RESPONSABILIDADE CIVIL EXTRACONTRATUAL
DEVERES DE PREVENÇÃO DO PERIGO
DEVERES DE TRÁFEGO
Sumário


I- O artigo 486º do Código Civil prevê que as simples omissões dão também lugar à obrigação de reparar os danos quando por força da lei ou de negócio jurídico havia o dever de praticar o ato omitido.
II- Para que haja lugar à indemnização a lei exige, por isso, que haja um dever de praticar o ato omitido, mas também que haja entre a omissão e o dano um nexo de causalidade (cfr. artigo 563º do Código Civil).
III- No que se refere às condutas omissivas, a obrigação de agir pode resultar da lei ou ter uma fonte negocial, existindo também dever de agir para evitar o dano quando a pessoa tenha sido criadora da fonte especial de perigo da qual o dano resultou.
IV- A obrigação de indemnizar pode fundar-se, por isso, no incumprimento de deveres destinados a prevenir determinados perigos, no incumprimento de deveres de segurança no tráfego (ou deveres de tráfego) que surgem quando alguém tenha sido o criador de uma fonte de perigo (ou a controle), caso em que se lhe impõe tomar todas as medidas adequadas a prevenir ou evitar os danos que dai possam decorrer.
V- A ré, que explora um estabelecimento de hotel, incorre na obrigação de indemnizar o autor que, circulando em corredor, cujo piso era em mármore polido, tornando-se escorregadio quando com água, aí escorregou e caiu pelo facto daquele se encontrar molhado ou humedecido e escorregadio, se não procedeu à eliminação das humidades que tornaram o piso escorregadio, incumprindo dessa forma o dever geral de diligência e cuidado na conservação das instalações para a utilização normal e sem perigo dos seus hospedes.

Texto Integral


ACORDAM NO TRIBUNAL DA RELAÇÃO DE GUIMARÃES

I. Relatório

J. L., residente na Rua …, em ..., Espanha, intentou a presente acção declarativa de condenação sob a forma de processo comum contra Hotel X – Y, Ldª, com sede na EN.., freguesia de ..., concelho de Vila Nova de Cerveira e Seguradora ..., SA, com sede na Avenida …, da cidade de Lisboa, pedindo a condenação solidária das Rés a pagar-lhe a quantia de €73.214,20, acrescida de juros de mora à taxa legal desde a citação e até ao integral pagamento.
Alega, para tanto e em síntese, que sofreu danos patrimoniais e não patrimoniais decorrentes do sinistro que descreve, ocorrido nas instalações da 1ª Ré, do qual resultaram lesões corporais e prejuízos materiais para o Autor e cuja ocorrência imputa à conduta ilícita e culposa da 1ª Ré, sendo que esta, à data, havia transferido a sua responsabilidade civil extracontratual por danos ocorridos na unidade hoteleira em questão para a Ré Seguradora.
Regularmente citada, a Ré Seguradora ..., SA apresentou-se a contestar, invocando as condições da apólice de seguro em causa e impugnando a versão do sinistro e ainda os danos e os montantes alegados, tendo alegado que a queda do Autor se deveu a conduta do próprio; terminou pedindo a improcedência parcial da presente acção.

A Ré Hotel X-Y, Ldª também contestou, impugnando as circunstâncias do sinistro, bem como os danos e valores peticionados; terminou pedindo a improcedência da acção.
Foi dispensada a realização da audiência prévia e, na sequência, proferido despacho saneador, tendo ainda sido fixado o objecto do litígio e enunciados os temas de prova.
No entanto, foi requerida a realização da audiência prévia ao abrigo do disposto no artigo 593º n.º 3 do Código de Processo Civil, à qual se procedeu.
Produzida a prova pericial requerida, o Autor veio ampliar o pedido, pedindo a condenação das Rés a pagar ao Autor, para além do pedido formulado na petição inicial, a quantia adicional de €10.000,00 para compensação da IPP de que ficou portador e dos danos não patrimoniais sofridos e a importância que vier a ser liquidada em momento ulterior, relativamente às dependências permanentes de ajudas medicamentosas e tratamentos médicos regulares.

Veio a efetivar-se a audiência de discussão e julgamento com a prolação de sentença nos seguintes termos, no que concerne à parte dispositiva:
“Pelo exposto, julgo parcialmente procedente a presente acção e, em consequência:

- condeno solidariamente as rés Hotel X – Y, Lda e Seguradora ..., SA, a pagar ao autor J. L. a quantia de € 56.442,78 (cinquenta e seis mil, quatrocentos e quarenta e dois euros e setenta e oito cêntimos), acrescida de juros de mora, à taxa legal de 4%, contados desde a citação até integral pagamento;
- condeno a ré Hotel X – Y, Lda a pagar ao autor J. L. a quantia de € 6.271,42 (seis mil duzentos e setenta e um euros e quareta e dois cêntimos), acrescida de juros de mora, à taxa legal de 4%, contados desde a citação até integral pagamento;
- condeno solidariamente as rés na quantia que se vier a liquidar relativa aos danos futuros aludidos no ponto 45 do elenco dos factos provados, deduzida quanto à ré seguradora da respectiva franquia de 10%;
- absolvo as rés do restante pedido.
Não existem sinais evidentes de litigância de má-fé.
As custas serão provisoriamente suportadas na proporção de metade pelo autor e metade pelas rés, procedendo-se a rateio definitivo após liquidação (art.º 527º, nºs 1 e 2, do NCPC).
Registe e notifique”.

Inconformada, apelou a Ré Seguradora ..., SA concluindo as suas alegações da seguinte forma:
“Conclusões:

1.ª A ora Apelante não se conforma com a mui douta sentença, por entender que não há qualquer violação de norma legal, dever de cuidado ou obrigação contratual.
2.ª Os fatos considerados provados sob os itens 7 e 8 deverão ser considerados não provados, atentos os testemunhos de S. S., gravado no ficheiro 28771824, cuja transcrição se encontra a folhas 175 a 212, F. P., gravado no ficheiro 2871824, D. P., gravado no ficheiro 2871824 e das declarações de parte do próprio Apelado, vide minuto 00.05.07 das aludidas declarações.
3.ª Ninguém viu a queda do Apelado e consequentemente não pode haver prova da causa, do mecanismo e das circunstâncias da mesma, sendo certo que, nem o próprio Apelado disse que o chão estava molhado, imaginando, ou supondo apenas que estava húmido, o que é manifestamente insuficiente para se determinar a causa da queda.
4.ª O Apelado apenas refere que escorregou assim que abriu a porta da piscina, não tendo por isso sequer, atravessado ou percorrido o corredor, pelo que, na ausência de quem tenha assistido à queda, não pode haver prova dos factos 7 e 8 da douta fundamentação de fato.
5.ª Independentemente do ângulo jurídico pelo qual se analise o objecto do litígio, seja ele do ponto de vista contratual, ou extracontratual, não vislumbra a Apelante que haja culpa ou violação de um dever de cuidado por parte do seu segurado, por não ter sido produzida prova nesse sentido.
6.ª Não corresponde à verdade da prova que não houvesse sinalética adequada no local do alegado risco, vide pontos 12 e 13 dos fatos provados, pelo que, há, segundo crê a Apelante um equívoco, na douta fundamentação, quanto à imputação da causa do sinistro ao segurado da ora Apelante nos termos que vêm decididos na douta fundamentação de Direito.
7.ª Verifica-se a violação do disposto nos art.s 799° do CC e 483° e sego do CC, o que se alega para todos os devidos e legais efeitos”.
Pugna a Ré pela procedência do recurso e consequente revogação da sentença recorrida.

Também inconformada com a sentença proferida veio a Ré Hotel X – Y, Ldª apelar concluindo as suas alegações da seguinte forma:

“III. CONCLUSÕES DO RECURSO:

A. O presente recurso vem interposto da sentença proferida pela Secção Cível – J3, do Juízo Central Cível de Viana do Castelo, que julgou parcialmente procedente a acção, e, em consequência, condenou, solidariamente, as rés Hotel X – Y, Lda e Seguradora ..., SA, a pagar ao autor J. L. a quantia de € 56.442,78 (cinquenta e seis mil, quatrocentos e quarenta e dois euros e setenta e oito cêntimos), acrescida de juros de mora, à taxa legal de 4%, contados desde a citação até integral pagamento e a aqui, Recorrente (doravante) Hotel X a pagar ao autor a quantia de €6.271,42 (seis mil duzentos e setenta e um euros e quarenta e dois cêntimos), acrescida de juros de mora, à taxa legal de 4%, contados desde a citação até integral pagamento.
B. Mais condenou, solidariamente, as Rés na quantia que se vier a liquidar relativa aos danos futuros aludidos no ponto 45 do elenco dos factos provados, deduzida quanto à ré seguradora da respetiva franquia de 10%.
C. A decisão de condenação, parcial, das aqui Rés no pedido formulado pelo Autor teve, essencialmente, como fundamento a procedência da matéria invocada pelo Autor, nomeadamente que a queda do autor só ocorreu porque “o corredor se encontrava molhado (…).”
D. O tribunal considerou provado que “No momento em que o autor circulava em tal corredor, o pavimento encontrava-se molhado ou humedecido e escorregadio” e que “O autor escorregou e caiu no mencionado corredor pelo facto daquele se encontrar molhado ou humedecido e escorregadio”. (cf. quesitos 7 e 8 dos factos provados).
E. Quanto a esta concreta questão do piso se encontrar ou não molhado no momento em que o Autor circulava no corredor e, bem assim, no que se refere aos procedimentos de limpeza do Spa, o Tribunal incorreu, salvo o devido respeito, num erro de apreciação e valoração da prova produzida quer a nível documental, quer quanto às testemunhas ouvidas em sede de audiência de julgamento.
F. Quanto à alegada condição do piso no momento da queda do Autor dos procedimentos de limpeza do Spa a Recorrente impugna a resposta dada aos factos provados nºs 7, 8 e 9.
G. O Tribunal, nos factos n.ºs 7 e 8 afirma ter resultado provado que “No momento em que o autor circulava em tal corredor, o pavimento encontrava-se molhado ou humedecido e escorregadio”, e que “O autor escorregou e caiu no mencionado corredor pelo facto daquele se encontrar molhado ou humedecido e escorregadio”.
H. Acontece que a factualidade vertida nestes factos n.ºs 7 e 8 não corresponde à verdade e inexiste nos autos um qualquer elemento, documental ou depoimento de uma qualquer testemunha, que permita extrair semelhante conclusão.
I. Bem ao invés, quer a testemunha, F. P., que exercia as funções de terapeuta no Spa, quer a testemunha D. P., gerente do Hotel X, à data dos factos, negaram, expressamente, que o piso em questão estivesse com água, molhado ou humedecido.
J. Não se trata sequer de aferir da razão por que o Tribunal decidiu atribuir maior credibilidade a uma/s testemunha/s e menor crédito a outra/s testemunha/s, mas antes de aferir da (in)existência de um qualquer meio de prova que possa ter suportado a formação da convicção do Tribunal.
K. O Tribunal apenas pode decidir sobre a prova efetiva de um determinado facto se existir nos autos algum elemento de suporte para a tomada de decisão, pois que se inexistir qualquer elemento probatório, a decisão terá de ser necessariamente de “não prova”.
L. Foi do depoimento destas testemunhas que se serviu o Tribunal “a quo” para fundamentar a decisão quanto à concreta questão do piso estar ou não molhado e no que respeita aos procedimentos de limpeza do espaço em questão.
M. Todavia, resulta de forma clara das declarações prestadas por cada uma destas testemunhas - que não mereceram por parte do Tribunal nenhuma censura ou dúvida sobre a respetiva credibilidade – que no momento da queda, o pavimento do corredor não se encontrava com água, molhado ou humedecido.
N. Estas testemunhas, como salientou o Tribunal, foram ainda decisivas para a demonstração dos procedimentos de limpeza do spa que, como se demonstrou, o Hotel X revelou fazer cumprir.
O. A testemunha, F. P., explicou no seu depoimento - (prestado na sessão da audiência de julgamento de 11.07.2019, gravado no sistema Habilus Media Studio de 00:00:00 a 00:39:20, em concreto entre os minutos 00:32:11 e 00:32:50 e 00:38:57 e 00:39:07) – que o piso do corredor no momento em que foi acudir ao Autor – e saliente-se que foi a primeira pessoa a chegar ao local – não tinha água, nem estava molhado.
P. Também a testemunha, D. P., afirmou, com precisão, no seu depoimento (prestado na sessão da audiência de julgamento de 11.07.2019, gravado no sistema Habilus Media Studio de 00:00:00 a 00:32:00, em concreto entre os minutos 00:05:34 e 00:05:49, 00:15:36 e 00:16:48, 00:24:30 e 00:25:22, e 00:27:35 e 00:27:42 que o piso não estava molhado no momento em que chegou ao local.
Q. O Tribunal fez tábua rasa de tudo quanto foi alegado por estas testemunhas, a propósito do estado do piso do corredor, sendo que foram estas mesmas testemunhas que serviram para alicerçar a sua convicção quanto às circunstâncias em que ocorreu a queda e sobre os procedimentos de limpeza do espaço em questão (o spa).
R. Não podia o Tribunal considerar credível o depoimento destas testemunhas para dar como provada determinada factualidade e, depois, para a matéria invocada pelo Autor para demonstrar o nexo de causalidade entre a alegada conduta do hotel e a queda sofrida pelo Autor, desconsidera, ostensivamente, o que, pelas mesmas, foi referido a propósito do estado do piso, sem acrescentar, na fundamentação que faz, um motivo sério e credível para tal.
S. Não se compreende, salvo o devido respeito, que a Meritíssima Juiz do Tribunal a quo tenha considerado e julgado credível o depoimento das testemunhas F. P. e de D. P. para a prova de determinados factos, designadamente da matéria relativa às circunstâncias da queda do Autor e dos procedimentos de limpeza do hotel, e que tenha desatendido, por completo, estes mesmos testemunhos, para provar que no momento da queda do autor estava uma funcionária na receção do SPA, encarregue de assegurar a limpeza do spa, nomeadamente do corredor de acesso ao mesmo -caso este se encontrasse molhado - e, sobretudo, que em nenhum momento referiram que o piso do corredor, no momento da queda do autor, se encontrava molhado.
T. Pese embora inexista, a este propósito, o princípio da indivisibilidade do depoimento, o certo é que se exige ao Tribunal um dever de fundamentação acrescido, explicitando as concretas razões que o levaram a considerar aquele depoimento válido em determinados segmentos, e não noutros, o que não foi feito na decisão em crise. – vide a este propósito o Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa, de 26.04.2017, relatado no processo n.º 880/14.2TVLSB.L1-1.
U. Inexistindo qualquer fundamentação lógica que motive esta descrença quanto à totalidade do depoimento, sempre deverá este ser atendido e acolhido na sua globalidade, dando-se como não provada a matéria constante dos factos nºs 7 e 8 e provada a presença de uma funcionária, naquele momento, na receção do SPA, factualidade essa que deverá ser aditada aos factos provados.
V. Também em relação ao facto provado nº 9 inexiste nos autos um qualquer elemento, documental ou depoimento de uma qualquer testemunha, que permita extrair semelhante conclusão, ou seja, de que “Naquele momento, não se encontrava no local qualquer funcionário da 1ª ré a proceder à limpeza do pavimento”.
W. Bem ao invés, quer a testemunha, F. P., que exercia as funções de terapeuta no Spa, quer a testemunha D. P., gerente do Hotel X, à data dos factos, trouxeram para os autos uma realidade bem distinta e oposta da que consta da factualidade provada.
X. A testemunha F. P., a propósito dos procedimentos de limpeza do spa e da equipa adstrita ao spa explicou no seu depoimento (prestado na sessão da audiência de julgamento de 11.07.2019, gravado no sistema Habilus Media Studio de 00:00:00 a 00:39:20, em concreto entre os minutos 00:19:46 e 00:21:34 e 00:35:06 e 00:37:11, que quando as terapeutas estavam em massagem ficava sempre uma colega na receção.
Y. O que é mais do que óbvio, porque, caso contrário, não estaria ninguém para receber os hóspedes, dar as indicações necessárias e ainda as toalhas para acederam ao Spa.
Z. Não se percebe que, tendo decorrido da prova produzida que estavam mais hóspedes no Spa e, sendo certo que, no período em que o Autor caiu as duas terapeutas de serviço, a F. P. e a T., estavam ocupadas na sala de tratamentos, certamente que estaria alguém na receção para acolher esses hóspedes e atribuir as toalhas de acesso ao spa, como, aliás, decorreu do depoimento da testemunha F. P..
AA. Em nenhum momento, a referida testemunha, mencionou que no período em que esteve ocupada na sala de tratamentos, a colega da receção, não assegurou as condições de limpeza do spa, nomeadamente do corredor que, saliente-se, tinha sido limpo há, pelo menos, uma hora atrás.
BB. Todavia, com esta factualidade adquirida nos autos, a Mª Juiz a quo, ainda assim, decidiu dar - diga-se mal -como provados os factos nºs 7, 8 e 9.
CC. Para fundamentar esta decisão de dar como provada tal factualidade constante dos pontos 7, 8 e 9 o Tribunal refere expressamente que “ (…) tendo esta testemunha referido espontaneamente que quer ela, quer a outra terapeuta que estava no spa na altura em que ocorreu o sinistro tinham acabado de sair das salas de tratamentos quando se aperceberam que o autor se encontrava caído junto à zona de acesso da piscina. Ora, tal revela de forma segura que durante um período de tempo indeterminado, mas suficiente para que alguém molhado passasse no corredor e o mesmo ficasse escorregadio, as mesmas não puderam verificar e assegurar a limpeza do espaço. Por conseguinte, fazendo apelo às máximas da experiência em que se baseiam as presunções judiciais a que o julgador pode e deve recorrer, é lícito concluir que o autor escorregou no corredor por este se encontrar molhado ou humedecido, o que numa superfície como mármore, potencia significativamente fenómenos de escorregamento.
DD. O Tribunal como não tinha prova efetiva da matéria constante dos pontos 7, 8, 9 e porque se tratava de um facto constitutivo do direito do Autor assumiu como correta a presunção de que, pelo facto de estarem as duas terapeutas ocupadas na sala de tratamentos no momento em que o Autor caiu, “durante um período de tempo indeterminado, mas, no seu entender, suficiente para que alguém molhado passasse no corredor e o mesmo ficasse escorregadio, as mesmas não puderam verificar e assegurar a limpeza do espaço”.
EE. Acontece que não foi essa realidade que resultou da prova produzida e que a Mª Juiz “a quo”, ostensivamente, desconsiderou, optando pela via do uso das presunções judiciais para colmatar a falha de prova de um facto que ao Autor cumpria demonstrar – que o piso do corredor no momento da queda se encontrava com água e molhado.
FF. Tal raciocínio não pode proceder uma vez não se provou matéria suficiente que permita ao Tribunal fazer este juízo de presunção. Bem ao invés, o que se demonstrou é que quando as terapeutas estavam na sala de tratamentos ficava sempre uma colega na receção (cf. depoimento da testemunha F. P. cuja passagem se transcreveu).
GG. O Tribunal partiu do princípio que a equipa adstrita ao Spa era constituída apenas por duas terapeutas, a F. P. e a T., o que é falso.
HH. Com efeito, o Tribunal, a partir do facto conhecido – que as duas terapeutas no momento da queda do autor estavam ocupadas na sala de tratamentos - não podia retirar a conclusão, presumindo-a, de que não foi verificada e assegurada a limpeza do espaço enquanto as terapeutas estavam na sala de tratamentos.
II. Obviamente que, estando as duas terapeutas ocupadas na sala de tratamentos, nunca seriam estas que teriam de assegurar a limpeza do espaço em questão. Para o efeito, e por essa mesma razão, ficava sempre uma colega na receção.
JJ. Ficou demonstrado que estava outra funcionária na receção e, por outro lado, as testemunhas F. P. e D. P. foram claras em afirmar que no momento da queda do autor o piso do corredor não se encontrava com água, nem molhado, razão pela qual é ilegal a presunção judicial extraída pelo tribunal, o que se invoca.
KK. A ilação que o Tribunal a quo tirou a partir de um facto conhecido para firmar um facto desconhecido designa-se “presunção” – cf. artigo 349.º do Código Civil (CC).
LL. Nos termos do artigo 351.º do CC, as presunções judiciais só são admitidas nos casos e termos em que é admitida a prova testemunhal.
MM. Conforme ensina Joel Timóteo Ramos Pereira: “(…) se a presunção judicial constitui uma das formas lícitas do julgador extrair conclusões e proferir uma decisão de mérito que salvaguarde a verdade material e a justiça do caso concreto, a jurisprudência tem entendido que não se pode suprir por via da presunção judicial a carência de prova dum facto sujeito a julgamento, pois tal constituiria a violação do aludido princípio do dispositivo.” (sublinhado nosso) – “Presunções Judiciais – o que são?” in Revista “Os Advogados”, II Série, n.º 24, Abril de 2006.
NN. Assim, deve ser alterada a decisão de prova dos factos provados sob os nºs 7, 8 e 9 para não provados.
OO. E, nesse corolário, ser ainda aditado um novo facto com o seguinte teor:
“No momento em que o Autor sofreu a queda, para além das duas terapeutas, encontrava-se uma funcionária na receção do Spa”.
PP. Impugna-se ainda o facto provado nº 13. O Tribunal deu como provado que “No dia em que o autor sofreu a queda estava instalado um cavalete de sinalização de piso escorregadio apenas na zona de acesso à piscina, circuito de águas e banho turco.
QQ. Acontece que a factualidade vertida neste ponto não corresponde integralmente à verdade e inexiste nos autos um qualquer elemento, documental ou depoimento de uma qualquer testemunha, que permita extrair semelhante conclusão.
RR. Para alicerçar esta decisão quanto a esta concreta matéria o Tribunal explicita que “No que respeita à instalação de um cavalete de sinalização de piso escorregadio para advertir os utentes das zonas recentes lavadas ou zonas húmidas no local, tivemos por absolutamente determinante a observação cuidada dos registos fotográficos juntos ao relatório de peritagem. Diga-se, porém, que analisadas as fotografias nºs 3 a 8 facilmente se conclui que tal cavalete na data do sinistro encontrava-se na zona de acesso à piscina e não no corredor onde o autor veio a cair”.
SS. Salvo o devido respeito, da análise das fotografias nºs 3 a 8 nunca se poderá retirar a conclusão de que não existia um cavalete de sinalização no corredor de acesso ao Spa.
TT. As fotografias em questão permitem tão só constatar que, no momento da alegada queda do Autor, estava instalado um cavalete de sinalização na zona de acesso à piscina.
UU. Assim, não é lícito ao Tribunal extrair a conclusão de que no corredor de acesso ao Spa não existia um outro cavalete de sinalização uma vez que nada disso decorre das fotografias nºs 3 a 8 a que o Tribunal expressamente alude.
VV. Impõe-se, deste modo, a alteração da decisão quanto a este concreto ponto da matéria de facto, no sentido de que do mesmo passe a constar apenas o seguinte: “No dia em que o autor sofreu a queda estava instalado um cavalete de sinalização de piso escorregadio na zona de acesso à piscina, circuito de águas e banho turco”.
WW. Repudia-se, assim, a conclusão do Tribunal “a quo” de que “(…) o autor escorregou no corredor por este se encontrar molhado ou humedecido, o que numa superfície como mármore, potencia significativamente fenómenos de escorregamento”.
XX. Bem ao invés, o que se demonstrou foi que a aqui Recorrente (Hotel X) instalou e fez cumprir todos os mecanismos de segurança que estavam ao seu alcance e que lhe eram exigíveis, designadamente no que respeita à limpeza do Spa e, bem assim, à colocação de sinalização para advertir os clientes da possibilidade do piso estar escorregadio.
YY.A obra de conceção e construção do HOTEL X e, nomeadamente, do Spa cumpre com todas as normas e regulamentações previstas, razão pela qual foi licenciada pelo respetivo Município de Vila Nova de Cerveira e foram concedidos os pareceres favoráveis pelas autoridades competentes na matéria (cf. factos provados 16 a 20).
ZZ. Da prova produzida não emerge qualquer facto voluntário ilícito perpetrado pela aqui Recorrente, como sobretudo inexiste qualquer nexo de causalidade entre uma qualquer alegada e aventada omissão da Recorrente e a queda alegadamente sofrida pelo Autor.
AAA. Não ficou provada qualquer atitude censurável imputável à aqui Recorrente.
BBB. Alterando-se, como se impõe e pelos motivos já assinalados, a decisão do Tribunal recorrido quanto aos concretos pontos da matéria de facto impugnados (alteração dos pontos 7, 8, 9 dos factos provados para não provados, aditar um novo facto e alteração parcial do ponto 13 dos factos provados), os Senhores Venerandos Desembargadores alterarão em conformidade a sentença recorrida, substituindo-a, por outra, que julgue totalmente improcedente o pedido deduzido pelo Autor contra as Rés, Recorrentes, e mais declare que a sentença recorrida violou o artigo 349º do Código Civil.”
Pugna a Ré pela procedência do recurso.
O Autor veio apresentar contra-alegações pugnando pela improcedência dos recursos.
Colhidos os vistos legais, cumpre decidir.
***
II. DELIMITAÇÃO DO OBJECTO DO RECURSO

