CASAMENTO CELEBRADO NO ESTRANGEIRO
TRANSCRIÇÃO
EFICÁCIA
Sumário


Não se encontrando demonstrada a transcrição em Portugal do casamento que a apelante alega ter celebrado no estrangeiro com português interessado direto na partilha, o qual não se encontra averbado ao assento de nascimento deste, não poderá invocá-lo, designadamente para efeitos de intervenção no inventário a que se procede para partilha da herança aberta por óbito do pai daquele interessado.

Texto Integral


Acordam na 2.ª Secção Cível do Tribunal da Relação de Guimarães:

I. Relatório

No processo de inventário instaurado por M. L., a 07-01-2013, para partilha da herança aberta por óbito de H. C., falecido a 06-01-2010, veio R. V., invocando a qualidade de interessada na partilha, com fundamento no estado de casada com o interessado J. C., no regime da comunhão de adquiridos, arguir a nulidade da conferência de interessados realizada a 25-01-2018 – em que não esteve presente, durante a qual foi deliberado por unanimidade aprovar o passivo e se procedeu a licitações de verbas constantes da relação de bens, designadamente bens imóveis -, com a consequente anulação dos atos subsequentes praticados no processo.

Por despacho de 13-09-2028, foi julgada improcedente a arguição de nulidade da conferência de interessados, nos termos seguintes:

«Por via do requerimento de fls.282 e ss (com a referencia 30016493), dirigido aos autos por R. V., esta peticiona que se declare a nulidade da conferência de interessados realizada, com a consequente anulação de todos os atos subsequentes praticados no processo.
Para o efeito invoca, em síntese, que estando casada com o interessado directo, J. C., no regime da comunhão de adquiridos, desde 1991, havia de ser notificada das diligências ocorridas no processo, mormente, a data da realização da conferência de interessados, sendo que tal não ocorreu.
Ora, cumpre apreciar:
Desde logo e primeiramente se refuta os argumentos expendidos pela requerente no requerimento em crise, por não existir qualquer nulidade processual.
Adrede e ainda que se entenda assistir razão à requerente, quando alude que na qualidade de cônjuge – casada em comunhão de adquiridos -, em caso de alienação de bens próprios de seu marido, a mesma deva dar o consentimento, a verdade é que no caso dos autos, tal não se verifica.
Efectivamente, na conferência de interessados operada – vide fls262 - não logram os presentes chegar a qualquer acordo (aí se impondo o consentimento, ainda, que, no caso, meramente, presencial), mas antes levou-se a cabo licitações.
Logo, neste caso, em momento algum, pela interpretação da jurisprudência invocada, se extrai a necessidade de qualquer consentimento a prestar pelos cônjuges dos interessados directo na partilha. Naufragando, assim, os argumentos expedidos.
De todo o modo, ainda que se considerasse assistir total razão à requerente, nos argumentos aludidos, então, sempre se dirá – aliás conforme resulta do teor da acta de 25.01.2018 – que esta deturpa a verdade qual refere não ter sido notificada para a diligência em causa.
Compulsados os autos, constata-se que a requerente foi notificada/convocada para todas as diligências operadas nestes, verificando-se, igualmente, que as missivas a si endereçadas vieram devolvidas, por “recusa” (facto que a ela própria pode ser imputado e que não resulta na sua não notificação).
Por último, repisa-se, uma vez mais, que dos autos, o interessado J. C. consta como solteiro e não casado (sendo certo que tratando-se de prova documental e para valer em Portugal, o “suposto” estado de casado terá que estar averbado no registo civil, o que não acontece), pelo que nunca seria de admitir a litigância da requerente.
Desta feita, pelos motivos expostos, se indefere a pretensão da requerente, mantendo-se a diligência agendada.
Notifique.
Custas de incidente pela requerente – 527º do CPC (antigo 446º do CPC)».
Os autos prosseguiram os seus termos e, por sentença de 30-05-2019, foi homologada a partilha constante do mapa de fls. 347 e seguintes.

