado da sua força probatória, isto é, do alcance probatório do seu conteúdo.
Como decorre do texto legal constante do nº3 do art. 256º do Código Penal, o legislador usou a palavra “documento” no sentido tradicional (ou civilístico) do termo. Ou seja, “documento”, para efeitos daquele normativo legal, já não é declaração corporizada em escrito, ou qualquer outro meio técnico, idónea a provar facto juridicamente relevante, mas o próprio escrito ou outro meio técnico onde essa declaração se mostre integrada.
Assim, o conceito de documento “autêntico ou com igual força” a que ali se alude terá de se sorver do direito civil.
Por conseguinte, “autênticos” são os documentos exarados, com as formalidades legais, pelas autoridades públicas nos limites da sua competência ou, dentro do círculo de atividade que lhe é atribuído, pelo notário ou outro oficial público provido de fé pública, sendo que todos os outros documentos são particulares – cf. art. 363º, nº2, do Código Civil (C.C.).
Quanto à sua força probatória, temos que os documentos autênticos fazem prova plena dos factos que referem como praticados pela autoridade ou oficial público respetivo, assim como dos factos que neles são atestados com base nas perceções da entidade documentadora; os meros juízos pessoais do documentador só valem como elementos sujeitos à livre apreciação do julgador – cf. art. 371º, nº1, do C.C.
Os documentos autenticados são os documentos particulares a que foram dadas determinadas características de reforço probatório, isto é, os documentos que não foram exarados por autoridade ou oficial público competente, mas antes por qualquer pessoa, e a que, ulteriormente, foi aposta a chancela dessa autoridade através de um ato que lhes conferiu igual força de prova (art. 377º do C.C.).
A agravação da moldura penal justifica-se pela maior segurança e credibilidade que os documentos autênticos ou autenticados – a par de outros que o tipo qualificado prevê - merecem no tráfico jurídico, donde, a sua falsificação ou contrafação afetar de modo mais incisivo, grave, o bem jurídico.
Posto isto, entendemos que o documento que o arguido falsificou – nos termos que foram dados como provados –, ou seja, uma certidão predial, constitui um documento autêntico. Na verdade, trata-se de documento emitido por oficial público dotado de fé pública, com competência para o efeito e dotado das formalidades legais (nada vem alegado em contrário).
Nos termos do art. 1º [com a retificação 5-A/200, de 29.02] do Código de Registo Predial – DL 224/84, de 06.07 –, “[O] registo predial destina-se essencialmente a dar publicidade à situação jurídica dos prédios”. E, de acordo com o disposto nos nº 1 do art. 110º deste diploma legal (na redação conferida pelo DL 209/2012, de 19.09), o registo predial prova-se por meio de certidão - ou seja, uma certidão de registo predial é daqueles documentos que assumem relevo probatório ab initio, isto é, desde a sua criação, justificando-a (denominados «documentos intencionais»).
Outrossim, dispõe o art. 43º, nº1, do mesmo Código (redação dada pelo DL 125/2013, de 30/08), que “só podem ser registados os factos constantes de documentos que os comprovem”. In casu, tal certidão predial faz prova plena da data em que foi requisitada e de que as descrições e inscrições que constam do documento são os que constam do Registo Predial ... (9).
E tanto é quanto basta para aquela certidão predial, que foi falsificada pelo recorrente – por intermédio de uma cópia com adulteração das áreas do imóvel descrito na conservatória de registo predial –, consubstanciar um documento autêntico para efeitos do disposto no art. 256º, nº3, do CP.
Objeta o recorrente que tal certidão, e por maioria de razão, a fotocópia apresentada na edilidade para instruir processo de licenciamento de obras, não faz prova plena quanto às áreas reais ou confrontações do prédio inscrito no registo. Acrescenta que uma simples cópia de uma certidão do registo predial, ainda que adulterada, apenas no respeitante às áreas, nenhuma prova faz, e, assim, não é um instrumento idóneo para enganar, logo, para cometer o imputado crime.
Sucede que, em nossa opinião, não é o concreto uso que o arguido fez do documento que falsificou que condiciona ou determina, consoante a eficácia probatória que se lhe queira conceder, o tipo do documento falsificado, que se mantém autêntico.
Constituindo a certidão predial original que foi adulterada pelo arguido um documento autêntico – nos sobreditos termos –, mostra-se consumado o crime de falsificação e na sua forma agravada. Com efeito, frisa-se, o legislador pune desde logo essa conduta potencialmente violadora do bem jurídico, ou seja, a fé pública e a reforçada segurança e credibilidade que merecem no tráfico jurídico-probatório este tipo de documentos, não exigindo para a consumação que o documento falsificado, no caso autêntico, circule efetivamente, isto é, que seja na prática utilizado como meio probatório.
Por conseguinte, a concreta força probatória da fotocópia do documento original, resultando o “novo” documento da adulteração deste, não releva para efeitos de enquadramento da conduta no tipo legal do crime de falsificação, nomeadamente, na sua forma agravada, pois o que determina essa integração é a natureza do documento que se falsificou.