O objecto do recurso é delimitado pelas conclusões da alegação do recorrente não podendo este tribunal conhecer de matérias nelas não incluídas, sem prejuízo das de conhecimento oficioso (artigo 639º do CPC).

As questões a decidir, tendo em conta o teor das conclusões formuladas pelos Recorrentes, são as seguintes:

A) Do recurso interposto pela Ré Seguradora ..., SA

1- Saber se houve erro no julgamento da matéria de facto, concretamente quanto aos pontos 7) e 8) dos factos provados;
2 – Saber se houve erro na subsunção jurídica dos factos;

B) Do recurso interposto pela Ré Hotel X – Y, Ldª

1- Saber se houve erro no julgamento da matéria de facto, concretamente quanto aos pontos 7), 8), 9) e 13) dos factos provados e se deve ser aditado um novo facto;
2- Saber se houve erro na subsunção jurídica dos factos.

***
III. FUNDAMENTAÇÃO

3.1. Os factos
Factos considerados provados em Primeira Instância:

1. O Hotel X, sito na EN.., freguesia de ..., do concelho de Vila Nova de Cerveira, é gerido e explorado pela 1ª ré.
2. À data do sinistro, a 1ª ré havia transferido a sua responsabilidade por danos ocorridos no aludido hotel em sede de responsabilidade civil extracontratual para a 2ª ré, mediante o contrato de seguro titulado pela apólice 34.00041503, conforme documento de fls. 126v a 136v e cujo teor se dá por integralmente reproduzido.
3. O referido contrato estabelece uma franquia de 10% a cargo do tomador de seguro, com um mínimo de € 100,00, por sinistro.
4. No dia 21.03.2015, o autor encontrava-se instalado com a sua esposa e dois filhos menores, de 4 e 2 anos de idade no referido hotel, a passar o fim-de-semana.
5. No referido dia 21.03.2015, cerca das 11h:45m, o autor sofreu uma queda no corredor do Hotel X, que faz a ligação entre a zona de Spa (piscina, jacuzzi, sauna e banho turco) e a zona da recepção do aludido Spa.
6. Tal corredor está vedado por uma porta em ambos os lados e era em mármore polido, tornando-se escorregadio, quando com água.
7. No momento em que o autor circulava em tal corredor, o pavimento encontrava-se molhado ou humedecido e escorregadio.
8. O autor escorregou e caiu no mencionado corredor pelo facto daquele se encontrar molhado ou humedecido e escorregadio.
9. Naquele momento, não se encontrava no local qualquer funcionário da 1ª ré a proceder à limpeza do pavimento.
10. Antes da abertura do Spa da 1ª ré toda a zona da piscina e respectivos acessos, onde se inclui o corredor onde o autor caiu, são limpos, duas vezes por semana, com uma máquina lavadora de chão e, nos restantes dias, a limpeza do chão é realizada com água quente e uma esfregona.
11. A limpeza do Spa e dos respetivos acessos é feita, diariamente, entre as 7h30 e as 8h30, sendo que o SPA abre ao público às 9h30.
12. Durante todo o período de funcionamento do SPA (das 9h30 às 20h00 durante a semana e das 9h30m às 21h30 ao fim de semana) a equipa adstrita ao SPA do Hotel X procedia à limpeza daqueles espaços quando verificasse que e se encontravam molhados ou húmidos.
13. No dia em que o autor sofreu a queda estava instalado um cavalete de sinalização de piso escorregadio apenas na zona de acesso à piscina, circuito de águas e banho turco.
14. O pavimento da piscina, do átrio de acesso à piscina e ao banho turco é em mármore bujardado a pico grosso, o que confere às referidas áreas a necessária superfície antiderrapante.
15. Encontra-se afixado na aludida recepção, o regulamento interno do Spa do Hotel X, o qual adverte que os clientes devem tomar precauções no piso escorregadio.
16. Por carta datada de 06.01.2011 foi comunicado ao arquitecto responsável pelo projeto de conceção e construção do Hotel X, J. P., que por despacho de 04.01.2011, o Turismo de Portugal emitiu parecer favorável ao projeto de alterações e ampliação do Hotel X, onde se inclui o Spa, mantendo o Hotel X com a classificação de Hotel de 4 estrelas, conforme documento de fls. 152 e 152v e cujo teor se dá por integralmente reproduzido.
17. Na mencionada comunicação emitida pelo Turismo de Portugal é referido expressamente que “Quanto aos equipamentos de uso comum, e sem prejuízo das competências da autarquia nesta matéria, nada há a opor, face ao disposto na Portaria nº 358/2009 de 6 de Abril”, conforme documento junto a fls. 152 e 152v e que se dá por integralmente reproduzido.
18. Posteriormente, a Unidade Local de Saúde do Alto Minho, EPE, por ofício nº 10/AS, datado de 13.01.2011, dirigido ao Senhor Presidente da Câmara Municipal de …, emitiu parecer sanitário favorável, conforme documento junto a fls. 153 e 153v e que se dá por integralmente reproduzido.
19. Por sua vez, o Município de Vila Nova de Cerveira, por despacho de 11.11.2014 averbou ao alvará de licença de utilização turística do hotel a autorização de utilização de “AMPLIAÇÃO PARA UM SPA E SALAS DE REUNIÕES, com área total de 1863,00 m2, conforme documento de fls. 154 a 154v e que se dá por integralmente reproduzido.
20. No âmbito do licenciamento desta obra foram apresentados pelos técnicos responsáveis pelo projeto de construção do Hotel X os respetivos termos de responsabilidade que aqui também se juntam, conforme documento de fls. 155 a 158 e que se dá por integralmente reproduzido.
21. Por via de tal queda, o autor sofreu fractura da anca esquerda.
22. E foi assistido no local do sinistro pelo INEM, que chegou cerca de meia hora depois do mesmo ter ocorrido.
23. De seguida, o autor foi transportado de ambulância para o Complexo Hospitalar Universitário de ... (CHUSC), onde deu entrada, cerca das 15:09.
24. Neste dia (21/03/2015), o autor foi submetido a intervenção cirúrgica, com redução e fixação da fratura com parafusos canulares.
25. No dia 25.03.2015, foi dada alta hospitalar ao autor, com a indicação de fazer curativo a cada 2-3 dias no centro de saúde, retirar agrafos no prazo de 15 dias após a intervenção cirúrgica, tomar injeções a cada 24h de clexane (anticoagulante) durante 1 mês e tomar medicação a cada 8 horas.
26. Após a alta, o autor conseguia caminhar, mas apenas com o apoio de muletas.
27. Regressado ao seu domicílio, o autor permaneceu em repouso, sob medicação e vigilância médica.
28. No dia 02.05.2015, o autor teve uma intercorrência clínica, sequelar à cirurgia, de trombose da veia gemelar no membro inferior esquerdo, que foi tratada com medicação.
29. Por via dessa trombose, passou a ser tratado com heparina durante mais três meses, ou seja, um outro medicamento anticoagulante.
30. E, por via das dores provocadas pela trombose da via gemelar, o autor foi a 3 consultas no CHUSC, mais concretamente, nos dias 2, 5 e 13.05.2015.
31. Em Junho de 2016, o autor teve outra intercorrência clínica, desta feita, sequelar a utilização muletas, mais concretamente, tendinite na mão esquerda, o que o conduziu às urgências do CHUSC, nos dias 09.06.2015 e 13.06.2015.
32. O autor continuou a ser acompanhado por médico ortopedista, sendo que na consulta do dia 23.09.2015, este prescreveu-lhe natação, que aquele passou a frequentar, e a utilização de bicicleta estática, que aquele comprou para recuperação das lesões.
33. O autor deambulou de canadianas até ao dia 25.11.2015, altura em que o médico ortopedista disse ao autor que já se encontrava em condições de caminhar sem apoio.
34. Nesse mesmo dia, 25.11.2015, o autor precisou de assistência médica por complicação consistente com contratura cervical derivada ao uso prolongado de muletas.
35. No dia 11.12.2015, por prescrição médica, o autor iniciou tratamento de fisioterapia para recuperar a musculatura da perna, tendo frequentado, pelo menos, 28 sessões, que se prolongaram até ao dia 26.06.2016.
36. Entre o dia 26.06.2016 até ao dia em que lhe foi dada alta médica, 29.03.2017, o autor manteve as consultas de ortopedia, pois a fratura sofrida corria risco de necrose da cabeça do fémur e tinha de ser vigiada.
37. A partir de Julho de 2016, o autor começou a trabalhar, ainda que com limitações.
38. A data da consolidação médico-legal das lesões sofridas pelo autor é fixável em 29.03.2017.
39. Em consequência das lesões sofridas, o autor ficou portador de uma cicatriz com 10 cm na face lateral da coxa direita; palpação dolorosa na região trocantérica onde se palpa possível cabeça de parafuso; mobilidade preservada mas dolorosa na rotação externa e abdução da anca esquerda, sem dismetria, sem atrofias, sem edema da perda ou aumento de varicosidades na perna.
40. As lesões sofridas pelo autor determinaram um período de défice funcional temporário total fixável em 6 dias e a um período de défice funcional temporário parcial fixável em 734 dias; sendo o período de repercussão temporária na actividade profissional total fixável em 367 dias e o período de repercussão temporária na actividade parcial fixável em 370 dias.
41. Ainda em consequência do embate e das lesões sofridas, o autor padece de um défice funcional permanente da integridade físico-psíquica de 6 pontos, sendo as sequelas de que padece compatíveis com o exercício da actividade habitual, mas implicam esforços suplementares.
42. Sofreu um “quantum doloris” fixável no grau 5, numa escala de 1/7.
43. Um dano estético fixável no grau 3, numa escala de 1/7.
44. E uma repercussão permanente nas actividades desportivas e de lazer fixável no grau 3, numa escala de 1/7.
45. Em consequência das sequelas de que padece, o autor vai continuar a necessitar de ajudas medicamentosas e tratamentos médicos regulares.
46. Durante o período de doença e tratamentos às lesões sofridas, o autor sofreu incómodos, aborrecimentos, transtornos, desespero e angústia e vivenciou preocupações e ansiedade com as consultas e a evolução clínica.
47. O autor nasceu no dia -.08.1964, conforme documento de fls. 12 e cujo teor se dá por integralmente reproduzido.
48. À data que sofreu a queda, o autor era arquiteto e professor, na qualidade de trabalhador independente, auferindo um vencimento variável.
49. Em 2008, o autor declarou um rendimento bruto anual de € 30.149,00€, em 2009 de € 90.470,00, em 2010 de € 35.293,00, em 2011 € 50.165,0, em 2012 de €7.347,00, em 2013 de € 1.500,00 e em 2014 de € 6.380,00.
50. À data da queda, o autor encontrava-se a preparar uma candidatura para elaboração de projeto de arquitetura referente à construção da marina de Villagarcia, a 20km de Santiago.
51. Em consequência da queda e das lesões sofridas, o autor despendeu com a fisioterapia a quantia de € 700,00, com a natação prescrita medicamente a quantia de € 275,00 e com a bicicleta estática a quantia de € 239,20.
52. O 1º réu participou o sinistro à 2ª ré, tendo esta declinado qualquer responsabilidade.
***
Factos considerados não provados em Primeira Instância:

- que, por via da queda e das lesões sofridas, o autor passou a sofrer de crises de ansiedade;
- que os rendimentos do autor baixaram entre 2012 e 2014 pelo facto do mesmo se ter dedicado a cuidar dos seus dois filhos menores;
- que a queda ocorreu pelo facto do autor ter água ou humidade no corpo e pés.
***
3.2. Da modificabilidade da decisão de facto

Os recursos interpostos pelas Rés Ré Hotel X – Y, Ldª e Seguradora ..., SA visam a reapreciação da decisão de facto.
Decorre do n.º 1 do artigo 662º do Código de Processo Civil que a Relação deve alterar a decisão proferida sobre a matéria de facto, se os factos tidos como assentes, a prova produzida ou um documento superveniente impuserem decisão diversa.
E a impugnação da decisão sobre a matéria de facto é expressamente admitida pelo artigo 640º, n.º 1 do Código de Processo Civil, segundo o qual o recorrente deve obrigatoriamente especificar, sob pena de rejeição, os pontos de facto que considera incorrectamente julgados, os concretos meios de prova, constantes do processo ou de registo ou gravação nele realizada, que impunham decisão diversa e a decisão que, no seu entender, deve ser proferida sobre essas questões de facto.
O Autor veio suscitar nas suas contra-alegações a questão do não cumprimento pela Recorrente Seguradora ..., SA do ónus de impugnação da matéria de facto, pugnando pela rejeição do recurso nessa parte.

Vejamos se lhe assiste razão.

De acordo com o referido artigo 640º n.º 1 do Código de Processo Civil é de exigir ao Recorrente que obrigatoriamente especifique:

- os concretos pontos de facto que considera incorretamente julgados;
- os concretos meios probatórios, constantes do processo ou de registo ou gravação nele realizada, que impunham decisão sobre os pontos da matéria de facto impugnados diversa da recorrida;
- quando a impugnação dos pontos da decisão da matéria de facto se baseie em provas gravadas deverá ainda indicar com exatidão as passagens da gravação relevantes e proceder se o entender à transcrição dos excertos que considere oportunos;
- a decisão que, no seu entender, deve ser proferida sobre as questões de facto impugnadas.

O incumprimento de tal ónus implica a rejeição do recurso, na parte respeitante, sem possibilidade sequer de introdução de despacho de aperfeiçoamento.
A este propósito escreve Abrantes Geraldes (Recursos no Novo Código de Processo Civil, 2ª Edição, 2014, página 133) que “O Recorrente deixará expressa a decisão que, no seu entender, deve ser proferida sobre as questões de facto impugnadas, como corolário da motivação apresentada, tendo em conta a apreciação crítica dos meios de prova produzidos, exigência nova que vem no reforço do ónus de alegação, por forma a obviar à interposição de recursos de pendor genérico ou inconsequente (…)” e mas também que importa que “não se exponenciem os requisitos a um ponto que seja violado o princípio da proporcionalidade e seja denegada a pretendida reapreciação da decisão da matéria de facto com invocação de fundamentos que não encontram sustentação clara na letra ou no espírito do legislador” e que, por outro lado, “quando houver sérios motivos para rejeição do recurso sobre a matéria de facto (maxime quando o recorrente se insurja genericamente contra a decisão, sem indicação dos pontos de facto; quando não indique de forma clara nem os pontos de facto impugnados, nem os meios de prova em que criticamente se baseia; ou quando nem sequer tome posição clara sobre a resposta alternativa pretendida) tal efeito apenas se repercutirá nos segmentos afetados (…)”.
Temos entendido como essencial que das conclusões formuladas pelo recorrente constem os pontos da matéria de facto que impugna; é que são as conclusões que delimitam o objeto do recurso, que definem as questões a reapreciar pela Relação, pelo que o cumprimento do ónus decorrente do referido artigo 640º (alínea a) do n.º 1) impõe que nas mesmas sejam indicados todos os concretos pontos de facto que se pretendem impugnar. Conforme se lê no Acórdão desta Relação de 26/06/2018 (disponível em www.dgsi.pt) “Deverá ser rejeitado o recurso genérico da decisão da matéria de facto apresentado pelo Recorrente quando, para além de não se delimitar com precisão os concretos pontos que se pretendem questionar, não se deixa expressa a decisão que, no entender do mesmo, deve ser proferida sobre as questões de facto impugnadas”.
A este propósito pode ainda ler-se no Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 01/06/2017 (também disponível em www.dgsi.pt) que são condicionantes da economia do julgamento do recurso e da natureza e estrutura da decisão de facto que “postulam o ónus, por banda da parte impugnante, de delimitar com precisão o objeto do recurso, ou seja, de definir as questões a reapreciar pelo tribunal ad quem, especificando os concretos pontos de facto ou juízos probatórios, nos termos da alínea a) do n.º 1 do art.º 640.º do CPC”.

Podemos em nosso entender sintetizar dizendo que o recurso respeitante à impugnação da decisão da matéria de facto será, total ou parcialmente, rejeitado quando se verificar alguma das seguintes situações:

- ausência de conclusões sobre a impugnação da decisão da matéria de facto (artigos 635º n.º 4, e 641º n.º 2, alínea b);
- Falta de indicação, nas conclusões, dos concretos pontos de facto que o recorrente considera incorretamente julgados (artigo 640º n.º 1, alínea a);
- Falta de especificação, nas conclusões ou na motivação, dos concretos meios probatórios constantes do processo ou nele registados (v.g. documentos, relatórios periciais, registo escrito, etc.);
- Falta de indicação, nas conclusões ou na motivação, das passagens da gravação em que o recorrente se funda;
- Falta de posição expressa, nas conclusões ou na motivação, sobre o resultado pretendido relativamente a cada segmento da impugnação.