Inconformada com a sentença homologatória da partilha e com a decisão que incidiu sobre a arguição de nulidade da conferência de interessados, R. V., invocando a qualidade de interessada na partilha, interpôs recurso de apelação daquela sentença, no qual impugnou igualmente a mencionada decisão interlocutória, terminando as respetivas alegações com a formulação das seguintes conclusões (que se transcrevem):

«1. A Recorrente, R. V., está casada no regime de comunhão de adquiridos com J. C..
2. O inventário que constitui este processo foi instaurado para partilha dos bens deixados pelo pai do seu marido.
3. Foi realizada, no dia 25 de Janeiro de 2018, conferência de interessados prevista na lei, onde foram licitados diversos bens imóveis pelas partes presentes.
4. A Recorrente não foi convocada para tal conferência, nem foi notificada da data da mesma nem do seu objeto, o que constitui uma manifesta violação do disposto no artigo 1352.º, números 1, 2 e 3 do Código de processo Civil.
5. Não tendo também sido notificada da ata da conferência de interessados em causa e dos despachos proferidos em tal diligência, nem posteriormente, não podendo, por conseguinte, ter reagido contra os mesmos.
6. A Recorrente tomou, entretanto, conhecimento da conferência de interessados e das licitações que aí ocorreram, sem que tivesse estado presente, representada ou, sequer, notificada para o efeito.
7. Importa referir que até à realização da conferência supra citada, a Recorrente foi sempre tratada como parte interessada nos autos em apreço: designadamente foi citada para os termos do inventário, foi notificada da relação de bens e de diversas atos e diligências realizadas nos autos em causa.
8. Acontece que a conferência de interessados, de dia 25/01/2018, realizou-se sem a participação da Recorrente, tendo-se nela tomado decisões que se traduziram na alienação de imóveis, mormente coma licitação de imóveis entre os presentes, que determinarão, caso nada fosse feito, a posterior adjudicação dos mesmos aos licitantes.
9. Mas, nos termos do disposto na al. a) do nº 1 do arto 1682º-A do CC, a alienação, oneração, arrendamento ou constituição de outros direitos pessoais de gozo sobre imóveis próprios ou comuns carece do consentimento/intervenção de ambos os cônjuges, salvo se entre eles vigorar o regime de separação de bens – o que não é o caso, dado que, como se referiu, a recorrente está casada com o herdeiro J. C. no regime de comunhão de adquiridos.
10. A Recorrente pela circunstância de não ter sido notificada para aquela conferência (omissão de formalidade prescrita na lei suscetível de influir na decisão da causa) e do seu objeto, bem ainda por não se ter notificado a Recorrente de todos os actos e despachos proferidos subsequentemente, arguiu a nulidade da conferência de interessados realizada, com a consequente anulação de todos os actos subsequentes praticados no processo.
11. Contudo, a Exma. Juíza a quo entendeu, em despacho produzido em 13/09/2018, que a Recorrente não tinha razão, face ao facto de na conferência se terem procedido a licitações, não se afigurando necessário nessa situação de qualquer consentimento a prestar pelo cônjuge dos interessados diretos na partilha, que, por outro lado, a mesma teria sido notificada porque recusou-se a receber as notificações à mesma dirigidas e por fim que em Portugal o interessado, J. C., consta como solteiro e não casado, nos termos constantes no douto despacho recorrido.
12. Não se conformando com a douto despacho, a aqui Recorrente intentou, oportunamente, recurso do mesmo, nos termos dos artigos 627.º, 629.º, 631.º, 637.º, 639.º, 644.º n.º 2 e 3, 645.º n.º 2 e 647.º do Código de Processo Civil, para o Venerando Tribunal da Relação de Guimarães, considerando que o mesmo seria de apelação, a subir em separado e com efeito meramente devolutivo, tudo nos termos dos artigos supra citados, todos do Código de Processo Civil.
13. Entendeu, no entanto, a Exma. Sra. Juíza a quo, que o recurso de apelação autónomo em causa era inadmissível, nesta fase, por não se enquadrar em nenhuma das alíneas do n.°.2 do artigo 644° do CPC, pelo que a decisão em crise só seria suscetível de recurso conjuntamente com a sentença homologatória da partilha (artigo 1396°, n°.2 do Código de Processo Civil, redação anterior) e por isso não o admitiu.
