ESCOAMENTO DE ÁGUAS
ESCOAMENTO MATERIAL
SERVIDÃO DE ESCOAMENTO
Sumário


I- O encargo de escoamento natural das águas estabelecido no artº. 1351º, n.º 1 do Código Civil circunscreve-se ao escoamento de águas de prédio superior para prédio inferior que procedam de corrente natural e sem obra do homem, assim como da terra e entulhos por elas arrastados, não abrangendo os casos em que tais águas sejam encaminhadas ou desviadas por intervenção ou obra humana.
II- Em consequência da regra estabelecida no artº. 1351º, nº. 1 do Código Civil, não é permitida qualquer modificação na escorrência natural das águas, não podendo o dono do prédio inferior fazer obras capazes de perturbar o escoamento natural, nem o dono do prédio superior fazer obras que o agravem, ressalvando-se os casos de constituição de servidão legal de escoamento nos termos previstos no artº. 1563º do Código Civil.
III- Diferente do encargo estipulado no referido artº. 1351º, que constitui uma restrição ao direito de propriedade sobre imóveis, que decorre directamente da lei, é a servidão de escoamento prevista no artº. 1563º do Código Civil, a qual pressupõe a realização de obras que desviem o curso natural das águas ou que provoquem a derivação de águas que tenderiam a ficar estagnadas no prédio dominante.
IV- Tratando-se de escoamento de águas que tenham sido, de algum modo, desviadas do seu curso natural ou condicionadas por meio de obra humana, o direito a tal escoamento só poderá ser licitamente fundado em constituição de servidão predial nos termos gerais do artº. 1547º, n.º 1 do Código Civil (por contrato, testamento, usucapião ou destinação do pai de família) ou em servidão legal de escoamento mediante indemnização, conforme previsto no artº. 1563º, n.º 1, al. a) e b) do mesmo Código.
V- A servidão de escoamento, que visa solucionar o problema das águas sobejas no prédio dominante - quer estas provenham duma corrente ou das chuvas, quer tenham brotado do solo por obra do homem, quer sejam conduzidas doutro prédio - também pode constituir-se por usucapião.

Texto Integral


Acordam na Secção Cível do Tribunal da Relação de Guimarães

I. RELATÓRIO

M. T. e marido A. C. intentaram a presente acção declarativa de condenação, contra I. F. e marido C. F., pedindo que sejam os RR. condenados,

A reconhecer que:

a) Os AA. são donos e legítimos possuidores dos prédios identificados nos artºs 1º a 4º da petição inicial;
b) No prédio misto dos AA. existe um tanque com água proveniente de uma mina, onde desaguam igualmente as águas pluviais dos terrenos confrontantes;
c) Entre o prédio dos AA., na sua extrema poente e os prédios dos RR., na sua extrema nascente, existe um muro, propriedade dos AA., com várias aberturas, mais de 10, a nível do solo, onde todas as águas sobrantes do prédio dos AA. vão desaguar, conduzidas através de um rego;
d) O prédio dos RR. está onerado com uma servidão de passagem/escoamento de água a favor do prédio dos AA., estando aqueles obrigados a receber as águas que decorrem do prédio dos Autores;

E ainda:

e) A desobstruir todas as aberturas existentes no muro, construídas para o efeito de passagem das águas, fixando-lhes para o efeito o prazo de 10 dias;
f) A abster-se de praticar quaisquer actos que, por qualquer forma, impeçam a passagem das referidas águas para o seu terreno;
g) A suportar a reconstrução do muro existente e a não criar qualquer forma de impedimento para a sua completa e integral execução;
h) no pagamento de sanção pecuniária compulsória, no montante mínimo de € 1.500,00, por cada infracção que venham a cometer, relativamente aos direitos dos AA. referidos nas alíneas anteriores, quer pela prática de novos actos como os acima descritos, quer de outros da mesma natureza, ou que conduzam ao mesmo resultado, e ainda em sanção pecuniária compulsória de € 100,00 por cada dia de atraso na desobstrução integral das aberturas no muro;
i) A indemnizar os AA. por todos os prejuízos que lhes causaram ou vierem a causar com os actos impeditivos de passagem das águas, e cuja liquidação se relega para execução de sentença, por no momento da interposição da presente acção, não serem quantificáveis.
Para fundamentar a sua pretensão, os AA. alegam, em síntese, que por escritura celebrada em 20 de Junho de 1968, a A. mulher recebeu, por doação de F. M. e M. M., um prédio misto identificado nos artºs 1º a 4º da petição inicial, encontrando-se tal aquisição registada a favor dos Autores.
Além da aquisição derivada, alegam, também, factos inerentes à aquisição originária (por usucapião), por parte dos AA., do direito de propriedade sobre o aludido prédio misto.
Referem, ainda, que a Ré mulher recebeu por doação de seus pais, J. M. e M. G., um prédio urbano e um rústico identificados no artº. 8º da petição inicial, que são contíguos entre si e confrontam na parte poente com o prédio misto dos AA., existindo sobre os mesmos, desde tempos imemoriais, uma servidão de passagem/escoamento de águas pluviais e sobrantes constituída por destinação de pai de família e igualmente por usucapião, porquanto o prédio misto dos AA. situa-se numa zona em declive de nascente para poente, sendo a parte poente, onde confronta com os RR., a mais baixa.
Na extrema nascente do prédio do AA. desagua uma água de mina num tanque, que os AA. utilizam para consumo, sendo igualmente nesse tanque que maioritariamente desaguam todas as águas sobrantes que os terrenos vizinhos, situados num nível superior, não conseguem absorver.
Atenta a grande existência e passagem de águas, não consegue o referido tanque retê-las, pelo que estas águas continuam a correr através do campo de lavradio dos AA., em declive, em direcção aos prédios dos Réus.
Acrescentam que há cerca de 45 anos, os AA. procederam à construção de um muro delimitador entre a sua propriedade e a propriedade dos RR., o qual, atento o declive existente entre os dois terrenos e encontrando-se o terreno dos RR. numa quota inferior de cerca de um metro, é igualmente de suporte de terras do prédio rústico dos Autores.
O referido muro foi construído com várias aberturas de cerca de 10 cm2 (mais de 10), ao nível do solo da propriedade dos AA., de modo a que as águas sobrantes fossem conduzidas através dessas aberturas, tendo esta construção sido efectuada sem oposição de quem quer que seja, com tolerância e consentimento dos então proprietários do prédio dos Réus.
Desde sempre foram as águas pluviais e sobrantes do prédio dos AA. conduzidas ao longo de um rego que atravessa aquele prédio na sua extrema sul, o qual é limpo todos os anos pelos AA., sendo que tais águas têm corrido naturalmente através da sua inclinação até ao prédio dos RR., que sempre aceitaram este corrimento e a tal não se opuseram.
Há mais de 60 anos que os AA. e seus antepossuidores sempre deixaram as águas correr através do seu prédio, pelo referido rego, no sentido nascente-poente, até ao prédio dos RR., as quais atravessavam o muro delimitador dos prédios através das aberturas para o efeito criadas, o que sucedia ostensiva e ininterruptamente à vista de toda a gente, sem a oposição de quem quer que seja, designadamente dos RR., em tudo se comportando como proprietários de um prédio dominante.
Mais alegam que há cerca de um ano, têm os RR. criado obstáculo ao escoamento natural das águas pluviais e sobrantes provenientes do prédio dos AA., uma vez que obstruíram os orifícios de passagem da água existentes no muro construído pelos AA. na zona de fronteira entre as duas propriedades.
Quando ocorrem grandes precipitações, são os terrenos incapazes de absorver grande quantidade de água e ao serem impedidas de correr livremente, as águas acumulam-se na extrema poente do prédio dos AA., criando graves riscos de desmoronamento do muro delimitador e encharcando todo o terreno, alterando assim a sua composição e afectação para a agricultura, sendo necessário ainda proceder ao restauro e reforço do aludido muro delimitador, cabendo aos RR. suportar tal reconstrução.

Os RR. apresentaram contestação, onde se defendem por impugnação, invocando, em suma, que o tanque existente no prédio dos AA. apenas recebe água de uma nascente que ali cai, sendo utilizada pelos AA. para consumo e para rega do terreno contíguo.
Reconhecem a existência de um muro delimitador entre o prédio dos AA. e o dos RR. e de pequenas aberturas nesse muro, em número de 7, com largura 1,5 cm e altura de 6 cm, pelas quais escoam as águas das chuvas e que caem no prédio dos AA., mas só estas podem e devem cair.
Mais alegam que o rego para condução das águas que caem no tanque existente no prédio dos AA., foi construído por estes há não mais de dez anos, pelo que sendo tal rego obra do homem, não estão os RR. obrigados a receber no seu prédio as águas que pelo mesmo são conduzidas.
Os RR. nunca se opuseram a que as águas da chuva que caem no prédio dos AA. escoem naturalmente para o seu prédio (deles RR.), tendo tapado duas das aberturas no muro, que ficam mais a sul do seu prédio (todas as outras ficaram e estão abertas), mas somente após os AA. conduzirem a água do tanque, que abriram e esvaziavam, pelo rego e para essas aberturas, assim inundando o terreno dos RR. e destruindo o aí plantado.
Defendem-se, ainda, por excepção, alegando que o terreno dos RR. junto às aberturas do muro fica em plano mais inclinado e todas as águas caem para uma caixa sita a norte, tendo esta caixa sido construída por acordo entre AA. e RR. e para receber todas as águas advindas do prédio daqueles.
Acrescentam que as águas advindas do prédio dos AA. correm ao longo do muro e vão cair na referida caixa para o efeito construída.
Mais rejeitam que os AA. tenham adquirido o direito de servidão de escoamento dessas águas, quer por destinação de pai de família, quer por usucapião.
Concluem, pugnando pela improcedência da acção.

Em 27/11/2017 foi proferido despacho a convidar os AA. a esclarecerem qual o prédio dos RR. para onde as águas provenientes do seu prédio são orientadas, a descreverem factualmente o referido prédio dos RR. para onde as águas são encaminhadas, de forma a apurar-se se o mesmo reveste natureza rústica ou urbana, segundo o critério previsto no artº. 204º, nº. 2 do Código Civil, e a informarem se o prédio para onde as águas são encaminhadas constitui quintal, jardim ou terreiro contíguo a casa de habitação (cfr. fls. 40), tendo os AA. prestado tais esclarecimentos por requerimento junto a fls. 41 a 42vº.

Dispensada a audiência prévia, foi proferido despacho saneador, no qual se fixou o valor da causa e se procedeu ao saneamento da acção, verificando-se a validade e regularidade da instância.

Na sequência do falecimento do A. A. C., por sentença proferida em 3/05/2018, foram julgados habilitados para prosseguir a acção, na sua posição processual, os seus sucessores M. T., M. I., A. T. e C. C..

Realizou-se a audiência de discussão e julgamento com observância do legal formalismo.
Após, foi proferida sentença que julgou a presente acção parcialmente procedente e, em consequência, declarou e condenou os RR. a reconhecer que os AA. são proprietários do prédio descrito sob os nºs 1 a 4 dos “factos provados”, absolvendo aqueles dos restantes pedidos contra eles formulados.

Inconformados com tal decisão, os AA. dela interpuseram recurso, extraindo das respectivas alegações as seguintes conclusões (após convite ao aperfeiçoamento) que passamos a transcrever:

1. Por via do presente recurso, e tendo em conta os meios probatórios citados no corpo das alegações, pretendem os Apelantes a ALTERAÇÃO DA MATÉRIA DE FACTO da sentença em mérito, nos seguintes termos:

A)
2. Em virtude de decorrerem de confissão efectuada nos articulados, alegados na contestação dos RR., deverão ser ACRESCENTADOS à matéria de facto dada como provada os seguintes factos:

- “Pelas aberturas referidas em 20 dos factos provados escoam as águas das chuvas e que caem no prédio dos A.A.”
- “Existe um rego no prédio dos A.A. na sua extrema sul.”
- “Nunca os R.R. se opuseram a que as águas das chuvas que caem no prédio dos A.A. escoam naturalmente para o seu prédio (deles R.R.)”
- “O terreno dos R.R. junto às aberturas do muro fica em plano mais inclinado e todas as águas caem para uma caixa sita a norte.
- “Esta caixa foi construída por acordo entre A.A. e R.R. e para receber todas as águas advindas do prédio daqueles.”
3. Com efeito, tais factos decorrem da confissão constante da contestação deduzida pelos RR., a saber:
- Na sequência do reconhecimento da existência do muro e das aberturas existentes no mesmo (artigo 21º da douta contestação), mantendo-se obviamente a descrição constante do n.º 20 dos factos provados, pois resultante de inspeção ao local);
- Artigo 22º – (Aberturas) pelas quais escoam as águas das chuvas e que caem no prédio dos A.A.;
- Acrescentado no artigo 23º e na sequência do reconhecimento que existem águas que devem passar pelas tais aberturas – Mas só estas podem e devem cair (que é matéria que está em discussão);
- Artigo 28º – o rego foi construído pelos A.A. há não mais de 10 anos.
Daqui resulta a confissão da existência de rego identificado com pelo menos 10 anos de existência, sendo somente a sua anterioridade matéria controvertida, já que os A.A. afirmam que o rego existe há mais de 5,10,15,20,30,40,50,60 anos.
- Artigo 31º: Nunca os R.R. se opuseram a que as águas das chuvas que caem no prédio dos A.A. escoam naturalmente para o seu prédio (deles R.R:))
B
4. Por outro lado, deverão ser considerados como PROVADOS e aditados à matéria os factos que constituem os pontos 1, 2, 3, 4, 5, 6, 7, 8, 9, 10, 11, 12 dos “Factos não provados”:
Ponto 1
“Os então proprietários do prédio dos R.R. deram aos AA. a sua concordância expressa quanto à construção do muro acima referido.
Ponto 2
“Desde sempre as águas sobrantes do tanque e as águas pluviais que caiam no prédio dos AA. foram conduzidas ao longo de um rego que atravessa o prédio dos AA. na sua extrema sul”
Ponto 3
“Todos os anos os AA. limpam o referido rego.”
Ponto 4
“Desde sempre as águas correm através desse rego, no sentido “Nascente-poente”; até ao nível mais baixo, até desaguarem a poente junto ao referido muro.”
Ponto 5
“Os RR. sempre aceitaram este corrimento e a tal não se opuseram.”
Ponto 6
“Há mais de 60 anos que os AA. e seus antepossuidores sempre deixaram as águas correr através do seu prédio, através do referido rego, no sentido “Nascente-poente”, até ao prédio dos RR..”
Ponto 7
Tais águas atravessavam o muro delimitador dos prédios através das aberturas ali existentes.”
Ponto 8
“Tal sucedia à vista de toda a gente, sem a oposição de quem quer que seja, designadamente, dos RR., agindo os AA. na convicção de serem titulares do direito de o fazerem.”
Ponto 9
“A força da referida água é susceptível de provocar o desmoronamento do referido muro caso não se escoe pelas aberturas nele existentes.”
Ponto 10
“Os RR. encostaram às referida aberturas esteios e pedras fixadas ao solo.”
Ponto 11
“Nas épocas pluviais existe um fluxo constante de água, com grande caudal, que percorre os terrenos de AA. e RR..”
Ponto 12
Quando ocorre precipitação acentuada, o terreno do prédio dos AA. não é capaz de absorver a água. “
Ponto 13
“Nessas ocasiões, as águas acumulam-se na extrema poente do prédio dos AA., atenta a obstrução das aberturas do muro.”