Temos entendido ainda que a Relação, chamada a reapreciar a prova, deve usar de alguma flexibilidade na interpretação da lei e atender ao princípio da proporcionalidade (note-se que o Supremo Tribunal de Justiça tem vindo a alertar, nomeadamente no seu Acórdão de 29/01/2015, disponível em www.dgsi.pt, para a necessidade de uma interpretação “em termos funcionalmente adequados e em conformidade com o princípio da proporcionalidade”; neste sentido v. António Geraldes, Paulo Pimenta e Luís Pires de Sousa, Código de Processo Civil Anotado, página 770, referindo que “na jurisprudência do Supremo é notória a prevalência do entendimento no sentido de evitar a exponenciação dos ónus que a lei prevê nesta sede ou fazer deles uma interpretação excessivamente rigorista a ponto de ser violado o principio da proporcionalidade e de ser denegada a pretendida reapreciação da matéria de facto”).
Ora, analisadas as conclusões do recurso conclui-se que a Recorrente Seguradora ..., SA especifica de forma clara os concretos pontos da matéria de facto que impugna e indica a decisão que, no seu entender deve ser proferida, referindo também os meios de prova em que se baseia a impugnação dos pontos da matéria de facto e indicando as passagens da gravação relevantes, procedendo ainda à transcrição dos depoimentos.
Assim, não se evidencia falha de cumprimento do ónus de alegação previsto no artigo 640º, cumprindo a indicação efetuada pela Recorrente satisfatoriamente as exigências que decorrem daquele preceito.
Entendemos, por isso, que se deverão considerar-se cumpridos pela Recorrente Seguradora ..., SA os ónus impostos pelo artigo 640º n.º 1 do Código de Processo Civil, não sendo de rejeitar o recurso quanto à reapreciação da matéria de facto, pelo que iremos conhecer do mesmo.
Também pela Recorrente Hotel X – Y, Ldª foram cumpridos os ónus impostos pelo artigo 640º n.º 1 do Código de Processo Civil, cumprindo conhecer do recurso.
Importa aqui salientar que incumbe à Relação, como se pode ler no acórdão deste Tribunal de 7/04/2016 (disponível em www.dgsi.pt) “enquanto tribunal de segunda instância, reapreciar, não só se a convicção do tribunal a quo tem suporte razoável naquilo que a gravação da prova e os outros elementos constantes dos autos revelam, mas também avaliar e valorar (de acordo com o princípio da livre convicção) toda a prova produzida nos autos em termos de formar a sua própria convicção relativamente aos concretos pontos da matéria de facto objecto de impugnação, modificando a decisão de facto se, relativamente aos mesmos, tiver formado uma convicção segura da existência de erro de julgamento na matéria de facto”.
Contudo, não nos podemos esquecer da aplicação dos princípios gerais da imediação, da oralidade, da concentração e da livre apreciação da prova, sendo que, relativamente à prova, quer na 1.ª Instância, quer na Relação, vigoram para o julgador as mesmas normas e os mesmos princípios, em particular o referido princípio da livre apreciação da prova consagrado no artigo 607º n.º 5 do Código de Processo Civil.
Prevê este preceito que o “juiz aprecia livremente as provas segundo a sua prudente convicção acerca de cada facto”; tal resulta também do disposto nos artigos 389º, 391º e 396º do Código Civil, respetivamente para a prova pericial, para a prova por inspeção e para a prova testemunhal, sendo que desta livre apreciação do juiz o legislador exclui os factos para cuja prova a lei exija formalidade especial, aqueles que só possam ser provados por documentos ou aqueles que estejam plenamente provados, quer por documentos, quer por acordo ou confissão das partes (2ª parte do referido nº 5 do artigo 607º).
Conforme o ensinamento de Manuel de Andrade (Noções Elementares de Processo Civil, Reimpressão, 1993, página 384) “segundo o princípio da livre apreciação da prova o que torna provado um facto é a íntima convicção do juiz, gerada em face do material probatório trazido ao processo (bem como da conduta processual das partes) e de acordo com a sua experiência de vida e conhecimento dos homens; não a pura e simples observância de certas formas legalmente prescritas”.
A prova idónea a alcançar um tal resultado, é assim a prova suficiente, que é aquela que conduz a um juízo de certeza; a prova “não é uma operação lógica visando a certeza absoluta (a irrefragável exclusão da possibilidade de o facto não ter ocorrido ou ter ocorrido de modo diferente) (…) a demonstração da realidade de factos desta natureza, com a finalidade do seu tratamento jurídico, não pode visar um estado de certeza lógica, absoluta, (…) A prova visa apenas, de acordo com os critérios de razoabilidade essenciais à aplicação prática do Direito, criar no espírito do julgador um estado de convicção, assente na certeza relativa do facto” (Antunes Varela, J. Miguel Bezerra e Sampaio e Nora, Manual de Processo Civil, Manual de Processo Civil, 2ª Edição, Revista e Atualizada, página 435 a 436). Está por isso em causa uma certeza jurídica e não uma certeza material, absoluta.
É claro que a “livre apreciação da prova” não se traduz numa “arbitrária apreciação da prova”, pelo que se impõe ao juiz que identifique os concretos meios probatórios que serviram para formar a sua convicção, bem como a “menção das razões justificativas da opção pelo Julgador entre os meios de prova de sinal oposto relativos ao mesmo facto” (cfr. Antunes Varela, J. Miguel Bezerra e Sampaio e Nora, Obra Cit. página 655).
Por isso, o “juiz [de 1ª Instância] explicará por que motivo deu mais crédito a uma testemunha do que a outra, por que motivo deu prevalência a um laudo pericial em detrimento de outro, por que motivo o depoimento de certa testemunha tecnicamente qualificada levou à desconsideração de um relatório pericial ou por que motivo não deu como provado certo facto apesar de o mesmo ser referido em vários depoimentos. E é ainda assim por referência a certo depoimento e a propósito do crédito que merece (ou não), o juiz aludirá ao modo como o depoente se comportou em audiência, como reagiu às questões colocadas, às hesitações que não teve (teve), a naturalidade e tranquilidade que teve (ou não)” (Paulo Pimenta, Processo Civil Declarativo, Almedina, 2014, p. 325).
É o juiz da 1ª Instância, perante o qual a prova é produzida, que está em posição privilegiada para proceder à sua avaliação, e, designadamente, surpreender no comportamento das testemunhas elementos relevantes para aferir da espontaneidade e credibilidade dos depoimentos que frequentemente não transparecem da gravação.
Assim, a alteração da matéria de facto só deve ser efetuada pelo Tribunal da Relação quando este conclua, com a necessária segurança, que a prova produzida aponta em sentido diverso e impõe uma decisão diferente da que foi proferida em 1ª instância, quando “tiver formado uma convicção segura da existência de erro de julgamento na matéria de facto” (acórdão deste Tribunal de 7/04/2016 disponível em www.dgsi.pt).
No mesmo sentido salienta Ana Luísa Geraldes (Impugnação e reapreciação da decisão sobre a matéria de facto, Estudos em Homenagem ao Prof. Dr. Lebre de Freitas, Volume I, página 609) que “Em caso de dúvida, face a depoimentos contraditórios entre si e à fragilidade da prova produzida, deverá prevalecer a decisão proferida pela primeira Instância em observância aos princípios da imediação, da oralidade e da livre apreciação da prova, com a consequente improcedência do recurso nesta parte”.
Tendo por base tais considerandos analisemos então os argumentos das Recorrentes, sendo que iremos apreciar conjuntamente ambos os recursos uma vez que os factos impugnados são em parte coincidentes.
Sustenta a Recorrente Seguradora ..., SA que houve erro no julgamento quanto aos pontos 7) e 8) dos factos provados, que pretende sejam considerados não provados, invocando para o efeito os depoimentos das testemunhas S. S., F. P. e D. P. e as declarações do próprio Autor.
A Recorrente Hotel X – Y, Ldª sustenta também existir erro no julgamento quanto aos pontos 7) e 8) dos factos provados, que pretende sejam considerados não provados em face das declarações prestadas pelas referidas testemunhas F. P. e D. P., entendendo ainda que deve ser considerada provada a presença de uma funcionária naquele momento na receção do SPA e aditada tal factualidade aos factos provados; a recorrente impugna ainda o ponto 9) dos factos provados que pretende seja também considerado não provado, e o ponto 13) dos factos provados, mas quanto a este pretende apenas que seja alterado no sentido de passar a constar: “No dia em que o autor sofreu a queda estava instalado um cavalete de sinalização de piso escorregadio na zona de acesso à piscina, circuito de águas e banho turco”.

Os referidos pontos da matéria de facto provada têm a seguinte redacção:

“7. No momento em que o autor circulava em tal corredor, o pavimento encontrava-se molhado ou humedecido e escorregadio.
8. O autor escorregou e caiu no mencionado corredor pelo facto daquele se encontrar molhado ou humedecido e escorregadio.
9. Naquele momento, não se encontrava no local qualquer funcionário da 1ª ré a proceder à limpeza do pavimento.
13. No dia em que o autor sofreu a queda estava instalado um cavalete de sinalização de piso escorregadio apenas na zona de acesso à piscina, circuito de águas e banho turco”.
Analisando a motivação exposta pelo tribunal a quo, verificamos que, na análise da prova produzida em audiência, equacionou a prova testemunhal produzida bem como a prova documental constante dos autos, atendeu também às declarações de parte do Autor, conjugando-as à luz das regras da experiência e critérios de normalidade e razoabilidade, e fê-lo de forma crítica e fundamentada, esclarecendo através de raciocínio lógico a forma como formou a sua convicção, especificando os fundamentos decisivos para a formação da mesma e justificando os motivos da sua decisão, esclarecendo de forma fundamentada os motivos da opção tomada perante a prova produzida.

Conforme se pode ler na decisão recorrida:

“(…) do depoimento das testemunhas S. M., L. L. e F. P. que se encontravam nas imediações do local onde aconteceu o acidente, resulta que nenhuma delas assistiu à queda do autor, tendo todas as testemunhas referido que viram o autor caído no chão na zona de acesso à piscina.
Todavia, o autor no decurso do seu depoimento asseverou que a queda ocorreu no corredor que permite o acesso da zona da piscina à receção do Spa, tendo-se arrastado para a zona da piscina para pedir ajuda visto que a mulher e os filhos ainda se encontravam junto à mesma.
Tal depoimento, na sua essência, é consistente com o que nos é dado a perceber da análise do relatório fotográfico junto com o aludido “relatório de sinistro de responsabilidade civil” – cfr., designadamente, as fotos nºs 3 a 8 constantes de fls. 303v a 305 dos presentes autos.
Com efeito, resulta evidente dos aludidos registos que o autor, provinha de tal corredor e notoriamente já fisicamente afetado, e acaba por se deixar cair junto à zona de acesso à piscina, sendo aí abordado pelas referidas testemunhas S. M., L. L. e F. P. que, entretanto, se acercaram do mesmo, tudo levando a crer que o mesmo caiu no corredor, tentou recompor-se e voltar à zona da piscina, e não aguentando as dores deixou-se cair já nesta zona.
Por outro lado, tal relato corresponde aquele que o autor terá transmitido de imediato aos funcionários da 1ª ré, conforme se pode concluir do teor da participação junta a 300 a 301 dos presentes autos.
Acresce que a testemunha D. P., diretor do hotel à data dos factos e que elaborou a dita participação, esclareceu que também não assistiu ao sinistro, mas que foi de imediato informado da queda e que tendo abordado o autor este, embora com muitas dores, disse-lhe que tinha escorregado e caído no aludido corredor – “fiz uma esparregata …” (sic), mostrando-se indignado pelo facto do piso estar muito perigoso.
Não será despiciendo fazer notar que do relatório de triagem constante de fls. 172v do Hospital de ... resulta que foi apresentado precisamente como queixa “traumatismo anca esquerda por hiperextensão …”.
Por outro lado, resultou inequivocamente demonstrado que o pavimento do dito corredor era em mármore polido, tendo as próprias testemunhas da 1ª ré admitido que o mesmo se tornava escorregadio quando ficava molhado ou humedecido, e que tal acontecia com alguma frequência devido ao facto dos clientes, nomeadamente, as crianças circularem naquele espaço provindas da piscina e sem estarem devidamente secas.
Diga-se, ainda, que nenhuma das testemunhas da ré afirmou que o autor se encontrava molhado e que a queda se deveu ao facto do mesmo não se encontrar devidamente seco.
Mais uma vez, socorrendo-nos dos registos fotográficos acima referidos podemos concluir pela consistência das declarações de parte do autor neste particular, visto que o mesmo explicou que saiu da piscina antes dos filhos e que quando estes saíram da piscina já se encontrava seco, tendo vestido o roupão e calçado os chinelos e dirigido à receção para ir buscar mais toalhas para secar devidamente as crianças.
Particularmente relevante para o convencimento do tribunal quanto às circunstâncias em que ocorreu o sinistro foi ainda o depoimento da testemunha F. P., que exercia as funções de terapeuta no spa do hotel, tendo esta testemunha referido espontaneamente que quer ela, quer a outra terapeuta que estava no spa na altura em que ocorreu o sinistro tinham acabado de sair das salas de tratamentos quando se aperceberam que o autor se encontrava caído junto à zona de acesso da piscina.
Ora, tal revela de forma segura que durante um período de tempo indeterminado, mas suficiente para que alguém molhado passasse no corredor e o mesmo ficasse escorregadio, as mesmas não puderam verificar e assegurar a limpeza do espaço.
Por conseguinte, fazendo apelo às máximas da experiência em que se baseiam as presunções judiciais a que o julgador pode e deve recorrer, é lícito concluir que o autor escorregou no corredor por este se encontrar molhado ou humedecido, o que numa superfície como mármore, potencia significativamente fenómenos de escorregamento.
Com efeito, da apreciação crítica e conjugada de todos elementos probatórios referidos, quer quanto ao modo como terá acontecido a queda do autor, quer quanto às condições do corredor, em mármore polido, tornando-se especialmente escorregadio quando molhado e humedecido, é razoável concluir que o autor tenha escorregado por esse mesmo facto.
No que respeita à instalação de um cavalete de sinalização de piso escorregadio para advertir os utentes das zonas recentes lavadas ou zonas húmidas no local, tivemos por absolutamente determinante a observação cuidada dos registos fotográficos juntos ao relatório de peritagem. Diga-se, porém, que analisadas as fotografias nºs 3 a 8 facilmente se conclui que tal cavalete na data do sinistro encontrava-se na zona de acesso à piscina e não no corredor onde o autor veio a cair”.
Ouvidos os depoimentos do Autor e das testemunhas ora indicadas pelas Recorrentes, mas também das demais testemunhas ouvidas em audiência e considerado o teor dos documentos juntos aos autos, em particular do “relatório de sinistro de responsabilidade civil”, e dos registos fotográficos e participação de acidente, não entendemos que se possa concluir que a prova produzida aponta em sentido diverso ou impõe uma decisão diferente da que foi proferida em 1ª Instância; pelo contrário, a convicção que formamos coincide com a do tribunal a quo.
Em primeiro lugar, importa referir que a prova tem de ser analisada na sua globalidade e de forma crítica, não bastando que algumas testemunhas prestem declarações no sentido da pretensão dos recorrentes para que o tribunal deva julgar provado determinados factos; na verdade, as declarações prestadas pelas testemunhas devem ser analisadas no contexto de toda a prova produzida, não só no confronto com os demais depoimentos prestados (seja pelas partes seja por outras testemunhas) mas também com os demais elementos probatórios, designadamente com os documentos juntos aos autos, que constituem muitas vezes elementos objetivos que permitem aferir da credibilidade dos depoimentos prestados.
E, nesse sentido, temos de concluir que nada impede que se possam considerar credíveis, ou suficientes para o tribunal fundar a sua convicção, as declarações prestadas pela mesma testemunha relativamente a determinados factos e já não quanto a outros, relativamente aos quais as declarações não encontram sustentação em qualquer outro meio de prova ou são até contrariadas por estes.
E, na verdade, para além das declarações prestadas pelas referidas testemunhas F. P. e D. P. no sentido de que o local onde ocorreu a queda não teria água ou estaria seco, ou ainda no que respeita ao absoluto cumprimento de regras e mecanismos de segurança, designadamente no que toca à colocação de sinalização, sendo neste sentido também as declarações da testemunha S. S. que referiu que as terapeutas tinham lá sempre a placa amarela sinalizadora, é necessário considerar as declarações prestadas pelo Autor, mas também a prova documental, em particular, como já referimos, o “relatório de sinistro de responsabilidade civil”, elaborado pela testemunha J. V., e os registos fotográficos e a participação de acidente, devendo as declarações prestadas por todos ser analisadas no confronto também de tais elementos probatórios.
Assim, na participação do acidente, elaborada pela testemunha D. P., consta que o Autor supostamente caiu no corredor alegadamente por estar húmido e que não conseguiu apurar se o local estava com agua devido à passagem de clientes que saíram da piscina ou se o próprio tinha saído da piscina e escorregado; a dúvida, no momento da participação, situa-se assim em apurar se o local estaria com água por força da passagem de outros clientes saídos da piscina ou do próprio Autor.
Mas, ouvida a prova, nenhuma das testemunhas afirmou que o Autor estava molhado e que a queda se deveu ao facto do mesmo não se encontrar devidamente seco, pelo contrário a tónica foi colocada pelas testemunhas em causa na inexistência de água e no piso estar seco, sendo certo que o Autor também referiu que já estava seco quando se dirigiu ao corredor. E, tal como se salienta na sentença recorrida, podemos concluir pela consistência das declarações de parte do Autor, considerando os próprios registos fotográficos juntos aos autos.
Já nas suas declarações a testemunha D. P. referiu não ter visto água, mas também referiu não ter ido ver se estava húmido, concretizando depois não ter visto “poças de água”, sendo certo que para o piso estar molhado ou humedecido, e escorregadio, não têm de existir necessariamente “poças de água”.
Da participação consta ainda que a terapeuta, a testemunha F. P., foi a primeira a chegar perto do Autor que informou ter escorregado no corredor quando ia pedir duas toalhas para os filhos, enquanto nas suas declarações a testemunha insistiu que o Autor nunca lhe disse o que aconteceu ainda que ela tivesse perguntado.

Analisando ainda a participação nela se refere já que o Autor informou “estar cheio de dores, as pernas abriram e fiz uma esparregata…”, o que se mostra em sintonia com descrição da queda feita pelo Autor e com o que consta do relatório de triagem constante do Hospital de ... (“traumatismo anca esquerda por hiperextensão …”) tal como se salienta na decisão recorrida.

E se analisarmos o “relatório de sinistro de responsabilidade civil” concluímos também que o mesmo coloca em causa o escrupuloso cumprimento da colocação de sinalização, da placa amarela, e se a mesma estaria colocada no corredor no momento da queda, tal como asseverado pelas testemunhas em causa, sendo certo que o Autor afirmou que a placa não estava colocada no local (no corredor).
Na verdade, mesmo depois de ter ocorrido a queda do Autor, quando o perito (a testemunha J. V.) se deslocou ao hotel no dia 01 de abril, verificou que não se encontrava colocado no corredor qualquer sinal de aviso de pavimento escorregadio e que durante a presença do perito o diretor do hotel deu instruções à rececionista para colocar avisos no corredor de acesso à sauna e de acesso à piscina, tal como mencionado no relatório.
E, se na participação do acidente é mencionada a existência de sinalética a informar o cliente para ter cuidado devido a ser uma zona húmida, é feita referência que a mesma é visível nas imagens, mas nessas imagens apenas é visível que a sinalética se encontrava na zona de acesso à piscina e não no corredor onde o Autor caiu, tal como também referido na motivação da sentença recorrida.

Podemos ainda salientar que no relatório consta que o diretor do hotel (a testemunha D. P.) admitiu que seria possível que existisse água ou humidade no pavimento, porque muitas pessoas se deslocam até à receção a partir da piscina, e que o perito verificou no local que os utentes da piscina deixam pegadas com água mesmo calçando chinelos; aliás, a própria testemunha F. P. referiu que por vezes as pessoas passam a pingar água e elas próprias (as terapeutas) também procediam à limpeza, o que foi também confirmado pela testemunha S. S. que referiu ser comum haver água naquela zona uma vez que as pessoas passam ali vindas da piscina.