14. Mais uma vez inconformada com o despacho que não admitiu o recurso por si aduzido, a aqui Recorrente reclamou, de tal não admissão, para o Tribunal da Relação de Guimarães, nos termos do artigo 643.º do Código de Processo Civil.
15. A Exma. Sra. Juíza Desembargadora que apreciou a reclamação em causa, Processo nº 2/13.7TBTMC-A.G1, indeferiu tal reclamação, mantendo o despacho que indeferiu o recurso supra referenciado, aduzindo que: “Desta forma, só com a nova decisão final, caso o reclamante ainda mantenha interesse no recurso, pode recorrer da decisão que não anulou a conferência de interessados.
16. Desta forma, porque a recorrente mantém o interesse no recurso e porque entretanto foi proferida sentença homologatória da partilha, renova os fundamentos já apresentados, intentado o recurso em apreço.
17. Assim, retomando o raciocínio supra expendido, no entender da Recorrente, não assiste razão aos argumentos espraiados pela Exma. Sra. Juíza a quo no seu despacho de 13/09/2018, que interferiu a suscitada nulidade da conferência de interessados realizada em 25/01/2018, bem como a anulação de todos os atos subsequentes praticados no processo 2/13.7TBTMC.
18. Na realidade, relativamente ao primeiro argumento, se nas conferências de interessados se permitisse que as decisões sobre o destino dos imóveis comuns ou próprios do cônjuge herdeiro ou dos direitos reais inerentes a tais imóveis fossem tomadas à revelia do respetivo cônjuge, sem consentimento dele, afrontava-se a violava-se o disposto na al. a) do nº 1 do artº 1682º-A do CC (proibição de alienação de bens próprios dum dos cônjuges sem consentimento do outro).
19. Permitindo-se contornar, dessa forma, tal proibição, dado que na conferência de interessados pode-se acordar na venda total ou parcial dos bens, na licitação e na distribuição do produto da alienação pelos diversos interessados (al. c) do nº 1 do artº 1353º do CPC anterior que foi integralmente transferido para o artº 48º do Regime Jurídico do Processo de Inventário – Lei no 23/2013, de 5 de Março).
20. Mais, perfilhando-se o decidido no douto despacho recorrido, tal permitiria o patrocínio de objetivos imorais e ilegais: basta pensar num casal em crise conjugal em que um dos cônjuges se coligasse com os outros herdeiros para subtrair ao seu casal todos os imóveis ou a parte mais rendosa deles, para que o seu cônjuge nada herdasse desses bens ou não gozasse dos seus rendimentos.
21. E a lei (artº 1352º do CPC, que se aplica neste processo) manda convocar todos os interessados.
22. Também a nossa jurisprudência não sufraga o entendimento do despacho recorrido.
23. É esclarecedor o Acórdão da Relação do Porto de 22.6.2010 e o Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 29.4.2010.
24. Mas também um acórdão mais recente do Tribunal da Relação de Évora de 08/07/2017, no âmbito do processo 706/13.4TBABT.E1, em que, numa situação em tudo semelhante à dos presentes autos, foi claramente referido no seu sumário que “Os cônjuges dos herdeiros são sempre citados para o inventário quando do património da herança façam parte bens imóveis ou estabelecimento comercial, salvo se entre eles vigorar o regime de separação de bens, nesse sentido carecendo a concretização da partilha de consentimento conjugal, nos termos do nº 1 do artº 1692º-A do C. Civil.”
25. Pelo que julgou a nulidade então suscitada procedente e determinou a “revogação da decisão recorrida, proferida em 01/04/2013, e reconhece-se à recorrente o direito de ser citada para os termos do inventário e convocada para a conferência de interessados, anulando-se a que foi realizada, bem como os atos subsequentes, nomeadamente a sentença homologatória da partilha, devendo designar-se nova conferência, com a convocação, da ora recorrente, para a mesma
26. A lei não pode consentir o detrimento das bases de sustentação dos casais – tanto mais que o disposto no nº 1 do artº 1682º-A do CC foi determinado pela preocupação de proteger a família, de todo desprotegida no entendimento da douta decisão recorrida.
27. No que concerne ao argumento, também expendido, da Recorrente ter sido notificada para todas as diligências operadas nestes autos, tendo-se “recusado” a receber as missivas que a ela lhe eram dirigidas, importa rejeitar tal situação.
28. Primeiramente porque se desconhece qual os suportes documentais que a Exma. Sra. Juíza se baseou para produzir tal afirmação, mormente da recusa da Recorrente em receber as missivas a ela endereçadas, pois no despacho agora impugnado não se citam.