5. Esta decisão impõe-se ainda tendo em conta os seguintes meios probatórios:

- Depoimento da testemunha F. C. (Ficheiro 152152, nos seguintes minutos da gravação: 02:04, 04:05, 06:00; 08:11; 10:02; 12:00, 14:02, 16:05, 18:03, 20:00, 22:03, 24:03, 26:02, 34:18, 36:02, 40:08, 42:01, 44:07, 48:00, 50:09, 54:17 e 56:00);
- Depoimento da testemunha J. O. (Ficheiro 161850, nos seguintes minutos da gravação: 02:04, 04:07, 06:08; 08:06; 10:00 e 20:04);
- Depoimento da testemunha J. C. (Ficheiro 164425, nos seguintes minutos da gravação: 00:00, 2:09, 04:00, 06:14; 10:00);
- Depoimento da testemunha E. P. (Ficheiro 144625, nos seguintes minutos da gravação: 2:00, 04:00, 06:00; 08:21; 10:00, 12:00, 18:00, 22:00 e 24:02);
- Depoimento de José (Ficheiro 151547, nos seguintes minutos da gravação: 00:00, 04:00, 06:02; 08:09; 10:00, 14:00 e 22:00);
- Depoimento de D. C. (Ficheiro 164425, nos seguintes minutos da gravação: 08:00 e 10:06);
- dos documentos juntos aos autos, nomeadamente os registos fotográficos de fls….
- da própria assunção dos factos nos articulados apresentados pelas partes;
- da inspeção judicial ao local em causa nos presentes autos, a fls…
- das regras de experiência
6. Da concatenação dos dados como provados na sentença, com aqueles que se deverão dar como assentes face à confissão efectuada na contestação, conforme referido, é possível desde logo concluir que:
- Os A.A. são donos de um prédio rústico, que se situa numa zona em declive, sendo a parte que confronta com os R.R. a parte mais baixa, sendo ainda toda a área circundante do prédio dos A.A. em declive de nascente para poente.
- Existe uma poça, que tem à frente pedras habituais de um tanque, daí que sempre tenha sido referida ao longo do julgamento como poça ou tanque.
- Nessa poça/tanque desaguam águas vindas de prédios vizinhos, ditas águas pluviais, enxurros, e obviamente daqueles que se situam numa cota superior.
- Em períodos de muita pluviosidade as águas que aí se acumulam abandonam essa poça/ tanque através de uma abertura existente e isto obviamente por a poça/tanque já não as conseguir conter.
- Estas águas, que a poça/tanque já não consegue conter, seguem da forma descrita nos factos provados de 13 a 17.
- Exatamente por esse facto e reconhecendo-se a existência dessas águas é que foi há cerca de 45 anos construído pelos A.A. um muro nos moldes dados como provado, no limite do prédio dos A.A., mas diga-se totalmente dentro da propriedade dos A.A., tanto mais que nunca os R.R. se arrogaram donos desse muro, sempre o reconheceram como propriedade dos A.A.
- O muro foi construído com 16 aberturas, situadas ao nível do solo, com as dimensões descritas, com vista a permitir o escoamento de águas pelas mesmas.
- Os então proprietários não se opuseram à construção desse muro, nos moldes descritos e com as aberturas para escoamento de águas.
- Os proprietários do prédio contíguo viram o muro a ser feito, aperceberam-se do mesmo, tanto mais que se trata de um obra de caracter permanente, que é imediatamente percetível atenta a sua envergadura, não só a tolerarem como consentiram nesta execução, nunca reagiram contra a mesma e isto durante mais de 45 anos e ainda hoje em dia admitem a sua existência nos moldes construídos, somente não pretendendo que a água que a poça não consegue conter em dias de maior pluviosidade e é conduzida no rego existente, atravesse esse mesmo muro.
- Contudo admitem e aceitam a sua existência para as águas pluviais que escorrem do terreno do prédio rústico dos A.A..
- Os próprios R.R. confessam que pelas aberturas no muro escoam as águas das chuvas e que caem no prédio dos A.A. – artigo 22 da douta contestação.
- Decorrentemente são os próprios R.R. que admitem livremente que existe passagem de águas, das chuvas pelas aberturas existentes no muro, que é propriedade dos A.A..
- Ora se a água por esses buracos passa, é porque existe água que o terreno dos A.A. não consegue absorver e que corre em declive em direcção a poente, em direcção ao muro e em direçcão da propriedade dos R.R.
- Contudo em data não concretamente apurada, procederam os R.R. à obstrução total de 11 aberturas, à obstrução parcial de uma, deixando quatro desobstruídas.
- Os próprios R.R. reconhecem a existência do rego mencionado pelos A.A. – artigo 28 da douta contestação (“o rego foi construído pelos A.A. há não mais de dez anos”), alegando ainda para tanto que esta construção se destinava para condução das águas do tanque.
- Mais, reconhecendo a existência deste rego, concluem os R.R. no seu artigo 30º da douta contestação que tal rego é obra do homem e em consequência não estão os RR obrigados a receber no seu prédio as águas que pelo mesmo são conduzidas.
- Mais afirmando ainda que nunca se opuseram a que as águas da chuva que caem no prédio dos AA. escoam naturalmente para o seu – artº 31 da douta contestação.
- Tal implica desde logo a admissão da existência de água e que esta naturalmente tem que correr para o seu prédio.
- Os R.R. reconhecem ainda que o seu terreno junto as aberturas fica em plano mais inclinado e todas as águas caem para uma caixa sita a norte – artigo 38 da douta contestação, acrescentando ainda que essa caixa foi construída por acordo entre AA e RR e para receber todas as águas advindas do prédio daqueles. (artigo 39 da douta contestação) e ainda que as águas advindas do prédio dos A.A. correm ao longo do muro e vão cair na referida caixa para o efeito construída (artº 41º da douta contestação).
- Atendendo a todos estes factos óbvio se torna que os A.A. viram o seu direito de propriedade violado: o muro é sua pertença e ninguém tem o direito de injustificadamente de proceder a qualquer alteração no mesmo.
- E diga-se injustificadamente pois os R.R. também não lograram provar qualquer atuação abusiva por parte dos A.A. ou qualquer dano no seu prédio provocado pelas águas que está obrigada o receber, nomeadamente o alegado nos artigos 34 e 35 da douta contestação, por inexistente.
7. Ou seja atenta a ausência total de prova de qualquer dano por parte dos R.R., os próprios actos que adotaram para o recebimento dessas águas – construção de uma caixa para receber todas as águas advindas do prédio daqueles (sic) -, não permitem, nem justificam o recurso à acção directa, e todos os atos anteriormente aceites torna ilícita a tapagem dos buracos efectuada, tendo atuado ainda sob abuso de direito.
8. Acresce que o direito de tapagem, decorrente do disposto no artigo 1356º do C.C. somente confere ao proprietário o direito de murar, valar, rodear de sebes o seu prédio ou tapá-lo de qualquer forma, não conferindo o direito de tapar o que é dos outros.
9. O direito que advém do disposto no artigo 1346º do CC. tem como pressuposto factos que importem um prejuízo substancial para o uso do imóvel ou não resultem da utilização normal do prédio de que emanam, nada tendo ficado demonstrado a este título, pelo que e sempre salvo melhor opinião, não são estes direitos aqui invocáveis ou aplicáveis.
10. Os recorrentes nada podem fazer para conter as águas pluviais e enxurros que vêm desaguar no seu prédio e decorrentes dos prédios vizinhos, sendo obrigados a recebê-las.
11. AA e R.R. já tinham de comum acordo criado todas as formas para menorizar os impactos destes escorrimentos: aberturas no muro para a água passar pelo mesmo, sem ficar retida, potenciado a destruição do muro, com criação de um rego dentro do prédio dos R.R: junto ao muro para conduzir estas águas para a caixa aí construída na extrema norte deste, ligada a outra caixa com ligação à estrada.
12. Não se pode aceitar que apenas se considere assente que os então proprietários dos prédios dos R.R. somente não se opuseram à construção de tal muro.
13. Embora na verdade nenhuma prova tenha resultado que tenha existido um concordância expressa, certo é foi referido pela testemunha F. C. que as pedras que foram necessárias para fazer o muro, vieram através da propriedade dos R.R., desde lá de baixo da Rua, com a qual confronta a propriedade destes que era a única entrada para o campo dos AA., que esse caminho de acesso terminava à entrada desse campo.
14. Relativamente ao ponto n.º 10 – Os R.R. encostaram às referidas aberturas esteios e pedras fixadas ao solo, resulta este facto desde logo comprovado pela fotografia n.º 19 junta à petição, fotografias que aliás não foram impugnadas.
15. Da análise desta imagem é perfeitamente visível que encontravam-se e ainda hoje em dia se encontram esteios e pedras encostados às aberturas, fixadas ao solo, actuação que também nunca foi negada pelos R.R..
16. Pelo que deve este facto passar a constar também dos factos dados como provados.
17. Pela análise deste depoimento, que mereceu credibilidade ao tribunal, conclui-se que os pontos supra referidos devem ser dados como provados e isto em conjugação com os factos a aditar, resultantes da confissão dos R.R..
18. Resulta claramente que o rego que os R.R. afirmaram ter sido construído há não mais de 10 anos, na verdade existe há mais de 45 anos.
19. As testemunhas confirmam a existência e localização do rego e das águas que por aí seguem, que só aí circulam em tempo de chuvas e são por elas denominadas enxurros dos prédios vizinhos e isto pelo menos há 15 e 45 anos, bem como que os A. A. procedem todos os anos à limpeza do rego.
20. Por todos foi afirmado que a água que viam, surge somente em tempos de chuvas e que somente nessa altura a poça transborda, por não as conter, sendo ceto que não tem origem na água da mina.
21. Do depoimento destas testemunhas resulta explicado como as águas, que transbordavam da poça, por a mesma não as conseguir conter, em tempos de grandes precipitações, corriam antigamente – através do rego em causa nos presentes autos, encostado ao lado esquerdo do prédio rústico dos A.A., ao longo de todo o campo, entrando então pelo prédio rústico dos R.R., seguindo em linha recta através da propriedade destes, saindo depois pelo portão destes para a Rua ..., com o qual confronta.
22. Do relato de que estas águas e areias eram potenciadoras de acidentes, resulta a razão pela qual os R. R. claramente confessam que por acordo entre eles e os A.A. foi construída uma caixa de águas no terreno dos R.R., por volta 1998, para então as águas serem conduzidas até ao muro, passarem pelos buracos do mesmo e em rego dentro do prédios dos R.R. serem então conduzidas para a caixa de água.
23. Isto tudo obviamente por reconhecerem a sua obrigação de recebimento das águas, pretendendo os R.R. desviarem o seu curso dentro da sua propriedade, pedindo então ao filho dos A.A. F. se poderiam construir essa caixa de água e ligá-la a outra caixa de água que se situava dentro da propriedade do tal F., que já tinha ligação para a estrada.
24. É evidente que os R.R. não se limitaram a tolerar a existência dos furos e a passagem das águas.
25. Pediram aos A.A., nomeadamente expressamente ao filho F., para ligar a caixa de águas, que receberiam as águas dos prédios de nível superior, nomeadamente do prédio dos A.A., à caixa daquele, o que o mesmo consentiu.
26. Os factos trazidos aos autos pelos A.A. correspondem à verdade, devendo a matéria não dada como provada ser, na parte impugnada, julgada provada.
27. Certo é que existe água que transborda da poça e que os A.A. não podem conter nem impedir que a mesma corra pelo campo abaixo e vá ter à propriedade dos R.R..
28. Foi exatamente por saberem que eram obrigados a receber as águas dos prédios superiores, por estas águas sempre terem escorrido desta forma, há mais de 60 anos, tanto aquelas que o próprio tereno não consegue absorver, bem como aquela que era provinda da poça, sito no terreno dos A.A. e para onde escorrem igualmente as águas pluviais e enxurros dos prédios vizinhos.
29. Assim da mesma maneira que os A.A. são obrigados a recebê-las, também constitui obrigação dos R.R. recebê-las.
30. Caso ocorra forte precipitação ficará o prédio rústico dos A.A. incapaz de absorver estas águas e estas correrão naturalmente para o prédio dos R.R.
31. Se existirem obstáculos este curso, ocorrerá o alagamento do terreno dos AA e a mais que previsível queda do muro.
32. A razão pela qual a água do rego, existente há mais de 45 anos não continuar em linha recta, foi por os R.R. terem construído nessa local (no seguimento do anterior portão) uma pequena corte para uma vaca e terem pedido aos A.A. para desviarem o rego um bocado para a direita em direção aos muros.
33. Tal aconteceu igualmente por os R.R. não pretenderem que a agua continuasse a correr através do seu prédio em direcção à Rua de ..., por os detritos e fluxo serem potenciadores de acidentes, conforme referido pela testemunha E. P..
34. Daí os R.R. confessarem que foi construída uma caixa para receber todas as águas advindas do prédio dos A.A. e isto por acordo entre as partes.
35. Acresce que se ultimamente as águas que escorrem são de montante reduzido, porque taparam os R.R. esses buracos?
36. Se não há água, então também não havia necessidade de obstruir completamente 11 buracos.
37. O rego surge perfeitamente retratado nas fotografias juntas à p.i., onde inclusive se verifica a passagem de água.
38. Se é certo que não é um rego fundo, certo é que é um rego.
39. Com a alteração da matéria de facto que se impõe e se requer, resulta desde logo que os A.A exerceram a posse correspondente ao direito em causa e mantiveram-na por período superior a 45 anos.
40. Ou seja durante mais de 45 anos existiu o rego, que estava sempre limpo e por onde corriam as águas e enxurros que a poça não conseguia reter.
41. E sempre as conduziram por esse rego na convicção de quem exerce um direito próprio com animus possidendi e de domini, na convicção de estarem a exercer um direito próprio.
42. Todos os actos praticados pelos R.R. (obviamente excluindo-se aqui o acto de tapagem dos buracos), revelam o reconhecimento do direito dos A.A. escoarem as águas pelos orifícios existentes no muro, convicção que era igual nos A.A., bem como dos antepossuidores.
43. Encontra-se assim constituída uma servidão de escoamento, por usucapião, o que é legalmente uma forma possível de constituição de servidões de escoamento.
44. Termos em que deverá ser revogada a douta decisão sub judice, e substituída por outra que julgue procedente por provada a acção intentada pelos A.A. e consequentemente serem os R.R. condenados no respectivo pedido.
45. Sem minimamente prescindir, e conforme supra se referiu, mesmo que não seja procedente a impugnação da matéria de facto, ainda assim não se poderá manter a douta decisão em mérito.
46. Com efeito, mesmo que não proceda este pedido de alteração da matéria de facto dada como assente, ainda assim face aos factos dados como provados e confessados livremente pelos R.R. e cujo aditamento se impõe aos factos provados, e por estarem preenchidos os seus pressupostos, sempre deverá a acção ser julgada parcialmente procedente e ordenada a desobstrução de todas as aberturas no muro que é propriedade exclusiva dos A.A., tapagem esta efectuada pelos R.R. de forma ilícita e sem qualquer justificativo.
47. Pois nessa hipótese – não comprovação da existência do rego há mais de 15 anos, o que não se espera, mas se admite por mero efeito de raciocínio, sem minimamente prescindir-, pelo menos reconhecido está que a extensão de terreno em declive do prédio dos A.A, que se situa para além da poça/tanque, não consegue absorver as águas pluviais que aí caem e que escorrem naturalmente em direcção ao prédio dos R.R. e que igualmente atravessam o muro nas aberturas existentes, criadas para o efeito, à vista de todos, nomeadamente dos então proprietários do prédio dos R.R. e que estes não se opuseram a tal construção, assim a consentindo, e que admitem que em relação a estas águas não colocam qualquer objecção, que de comum acordo construíram uma caixa para receber essas águas, advindas do prédio dos AA..
48. Então atento o exposto, deve ser sempre a acção julgada parcialmente provada, determinando-se que os R.R. sejam condenados a desobstruir todas as aberturas existentes no muro, construídas para o efeito de passagem de águas, fixando-lhes um prazo de 10 dias para o efeito e ainda com a obrigação de abster-se de praticar quaisquer actos que por qualquer forma impeças a passagem das águas para o seu terreno.
49. A douta sentença recorrida violou, nomeadamente, o preceituado nos artºs 574º do C.P.C..

Terminam entendendo que:

a) Deve o presente recurso ser julgado provado e procedente e, consequentemente, ser revogada a decisão recorrida e substituída por outra que julgue procedente a acção intentada pelos A.A. e serem os R.R. condenados nos re-spectivos pedidos.
b) Caso assim não se entenda, deve ser sempre a acção julgada parcialmente provada, determinando-se que os R.R. sejam condenados a desobstruir todas as aberturas existentes no muro, construídas para o efeito de passagem de águas, fixando-lhes um prazo de 10 dias para o efeito e ainda com a obrigação de abster-se de praticar quaisquer actos que, por qualquer forma, impeçam a passagem das águas para o seu terreno, com todas as demais consequências legais.