E se até à data da queda do Autor não houve noticia de outro incidente com consequências e gravidade semelhantes, não se pode retirar dai a conclusão sobre a segurança nas condições de circulação dos hospedes naquele local, conforme pretende a Recorrente Seguradora; mas, mais uma vez, não podemos deixar de chamar a atenção para o referido relatório onde consta que a testemunha D. P. declarou que foi a primeira queda com consequências graves mas já tinham existido reclamações de pequenas quedas devido às características derrapantes do mármore polido.
Aliás, consta dos factos provados (ponto 6 não impugnado pelas partes) que o corredor era em mármore polido, tornando-se escorregadio, quando com água.
Assim, analisada a prova na sua globalidade não vemos que aponte em sentido diverso ou imponha uma decisão diferente da que foi proferida em 1ª Instância sendo de manter os pontos 7) e 8) dos factos provados; tal como consta da decisão recorrida “é lícito concluir que o autor escorregou no corredor por este se encontrar molhado ou humedecido, o que numa superfície como mármore, potencia significativamente fenómenos de escorregamento. Com efeito, da apreciação crítica e conjugada de todos elementos probatórios referidos, quer quanto ao modo como terá acontecido a queda do autor, quer quanto às condições do corredor, em mármore polido, tornando-se especialmente escorregadio quando molhado e humedecido, é razoável concluir que o autor tenha escorregado por esse mesmo facto”.
Da mesma forma, em face do já exposto, não vemos que deva também ser alterada a redação do ponto 13) dos factos provados no sentido pretendido pela Recorrente Hotel X – Y, Ldª; de facto, o Autor, afirmou que inexistia no corredor onde caiu tal sinalização, a mesma é apenas visível nas fotos apenas na zona de acesso à piscina e não no corredor onde o Autor caiu, e na própria participação do acidente é mencionada apenas a existência da sinalética na zona de acesso à piscina visível nas imagens, e não à existência da mesma no corredor onde ocorreu a queda.
Quanto ao ponto 9) dos factos provados, entende a Recorrente Hotel X – Y, Ldª inexistir qualquer elemento probatório, documental ou testemunhal, que permita extrair a conclusão que naquele momento não se encontrava no local qualquer funcionário a proceder à limpeza do pavimento.
Permitimo-nos discordar de tal firmação pois os elementos probatórios apontam exatamente no sentido que no momento em que o Autor caiu não se encontrava no local qualquer funcionário a proceder à limpeza do pavimento; é que de toda a prova produzida nos autos decorre estar o Autor sozinho no local quando ocorreu a queda, não se encontrando mais ninguém no local da queda, sendo que nenhuma testemunha referiu ter visto a queda mas apenas o Autor já caído; e se não estava ninguém no momento da queda no referido corredor, não estava logicamente ninguém nesse momento a proceder à limpeza do pavimento do local (corredor).
Deve pois manter-se nos factos provados a factualidade em causa.
Questão distinta é se no momento da queda estava presente uma funcionária na receção do SPA e se a mesma tinha por função verificar se o corredor ficava com água, molhado ou húmido e proceder à limpeza do mesmo; baseia-se a Recorrente nas declarações da testemunha F. P. que entende ter afirmado que quando as terapeutas estavam em massagem ficava sempre uma colega na receção. Na verdade, a testemunha afirmou que normalmente quando estão em massagens está uma na receção, dependendo da afluência de massagens que há, e que no momento da queda do Autor ela e a T. estavam ambas a fazer massagem. Porém, não obstante referir que tinham passado a esfregona, não soube esclarecer quanto tempo antes, afirmando apenas não ter sido ela a fazê-lo e nem o ter feito nesse dia, e não soube também dizer concretamente quem no momento estaria na receção ou se estaria alguém, pois ela e a T. estavam ambas na massagem.
E se efetivamente estava na receção uma colega da testemunha não se percebe que esta não tenha sido capaz de a identificar (mencionando apenas a colega T. que estava com ela na massagem) ou de pelo menos indicar quem eram as demais colegas.
Não ficou sequer esclarecido nos autos (pelas declarações das testemunhas ou por prova documental) se no momento estavam outras terapeutas a trabalhar no SPA e quem eram, e, se não estavam, quem era então o funcionário com funções na receção do SPA que no momento da queda alegadamente ali estaria pois que não foi indicado como testemunha e nem identificado por ninguém.
Ora, as declarações da testemunha F. P. não são suficientes para concluir que no momento da queda estava efetivamente presente uma funcionária na receção do SPA, não bastando dizer, como faz a Recorrente que “certamente que estaria alguém na receção para acolher hospedes e atribuir as toalhas de acesso ao SPA”.
Não deve, por isso, ser aditada a factualidade pretendida pela Recorrente.
Por outro lado, e face à prova produzida, afigura-se-nos correto e legitimo concluir que, tal como concluiu o tribunal a quo, durante um período de tempo indeterminado, mas suficiente para que alguém molhado passasse no corredor e o mesmo ficasse escorregadio, as terapeutas F. P. e T. não puderam verificar e assegurar a limpeza do espaço, função que segundo a testemunha F. P. também lhes competia enquanto terapeutas.
Assim, ouvida a gravação da prova produzida em audiência de julgamento, com destaque para as declarações do Autor e das testemunhas mencionadas nas alegações dos recursos, mas sopesando tal prova com a restante prova existente no processo, designadamente com os documentos já referidos, concluímos que o Tribunal a quo fez uma correcta apreciação e análise crítica dos elementos de prova constantes dos autos, conjugando-os, ainda, com as regras da experiência comum, o que merece a nossa concordância, inexistindo fundamento para que seja alterada a matéria de facto no sentido pretendido pelas Recorrentes.
Pelo exposto, por nenhuma censura merecer a decisão a esse respeito proferida pela 1ª Instância, conforme com a prova constante dos autos, mantêm-se inalterada a matéria de facto fixada pela 1ª instância.
Improcedem pois nesta parte os recursos das Rés.
***
3.3. Reapreciação da decisão de mérito da acção

Mantendo-se inalterado o quadro factual julgado provado pelo Tribunal a quo, importa agora apreciar se deve manter-se a decisão jurídica da causa, começando por analisar os demais fundamentos constantes das apelações das Rés.
E, mantendo-se o quadro factual julgado provado, ter-se-á de manter, igualmente, a decisão jurídica da causa, tanto mais que mesmo do ponto de vista das Recorrentes, a sua alteração acaba por estar dependente da procedência da alteração da matéria de facto que, como vimos, não sucedeu.
De facto, sustenta a Ré Seguradora ... SA que inexiste certeza da causa da queda do Autor não estando, por isso, preenchidos os requisitos para se entender que houve violação de qualquer dever inerente a contrato de hospedagem e que inexistindo prova de que o piso estivesse efetivamente molhado no momento da queda, e existindo no local sinalética adequada, não há violação de um dever de cuidado por parte do seu segurado.
A Ré Hotel X – Y, Ldª sustenta que ficou demonstrado que instalou e fez cumprir todos os mecanismos de segurança que estavam ao seu alcance e lhe eram exigíveis, designadamente no que respeita à limpeza do Spa e à sinalização a advertir que o piso podia estar escorregadio; entende, por isso que da prova produzida não emerge qualquer facto voluntário ilícito e inexiste qualquer nexo de causalidade entre a queda do Autor e qualquer omissão sua.
Porém, da análise da factualidade provada resulta evidente que assim não é.
Por um lado resulta demonstrado que o corredor era em mármore polido, tornando-se escorregadio, quando com água, e que no momento em que o Autor circulava em tal corredor, o pavimento encontrava-se molhado ou humedecido e escorregadio, tendo o Autor ai escorregado e caído pelo facto daquele se encontrar molhado ou humedecido e escorregadio; e, por outro lado, naquele momento, não se encontrava no local qualquer funcionário da 1ª ré a proceder à limpeza do pavimento e estava instalado um cavalete de sinalização de piso escorregadio apenas na zona de acesso à piscina, circuito de águas e banho turco.
O Autor baseou a sua pretensão na responsabilidade civil extracontratual; o tribunal a quo enquadrou a situação concreta no âmbito quer da responsabilidade civil contratual (por força do contrato de hospedagem pois o autor encontrava-se, com a sua família, instalado no estabelecimento hoteleiro explorado pela Recorrente Hotel X – Y, Ldª) quer na responsabilidade civil extracontratual, concluindo verificarem-se todos os pressupostos de que depende a obrigação de indemnizar com base em ambas e entendendo ainda que se deve considerar o evento coberto pelo contrato de seguro que tem como objeto a responsabilidade civil extracontratual da entidade responsável.
Vejamos.
Conforme é consabido a responsabilidade civil extracontratual é suscetível de abranger a tríplice espécie derivada de facto ilícito, do risco ou de facto lícito.
A propósito da primeira das referidas vertentes, resulta da lei expressamente que a violação ilícita, com dolo ou mera culpa, do direito de outrem gera a obrigação de indemnizar o lesado pelos danos dela decorrentes (nos termos do artigo 483º do Código Civil, aquele que, com dolo ou mera culpa, violar ilicitamente o direito de outrem ou qualquer disposição legal destinada a proteger interesses alheios, fica obrigada a indemnizar o lesado pelos danos resultantes da violação).
Assim, a responsabilidade civil, geradora da obrigação de indemnizar, impõe a verificação de um facto voluntário, que tal facto seja ilícito, que exista um nexo de imputação do facto ao lesante, indicador da existência e intensidade da culpa, que existam danos e que entre estes e o facto ilícito exista um nexo de causalidade.
Conforme escrevem Antunes Varela e Pires de Lima (Código Civil Anotado, volume I, página 471) o elemento básico da responsabilidade é o facto do agente, “um facto dominável ou controlável pela vontade, um comportamento ou uma forma de conduta humana”, que consiste em regra numa ação mas pode também consistir numa omissão.
O artigo 486º do Código Civil dispõe que as simples omissões dão também lugar à obrigação de reparar os danos quando por força da lei ou de negócio jurídico havia o dever de praticar o ato omitido.
Para que haja lugar à indemnização a lei exige, por isso, que haja um dever de praticar o ato omitido, mas também que haja entre a omissão e o dano um nexo de causalidade (cfr. artigo 563º do Código Civil) devendo “tratar-se de um dano que provavelmente se não teria verificado se não fosse a omissão” (Antunes Varela e Pires de Lima, ob. cit. página 487).
No que se refere às condutas omissivas, a obrigação de agir pode resultar da lei ou ter uma fonte negocial, podendo citar-se relativamente às primeiras os casos previstos nos artigos 491º (responsabilidade das pessoas obrigadas à vigilância de outrem), 492º (danos causados por edifícios ou outras obras) e 493º (danos causados por coisas, animais ou atividades), sendo ainda considerado que há o dever de agir para evitar o dano quando a pessoa tenha sido criadora da fonte especial de perigo da qual o dano resultou.
A obrigação de indemnizar pode fundar-se, por isso, no incumprimento de deveres destinados a prevenir determinados perigos, ou, no incumprimento de deveres de segurança no tráfego (ou deveres do tráfego).
Estes deveres do tráfego surgem quando alguém tenha sido o criador de uma fonte de perigo (ou a controle), caso em que se lhe impõe tomar todas as medidas adequadas a prevenir ou evitar os danos que dai possam decorrer; isto é, adequadas a prevenir os perigos que ocorram ou possam ocorrer por força da mesma.
Relativamente aos deveres de tráfego que constam dos referidos artigos 491º, defende Menezes Cordeiro (Tratado de Direito Civil, volume VIII, páginas 571 a 589) que subjacentes a eles está a ideia de “incentivar a que no momento próprio sejam tomadas as devidas precauções e a de fazer correr, pelos beneficiários do perigo, o risco dos danos”, acrescentando que “numa larga margem e pelas dificuldades da prova, eles acabaram por suportar danos que, em rigor, não lhes respeitariam” havendo-se-lhes conferido, como contrapeso “a hipótese de se prevalecerem da relevância negativa de causas virtuais”.
Por outro lado, a ilicitude tanto pode consistir na violação de um direito (absoluto) de outrem, como na violação de uma disposição legal destinada a proteger interesses alheios, ou ainda no incumprimento dos chamados deveres de segurança no tráfego, acima referidos, que, “terão todavia de corresponder a uma norma de conduta cujo desrespeito seja havido como ilícito e cujo conteúdo dependerá da ponderação de diversos fatores, como a probabilidade da ocorrência do acidente e efeitos danosos a evitar, das medidas preventivas exigíveis e possibilidade de auto-protecção do lesado, sob pena de uma ampla construção e admissão de deveres de prevenção do perigo equivaler na realidade à consagração de uma verdadeira responsabilidade pelo risco, que apenas formalmente se ampara nos esquemas da responsabilidade por culpa” (Acórdão desta Relação de 05/02/2015, Relator Fernando Fernandes Freitas, disponível em www.dgsi.pt).