Ademais, o recorrente não alega que a cópia de certidão predial que usou para instruir o processo de licenciamento de obras de edificação não fosse idónea para esse efeito (10); pelo contrário, resulta dos documentos de fls. 156 e 157 dos autos (cópias certificadas extraídas do procedimento administrativo), que foram entregues todos os elementos necessários, encontrando-se o processo completo e pronto para análise. Logo, não há dúvida de que a autoridade administrativa competente para apreciar o pedido formulado tomou como suficiente a fotocópia de certidão predial apresentada pela requerente. Não se verifica, pois, a invocada falta de idoneidade da dita fotocópia para servir como meio probatório, designadamente das áreas do prédio urbano objeto do pedido de licenciamento, e para “enganar” alguém.
Em suma, não colhe igualmente este argumento invocado pelo recorrente no seu douto recurso e, em conformidade, improcede o mesmo in totum.
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IV - DISPOSITIVO:
Pelo exposto, acordam os Juízes da Secção Criminal deste Tribunal da Relação de Guimarães emjulgar não verificada a alegada nulidade da sentença por omissão de pronúncia (prevista no art. 379º, nº1, al. c), do CPP), bem como improcedentes os demais fundamentos do douto recurso interposto pelo arguido J. C. e, em conformidade, confirmar integralmente a douta sentença recorrida.
Custas pelo arguido/recorrente, fixando-se a taxa de justiça em 4 UC (arts. 513º, nº1 e 514º, ambos do CPP, arts. 1º, 2º, 3º, 8º, nº 9, todos do Regulamento das Custas Processuais, e Tabela III anexa ao mesmo).
*
Guimarães, 22 de junho de 2020,
Paulo Correia Serafim (relator)
Nazaré Saraiva
(Acórdão elaborado pelo relator, e por ele integralmente revisto, com recurso a meios informáticos – cfr. art. 94º, nº 2, do CPP)
1. Cfr., neste sentido, Paulo Pinto de Albuquerque, in “Comentário do Código de Processo Penal”, 2ª Edição, UCE, 2008, anot. 3 ao art. 402º, págs. 1030 e 1031; M. Simas Santos/M. Leal Henriques, in “Código de Processo Penal Anotado”, II Volume, 2ª Edição, Editora Reis dos Livros, 2004, p. 696; Germano Marques da Silva, in “Direito Processual Penal Português - Do Procedimento (Marcha do Processo)”, Vol. 3, Universidade Católica Editora, 2015, pág. 334 e seguintes; o Acórdão de Fixação de Jurisprudência do S.T.J. nº 7/95 de 19/10/1995, publicado no DR, Série I-A, de 28/12/1995, em interpretação que ainda hoje mantém atualidade. 2. Neste sentido, vejam-se, entre outros, os Acórdãos do STJ de 13/10/1992, in CJ, Ano XVII, 1992, tomo I, p.36, de 21/03/2007, processo nº 07P024, disponível em www.dgsi.pt, de 23/04/2008, in CJSTJ, tomo II, p. 205, e de 08/012014, processo nº 7/10.0TELSB.L1.S1, disponível em www.dgsi.pt. 3. Ob. cit., p. 265. 4. “Gestão Processual: Tópicos Para Um Incremento da Qualidade da Decisão Judicial”, in Revista Julgar, nº10, 2010, págs. 142 e 143. 5. Em todas as formas: tentativa inacabada, tentativa acabada, desistência da consumação material e desistência em caso de comparticipação. 6. In “Direito Penal”, Parte Geral (Questões Fundamentais; A Doutrina Geral do Crime), Tomo I, 2ª Edição, p. 747. 7. A douta sentença recorrida apresenta imprecisão no que concerne à qualificação jurídica dos factos, com a integração da conduta perpetrada pelo arguido simultaneamente nas als. b) e e) do nº1 do art. 256º do CP, quando é certo que a autonomização do uso do documento falso só se justifica quando o agente não foi ele próprio o falsificador, como sucede no caso – neste sentido, que cremos pacífico na Doutrina, vide Helena Moniz, ob. cit., p. 684, Paulo Pinto de Albuquerque, “Cometário do Código Penal”, anot. 12 ao art. 256º, p. 673, e Victor de Sá Pereira/Alexandre Lafayette, ob. cit., anot. 15 ao art. 256º, p. 720. Estamos perante um concurso aparente de normas, em que a punição do facto posterior já se encontra comtemplada na da falsificação, decorrendo consumida. A integração do crime imputado ao arguido devia se ter cingido ao disposto na al. b) do nº1 do art. 256º, funcionando o uso efetuado pelo arguido como circunstância agravante geral. 8. Provou-se ainda a factualidade integradora dos elementos subjetivos do crime de falsificação de documento – matéria a que, de modo mais escalpelizado, voltaremos infra –, bem como a atinente à consciência da ilicitude. 9. No que tange ao proprietário inscrito vigora o disposto no art. 7º do Código de Registo Predial, onde se prescreve: “[O] registo definitivo constitui presunção de que o direito existe e pertence ao titular inscrito, nos precisos termos em que o registo o define”. 10. Até seria ilógico que o arguido se desse ao minucioso e arriscado trabalho de proceder à falsificação material da certidão predial caso soubesse, por ser notório, que a fotocópia daí resultante não produziria qualquer efeito probatório.