Os RR./recorridos apresentaram contra-alegações, alegando que o presente recurso não deve ser conhecido por os AA./recorrentes terem apresentado as novas conclusões aperfeiçoadas, para além do prazo de 5 dias concedido para o efeito.
Para o caso das novas conclusões serem admitidas, defendem, ainda, a rejeição do recurso por, em seu entender, não terem sido cumpridos os ónus previstos no artº. 640º do NCPC, ou caso assim não se entenda, pugnam pela manutenção da sentença recorrida.

O recurso foi admitido por despacho de fls. 207.
Colhidos os vistos legais, cumpre decidir.

II. FUNDAMENTAÇÃO

O objecto do recurso é delimitado pelas conclusões das respectivas alegações, sem prejuízo das questões de conhecimento oficioso, tendo por base as disposições conjugadas dos artºs 608º, nº. 2, 635º, nº. 4 e 639º, nº. 1 todos do Novo Código de Processo Civil (doravante NCPC), aprovado pela Lei nº. 41/2013 de 26/6.

Nos presentes autos, o objecto do recurso interposto pelos AA., delimitado pelo teor das suas conclusões, circunscreve-se à apreciação das seguintes questões:

I) - Impugnação da decisão sobre a matéria de facto;
II) - Saber se existe uma servidão de escoamento, por usucapião, das águas provenientes do prédio dos AA. para o prédio dos Réus;
III) - Saber se os RR. estão obrigados a desobstruir as aberturas existentes no muro construído pelos AA. na zona de delimitação entre os dois prédios, com vista a permitir o escoamento de águas pelas mesmas.

Na sentença recorrida foram considerados provados os seguintes factos [transcrição]:

1 - Por escritura de doação, celebrada em 20 de Junho de 1968 recebeu a A. M. T., por doação de F. M. e M. M., um prédio misto, constituído por casa de habitação, com coberto, eira e quintal, e junto a terreno de lavradio e mata com pinheiros, este denominado “Bouça das …”, a confrontar no seu todo de norte com caminho público e o proprietário, sul com estrada, nascente com J. A. e herdeiros de Joaquim e Poente com estrada e herdeiros e J. M., descrito na Conservatória do Registo Predial de … sob o n.º …, as partes rústicas, omissas na matriz.
2 - Esta aquisição foi levada a registo, encontrando-se o referido prédio descrito e inscrito a favor dos AA., pela apresentação nº 3 de 1970/10/10, dando origem à descrição ….
3 - Decorrentemente desta apresentação, foram atribuídas a matriz urbana … à parte urbana e as matrizes rústicas … e … ao terreno de lavradio e mato.
4 - Os prédios rústicos inscritos na matriz rústica nos artigos … e … deram entretanto origem às matrizes rústicas … e …, em virtude da avaliação geral efectuada no concelho.
5 - Por si, antepossuidores e anteproprietários, há mais de 5, 10, 15, 20 e 30, 40, 50, 60 anos, vêm os AA., no referido prédio, fazendo obras e melhoramentos na habitação e construções adjacentes, roçando o mato, colocando marcos, cortando e vendendo a madeira, plantando pinheiros e eucaliptos, cultivando o tereno, semeando hortícolas, colhendo os respectivos frutos, construindo muros e vedações, pagando as contribuições e impostos, tudo à vista de toda a gente, sem a oposição de quem quer que seja, ininterruptamente, na convicção de dele serem donos.
6 - A Ré mulher recebeu, por doação de seus pais, J. M. e M. G., dois prédios, que são contíguos entre si, a saber:
a) prédio urbano, composto de casa de habitação de rés do chão e andar e quintal, sito na Rua …, n.º …, na freguesia de ..., concelho de ..., inscrito na matriz predial urbano sob o artigo 1085/... e descrito na Conservatória do Registo Predial sob o n.º 604/...;
b) prédio rústico, composto de terreno de cultivo, sito no lugar de …, na freguesia de ..., concelho de ..., inscrito na matriz predial rústica sob o artigo 420/... e descrito na Conservatória do Registo Predial sob o n.º 603/...;
7 - O prédio referido em 1), na parte inscrita à matriz sob o art 419/..., com cultura, ramada e mato, confronta na sua extrema a poente com o prédio referido em 6), al. b).
8 - O prédio dos A.A. situa-se numa zona em declive, sendo a parte a poente, onde confronta com os RR., a mais baixa.
9 - Tal acontece em toda a zona circundante do prédio dos A.A. e R.R., ou seja, toda a área circundante do prédio dos A.A. está situada em zona de declive de nascente para poente, sendo o poente a zona mais baixa.
10 - Na extrema nascente do prédio do A.A. desagua uma água de mina num tanque, que os A.A. utilizam para consumo.
11 – Nesse tanque desaguam, igualmente, águas vindas de prédios vizinhos.
12 – Em período de ocorrência de muita pluviosidade, as águas que aí se acumulam abandonam esse tanque através de uma abertura aí existente, seguindo por uma passagem sob o pavimento.
13 – À saída dessa passagem sob o pavimento existe uma bifurcação, sendo que à esquerda, para quem está de costas para o tanque, segue, em direcção a sul, um rego que tem os seus limites construídos em pedra.
14 – Percorridos dois metros, existe nesse rego uma outra bifurcação, sendo que a via que diverge para a direita segue em direcção a poente, para o centro do terreno dos AA..
15 – Ultrapassada essa bifurcação, o rego prossegue para sul até ao limite sul do prédio, virando de seguida à direita, em direcção a poente.
16 – Depois de virar à direita, o rego cujos limites são construídos em pedra desemboca numa faixa de terreno cujo piso é em terra batida, sendo esta faixa contígua à extrema sul do prédio.
17 – Tal faixa em terra batida prolonga-se até ao prédio dos RR..
18 – Na zona de delimitação entre os prédios de AA. e RR. foi construído pelos AA, há cerca de 45 anos, um muro entre os dois prédios.
19 – Atento o declive existente entre os dois terrenos e encontrando-se o terreno dos RR. numa quota inferior de cerca de um metro, este muro serve igualmente como suporte das terras do prédio rústico dos AA..
20 – O referido muro foi construído com 16 aberturas, situadas ao nível do solo da propriedade dos AA., cada uma delas com cerca de 5 cms. de largura e 10 cms de altura, com vista a permitir o escoamento de água pelas mesmas.
21 – Os então proprietários dos prédios dos RR. não se opuseram à construção de tal muro.
22 – Em data não concretamente apurada, os RR., através da colocação de cimento, procederam à obstrução total de 11 das aberturas do muro e à obstrução parcial de uma outra dessas aberturas.
23 – As restantes aberturas encontram-se desobstruídas.
24 – A água do referido tanque existente no prédio dos AA. também é usada para rega do prédio dos AA..
25 – No prédio dos RR., junto à extremidade norte do referido muro, existe um caixa de recolha de águas.

Por outro lado, na sentença recorrida foram considerados não provados os seguintes factos [transcrição]:

1 – Os então proprietários do prédio dos RR. deram aos AA. a sua concordância expressa quanto à construção do muro acima referido.
2 – Desde sempre as águas sobrantes do tanque e as águas pluviais que caiam no prédio dos AA. foram conduzidas ao longo de um rego que atravessa o prédio dos AA. na sua extrema sul.
3 – Todos os anos os AA. limpam o referido rego.
4 – Desde sempre as águas correm através desse rego, no sentido “Nascente-poente”; até ao nível mais baixo, até desaguarem a poente junto ao referido muro.
5 – Os RR. sempre aceitaram este corrimento e a tal não se opuseram.
6 – Há mais de 60 anos que os AA. e seus antepossuidores sempre deixaram as águas correr através do seu prédio, através do referido rego, no sentido “Nascente-poente”, até ao prédio dos RR..
7 – Tais águas atravessavam o muro delimitador dos prédios através das aberturas ali existentes.
8 – Tal sucedia à vista de toda a gente, sem a oposição de quem quer que seja, designadamente, dos RR., agindo os AA. na convicção de serem titulares do direito de o fazerem.
9 – A força da referida água é susceptível de provocar o desmoronamento do referido muro caso não se escoe pelas aberturas nele existentes.
10 – Os RR. encostaram às referida aberturas esteios e pedras fixadas ao solo.
11 – Nas épocas pluviais existe um fluxo constante de água, com grande caudal, que percorre os terrenos de AA. e RR..
12 – Quando ocorre precipitação acentuada, o terreno do prédio dos AA. não é capaz de absorver a água.
13 – Nessas ocasiões, as águas acumulam-se na extrema poente do prédio dos AA., atenta a obstrução das aberturas do muro.
14 – Tais águas encharcam todo o terreno dos AA..
15 – A obstrução das aberturas fragilizou o referido muro, sendo necessário proceder ao seu restauro e reforço.
16 – As plantas e culturas existentes no prédio dos AA. são constantemente danificadas por pessoas não concretamente identificadas.
17 – O referido rego é, muitas vezes, tapado e alterado por pessoas não concretamente identificadas.

*
Apreciando e decidindo.

Independentemente da apreciação do objecto do recurso, delimitado nos termos atrás referidos, constitui pressuposto do seu conhecimento a prévia admissibilidade do mesmo, sendo que os recorridos, nas suas contra-alegações, vieram suscitar a questão do não conhecimento do recurso por extemporaneidade da apresentação das novas conclusões aperfeiçoadas.
Tal questão não pode deixar de se assumir como prévia, e tal como já se referiu no despacho proferido em 29/05/2020, no âmbito do exame preliminar, consideramos que as novas alegações, com as conclusões aperfeiçoadas, foram apresentadas dentro de prazo, sendo, por isso, o recurso interposto pelos AA. tempestivo.
Senão, vejamos.
A notificação aos AA. do despacho que lhes concedeu o prazo de 5 dias para apresentarem novas conclusões aperfeiçoadas é datada de 30/01/2020, presumindo-se que a mesma foi recebida por aqueles em 3/02/2020 (artº. 248º do NCPC).
Tendo o aludido prazo de 5 dias começado a contar em 4/02/2020, terminou em 8/02/2020 (Sábado), transferindo-se o seu termo para o 1º dia útil seguinte de acordo com o disposto no artº. 138º, nº. 2 do NCPC, tendo, por isso, terminado em 10/02/2020.
Os AA. apresentaram novas alegações, com conclusões aperfeiçoadas em 13/02/2020 - ou seja, no 3º dia útil subsequente ao termo do prazo supra referido - e procederam ao pagamento da multa prevista no artº. 139º, nº. 5 do NCPC, conforme consta de fls. 306, razão pela qual foi o recurso considerado tempestivo.

Analisemos agora as questões que integram o objecto do recurso.
*
I) – Impugnação da decisão sobre a matéria de facto:

Vêm os AA., ora recorrentes, impugnar a decisão sobre a matéria de facto, pretendendo que:

a) - sejam acrescentados à matéria de facto provada, por decorrerem da confissão constante da contestação deduzida pelos RR., os seguintes factos:

a.1) - Pelas aberturas referidas em 20 dos factos provados escoam as águas das chuvas e que caem no prédio dos AA.;
a.2) - Existe um rego no prédio dos A.A. na sua extrema sul;
a.3) - Nunca os RR. se opuseram a que as águas das chuvas que caem no prédio dos AA. escoem naturalmente para o seu prédio (deles RR.);
a.4) - O terreno dos RR. junto às aberturas do muro fica em plano mais inclinado e todas as águas caem para uma caixa sita a norte;
a.5) - Esta caixa foi construída por acordo entre AA. e RR. e para receber todas as águas advindas do prédio daqueles.

Consideram os recorrentes que tais factos resultam da confissão feita pelos RR. na sua contestação:

Na sequência do reconhecimento da existência do muro e das aberturas existentes no mesmo (artº. 21º da contestação), mantendo-se a descrição constante do ponto 20 dos factos provados por resultar de inspecção ao local;

No artº. 22º da contestaçãopelas aberturas escoam as águas das chuvas e que caem no prédio dos AA.;

Acrescentado no artº. 23º daquele articulado e na sequência do reconhecimento que existem águas que devem passar pelas tais aberturas – mas só estas podem e devem cair (que é matéria que está em discussão);

No artº. 28º da contestaçãoo rego foi construído pelos AA. há não mais de 10 anos;

Daqui resulta a confissão da existência do rego identificado com pelo menos 10 anos de existência, sendo somente a sua anterioridade matéria controvertida, já que os AA. afirmam que o rego existe há mais de 5, 10, 15, 20, 30, 40, 50, 60 anos;

No artº. 31º da contestação: Nunca os RR. se opuseram a que as águas das chuvas que caem no prédio dos AA. escoem naturalmente para o seu (deles RR.) prédio;
b) – os pontos 1 a 13 dos factos não provados sejam considerados provados, tendo em atenção os seguintes meios probatórios:
- os depoimentos das testemunhas F. C., J. O., J. C., E. P., José e D. C.;
- os documentos juntos aos autos, nomeadamente os registos fotográficos;
- a própria assunção dos factos nos articulados apresentados pelas partes;
- a inspecção judicial ao local em causa nos presentes autos;
- as regras da experiência comum.

Ora, na “motivação de facto” que integra a sentença recorrida, escreveu-se o seguinte [transcrição]:

Os “factos provados” nºs 1 a 10 já se encontravam assentes por acordo das partes e por documentos com força probatória plena.
As concretas características do local em causa, designadamente, das construções aí existentes e da morfologia dos terrenos, descritas nos “factos provados” nºs 12 a 17, 20, 22, 23 e 25, resultam da inspecção judicial levada a cabo, com os resultados constantes do auto de fls. 54 e segs..
Neste ponto, dúvidas inexistem que foram os RR. quem procedeu à obstrução das aberturas mencionadas no “facto provado” nº 22: estes admitiram parcialmente tal facto em sede de contestação, sendo que só a eles aproveita tal obstrução. Por outro lado, quanto ao “facto provado” nº 20, não sê vislumbra outro objectivo na criação dessas aberturas que não o escoamento de águas.
Os “factos provados” nºs 18 e 19 já se encontravam assentes por acordo das partes.
No mais, da prova produzida resultou que a água que alcança o muro em causa, provinda do prédio dos AA., é reduzidíssima. Tal decorre do depoimento das testemunhas J. O. (que trata dos prédios dos AA. há cerca de 15 anos, podando árvores e tirando ervas), J. C. (que, esporadicamente, presta serviços de construção civil aos AA., há cerca de 45 anos), E. P. (que foi inquilino dos AA. entre 1992 e 2006, sendo que após 2006 desloca-se ao prédio destes uma vez por ano, por ocasião das vindimas) e José (cuja irmã é casada com filho dos AA.).
Estas testemunhas referiram, de forma unívoca, que só existe água a correr na zona de terra batida contígua à extrema sul do prédio dos AA. – ou seja, na zona onde os AA. situam parte do rego mencionado na petição - “quando há muita chuva”.
E. P. deu conta, neste âmbito, que “chegaram a passar-se três ou quatro anos sem que lá tenha visto água a correr”. José mencionou que a ultima vez que viu água a escorrer nessa zona aconteceu há cerca de três anos; esta testemunha admitiu que nunca viu tal água aproximar-se das imediações do muro.
Tendo isto em conta, não é de estranhar que os anteriores proprietários do prédio dos RR. não se tenham oposto, aquando da construção do muro, à criação das aberturas nele existentes.
Note-se, para este efeito, que do facto de, tal como consta do auto de inspecção, existir uma caixa de água, no prédio dos RR., junto à extremidade norte do muro, por estes construída, não decorre a existência de grande afluxo de água nessa zona provinda do prédio dos AA., através das aberturas existentes no muro. Na verdade, não é possível afirmar que tal caixa tenha sido construída com o exclusivo desiderato de acolher essas específicas águas; nada nos permite excluir que a essa caixa não advenham outras, designadamente, do próprio prédio dos RR. ou de outros prédios contíguos.
Por outro lado, não foi produzida qualquer prova no sentido de que a água proveniente do tanque existente no prédio dos AA., situado na zona nascente do prédio (tanque esse que é alimentado por uma mina e à qual desembocam, igualmente, águas vindas de prédios vizinhos, tal como mencionado pelas testemunhas J. C. e E. P., daqui resultando a demonstração do facto provado nº 11) seja conduzida por rego até a esse muro.
É verdade que existe, à saída desse tanque, junto à passagem aí existente, um sistema de condução de águas, constituído por regos, cujos limites, nas suas margens, são construídos em pedra. Tal decorre, desde logo, do auto de inspecção.
Porém, convém sublinhar que tal sistema de condução de águas situa-se junto ao tanque, no extremo nascente do prédio dos AA., sendo que o muro em causa situa-se no extremo oposto - o poente.
Na verdade, tal como decorre do auto de inspecção, quando esse rego em pedra alcança a extrema sul do prédio, diverge para direita, passando a orientar-se no sentido “nascente-poente”.
Porém, após essa divergência à direita, o rego deixa de ter limites em pedra.
Nessa zona do prédio – que, recorde-se, continua a situar-se no extremo oposto àquele onde se encontra o muro –, tal rego em pedra desemboca numa faixa de terreno cujo piso é em terra batida, sendo esta faixa contígua à extrema sul do prédio.
Tal faixa em terra batida prolonga-se até ao prédio dos RR..
Ora, esta zona em terra batida não tem qualquer sulco marcado no leito, nem se vislumbram elementos físicos delimitativos de quaisquer margens.
Ou seja, não se pode concluir pela existência, nessa zona de terra batida, de um rego, perspectivado como “vala”, com as margens delimitadas por uma construção, por onde passa a água.
Aqui chegados, assumiu relevo nesta análise o depoimento da testemunha F. C.. Referiu esta testemunha que construiu o mencionado muro há cerca de 45 anos, sendo que a partir daí não mais regressou ao local.
Explicou que os antigos proprietários do prédio dos RR. presenciaram a construção do muro, nada tendo oposto a tal obra (daqui resultando a demonstração do “facto provado” nº 21, não tendo, no entanto, advindo qualquer elemento que permitisse afirmar a sua anuência expressa a essa obra, daqui resultando o teor do “facto não provado” nº 1)
Mencionou esta testemunha que as aberturas existentes no muro destinavam-se a escoar tão-somente a água da chuva que caísse no prédio.
Em contrário, referiu que a água libertada pelo tanque escorria quer pelo rego que diverge na primeira bifurcação acima apontada, em direcção ao centro do terreno, com vista à sua rega (sendo que a água assim usada seria naturalmente absorvida pelo terreno, tal como confirmado pela testemunha D. C., que trabalhou como jornaleiro no prédio dos A.A entre 2003 e 2006), quer por aquela zona do terreno em terra batida que acompanha a extrema sul do prédio.
Mais referiu, com particular relevo, que tal zona em terra batida constituía um caminho de passagem.
Tal afirmação é confirmada pelo facto de, na zona de fronteira entre os prédios, no término dessa passagem em terra batida, ter existido um portão de passagem entre os dois prédios.
Na fotografia de fls. 56-verso, obtida aquando da inspecção, constata-se ainda a existência de dois esteios que integravam a estrutura desse portão. Dessa fotografia também se alcança que a extremidade sul do muro termina antes desse portão.
Mais: a testemunha J. C., acima já mencionada, também deu conta que o falecido A. A. C. lhe revelou que a entrada para o seu prédio chegou a ser efectuada, em tempos remotos, por essa zona onde se situava o portão.
Ora, a testemunha J. A., genro dos RR, deu conta que, no ano de 2013, obstruiu esse portão, que era construído em ferro e arame com dois pilares nos seus extremos. Essa tapagem foi efectuada através da construção de um muro de pedra entre os dois pilares. Tal afirmação é suportada pela fotografia de fls. 56-verso, onde são visíveis os dois esteios do portão original e as pedras colocadas entre ambos.
Assim, podemos afirmar, com segurança, que, em circunstâncias excepcionais, designadamente, em períodos de abundante precipitação, a água libertada no tanque era conduzida por rego ainda hoje existente no extremo nascente do prédio, até à extrema sul. Nesta extrema sul, atenta a inclinação do terreno, a água iniciava um percurso descendente, no sentido “nascente – poente”, através do leito do caminho de passagem aí existente, até ao portão situado entre o prédio de A. e RR. Atenta a configuração desse portão - essencialmente, em arame - a água atravessava-o, continuando o seu trajecto, já no prédio destes, pelo caminho que por aí se prolongava.
Ou seja, mesmo nessas circunstâncias excepcionais, tal água não chegava a alcançar o muro – passava ao seu lado, pelo caminho aí existente.
Por outro lado, também se pode afirmar, com certeza, que a água que provinha do tanque e que era desviada na primeira bifurcação acima mencionada, com vista à rega do terreno, nunca chegaria ao muro, pois era absorvida pelo solo.
Daqui decorre que a água que passava pelas aberturas do muro não era conduzida por rego. Tal rego (ou “regos”, se considerarmos a primeira bifurcação mencionada) situa-se no outro extremo do terreno, sendo que a passagem em terra batida contígua à extrema sul não tinha o desiderato de conduzir a água: não existe, nessa zona, qualquer vala, depressão ou delimitação física que orientasse a água por um local previamente definido.
Assim, concluímos que a água que passava pelas aberturas do muro era apenas a da chuva que caía no terreno dos AA. – e só aquela gerada por pluviosidade intensa e que não era absorvida pelo solo.
Como vimos, tal água raramente alcançava o muro.
Daqui decorre que é seguro afirmar que os RR. e os seus antecessores não se terão oposto à realização das aberturas no muro porque daí não lhes adviriam grandes prejuízos.
Como vimos, só muito raramente a água passava pelas aberturas do muro. Mais: quando tal sucedia, era em pequeníssimas quantidades.
Assim, face à reduzidíssima água (quer em quantidade, quer em periodicidade) que passava por esses buracos, nunca os AA. se poderiam ter convencido que haviam adquirido o direito de fazer passar por aí a água.
Dito de outro modo, em termos simplistas: para os AA. se convencerem que tinham o direito de escoar a água por essas aberturas sempre seria necessário que a mesma por aí passasse com alguma regularidade. Se a água não passasse pelas aberturas, os AA. não se poderiam convencer que tinham o direito de o fazer. No mínimo, sempre os AA. teriam que colocar a hipótese de os RR. apenas toleraram a passagem da água por essas aberturas nas raras ocasiões em que tal sucedia.
Face ao exposto, do mesmo modo, os RR. também não podiam ter considerado que estavam obrigados a suportar tal passagem da água.
Concluímos, assim, que os factos acima expostos indiciam que os RR. apenas admitiam o escamento da água para o seu prédio, através das aberturas do muro, por mera tolerância, dadas as pouquíssimas ocasiões em que tal sucedia e a reduzida quantidade de água recebida pelo seu prédio.
Assim, percebe-se que os RR., ulteriormente, tenham procedido à tapagem dos buracos do muro; é que, depois da tapagem do portão que existia a sul, na fronteira entre os dois prédios, a água gerada pela abertura do tanque, em períodos de intensa pluviosidade, deixou de poder entrar no prédio dos RR. provinda do leito de tal caminho.
Tais águas passaram a acumular-se nessa zona onde se situava o portão; perante a barreira entretanto criada, certamente dirigir-se-iam para o muro, entrando no prédio dos RR. através das aberturas aí existentes.
Ou seja, a água que, a partir da tapagem do portão, passou a transpor o muro pelas aberturas era em quantidade muitíssimo superior à que anteriormente era recebida pelo prédio dos RR. – sendo que estes não estariam dispostos a tolerar a entrada de tal caudal no seu terreno.
Assim se explica que os RR. tenham obstruído os referidos buracos no muro – ainda assim, mantendo abertos alguns deles, mais propriamente, os situados na zona mais próximo da caixa de água, que recolheria, directamente e sem prejuízos de maior, a água por aí escoada.
Do exposto resultou a não demonstração dos “factos não provados” nºs 2 a 9 e 11 a 14.
Finalmente, nenhum elemento probatório adveio ao conhecimento do Tribunal apto a confirmar a matéria descrita nos “factos não provados” nºs 10, 15, 16 e 17.

O artº. 640º do NCPC estabelece os ónus que impendem sobre o recorrente que impugna a decisão relativa à matéria de facto, sendo a cominação para a inobservância do que aí se impõe a rejeição do recurso quanto à parte afectada.
Por força deste dispositivo legal, deverá o recorrente enunciar os concretos pontos de facto que considera incorrectamente julgados (alínea a) do nº. 1), requisito essencial já que delimita o poder de cognição do Tribunal “ad quem”, se a decisão incluir factos de que se não possa conhecer oficiosamente e se estiverem em causa direitos livremente disponíveis. Deve ainda o recorrente indicar os meios probatórios, constantes do processo ou de registo ou gravação nele realizada, que impunham decisão sobre os pontos da matéria de facto impugnados diversa da recorrida (alínea b) do nº. 1), assim como apresentar o seu projecto de decisão, ou seja, expor de forma clara a decisão que, no seu entender, deve ser proferida sobre as questões de facto impugnadas (alínea c) do nº. 1).
Defendem os RR./recorridos, nas suas contra-alegações, a rejeição do presente recurso, alegando que os recorrentes não cumpriram os ónus previstos no artº. 640º do NCPC; no entanto, não especificam concretamente quais desses ónus não foram cumpridos, limitando-se a transcrever as várias alíneas do nº. 1 daquele dispositivo legal e a concluir que “nada daquilo foi cumprido”.
Ora, salvo o devido respeito, não lhes assiste razão.
Contrariamente à posição defendida pelos recorridos, entendemos que, no caso em apreço, os recorrentes cumpriram os ónus que aquele dispositivo legal impõe, quer os enunciados nas três alíneas do nº. 1, quer o da alínea a) do nº. 2, tendo inclusive indicado os factos alegados pelos RR. na contestação que, em seu entender, constituem confissão e procedido à transcrição dos depoimentos das testemunhas F. C., J. O., J. C., E. P., José e D. C., por eles mencionadas para fundamentar a sua pretensão, e estando gravados, no caso concreto, os depoimentos prestados em audiência de julgamento, bem como constando do processo toda a prova documental, a inspecção judicial ao local registada na acta de fls. 54 a 57 e as fotografias - quer as juntas pelos AA. com a petição inicial (doc. 10 a 19 – fls. 19vº a 24), quer as posteriormente tiradas em sede de inspecção judicial ao local, as quais retratam parte do local em causa nos autos - elementos estes tidos em atenção pelo Tribunal “a quo” na formação da sua convicção, nada obsta à reapreciação da decisão da matéria de facto.
Com efeito, após ouvida a gravação da prova produzida em audiência de julgamento –com destaque para os depoimentos das testemunhas F. C. (vizinho dos AA. que construiu o muro na zona de delimitação entre os prédios dos AA. e dos RR.), J. O. (cuida do terreno dos AA. há 15 anos), J. C. (presta esporadicamente serviços de construção civil aos AA. há cerca de 45 anos), E. P. (inquilino dos AA. entre 1992 e 2006, sendo que desde 2006 desloca-se ao prédio daqueles uma vez por ano, por ocasião das vindimas) e José (irmão da nora dos AA.), arroladas pelos AA./recorrentes, e D. C. (tio por afinidade da Ré mulher, que trabalhou como jornaleiro no prédio dos AA. entre 2003 e 2006), arrolada pelos RR., todos eles mencionados nas alegações de recurso, relativamente aos factos não provados acima referidos e colocados em crise pelos recorrentes, bem como à matéria que estes pretendem aditar aos Factos Provados - e sopesando-a com a matéria alegada pelos AA. e pelos RR. nos respectivos articulados e a restante prova existente no processo, designadamente com as fotografias juntas a fls. 19vº a 24, o auto de inspecção judicial ao local efectuada em 15/10/2018 constante de fls. 54 a 57 e as fotografias nele incorporadas tiradas pelo Tribunal “a quo” aquando da realização daquela diligência, concluímos ser de atender parcialmente à pretensão dos AA./recorrentes, no sentido de serem aditados à matéria de facto dada como provada os factos supra enunciados em a.1) e a.3) a a.5) (que foram admitidos pelos RR. na sua contestação, no confronto com a matéria alegada na petição inicial, não tendo os AA. tomado posição quanto aos novos factos articulados pelos RR. e que consubstanciam matéria de excepção), não assistindo razão aos recorrentes, salvo o devido respeito, quanto à restante matéria de facto que pretendem seja considerada provada – ou seja, factos supra enunciados em a.2) e nos pontos 1 a 13 dos factos não provados – relativamente à qual constatamos que o Tribunal “a quo” fez, no essencial, uma correcta apreciação e análise crítica de todos os elementos de prova constantes do processo, confrontando-os, ainda, com as regras da experiência comum, tal como consta clara e detalhadamente explanado na “motivação de facto” da sentença recorrida que acima transcrevemos.

Vejamos então.

Pretendem os recorrentes que sejam acrescentados à matéria de facto dada como provada os seguintes factos:

a.1) - Pelas aberturas referidas em 20 dos factos provados escoam as águas das chuvas e que caem no prédio dos AA.;
a.2) - Existe um rego no prédio dos AA. na sua extrema sul;
a.3) - Nunca os RR. se opuseram a que as águas das chuvas que caem no prédio dos AA. escoem naturalmente para o seu prédio (deles RR.);
a.4) - O terreno dos RR. junto às aberturas do muro fica em plano mais inclinado e todas as águas caem para uma caixa sita a norte;
a.5) - Esta caixa foi construída por acordo entre AA. e RR. e para receber todas as águas advindas do prédio daqueles.

Para tanto argumentam que tais factos resultam da confissão feita pelos RR. na sua contestação:

- Na sequência do reconhecimento da existência do muro e das aberturas existentes no mesmo (artº. 21º da contestação), mantendo-se a descrição constante do ponto 20 dos factos provados por resultar de inspecção judicial ao local;
- No artº. 22º da contestação, onde se alega que pelas aberturas (existentes no muro) escoam as águas das chuvas e que caem no prédio dos AA.;
- Acrescentado no artº. 23º daquele articulado e na sequência do reconhecimento que existem águas que devem passar pelas tais aberturas – mas só estas podem e devem cair (que é matéria que está em discussão);
- No artº. 28º da contestação, onde se alega que o rego foi construído pelos AA. há não mais de 10 anos, resultando daqui a confissão da existência do rego identificado com pelo menos 10 anos de existência, sendo somente a sua anterioridade matéria controvertida, já que os AA. afirmam que o rego existe há mais de 5, 10, 15, 20, 30, 40, 50, 60 anos;
- No artº. 31º da contestação, onde é alegado que nunca os RR. se opuseram a que as águas das chuvas que caem no prédio dos AA. escoem naturalmente para o seu (deles RR.) prédio.