Como se refere na sentença recorrida, faz todo o sentido a “ideia de aceitação da existência de um dever geral de prevenção do perigo destinada a proteger os interesses alheios, enquanto finalidade que a própria responsabilidade civil por factos ilícitos também consagra no nº 1 do art.º 483º do CC. (…) E a existência de tal dever verifica-se, segundo alguns autores, em casos de criação de uma “fonte de riscos” pelo agente ou em situações que se inserem no âmbito da “esfera de domínio ou de competência” do agente Fonte de riscos essa que pode ser criada quer através de uma ação – dolosa ou com mera culpa nos termos do citado normativo – quer por omissão (art.º 486º CC)” (…) a relevância jurídica da omissão está ligada ao “dever genérico de prevenção de perigo”. Isto quer dizer, segundo Antunes Varela (in Revista de Legislação e de Jurisprudência, ano 114.°, p. 77 a 79) que “o criador da situação especial de perigo tem o dever jurídico de o remover, sob pena de responder pelos danos provenientes da omissão (…)”
E, sem prejuízo dos casos salvaguardados no n.º 2 do artigo 483º do Código Civil, para que o facto ilícito gere a obrigação de indemnizar é ainda necessário que o autor tenha agido com culpa; a culpa exprime um juízo de reprovabilidade pessoal da conduta do agente que, em face das circunstâncias específicas do caso, devia e podia ter agido de outro modo, sendo um juízo que assenta no nexo existente entre o facto e a vontade do autor e que pode revestir a forma de dolo ou a forma de negligência ou mera culpa (v. Antunes Varela, Das Obrigações em Geral, volume I, 6ª Edição, página 536).
Em particular no que toca à culpa, dispõe o artigo 487º n.º 1 do Código Civil que é ao lesado que incumbe provar a culpa do autor da lesão, salvo havendo presunção legal de culpa. Segundo as regras gerais, cabe ao autor alegar e provar os factos donde se extraí a culpa do autor da lesão (cfr. artigos 342º n.º 1 e 487º n.º 1, ambos do Código Civil), tarefa que fica facilitada se sobre este último recair uma presunção de culpa.
Para existir obrigação de indemnizar é ainda necessária a verificação do dano, sendo indemnizáveis os danos de natureza patrimonial, mas também os danos não patrimoniais que, pela sua gravidade, mereçam a tutela do direito (cfr. artigo 496º do Código Civil) e também que exista um nexo de causalidade entre o dano e o facto pois que a obrigação de indemnização só existe em relação aos danos que o lesado provavelmente não teria sofrido se não fosse a lesão (artigo 563º do Código Civil).
Em face de tais considerandos e tendo por base a matéria de facto provada temos de concluir encontrarem-se verificados todos os necessários pressupostos da responsabilidade civil extracontratual geradora da obrigação de indemnização do Autor.
De facto, não se suscitam desde logo dúvidas sobre a verificação do facto humano (queda) e que este foi causa adequada dos danos sofridos pelo Autor, isto é que se verifica também necessário nexo de causalidade.
O que as Recorrentes questionam é a existência da violação de um dever de cuidado por parte do “Hotel X”, e a existência de ilicitude, designadamente a inexistências de nexo de causalidade entre a queda do Autor e qualquer omissão daquele.
É certo que, tal como se refere na sentença recorrida não se apurou e nem foi alegada uma específica regra legal que impusesse à Ré Hotel X – Y, Ldª um determinado comportamento que a mesma tenha omitido e que tenha causado o acidente.
De facto, o Decreto-lei n.º 163/2006, de 08/08 não impõe que o corredor em causa, onde ocorreu a queda do Autor, tenha de ter pavimento antiderrapante, mas apenas “as zonas pavimentadas adjacentes ao tanque da piscina, bem como as escadas e rampas de acesso”.
Mas a questão não se coloca apenas desse ponto de vista; tal como foi considerado pelo tribunal a quo a questão coloca-se em saber se sobre a Ré Hotel X – Y, Ldª recaia o dever genérico de prevenção de perigo por força da atividade que desenvolve e se esse dever foi violado, tendo incumprido de regras de conduta que se lhe impunham e que era exigível que observasse.
E, em face do caso concreto, temos de concordar inteiramente com a análise constante da decisão recorrida quando considera que a situação de perigo se configura no facto do corredor onde ocorreu a queda ter o piso em mármore polido e ser escorregadio.
Ora, perante um piso dessa natureza incumbia à Ré atuar de molde a evitar que o mesmo se mantivesse molhado ou húmido, e, por isso, de forma a evitar que fosse escorregadio, procedendo à sua limpeza onde existisse e permanecesse água ou humidade.
E que a Ré Hotel X – Y, Ldª sabia que o piso não era seguro, e que se lhe impunha tal cuidado, é o que decorre para além do mais dos pontos 11) e 12) dos factos provados pois para além da limpeza do Spa e dos respetivos acessos ser feita, diariamente, entre as 7h30 e as 8h30, durante todo o período de funcionamento do SPA (das 9h30 às 20h00 durante a semana e das 9h30m às 21h30 ao fim de semana) a equipa adstrita ao SPA do Hotel X procedia à limpeza daqueles espaços quando verificasse que se encontravam molhados ou húmidos.
Este dever de limpar e secar o piso faz parte das próprias regras de higiene e segurança para o bom funcionamento do seu estabelecimento, designadamente da área de Spa e da própria piscina (o corredor era ponto de passagem para quem saia da piscina e se dirigia à receção), não se compreendendo que pudesse ser de outra forma, que pudesse a Ré funcionar com um pavimento de natureza escorregadia, e, como tal, perigoso para a circulação dos clientes, numa zona por ela mesma denominada de “zona húmida”, correspondente à zona da piscina, sauna e turco (v. documento n.º 1 junto com a contestação da Ré Hotel X – Y, Ldª), sem que permanentemente tivesse de zelar que o piso se mantivesse seco e não escorregadio.
Ora, conforme decorre da factualidade provada a queda do Autor ocorreu devido ao piso se encontrar escorregadio, sendo que não se encontrava qualquer funcionário no momento a limpar o pavimento e nem se encontrava colocado sinal de pavimento escorregadio junto ao aludido corredor.
Temos pois de concluir que a falta de limpeza atempada e a falta da colocação de sinalização adequada, foram condições necessárias da queda e dos danos sofridos pelo Autor, verificando-se o necessário nexo de causalidade entre o piso molhado e escorregadio e a queda, ou seja, entre a omissão por parte da Ré do dever de prevenção do perigo e a queda e danos sofridos pelo Autor.
Ou, dito de outra forma, se a Ré Hotel X – Y, Ldª tivesse agido com o dever geral de cuidado, que se lhe impunha, observando as necessárias regras de segurança em face da natureza do pavimento que colocou no corredor em causa, a queda do Autor não teria ocorrido por força do piso escorregadio.
Não é, por isso, de censurar a sentença recorrida quando conclui que se justificava “perante a existência de humidade no piso, no corredor a que o autor se dirigiu (facto não devidamente avisado), a 1ª ré atuasse pronta e eficazmente, de modo a eliminar essa situação, consabidamente potenciadora de escorregamento e queda. Para tanto, bastava que procedesse à limpeza e secagem do local, operação que dada as características do pavimento, devia ser feita com alguma frequência (…) ao não eliminar as humidades que tornaram o piso escorregadio no referido corredor onde o autor circulava, incumpriu a 1ª ré o dever geral de diligência e cuidado na conservação das instalações para a utilização normal e sem perigo dos hospedes. A queda do autor resultou pois do facto de o pavimento se encontrar molhado e escorregadio. Note-se que as rés alegaram, mas não provaram que a queda do autor se ficou a dever a facto imputável a este. Assim, é a 1ª ré responsável pelos danos sofridos pelo autor em consequência da queda, uma vez que se mostram preenchidos os pressupostos legais supra referidos: a conduta omissiva daquela é ilícita, culposa e foi causa adequada do acidente e dos danos”.
Como tal, sem necessidade de mais desenvolvimentos, entendemos efetivamente encontrarem-se verificados todos os pressupostos da responsabilidade civil extracontratual por factos ilícitos geradora da obrigação da Ré Hotel X – Y, Ldª indemnizar o Autor e, consequentemente, e por força do contrato de seguro titulado pela apólice 34.00041503, da Ré Seguradora ... SA (ressalvada a franquia acordada de 10% do valor da indemnização a cargo do tomador do seguro).
Improcedem, por isso, integralmente os recursos.
As custas de cada um dos recursos são da responsabilidade das respetivas recorrentes, em face do seu integral decaimento (artigo 527º do Código de Processo Civil).
***
SUMÁRIO (artigo 663º nº. 7 do Código do Processo Civil):

I - O artigo 486º do Código Civil prevê que as simples omissões dão também lugar à obrigação de reparar os danos quando por força da lei ou de negócio jurídico havia o dever de praticar o ato omitido.
II - Para que haja lugar à indemnização a lei exige, por isso, que haja um dever de praticar o ato omitido, mas também que haja entre a omissão e o dano um nexo de causalidade (cfr. artigo 563º do Código Civil).
III - No que se refere às condutas omissivas, a obrigação de agir pode resultar da lei ou ter uma fonte negocial, existindo também dever de agir para evitar o dano quando a pessoa tenha sido criadora da fonte especial de perigo da qual o dano resultou.
IV - A obrigação de indemnizar pode fundar-se, por isso, no incumprimento de deveres destinados a prevenir determinados perigos, no incumprimento de deveres de segurança no tráfego (ou deveres de tráfego) que surgem quando alguém tenha sido o criador de uma fonte de perigo (ou a controle), caso em que se lhe impõe tomar todas as medidas adequadas a prevenir ou evitar os danos que dai possam decorrer.
V - A ré, que explora um estabelecimento de hotel, incorre na obrigação de indemnizar o autor que, circulando em corredor, cujo piso era em mármore polido, tornando-se escorregadio quando com água, aí escorregou e caiu pelo facto daquele se encontrar molhado ou humedecido e escorregadio, se não procedeu à eliminação das humidades que tornaram o piso escorregadio, incumprindo dessa forma o dever geral de diligência e cuidado na conservação das instalações para a utilização normal e sem perigo dos seus hospedes.
***
IV. Decisão

Pelo exposto, acordam os juízes desta Relação em julgar totalmente improcedentes as apelações das Rés.
As custas de cada um dos recursos são da responsabilidade das respetivas recorrentes.
Guimarães, 09 de junho de 2020
Texto elaborado em computador e integralmente revisto pela signatária

Raquel Baptista Tavares
Margarida Almeida Fernandes
Margarida Sousa