Ora, a matéria vertida no supra enunciado ponto a.1) corresponde ao artº. 22º da contestação (conjugado com os artºs 20º e 21º daquele articulado, nos quais os RR. reconhecem a existência de um muro delimitador entre o prédio dos AA. e o dos RR., bem como de 7 aberturas existentes no mesmo, com largura 1,5 cm e altura de 6 cm), sendo tais factos admitidos pelos RR. na sua contestação perante a matéria alegada pelos AA. nos artºs 18º e 19º da petição inicial, verificando-se que ambas as partes estão de acordo quanto à existência do mencionado muro e das aberturas nele criadas para escoamento de águas que caem no prédio dos Autores. Todavia, a quantidade dessas aberturas existentes no muro, bem como das que se encontram obstruídas e das que ainda estão livres é a referida em 20, 22 e 23 dos factos provados (que não são questionados no presente recurso), por terem sido directamente observadas pelo Mº Juiz “a quo” na inspecção judicial ao local, conforme consta do auto de inspecção de fls. 54 a 57, a qual não corresponde à alegada pelas partes nos respectivos articulados.
Ora, estando em causa na presente acção o escoamento de todas as águas sobrantes do prédio dos AA. (incluindo as que desaguam num tanque), alegadamente conduzidas por um rego, através das ditas aberturas existentes no muro, para o prédio dos RR., e havendo acordo das partes quanto ao escoamento das águas das chuvas que caem no prédio dos AA., não coincidindo o número de aberturas directamente percepcionadas pelo Mº Juiz “a quo” aquando da realização da inspecção ao local e dadas como provadas na sentença recorrida, com o que foi alegado pelas partes nos articulados, não sendo impugnada pelos recorrentes a quantidade de aberturas criadas no muro, das que foram obstruídas e das que se encontram desobstruídas dada como assente nos factos acima referidos, entendemos que nada obsta a que se dê como provada aquela matéria em que existe acordo das partes, pese embora conjugada não apenas com o que consta do facto provado nº. 20 como pretendem os recorrentes, mas também com a descrição feita nos nºs 22 e 23 dos factos provados, por todos resultarem da inspecção judicial ao local e estarem correlacionados entre si, que passará a ser o facto nº. 26 com a seguinte redacção:
26. Pelas aberturas referidas em 20 dos factos provados e que se encontram desobstruídas nos termos mencionados no facto provado nº. 23, por referência ao facto provado nº. 22, escoam as águas das chuvas e que caem no prédio dos Autores.
No que concerne à matéria vertida no ponto a.2) supra enunciado - Existe um rego no prédio dos AA. na sua extrema sulque os recorrentes pretendem seja acrescentada aos factos provados, constatamos que a existência do rego, os seus limites e o respectivo trajecto já estão reconhecidos nos pontos 13 a 16 dos factos provados, em resultado da inspecção judicial ao local levada a cabo em 15/10/2018 e documentada no auto de fls. 54 a 57, conforme explanado na “motivação de facto” - constituindo apenas matéria controvertida saber desde quando existe esse rego (os RR. alegam, no artº. 28º da contestação, que o rego foi construído pelos AA. há não mais de 10 anos, ao passo que os AA. afirmam, no artº. 25º da petição inicial, que o rego existe há mais de 5, 10, 15, 20, 30, 40, 50, 60 anos).
Assim, estando o aludido facto do ponto a.2) já incluído na factualidade dada como assente nos moldes acima referidos, é manifestamente inútil a pretensão dos ora recorrentes.
A factualidade constante do supra enunciado ponto a.3) corresponde ao artº. 31º da contestação, em resposta à matéria alegada no artº. 24º da petição inicial (onde os AA. referem que as águas pluviais e sobrantes do seu prédio têm corrido naturalmente através da sua inclinação até ao prédio dos RR., “que sempre aceitaram este corrimento natural e a nada se opuseram”). Tendo os RR., na contestação, impugnado apenas o alegado pelos AA. quanto à sua (dos RR.) não oposição em relação ao escoamento natural das mencionadas águas “sobrantes” do prédio dos AA. para o seu prédio, e admitido nunca ter havido oposição da sua parte em relação ao escoamento das águas das chuvas que caem no prédio dos AA., entendemos que deve ser aditado aos factos provados o ponto 27 com a seguinte redacção:
27. Nunca os RR. se opuseram a que as águas das chuvas que caem no prédio dos AA. escoem naturalmente para o seu prédio (deles RR.).
Por outro lado, os factos descritos nos pontos a.4) e a.5) supra enunciados correspondem ao alegado, respectivamente, nos artºs 38º e 39º da contestação, na sequência do que é alegado na petição inicial, designadamente quando os AA. pretendem fazer valer o escoamento das águas de um tanque existente no seu prédio, que alegam serem conduzidas por um rego até ao muro por eles construído e que atravessam para o prédio dos RR., através das aberturas para o efeito criadas no muro, configuram factos novos alegados pelos RR. na sua contestação que não foram objecto de impugnação por parte dos AA. nos termos do artº. 587º do NCPC.
Aliás, vêm os próprios AA. agora, em sede de recurso, pugnar para que tal matéria alegada nos artºs 38º e 39º da contestação (e que, em parte, está relacionada com o ponto 25 dos factos provados, em que o Tribunal “a quo” dá como assente a existência de uma caixa de recolha de águas no prédio dos RR., junto à extremidade norte do referido muro, em resultado da inspecção judicial ao local) seja dada como provada, sendo certo que naqueles artigos da contestação é alegado que todas as águas caem para uma caixa sita a norte e que essa caixa foi construída por acordo entre AA. e RR. para receber todas as águas advindas do prédio daqueles – ou seja, não é feita menção apenas às águas pluviais, mas sim a todas as águas provenientes do prédio dos Autores.
Assim, existindo acordo das partes em relação àqueles novos factos admitidos pelos RR. no seu articulado, nada obsta a que os mesmos sejam dados como provados em conjugação com o que consta no ponto 25 dos factos provados, por ter sido directamente visualizado pelo Mº Juiz “a quo” na inspecção ao local, constituindo os pontos 28 e 29 dos factos provados com a seguinte redacção:
28. O terreno dos RR. junto às aberturas do muro fica em plano mais inclinado e todas as águas caem para uma caixa referida em 25 dos factos provados;
29. Esta caixa foi construída por acordo entre AA. e RR. e para receber todas as águas advindas do prédio daqueles.
Ademais, como tivemos oportunidade de constatar pela audição da prova gravada, aqueles factos relacionados com a existência de uma caixa para recolha de águas no prédio dos RR., incluindo as águas provenientes do prédio dos AA., foram também confirmados pelas testemunhas E. P. e José.
A testemunha E. P., que foi inquilino dos AA. durante 14 anos (de 1992 a 2006) e viveu numa casa perto da propriedade daqueles, tendo referido que após 2006 se desloca ao prédio dos AA. uma vez por ano para ajudar nas vindimas, sendo que ultimamente tem ido lá mais vezes visitar a A. mulher dado ela estar doente, confirmou a existência de uma caixa de recolha de águas “no fundo do terreno dos RR., mesmo encostada ao portão do Sr. F.” (filho dos AA.), que terá sido construída “mais ou menos em 1998”, para onde foram encaminhadas, através de uma canalização, as águas dos “enxurros” que vêm dos prédios vizinhos dos AA. e vão ter ao tanque (que também chamou de “poça”) que estes têm no seu terreno, sendo apenas quando chove muito (o que, segundo a testemunha, raramente tem acontecido nos últimos anos, sendo muito pouca a água que cai na “poça”) que tais águas saem do tanque e são levadas por um rego pelo campo dos AA. abaixo e guiadas até à dita caixa (tendo referido que anteriormente as águas passavam pelos buracos existentes no muro dos AA. para o prédio dos RR. e saíam num portão em rede antigo, descendo até à estrada), tendo prestado um depoimento assertivo e seguro, que não foi suficientemente contrariado pelos depoimentos das demais testemunhas ouvidas em audiência de julgamento.
Por sua vez, a testemunha José, cuja irmã é casada com o filho dos AA., referiu que conhece a propriedade dos AA. desde 1989 à qual se desloca com regularidade e também confirmou a existência de uma caixa de recolha de águas construída pelos RR. no seu terreno, sendo o seu depoimento coincidente com o da testemunha E. P. no que se refere às circunstâncias e ao modo como a água proveniente da “poça” (referindo-se ao tanque) existente no prédio dos AA. chega até à dita caixa, não tendo sido infirmado por nenhuma das restantes testemunhas.

Pretendem, ainda, os recorrentes que sejam considerados provados os pontos 1 a 13 dos factos não provados que passamos a transcrever:

1 – Os então proprietários do prédio dos RR. deram aos AA. a sua concordância expressa quanto à construção do muro acima referido.
2 – Desde sempre as águas sobrantes do tanque e as águas pluviais que caiam no prédio dos AA. foram conduzidas ao longo de um rego que atravessa o prédio dos AA. na sua extrema sul.
3 – Todos os anos os AA. limpam o referido rego.
4 – Desde sempre as águas correm através desse rego, no sentido “Nascente-poente”; até ao nível mais baixo, até desaguarem a poente junto ao referido muro.
5 – Os RR. sempre aceitaram este corrimento e a tal não se opuseram.
6 – Há mais de 60 anos que os AA. e seus antepossuidores sempre deixaram as águas correr através do seu prédio, através do referido rego, no sentido “Nascente-poente”, até ao prédio dos RR..
7 – Tais águas atravessavam o muro delimitador dos prédios através das aberturas ali existentes.
8 – Tal sucedia à vista de toda a gente, sem a oposição de quem quer que seja, designadamente, dos RR., agindo os AA. na convicção de serem titulares do direito de o fazerem.
9 – A força da referida água é susceptível de provocar o desmoronamento do referido muro caso não se escoe pelas aberturas nele existentes.
10 – Os RR. encostaram às referidas aberturas esteios e pedras fixadas ao solo.
11 – Nas épocas pluviais existe um fluxo constante de água, com grande caudal, que percorre os terrenos de AA. e RR..
12 – Quando ocorre precipitação acentuada, o terreno do prédio dos AA. não é capaz de absorver a água.
13 – Nessas ocasiões, as águas acumulam-se na extrema poente do prédio dos AA., atenta a obstrução das aberturas do muro.

Os ora recorrentes justificam esta sua pretensão de acordo com uma perspectiva subjectiva, mediante uma apreciação unilateral e parcial da prova, pretendendo substituir a convicção que o Tribunal recorrido formou sobre a prova produzida pela sua própria convicção pessoal que, relativamente àqueles factos colocados em crise, não coincide com a do julgador.
Na realidade, fundamentam a sua discordância, quanto aos factos supra referidos, numa apreciação parcial e deturpada dos depoimentos das testemunhas F. C., J. O., J. C., E. P., José e D. C., que transcrevem no corpo das alegações, e dos registos fotográficos juntos aos autos, ignorando completamente a demais prova produzida no processo, mormente o que foi visualizado pelo Mº Juiz “a quo” na inspecção judicial ao local realizada em 15/10/2018, que se encontra registado no auto de inspecção de fls. 54 a 57 e se mostra explanado na “motivação de facto”, bem como a apreciação e análise crítica da prova feita na decisão recorrida.
Como é sabido, a análise crítica da prova impõe uma ponderação objectiva e global de toda a prova produzida e não apenas de alguns depoimentos analisados separadamente e valorados apenas na parte que interessa ao recorrente, tendo sido do conjunto de todos os elementos de prova conjugados com as regras da experiência comum que resultou a convicção do Tribunal “a quo”, quanto a estes factos não provados, no sentido plasmado na sentença sob censura.
O julgamento da matéria de facto é o resultado da ponderação de toda a prova produzida. Cada elemento de prova deve ser ponderado por si, mas também em relação/articulação com os demais. O depoimento de cada testemunha, tem de ser ponderado em conjugação com os das outras testemunhas e todos conjugados com os demais elementos de prova (cfr. acórdãos da RG de 4/02/2016, proc. nº. 283/08.8TBCHV-A e de 18/12/2017, proc. nº. 4601/13.9TBBRG, acessíveis em www.dgsi.pt).
Ora, revisitados os depoimentos das testemunhas mencionadas pelos AA./recorrentes, conjugados com os restantes meios de prova produzidos e em consonância com o que se mostra explanado na “motivação de facto”, não se vislumbra que tais depoimentos e os elementos documentais constantes dos autos (nomeadamente as fotografias e o auto de inspecção judicial ao local acima referidos) sejam de molde a permitir considerar como provada a matéria vertida nos pontos 1 a 13 dos factos não provados, não tendo este tribunal de recurso adquirido, assim, convicção diferente da que foi obtida pelo Tribunal da 1ª instância.
No que se refere ao ponto 1 dos factos não provados, os AA./recorrentes discordam que apenas se considere assente que os então proprietários dos prédios dos RR. não se opuseram à construção do muro acima referido (cfr. ponto 21 dos factos provados). E embora reconheçam que nenhuma prova foi feita de que tenha existido uma concordância expressa em relação a essa obra por parte dos antecessores dos RR., argumentam que foi referido pela testemunha F. C. que as pedras que foram necessárias para fazer o muro, vieram através da propriedade dos RR., “desde lá de baixo da Rua, com a qual confronta a propriedade destes, que era a única entrada para o campo dos AA., que esse caminho de acesso terminava à entrada desse campo”.
Em nosso entender, esta afirmação da testemunha F. C. (que construiu o muro há cerca de 45 anos) não se mostra suficiente para se poder concluir que houve concordância expressa dos anteriores proprietários do prédio dos RR. em relação à construção do muro dado como provado, como pretendem os recorrentes, tanto mais que foi referido pela testemunha que, na altura, era essa a entrada para o campo dos AA., o que significa que toda a pedra necessária para a realização daquela obra teria obviamente de passar por ali. Por outro lado, esta resposta da testemunha foi dada na sequência de perguntas feitas pela mandatária dos AA. sobre se havia ali uma entrada e como é que tinha feito o muro, não assumindo, a nosso ver, a relevância que os recorrentes lhe pretendem atribuir. Tal afirmação de F. C. evidencia que não houve oposição dos então proprietários dos prédios dos RR. à construção do aludido muro, conforme dado como provado no ponto 21, o que é coisa bem diferente de se dizer que houve concordância expressa da sua parte quanto à realização daquela obra.
Referem, ainda, os recorrentes, nas suas alegações, que o depoimento da testemunha F. C. é ainda de extrema relevância para dar como provada a matéria vertida nos pontos 2 e 4 a 9 dos factos não provados, resultando tais factos igualmente dos depoimentos das testemunhas J. O., J. C., E. P. e José atrás referidas, sendo estes também relevantes para prova dos pontos 3 e 11 a 13 dos factos não provados.
No seguimento da análise da prova produzida nos autos feita pelo Tribunal “a quo” na “motivação de facto” da sentença recorrida, podemos constatar, pela audição da gravação dos depoimentos das testemunhas acima referidas, que F. C. confirmou ter sido ele que construiu o mencionado muro divisório entre o prédio dos AA. e o dos RR. há cerca de 45 anos, tendo sido contratado pelos AA. para o efeito, esclarecendo que deixou os buracos abertos no muro apenas para escoar a água da chuva que caísse no prédio dos AA., pois este recebe as águas das chuvas de 4 prédios vizinhos situados por cima do terreno deles, sendo que parte dessas águas caíam na “poça” (referindo-se ao tanque existente no prédio dos AA.) e a água que não caía lá, entrava nas hortas e ia pelos campos abaixo.
Embora do depoimento da testemunha F. C. possa resultar que o rego para condução das águas do tanque existe há mais de 45 anos, conforme alegado pelos AA./recorrentes, na verdade, este facto não tem a relevância que aqueles lhe pretendem atribuir. No que toca ao dito rego, esta testemunha apenas referiu que a água libertada pelo tanque escorria quer pelo rego que diverge na primeira bifurcação apontada no auto de inspecção judicial ao local, em direcção ao centro do terreno, com vista à sua rega (sendo tal água usada na rega naturalmente absorvida pelo terreno -“sumia-se no campo” - tal como foi confirmado pela testemunha D. C., que trabalhou como jornaleiro no prédio dos AA. entre 2003 e 2006), quer por aquela zona do terreno em terra batida que acompanha a extrema sul do prédio dos AA. (referida na “motivação de facto”) e que, segundo afirmou F. C., constituía um caminho de passagem que ia ter à estrada, que vai dar à Rua de ..., e que foi fechado, tendo sido também confirmado pelas testemunhas E. P. supra referida e J. A. (cunhado dos RR. que em 2013 retirou o portão em ferro e rede que existia naquele local e tapou a referida passagem com a construção de um muro em pedra entre os dois pilares do portão) que na zona de fronteira entre os prédios dos AA. e dos RR., no término desse caminho em terra batida, existiu um portão de passagem entre os dois prédios, para além de terem sido constatados pelo Mº Juiz “a quo” na inspecção judicial ao local vestígios da existência desse portão – ou seja, dois esteios que integravam a estrutura do portão retratados na fotografia incorporada no auto de inspecção a fls. 56vº.
A testemunha F. C. descreveu o trajecto da água da chuva que caía no prédio dos AA., tendo referido que onde “acabava o rego, começava o caminho” em terra batida por onde seguia a água que ia ter à estrada – ou seja, segundo esta testemunha, a água da chuva seguia pelo campo dos AA. abaixo, passava pelo tal portão para o prédio dos RR. e ia ter à estrada que liga à Rua de ....
E quando esta testemunha foi questionada pelo mandatário dos RR. sobre se alguma vez esse tal rego por onde a água corria, passou ao lado do muro que havia construído, a mesma respondeu negativamente – o que, de certa forma, está em conformidade com o que foi constatado “in loco” pelo Mº Juiz “a quo” e que se mostra explanado na “motivação de facto” - afirmando, ainda, que a água da chuva “vinha pelo terreno abaixo e tinha aqueles buracos para passar”, tendo esclarecido que “fez tais buracos no muro para acautelar a água que vinha pelo terreno dos AA. abaixo e para ela não empoçar”.
Por outro lado, do depoimento de F. C. não resulta demonstrada a matéria constante do ponto 9 dos factos não provados, porquanto ele referiu que desde que construiu o muro não mais voltou ao local, não tendo, por isso, visto os buracos do muro tapados, nem a água acumulada junto ao muro, admitindo ter-lhe sido transmitido por outra pessoa a tapagem dos buracos, a acumulação de água e a eventualidade de colapso do muro, tratando-se, pois, de conhecimento indirecto que não pode ser valorado pelo Tribunal.
Por sua vez, a testemunha J. O. (que trata do terreno dos AA. há 15 anos, cultivando couves, podando as árvores, sulfatando as videiras, limpando as beiras do campo e “fresando” o terreno uma vez por ano) confirmou a existência e localização do tanque e do rego existentes no prédio dos AA., afirmando que o rego tem água só quando há muita chuva e vêm cair na “poça” (referindo-se ao tanque) os “enxurros” dos prédios vizinhos mais altos, esclarecendo que actualmente isso acontece poucas vezes e que há 10 anos atrás a quantidade de água que seguia pelo rego era maior porque havia um “enxurro” que vinha do lado do cemitério para baixo, por vezes atravessava a estrada e ia desaguar à “poça”, passando desta para o rego, o que actualmente já não acontece uma vez que foi feita a drenagem dessa água proveniente do cemitério.
Esta testemunha referiu, ainda, que a água utilizada na rega não chega ao terreno dos RR., podendo as águas dos “enxurros” chegar até lá somente quando há muita chuva e “em caso de cheias”, sendo que fora dessas alturas raramente existe água no rego. Quando questionado pelo Mº Juiz “a quo”, durante a instância do mandatário dos RR., sobre se nesses 15 anos em que tem cuidado do terreno dos AA. quantas vezes viu correr água pelo rego que se situa do lado esquerdo desse campo (se estiver de costas para o tanque), J. O. afirmou que viu correr água nesse rego, que segue pela esquerda debaixo da ramada do lado da estrada, apenas quando chove muito, esclarecendo ser esse o único sítio em que corre água.
Ademais, contrariamente ao que é alegado pelos recorrentes, a testemunha J. O. não referiu que procede todos os anos à limpeza do rego, tendo apenas afirmado que “fresa” o terreno dos AA. uma vez por ano, para ter menos erva, e limpa as beiras do campo. Por outro lado, a instâncias do mandatário dos RR., confirmou ter aberto “há uns anos” e “uma vez por ano, mais ou menos” a água daquele tanque (que admitiu funcionar como presa) para o limpar e também para regar o campo dos Autores, não tendo em momento algum do seu depoimento se referido à limpeza do rego.
A testemunha J. C., que faz trabalhos de construção civil para os AA. há cerca de 45 anos, confirmou que quando começou a trabalhar para aqueles já existia o tanque (que chamou de “poça”), afirmando que vê água a escorrer para a “poça” somente quando chove muito, sendo apenas nessa altura que a “poça” transborda, uma vez que também recebe as águas vindas dos prédios vizinhos situados acima do prédio dos AA. (esclarecendo que desemboca nesse tanque outra água que vem de uma mina, estando esta, no entanto, encanada para um depósito sendo daí levada para a casa dos Autores). Referiu, ainda, que quando a água da “poça” transborda segue primeiro por um rego, continuando depois a descer pelo campo dos AA. debaixo da ramada, desconhecendo contudo onde termina, por nunca ter tido a curiosidade de ir ver, para além de nada ter dito quanto à limpeza do rego.
As testemunhas E. P. e José já atrás mencionadas, confirmaram a proveniência das águas que caem no tanque existente no prédio dos AA., as circunstâncias em que essas águas saem do tanque e correm pelo rego em causa nos presentes autos e o percurso dessas águas nos prédios dos AA. e dos RR. até à caixa de recolha de águas referida nos factos provados, bem como o percurso que anteriormente era feito pelas mesmas até ao portão em rede antigo que existia entre os dois prédios, por onde saíam em direcção à estrada nos termos já atrás explanados, corroborando nesta parte os depoimentos das anteriores testemunhas e mostrando-se em conformidade com o explanado na “motivação de facto” inserta na sentença recorrida.
Foi igualmente referido pela testemunha E. P. que, no período em que viveu naquele local (de 1992 a 2006), havia alturas que a água da mina que desagua no dito tanque, e que “está entubada para um depósito, sendo levada para casa dos AA. e dos inquilinos”, não chegava para o consumo daqueles, tendo o falecido Sr. C. de tirar água de um furo que os AA. têm no meio do campo para dar aos inquilinos - o que evidencia que, já naquela altura, a água existente no tanque era pouca a ponto de não chegar para o consumo dos inquilinos, pelo que muito menos chegaria ao rego. Afirmou, ainda, esta testemunha que nos últimos anos não tem visto água a correr no dito rego - “chegaram a passar-se três ou quatro anos sem que lá tenha visto água a correr” - o que só acontece quando chove muito e há grandes temporais, podendo nessa altura o tanque encher (com os “enxurros” dos prédios vizinhos) e sair alguma água para o rego; no entanto, referiu que, não havendo já há muito tempo temporais como antigamente, o tanque nem sequer enche, pelo que não sobra nenhuma água, o que está em consonância com o que foi dito, a este respeito, pelas testemunhas J. O., J. C. e José.
Aliás, a testemunha José explicou, de forma clara e consistente, que a água só chega à caixa existente no prédio dos RR. quando há muitas chuvas ou intempéries, pois nessas alturas, os “enxurros” dos prédios vizinhos dos AA. caem no dito tanque e vão pelo rego abaixo, sendo que quando acaba o terreno dos AA. essa água “entra por uns buracos de uma parede e vai meter-se numa caixa no terreno da Ré”, o que acontece “muito poucas vezes”; fora dessas alturas a pouca água que existe no tanque infiltra-se na terra e nunca chega à dita caixa. Esta testemunha afirmou que a última vez que viu água a correr nesse rego aconteceu há cerca de três anos, “só mesmo um fiozinho de nada no rego”, mas infiltrava-se na terra e não chegava lá” (referindo-se aos buracos do muro), revelando um conhecimento directo e seguro destes factos por se deslocar muitas vezes ao prédio dos AA. para ajudar o cunhado F. (filho dos AA.) e para visitar a filha deste (sua afilhada).
No entanto, vêm agora os AA., em sede de recurso, argumentar que os RR., por reconhecerem a sua obrigação de recebimento das águas e pretenderem desviar a forma como corriam através da sua propriedade, “confessam que por acordo entre eles e os AA. foi construída uma caixa de águas no terreno dos RR., por volta de 1998, para então as águas serem conduzidas até ao muro, passarem pelos buracos do mesmo e em rego dentro do prédio dos RR. serem conduzidas para a caixa de água”, e que pediram aos AA., nomeadamente ao filho F., para ligar a sua caixa de água, que receberia as águas dos prédios de nível superior que desaguavam no prédio dos AA., a outra caixa de água que se situava dentro da propriedade do tal F., que já tinha ligação para a estrada, o que o mesmo consentiu.
Embora os RR. tenham admitido, na contestação, que foi construída uma caixa de recolha de águas, por acordo entre as partes, para receber todas as águas advindas do prédio dos AA. - o que foi considerado assente por este tribunal de recurso no ponto 29 aditado aos factos provados nos termos atrás referidos - a verdade é que a factualidade relacionada com o suposto pedido feito pelos RR. ao filho dos AA., para ligação da sua caixa de recolha de águas, e a anuência deste a tal pedido, não foi alegada pelas partes nos respectivos articulados, tratando-se de factos novos que foram apenas mencionados pela testemunha José em audiência de julgamento, ao relatar uma conversa que teve com o seu cunhado F., em que este lhe contou o pedido que os pais dos RR. lhe tinham feito e procurou saber a sua opinião sobre se devia ou não deixar fazer tal ligação da caixa de recolha de águas. Conforme se alcança do depoimento de José, esta testemunha não tem um conhecimento directo destes factos, pois não assistiu a qualquer conversa entre os RR. e o filho dos AA. sobre os mesmos, tendo-se limitado a reproduzir o que lhe foi dito pelo seu cunhado F. numa conversa que ambos tiveram, não podendo, por isso, extrair-se destas declarações a conclusão pretendida pelos recorrentes, mais concretamente, que as mesmas evidenciam que os RR. não se limitaram a tolerar a existência dos furos e a passagem das águas.
Como bem refere o Tribunal “a quo” na motivação de facto inserta na sentença recorrida, resulta dos depoimentos das testemunhas acima referidas que a água que alcança o muro em causa, provinda do prédio dos AA., é reduzida e mesmo nas circunstâncias excepcionais mencionadas por essas testemunhas, quando ainda existia o portão em ferro e rede situado entre o prédio dos AA. e o dos RR., tal água não chegava a alcançar o muro – passava ao seu lado, pelo caminho em terra batida aí existente e pelo dito portão, indo desaguar à estrada.
Decorre, ainda, daqueles depoimentos que a água que passava pelas aberturas do muro não era conduzida por rego, sendo apenas água da chuva que caía no terreno dos AA. – e só aquela gerada por pluviosidade intensa e que não era absorvida pelo solo – a qual só muito raramente passava pelas aberturas do muro e quando tal sucedia, era em pequenas quantidades.
Por tudo isto, concluiu o Tribunal “a quo” (a nosso ver, bem) não ser de estranhar que os anteriores proprietários do prédio dos RR. não se tenham oposto, aquando da construção do muro, à criação das aberturas nele existentes, indiciando os factos relatados pelas aludidas testemunhas que os RR. apenas admitiam o escoamento das águas pluviais para o seu prédio, através das aberturas do muro, por mera tolerância, dadas as poucas ocasiões em que tal sucedia e a reduzida quantidade de água recebida no mesmo, tanto mais que, como é referido na “motivação de facto”, a água que provinha do tanque e que era desviada na primeira bifurcação ali mencionada e retratada no auto de inspecção judicial ao local, com vista à rega do terreno dos AA., nunca chegaria ao muro, pois era absorvida pelo solo, para além de que a restante água provinda do tanque e que prosseguia o seu percurso pelo tal rego em pedra, em períodos de intensa pluviosidade, ia desembocar num caminho em terra batida que se prolonga até ao prédio dos RR., passava pelo portão em rede que existia a sul, na fronteira entre os dois prédios (antes do mesmo ter sido retirado e aquela passagem ter sido tapada com um muro em pedra mandado construir pelos RR., como deu conta disso a testemunha J. A. e foi constatado na inspecção judicial ao local) e ia sair à estrada.
Nesta conformidade, tal como continua referindo o Tribunal recorrido, em consonância com as regras da experiência comum, «percebe-se que os RR., ulteriormente, tenham procedido à tapagem dos buracos do muro; é que, depois da tapagem do portão que existia a sul, na fronteira entre os dois prédios, a água gerada pela abertura do tanque, em períodos de intensa pluviosidade, deixou de poder entrar no prédio dos RR. provinda do leito de tal caminho.
Tais águas passaram a acumular-se nessa zona onde se situava o portão; perante a barreira entretanto criada, certamente dirigir-se-iam para o muro, entrando no prédio dos RR. através das aberturas aí existentes.
Ou seja, a água que, a partir da tapagem do portão, passou a transpor o muro pelas aberturas era em quantidade muitíssimo superior à que anteriormente era recebida pelo prédio dos RR. – sendo que estes não estariam dispostos a tolerar a entrada de tal caudal no seu terreno.
Assim se explica que os RR. tenham obstruído os referidos buracos no muro – ainda assim, mantendo abertos alguns deles, mais propriamente, os situados na zona mais próximo da caixa de água, que recolheria, directamente e sem prejuízos de maior, a água por aí escoada».
Não deixa de ser curioso que as partes, designadamente os AA., não tenham alegado nos articulados esta factualidade relacionada com o escoamento e percurso das águas do prédio dos AA. por um caminho em terra batida que se prolongava até ao mencionado antigo portão de passagem, em ferro e rede, que existia na zona de fronteira entre os dois prédios, por onde saíam em direcção à estrada, a retirada desse portão em 2013 e a tapagem da referida passagem com a construção de um muro em pedra entre os dois pilares do portão efectuada pelos RR., quando, na verdade, tais factos assumiram alguma relevância na formação da convicção do Tribunal “a quo”, conforme se alcança do expendido na “motivação de facto”, sendo certo que o Tribunal apenas tomou conhecimento dos mesmos em sede de julgamento, por terem sido relatados pelas testemunhas acima referidas nos termos já expostos e de certa forma corroborados com o que foi directamente visualizado pelo Mº Juiz “a quo” na inspecção judicial ao local e que se mostra explanado na fundamentação.
Constatamos, ainda, que dos depoimentos das testemunhas E. P. e José não resulta provado que os AA. limpam o referido rego todos os anos (ponto 3 dos factos não provados) como pretendem os recorrentes. Embora E. P. tenha afirmado que viu um jornaleiro no terreno dos AA. a fazer as podas, sendo ele que limpa o rego, e José tenha referido que quando vai ao terreno dos AA. encontra esse rego sempre limpo, a verdade é que ambos admitiram que nunca viram ninguém a limpar ou cuidar do rego, pelo que não foi feita prova consistente de que sejam os AA. que cuidam do mesmo.
Por outro lado, escrutinados os depoimentos das testemunhas J. O., J. C., E. P. e José, não se vislumbra que os mesmos corroborem a factualidade vertida nos pontos 9 e 11 a 13 dos factos não provados, contrariamente ao pretendido pelos ora recorrentes, tanto mais que aquelas testemunhas nada referiram sobre aquela matéria.
Mais alegam os recorrentes que “a razão pela qual a água do rego, existente há mais de 45 anos, não continua em linha recta, foi pelos RR. terem construído nesse local (no seguimento do anterior portão) uma pequena corte para uma vaca e terem pedido aos AA. para desviarem o rego um bocado para a direita em direcção aos muros”.
No entanto, para além de se tratarem de factos novos que não foram alegados pelas partes nos respectivos articulados, não foi produzida prova consistente sobre os mesmos, pois não foram confirmados de forma clara e inequívoca pelas testemunhas ouvidas em audiência de julgamento.
Os recorrentes defendem, ainda, que a factualidade vertida no ponto 10 dos factos não provados resulta, desde logo, comprovada pela fotografia que constitui o documento 19 junto com a petição inicial (cfr. fls. 24), que não foi impugnada. Para tanto argumentam que da análise daquela imagem é perfeitamente visível que se encontravam, e ainda hoje se encontram, esteios e pedras encostados às aberturas, fixadas ao solo, actuação que também nunca foi negada pelos Réus.
No entanto, a matéria constante do mencionado ponto 10 dos factos não provados foi alegada pelos AA. no artº. 31º da petição inicial, tendo sido impugnada pelos RR. no artº. 40º da contestação e sobre a qual, em nosso entender, não foi produzida prova.
Embora a aludida fotografia não tenha sido expressamente impugnada pelos RR., na mesma vêem-se apenas umas pedras rectangulares encostadas a um muro, desconhecendo-se que muro é esse e se aquelas pedras estão a tapar buracos. Como é óbvio, a fotografia, só por si, não identifica o muro ali retratado, nem quem colocou as pedras encostadas ao mesmo e com que finalidade; por outro lado, não se vislumbra que as testemunhas ouvidas em audiência de julgamento tenham confirmado aquele facto e o Mº Juiz “a quo” não faz qualquer referência ao mesmo no auto de inspecção judicial ao local.
Nesta conformidade, entendemos que este facto não poderá ser considerado provado.
Relativamente à produção de prova realizada na audiência de julgamento, acresce referir que, embora resulte da gravação dos depoimentos que algumas testemunhas foram confrontadas com determinadas fotografias juntas com a petição inicial e incorporadas no auto de inspecção judicial ao local, não tem este Tribunal forma de sindicar os respectivos depoimentos na parte em que identificam ou assinalam, nessas fotografias, a localização dos terrenos, do muro construído pelos AA., do tanque e do rego existentes no prédio daqueles, o percurso das águas no terreno dos AA. até ao prédio dos RR., a localização do antigo portão em ferro e rede que existiu entre os dois prédios e do muro em pedra que tapou a zona onde se situava esse portão, uma vez que não resulta perceptível do registo audio a parte das fotografias em que a testemunha está a assinalar os pontos e/ou pormenores sobre os quais está a depôr, não sendo possível vislumbrar, a quem apenas ouve a gravação, que locais as testemunhas estão a apontar nas fotografias.
Nesta parte, o que conta é a convicção formada pelo julgador na 1ª instância, que beneficiou da imediação resultante do julgamento e, por isso, pode visualizar com clareza o que estava a ser identificado pelas testemunhas nas mencionadas fotografias.
Por último, conforme se alcança dos autos, antes da audição de todas as testemunhas teve lugar a inspecção judicial ao local efectuada em 15/10/2018, que se encontra documentada no auto de fls. 54 a 57, no qual é indicada a quantidade e dimensão das aberturas existentes no muro e o número daquelas que se encontram obstruídas, que foram directamente visionadas pelo Mº Juiz “a quo” e a localização da caixa de recolha de águas, bem como incorporadas as fotografias tiradas pelo Tribunal e que retratam o local onde se encontra o tanque e o rego em questão, a existência de dois pilares que integravam a estrutura do antigo portão de passagem entre os dois prédios e o muro em pedra construído entre esses pilares, não tendo este tribunal de recurso forma de sindicar o que foi directamente observado no local pelo Mº Juiz “a quo” e que se mostra clara e detalhadamente explanado na “motivação de facto” da sentença recorrida, para além de que os recorrentes não apresentam nenhum razão ou elemento de prova que ponha em causa a autenticidade e a veracidade da realidade que foi directamente percepcionada pelo Tribunal recorrido nessa inspecção, bem como dos registos fotográficos constantes dos autos, tanto mais que consta da acta da sessão de julgamento de 15/10/2018 que a inspecção judicial ao local foi realizada naquele dia, antes de ter lugar a inquirição das testemunhas, a pedido dos mandatários das partes, por se afigurar de especial relevância que tal diligência fosse realizada de imediato devido às condições atmosféricas que se faziam sentir, “com abundante ocorrência de chuva”, o que o Mº Juiz “a quo” deferiu, porquanto tais circunstâncias permitir-lhe-iam ter uma percepção mais clara e fidedigna da quantidade de água que caia no prédio dos AA. numa ocasião de grande pluviosidade, bem como o percurso seguido por essas águas (incluindo a água que sai do tanque), no rego aqui em causa e na faixa de terreno em terra batida, ao longo do prédio dos AA. até ao prédio dos RR. e se as mesmas chegavam até ao muro construído pelos Autores.
Como tivemos oportunidade de constatar, a prova produzida nos autos, e designadamente os elementos probatórios mencionados pelos recorrentes, não têm a virtualidade de sustentar qualquer alteração à matéria de facto dada como não provada nos pontos 1 a 13, nos termos por eles pretendidos.
Na fixação da matéria de facto provada e não provada, o Tribunal de 1ª instância rege-se pelo princípio da livre apreciação da prova, consagrado no artº. 607º, nº. 5 do NCPC, decidindo segundo a sua prudente convicção acerca de cada facto, só podendo ocorrer alteração da mesma por parte do Tribunal da Relação, que se deve reger também pelo aludido princípio, nos termos do artº. 662º do mesmo diploma legal.
Ora, a convicção formada por este tribunal de recurso, depois de ouvida a gravação da prova produzida em audiência de julgamento e de efectuada a apreciação dos depoimentos prestados em conjugação com as fotografias constantes dos autos, o auto de inspecção judicial ao local e as regras da experiência comum, é aquela que vem plasmada na decisão do Tribunal recorrido, resultando do atrás exposto que, relativamente aos pontos 1 a 13 dos factos não provados que os recorrentes pretendem sejam considerados provados, inexistem quaisquer elementos de prova que permitam formar uma convicção diferente.
Nesta conformidade, entendemos que a factualidade vertida nos mencionados pontos 1 a 13 deverá manter-se no capítulo dos factos não provados.
Em face do acima exposto e nos termos do disposto no artº. 662º, nº. 1 do NCPC, procede parcialmente a impugnação da matéria de facto deduzida pelos Autores/recorrentes, aditando-se aos factos provados os pontos 26 a 29 acima referidos, mantendo-se, no entanto, inalterada a restante matéria de facto provada e não provada supra descrita.
*
II) - Saber se existe uma servidão de escoamento, por usucapião, das águas provenientes do prédio dos AA. para o prédio dos Réus:

Conforme se alcança das conclusões do presente recurso interposto pelos AA., este incide sobre a parte da decisão que absolveu os RR. do pedido formulado na alínea d) da petição inicial –- serem aqueles condenados a reconhecer que o seu prédio está onerado com uma servidão de escoamento de água a favor do prédio dos AA., estando aqueles obrigados a receber as águas que decorrem do prédio dos Autores - alegando os recorrentes que, com a alteração da matéria de facto nos termos por eles pretendidos, resulta que:

- durante mais de 45 anos existiu o rego, que estava sempre limpo e por onde corriam as águas e enxurros que a poça não conseguia reter;
- e sempre os AA. as conduziram por esse rego na convicção de estarem a exercer um direito próprio;
- todos os actos praticados pelos RR. (excluindo-se aqui o acto de tapagem dos buracos), revelam o reconhecimento do direito dos AA. escoarem as águas pelos orifícios existentes no muro, convicção que era igual nos AA., bem como dos antepossuidores;
pelo que pugnam pela condenação dos RR. a reconhecer que se encontra constituída uma servidão de escoamento, por usucapião, a favor do prédio dos Autores.

Analisemos a pretensão dos AA./recorrentes.

O escoamento de águas através de prédio vizinho pode basear-se em dois títulos diversos: (i) ou como uma simples restrição ao direito de propriedade sobre os imóveis, imposta por lei, mais concretamente pelo artº. 1351º do Código Civil; (ii) ou como servidão de escoamento, em sentido técnico, regulada como encargo excepcional sobre a propriedade, resultante de um acto constitutivo, nos termos dos artºs 1547 e 1563º do mesmo Código.
Uma das restrições impostas por lei ao direito de propriedade sobre os imóveis é o escoamento natural das águas, que se rege pelo artº. 1351º do Código Civil, cujo nº. 1 estabelece que “os prédios inferiores estão sujeitos a receber as águas que, naturalmente e sem obra do homem, decorrem dos prédios superiores, assim como a terra e entulhos que elas arrastem na sua corrente”, acrescentando o nº. 2 que “nem o dono do prédio inferior pode fazer obras que estorvem o escoamento, nem o dono do prédio superior obras capazes de o agravar, sem prejuízo da possibilidade de constituição de servidão legal de escoamento, nos casos em que é admitida”.

Neste dispositivo legal consagra-se o princípio de que as águas devem seguir o seu curso natural, sem que os seus utentes ou os donos dos prédios imponham a outros a alteração artificial desse fluxo normal. As águas que o prédio inferior está obrigado a receber são apenas as que decorrem naturalmente, e sem obra do homem, dos prédios superiores e correspondem às águas pluviais que caiam directamente no prédio superior ou que para ele decorrem de outros prédios superiores a ele, as águas provenientes da liquefacção das neves e gelos, as que se infiltrem no terreno e as das nascentes que brotam naturalmente num prédio (cfr. Pires Lima e Antunes Varela, Código Civil Anotado, vol. III, 2ª ed., pág. 191 e acórdão da RP de 17/06/2014, proc. nº. 148/11.6TBMSF, disponível em www.dgsi.pt).
Ao lado da obrigação de receber as águas que decorrem naturalmente, há também a obrigação de receber a terra e os entulhos que essas águas arrastam na corrente, mas visa-se “apenas a terra e entulhos que correm naturalmente, e não quaisquer outras substâncias que se juntem às águas por obra do homem e que as tornem nocivas, pois ao recebimento da aqua nocens não está obrigado o prédio inferior” (cfr. Pires de Lima e Antunes Varela, ob. cit., pág.192 e acórdão da RP de 24/02/2005, proc. nº. 0530135, disponível em www.dgsi.pt).
Se as águas decorrem, naturalmente e sem obra do homem, de um prédio superior para um prédio inferior, nos termos do supra citado artº. 1351º, nº. 1 do Código Civil, haverá uma simples limitação do direito de propriedade sobre imóveis, que decorre directamente da lei, mas não um encargo adicional inerente à servidão de escoamento (cfr. acórdão do STJ de 23/01/2001, proc. nº. 00A3364, disponível em www.dgsi.pt).
Este encargo de escoamento natural das águas configura uma situação normal de relação propter rem de vizinhança imobiliária, que delimita ou cerceia o exercício dos direitos de propriedade sobre os prédios envolvidos, em vista da sua função social, que se distingue da limitação anormal da propriedade representada pela servidão de escoamento (cfr. Prof. Oliveira Ascensão, Direito Civil - Reais, 4ª ed., 1987, Coimbra Editora, pág. 450 e 451; Luís Manuel Menezes Leitão, Direitos Reais, 5ª ed., 2015, Almedina, pág. 182 e acórdão do STJ de 15/01/2019, proc. nº. 388/14.6TJVNF, disponível em www.dgsi.pt).
Em consequência desta regra plasmada no artº. 1351º, nº. 1 do Código Civil, não é permitida qualquer modificação na escorrência natural das águas, não podendo o dono do prédio inferior fazer obras capazes de perturbar o escoamento natural, nem o dono do prédio superior fazer obras que o agravem, ressalvando-se os casos de constituição de servidão legal de escoamento nos termos previstos no artº. 1563º do Código Civil (cfr. Luís Manuel Menezes Leitão, ob. cit., pág. 182 e acórdão do STJ de 9/11/1995, proc. nº. 087242, disponível em www.dgsi.pt).
Referindo-se ao encargo de escoamento natural das águas, escreveu Mário Tavarela Lobo (in Manual do Direito das Águas, Vol. II, 1999, Coimbra Editora, pág. 65) que: “As águas pluviais, em princípio, deverão seguir a direcção determinada pela inclinação natural do terreno, sendo vedado ao proprietário do prédio onde caem desviá-las desse curso natural”.

Resulta, ainda, do que escreveu este autor na obra supra citada, na pág. 418, que:

1º) - O proprietário do prédio superior não pode modificar o escoamento das águas pluviais ou das nascentes existentes no seu terreno de forma a lançar sobre os vizinhos um curso de água mais forte; e
2º) - Por maioria de razão, não pode o mesmo proprietário aumentar artificialmente o volume das águas que derivam sobre os prédios inferiores.

Na pág. 420 da mesma obra, também escreveu que “O art. 1351º exige a ausência de obra de homem para impor ao prédio inferior o ónus de receber as águas escoadas do prédio superior, seja qual for o objectivo em vista ao proceder a tais obras”.
E na nota 4 dessa mesma página, lê-se: “Entre os numerosos exemplos de obras de homens (opus manu factum), refiram-se os diques ou fossas, plantação de árvores, modificações do curso natural por derivação ou canalização, obras de rebaixamento do terreno a tornar o curso de escoamento mais impetuoso, etc.”.
Relacionado, ainda, com tal encargo, escreveu Guilherme Alves Moreira, no domínio da legislação anterior ao Código Civil de 1966 (in As Águas no Direito Civil Português, Livro II, 1960, Coimbra Editora, pág. 250 e 251), mencionado nos acórdãos do STJ de 15/01/2019 e da RP de 17/06/2014 acima referidos (ambos disponíveis em www.dgsi.pt), que “as águas que os prédios inferiores têm de receber são: as águas pluviais que caiam directamente no prédio superior ou que para este decorram de outros prédios superiores a ele; as águas provenientes da liquefacção das neves e gelos; as que se infiltrem no terreno e as nascentes que brotam naturalmente num prédio.
(…)
Em relação a qualquer destas águas, só há para os prédios inferiores o ónus de as receberem quando elas sigam o seu curso normal, que é o determinado pelo declive do terreno. Sempre que tais águas sejam desviadas do seu curso natural, cessa a obrigação que aos proprietários dos prédios inferiores é imposta (…), e, embora haja para os proprietários dos prédios inferiores a obrigação de dar escoamento às águas, essa obrigação só poderá ser imposta judicialmente, na falta de prévio acordo, e mediante indemnização”.
Como é referido no acórdão da RP de 17/06/2014 supra citado, «não obstante a obrigação de receber as águas que naturalmente derivem para o prédio inferior, o seu proprietário pode opor-se a obras que desviem o curso normal das águas ou o tornem mais gravoso para o seu prédio, contra actos que alterem ou agravem o escoamento das águas. Assim, não é permitida qualquer modificação que provoque agravamento da restrição ao direito de propriedade resultante da obrigação de receber as águas que decorrem naturalmente do prédio superior, nomeadamente quando dessas alterações advém a poluição das águas que se projectam sobre o prédio inferior, deixando de ter o direito de lançar tais águas sobre este prédio (cfr. ac. do STJ de 9/11/95, na CJ STJ - ano III, tomo III, pág. 104), ou provocando maior caudal».
Diferente daquele encargo estipulado no referido artº. 1351º, é a servidão de escoamento prevista no artº. 1563º do Código Civil, a qual pressupõe a realização de obras que desviem o curso natural das águas ou que provoquem a derivação de águas que tenderiam a ficar estagnadas no prédio dominante (cfr. Pires de Lima e Antunes Varela, ob. cit., pág. 660; acórdãos do STJ de 3/10/1991, BMJ nº. 410, pág. 776 e da RG de 23/10/2002, proc. nº. 948/02-2, disponível em www.dgsi.pt).
Tratando-se de escoamento de águas que tenham sido, de algum modo, desviadas do seu curso natural ou condicionadas por meio de obra humana, o direito a tal escoamento só poderá ser licitamente fundado em constituição de servidão predial nos termos gerais do artº. 1547º, n.º 1 do Código Civil (por contrato, testamento, usucapião ou destinação do pai de família) ou em servidão legal de escoamento mediante indemnização, conforme previsto no artº. 1563º, n.º 1, al. a) e b) do mesmo Código (cfr. acórdão do STJ de 15/01/2019 acima referido).

Reportando-nos ao caso dos autos, e do que nos é possível apreender da apreciação feita pelo Tribunal “a quo” sobre o escoamento das águas do prédio dos AA. para o dos RR., entendeu aquele Tribunal que os RR. não estavam obrigados a suportar essas águas no seu prédio, no âmbito das limitações previstas no artº. 1351º do Código Civil, escrevendo a este respeito, na sentença recorrida, o seguinte:

«No caso em apreço, alegaram os AA. que as águas provenientes do seu prédio se escoavam para o prédio dos RR. através de uns buracos existentes no muro divisório dos prédios.
Ora, resulta evidente que a descarga de águas pelos mencionados orifícios não é uma corrente natural e sem obra do homem; pelo contrário, é produto de obra humana, pois a criação de tais buracos no muro sempre teria dado curso diferente às águas existentes no prédio da A., concentrando e encaminhando o escoamento das mesmas através de tais aberturas.
Ou seja, antes da existência de tais buracos, certamente as águas não se sumiriam pelo exacto local onde os mesmos se situam; antes escorreriam livremente por toda a extensão do limite seu prédio. Nunca se trataria, assim, de corrente natural e sem acção humana; o modo como as águas são encaminhadas para o prédio dos RR. sempre permitiria afirmar a verificação de uma corrente artificial assim construída: tais aberturas criariam a concentração de águas em pontos específicos do prédio dos AA., designadamente, junto a esses buracos.
No sentido acima exposto decidiu o Acórdão do Tribunal da Relação do Porto de 24-2-2005, in www.dgsi.pt.
Em suma: o percurso que naturalmente as águas tomariam sempre seria diferente caso tais orifícios não existissem. Assim, não há dúvida que o referido escamento das águas por tais buracos sempre resultaria da intervenção humana, pelo que os RR. nunca estariam obrigados a acolher as referidas águas no seu prédio.»
Com efeito, resulta da matéria de facto apurada que o prédio dos AA. confina com o dos RR. e que o primeiro fica a uma cota de nível superior ao dos últimos. Os AA. procederam à construção de um muro na linha divisória entre os dois prédios, há cerca de 45 anos, que serve igualmente como suporte das terras do seu prédio rústico, e abriram nele 16 buracos para permitir o escoamento das águas do seu prédio para o prédio dos RR., tendo estes tapado totalmente 11 desses buracos e parcialmente outro, encontrando-se os restantes buracos desobstruídos, pelos quais escoam as águas das chuvas e que caem no prédio dos AA. (constituindo este último facto o ponto 26 dos factos provados aditado por este tribunal de recurso).
Como é admitido pelos próprios RR./recorridos, nas suas contra-alegações, não está aqui em causa o escoamento das águas pluviais que caem no prédio dos AA. e que vão ter naturalmente ao prédio dos RR., mesmo que seja através dos ditos buracos do muro que se encontram abertos, tanto mais que os RR. nunca se opuseram a esse escoamento, como consta do ponto 27 dos factos provados aditado por este tribunal de recurso.
O que os AA./recorrentes pretendem é que seja constituída uma servidão de escoamento sobre o prédio dos RR., relativamente às águas e enxurros que saem de um tanque existente no prédio dos AA e que, segundo eles, são conduzidas por um rego até aos orifícios abertos no mencionado muro divisório dos prédios, através dos quais deverão passar para o prédio dos Réus.
Ora, perante o quadro factual dado como provado e em conformidade com a interpretação dada ao artº. 1351º do Código Civil, o Tribunal recorrido optou por seguir a solução adoptada no acórdão da RP de 24/02/2005 (proc . nº. 0530135) já atrás mencionado, concluindo que a descarga das águas pelos mencionados orifícios do muro para o prédio inferior não é uma corrente natural e sem acção humana; ao invés, a abertura dos buracos no muro e o encaminhamento das águas para o prédio dos RR., através desses buracos, é produto da mão humana. O modo como as águas eram encaminhadas para o prédio dos RR. constituía uma corrente artificial construída pelos AA., pois daria um percurso diferente às águas do prédio dos AA. e criaria a concentração de águas em pontos específicos daquele prédio, designadamente junto a esses buracos, agravando, assim, o ónus que recai sobre o prédio dos Réus.
E, havendo intervenção humana, não estariam os RR. obrigados a receber essas águas no seu prédio, ao abrigo do n.º 2 do citado artº. 1351º.
Como se refere no mencionado acórdão em que o Tribunal “a quo” se estriba, se estivessem preenchidos os requisitos legais, poderia ser, eventualmente, motivo para a constituição de uma servidão de escoamento prevista no artº. 1563º do Código Civil, mas não a obrigação baseada no artº. 1351º, nº. 1 do mesmo Código.
No que se refere a esta parte, a solução plasmada na sentença recorrida não nos merece qualquer reparo. Apesar deste tribunal de recurso ter acrescentado à matéria de facto provada os factos nºs 26 e 27 acima referidos, afigura-se-nos que estes são completamente inócuos em relação àquela posição defendida pelo Tribunal de 1ª instância, pois como já se referiu, não está aqui em causa o escoamento das águas pluviais que caem no prédio dos AA. e que vão ter naturalmente ao prédio dos Réus.
Por outro lado, conforme se alcança da prova produzida nos autos, constatámos não terem sido alegados pelas partes, nos respectivos articulados, determinados factos que foram mencionados por várias testemunhas em audiência de julgamento – designadamente os relacionados com o escoamento e o percurso das águas que saem do tanque existente no prédio dos AA. e que ocorria antes de ter sido retirado o antigo portão de passagem, em ferro e rede, que existia a sul, na fronteira entre os dois prédios e daquela passagem ter sido tapada com um muro em pedra mandado construir pelos RR., o que, de certa forma, foi corroborado com o que foi directamente visualizado pelo Mº Juiz “a quo” na inspecção ao local e que se mostra descrito na “motivação de facto”, como já atrás referimos – e que se mostrariam relevantes na apreciação da questão do escoamento natural das águas provenientes do prédio dos AA. para o prédio dos Réus. Podendo esses factos, em nosso entender, ser essenciais para o desfecho da presente acção, e não tendo sido alegados pelas partes, não foram incluídos na matéria de facto provada, não podendo, por isso, ser levados em consideração pelo Tribunal na decisão da causa.
De seguida, o Tribunal recorrido apreciou a questão de saber se o prédio dos AA. beneficia de servidão de escoamento, em sentido técnico, sendo esta a questão que os ora recorrentes pretendem seja decidida a seu favor, com o reconhecimento de uma servidão de escoamento, constituída por usucapião, das águas e enxurros que saem do tanque existente no seu prédio e que, segundo eles, são conduzidas através de um rego até ao muro divisório entre os dois prédios, para serem escoadas pelos orifícios existentes nesse muro para o prédio dos Réus.
Antes de apreciarmos esta questão em concreto, importa tecer algumas considerações sobre as servidões prediais em geral e a servidão de escoamento em particular, designadamente a forma da sua constituição.
O art.º 1543º do Código Civil define servidão predial como “o encargo imposto num prédio em proveito exclusivo de outro prédio pertencente a dono diferente; diz-se serviente o prédio sujeito à servidão e dominante o que dela beneficia”.

Esta noção genérica de servidão evidencia o seguinte:

a) a servidão é um encargo, uma restrição ou limitação ao direito de propriedade;
b) o encargo recai sobre um prédio (o onerado ou serviente);
c) o mesmo aproveita exclusivamente a outro prédio (o dominante);
d) os prédios devem pertencer a donos diferentes (cfr. Pires de Lima e Antunes Varela, Código Civil Anotado, ob. cit., pág. 613).

Podem ser objecto de servidão quaisquer utilidades, nos termos do artº. 1544º do Código Civil.
De acordo com o disposto no artº. 1547º do Código Civil, as servidões prediais podem ser hoje constituídas por contrato, testamento, usucapião e destinação do pai de família (nº. 1), e as servidões legais, na falta de constituição voluntária, podem ser constituídas por sentença judicial ou por decisão administrativa (nº. 2).
Quanto às servidões legais, o artº. 1563º do Código Civil prevê, precisamente, a referente ao escoamento.

Sobre a servidão de escoamento, escreveu Oliveira Ascensão (in ob. cit., pág. 450 a 452) o seguinte:

«A garantia do escoamento das águas que se encontram em quantidade excessiva em determinado prédio constitui uma instante necessidade, equiparável às que justificaram as servidões anteriores. Por isso a lei não se contentou em deixar à autonomia das partes a regulamentação dos seus interesses; estabeleceu mesmo, em certos casos, uma servidão coactiva de escoamento.
A lei impõe também a indemnização em contrapartida da constituição desta servidão e estabelece regras sobre a liquidação (nº. 3). A outorga da indemnização deve preceder a constituição de servidão (artº. 1563º, nº. 1).
(…)

O artº. 1563º, nº. 1 enumera os casos em que a servidão coactiva de escoamento é permitida:

a) Quando, por obra do homem e para fins agrícolas ou industriais, nasçam águas em alguns em algum prédio ou para ele sejam conduzidas de outro prédio;
b) Quando se pretenda dar direcção definida a águas que seguiam o seu curso natural;
c) Em relação às águas provenientes de gaivagem, canos falsos, valas, guarda matos, alcorcas ou qualquer outro modo de enxugo de prédios.
d) Quando haja concessão de águas públicas, relativamente às sobejas.”
(…)

Apesar de uma mais cuidada apresentação das hipóteses em que se pode verificar servidão de escoamento, elas continuam a poder reconduzir-se às duas que já eram conhecidas na legislação anterior:
- quando num prédio existam águas em quantidade excessiva;
- quando para um prédio sejam, por acção do homem, conduzidas águas.»

No caso dos autos, os AA. não alegaram qualquer matéria subsumível na previsão daquele preceito (nem na previsão do artº. 1561º, para o qual o nº. 4 daquele preceito remete), faltando, por isso, a prova dos actos de posse, a sua incorporação no tempo e a definição das obras que desviassem o curso natural das águas ou que provocassem a derivação de águas que tenderiam a ficar estagnadas no prédio dominante e que se tornariam excessivas.
Para além disso, a constituição de servidão legal de escoamento sempre implicaria a indemnização do prejuízo daí decorrente, nos termos do nº. 1 do artº 1563º, não tendo sequer sido alegada matéria a esse respeito, razão pela qual o Tribunal “a quo” concluiu (a nosso ver, bem) que não poderia ser constituída uma servidão de escoamento nos termos do citado artº. 1563º do Código Civil.
Contudo, salvo o devido respeito, não partilhamos da posição assumida pelo Tribunal “a quo” na parte em que entendeu que a servidão de escoamento de águas pluviais nem sequer é susceptível de ser constituída por usucapião, atento o disposto no n.º 2 do citado art. 1351º, que apenas ressalva a possibilidade de constituição de servidão legal de escoamento, permitida apenas nos termos do art.º 1563º do Código Civil, mediante o pagamento da correspondente indemnização, seguindo aqui de perto a doutrina plasmada no acórdão da RP de 17/06/2014 (proc. nº. 148/11.6TBMSF) supra citado.
Quanto a esta matéria, perfilhamos a posição defendida pela doutrina e jurisprudência que entende que a circunstância de a lei permitir a constituição coerciva da servidão de escoamento não impede que o mesmo tipo de servidão se possa constituir por via negocial ou por usucapião (cfr. Pires de Lima e Antunes Varela, ob. cit., pág. 661; acórdãos do STJ de 3/10/1991, BMJ nº. 410, pág. 776 e da RG de 23/10/2002, proc. nº. 948/02-2, disponível em www.dgsi.pt).
Segundo o supra citado acórdão da RG de 23/10/2002, “a servidão de escoamento, que visa solucionar o problema das águas sobejas no prédio dominante - quer estas provenham duma corrente ou das chuvas, quer tenham brotado do solo por obra do homem, quer sejam conduzidas doutro prédio - também pode constituir-se por usucapião”.
Pretendem os AA./recorrentes, em sede de recurso, a constituição da servidão de escoamento por usucapião, de acordo com o disposto no supra citado artº. 1547º, nº. 1 do Código Civil.
Como o Tribunal “a quo” refere na sentença sob censura, para se adquirir, por usucapião, um direito susceptível de ser adquirido por essa via, é imprescindível que o seu titular exerça a posse correspondente ao direito em causa e que a mantenha durante certo lapso de tempo (artº. 1287º do Código Civil).
A posse define-se, portanto, por dois elementos essenciais, a saber: o “animus” que corresponde à actuação do possuidor com a convicção de que está a exercer um direito próprio; e o “corpus” que se analisa no conjunto de actos materiais correspondentes ao exercício do direito em causa (artºs 1251º e 1253º, al. a) ambos do Código Civil).
A relação possessória é uma relação permanente e duradoura e, por isso, os factos que a integram terão de ser exercidos por forma a que se possa concluir que aquele que os praticou pretende realizar sobre a coisa um poder permanente.
A referida posse terá ainda de ser pacífica e pública, ou seja, adquirida e mantida sem violência e de modo a poder ser conhecida pelos interessados (artºs 1261º, 1262º e 1297º todos do Código Civil). Poderá a mesma ser de boa ou má fé, consoante o possuidor ignorava ou não, ao adquiri-la, que lesava o direito de outrem, presumindo-se de boa fé a posse titulada e de má fé a não titulada (art.º 1260º do mesmo Código).
Ora, analisada a matéria de facto provada, andou bem o Tribunal “a quo” ao concluir que os AA. não provaram, como lhes competia, nos termos do art.º 342º, n.º 1 do Código Civil, os factos constitutivos do direito que invocaram. Designadamente, não ficou demonstrado que os AA. e os seus antecessores tenham praticado actos materiais reveladores do direito em escoar as águas sobrantes do tanque existente no seu prédio, através dos orifícios criados no muro, para o prédio dos RR., nem que tenham agido convencidos de tal direito (cfr. factos não provados nºs 2 a 8).
Como tal, não poderiam os AA. ver reconhecido esse seu direito com base na usucapião, não merecendo reparo, nesta parte, o decidido pelo Tribunal recorrido.
*
III) - Saber se os RR. estão obrigados a desobstruir as aberturas existentes no muro construído pelos AA. na zona de delimitação entre os dois prédios, com vista a permitir o escoamento de águas pelas mesmas:

Entendem os recorrentes que, mesmo que não seja julgada procedente a impugnação da matéria de facto, ainda assim face aos factos dados como provados e aqueles que pretendem sejam aditados à factualidade assente, por terem sido confessados pelos RR., a presente acção deve ser julgada parcialmente procedente e ordenada a desobstrução de todas as aberturas existentes no muro que é propriedade exclusiva dos AA. e que foram tapadas pelos RR., de forma a permitir a passagem das águas para o seu terreno.
Como vimos, resulta dos factos provados nºs 28 e 29, acrescentados por este tribunal de recurso, que o terreno dos RR. junto às aberturas do muro fica em plano mais inclinado e todas as águas caem para uma caixa de recolha de águas referida em 25 dos factos provados, tendo esta caixa sido construída por acordo entre AA. e RR. e para receber todas as águas advindas do prédio daqueles.
Independentemente do sistema de escoamento e do percurso da água proveniente do tanque existente no prédio dos AA. dado como provado nos pontos de facto nºs 12 a 17 e detalhadamente explanado na “motivação de facto” da sentença recorrida, e tendo ficado também demonstrado nos autos que por acordo entre AA. e RR. foi construída uma caixa de recolha de águas no prédio dos RR., junto à extremidade norte do referido muro, para receber todas as águas advindas do prédio dos AA., que seriam escoadas pelos buracos que se mantêm abertos no muro, situados na zona mais próxima da caixa de águas e onde o terreno dos RR. fica em plano mais inclinado, sendo para essa caixa que caem todas as águas, não poderá proceder o pedido formulado pelos AA. no sentido de serem os RR. condenados a desobstruir os mencionados orifícios existentes no muro, com vista a permitir o escoamento de águas pelos mesmos.
Como vimos, existindo já uma solução acordada entre AA. e RR. para o escoamento de todas as águas provenientes do prédio dos AA., de forma a minimizar os impactos que o escorrimento das águas pudessem ter em ambos os prédios, caberia a cada uma das partes criar todas as condições necessárias para a condução e drenagem dessas águas para a caixa de recolha de águas construída no prédio, o que certamente não passará pela desobstrução dos buracos do muro que foram tapados, pelas razões expendidas na fundamentação da sentença recorrida.
Apesar do aditamento dos factos acima referidos à matéria de facto provada, este não tem repercussão na decisão do recurso interposto pelos AA., porquanto o mesmo terá de improceder, mantendo-se a sentença recorrida, pese embora por outros fundamentos.
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SUMÁRIO:

I) - O encargo de escoamento natural das águas estabelecido no artº. 1351º, n.º 1 do Código Civil circunscreve-se ao escoamento de águas de prédio superior para prédio inferior que procedam de corrente natural e sem obra do homem, assim como da terra e entulhos por elas arrastados, não abrangendo os casos em que tais águas sejam encaminhadas ou desviadas por intervenção ou obra humana.
II) - Em consequência da regra estabelecida no artº. 1351º, nº. 1 do Código Civil, não é permitida qualquer modificação na escorrência natural das águas, não podendo o dono do prédio inferior fazer obras capazes de perturbar o escoamento natural, nem o dono do prédio superior fazer obras que o agravem, ressalvando-se os casos de constituição de servidão legal de escoamento nos termos previstos no artº. 1563º do Código Civil.
III) - Diferente do encargo estipulado no referido artº. 1351º, que constitui uma restrição ao direito de propriedade sobre imóveis, que decorre directamente da lei, é a servidão de escoamento prevista no artº. 1563º do Código Civil, a qual pressupõe a realização de obras que desviem o curso natural das águas ou que provoquem a derivação de águas que tenderiam a ficar estagnadas no prédio dominante.
IV) – Tratando-se de escoamento de águas que tenham sido, de algum modo, desviadas do seu curso natural ou condicionadas por meio de obra humana, o direito a tal escoamento só poderá ser licitamente fundado em constituição de servidão predial nos termos gerais do artº. 1547º, n.º 1 do Código Civil (por contrato, testamento, usucapião ou destinação do pai de família) ou em servidão legal de escoamento mediante indemnização, conforme previsto no artº. 1563º, n.º 1, al. a) e b) do mesmo Código.
V) - A servidão de escoamento, que visa solucionar o problema das águas sobejas no prédio dominante - quer estas provenham duma corrente ou das chuvas, quer tenham brotado do solo por obra do homem, quer sejam conduzidas doutro prédio - também pode constituir-se por usucapião.

III. DECISÃO

Em face do exposto e concluindo, acordam os Juízes da Secção Cível do Tribunal da Relação de Guimarães em julgar improcedente o recurso de apelação interposto pelos Autores M. T. e marido A. C. e, em consequência, confirmar a sentença recorrida, pese embora com diferente fundamentação.
Custas pelos recorrentes.
Notifique.
Guimarães, 9 de Junho de 2020
(processado em computador e revisto, antes de assinado, pela relatora)

Maria Cristina Cerdeira (Relatora)
Raquel Baptista Tavares (1ª Adjunta)
Margarida Almeida Fernandes (2ª Adjunta)