29. Mais, consultando a movimentação processual do processo 2/13.7TBTMC, os registos (dos Correios) prévios à realização da conferência de interessados de 25/01/2018, em nenhum consta que as missivas dirigidas à Recorrente foram, pela mesma, recusadas.
30. Assim, em 12/12/2017, foi inserido no Citius um documento, com a referência 1006431, denominado de “Postal/carta devolvida”, supostamente enviada à Recorrente, onde não consta, ou pelo menos não é minimamente percetível, qual o motivo para a devolução.
31. Posteriormente, em 18/01/2018, foi novamente inserido no Citius um documento, com a referência 1028781, denominado de “Postal/carta devolvida”, supostamente enviada à Recorrente, onde constam dois motivos para a devolução, não reclamado e endereço inexistente.
32. Reitera-se não se afere minimamente, até face ao exposto supra, onde a Exma. Sra. Juíza se baseou para referir que a Recorrente “recusou” as missivas à mesma enviadas.
33. A única certeza que se extrai dos documentos citados é que a Recorrente nunca teve conhecimento da conferência de interessados onde foram licitados bens, nem sequer, posteriormente, foi notificada da ata correspondente a tal conferência, pois as missivas, supostamente enviadas para a mesma, nunca foram rececionadas por ela.
34. Por fim a Exma. Sra. Juíza a quo refere, como argumento final, que o interessado, J. C., cônjuge da aqui Recorrente, “consta como solteiro e não casado”.
35. Existe desde logo uma grande contradição em tal posição, pois, tal como já referido em cima, no âmbito do processo em apreço a Recorrente sempre foi reconhecida com cônjuge do interessado em causa, tendo sido, por diversas vezes, notificada para diversas diligências realizadas no processo em apreço, mormente diligências prévias à conferência de interessados realizada em 25/01/2018.
36. Ou seja, nunca a condição de cônjuge da Recorrente foi posta em causa, somente agora é que faz alusão a tal situação.
37. Mais, se subsistissem dúvidas sobre o estado civil do interessado J. C., as mesmas foram totalmente desfeitas com a junção, aquando do requerimento de 06/09/2018, do assento de casamento entre o referido J. C. e a aqui Recorrente.
38. Ou seja o casamento existe, está documentado e tem efeitos em Portugal, não passando a sua transcrição de uma questão meramente formal.
39. A nossa própria lei civil reconhece efeitos, em Portugal, ao casamento celebrado no estrangeiro ainda não transcrito no nosso ordenamento jurídico, veja-se por exemplo no domínio dos impedimentos dirimentes absolutos, artigo 1601.º al. c) do Código Civil, que considera que obsta ao casamento o “casamento anterior não dissolvido, católico ou civil, ainda que o respetivo assento não tenha sido lavrado no registo do estado civil”
40. Por outro lado, mesmo que a posição da Exma. Sra. Juíza a quo prevalecesse, mormente que não estando o casamento da Recorrente transcrito em Portugal aqui não produziria efeitos, importa considerar o princípio plasmado nos artigo 1670.º do Código Civil e 188.º do Código de Registo Civil, designadamente a retroatividade do registo do casamento à data da sua celebração.
41. Ou seja, tendo presente que o casamento entre a Recorrente e o seu marido, o interessado J. C., foi realizado em 15 de Novembro de 1991 (vide assento de casamento que se juntou), os efeitos da transcrição do mesmo retroagirão a tal data, superando-se neste processo qualquer dúvida acerca do casamento existente entre a Recorrente e o seu marido, o interessado J. C..
42. Assim, para que não restem dúvidas relativamente a esta questão, a Recorrente e o seu marido solicitaram já a transcrição, no registo civil português, do casamento pelos mesmos celebrado em ..., Canadá, sendo que juntarão, o documento comprovativo de tal registo, seguidamente a tal documento lhe ser facultado pelas autoridades portuguesas.
43. Mais, tal questão, dos efeitos retroativos do registo de casamento que se sobrepõem sobre qualquer outro, é claramente definida e expressa no Parecer do Instituto dos Registo e Notariado, com o n.º R.N. 1/2013 STJ-CC, onde se afirma que: “A regra da essencialidade do registo civil para prova e oponibilidade dos factos a ele obrigatoriamente sujeitos não se opõe à eficácia retroativa deste registo, a qual, com ressalva dos direitos de terceiros adquiridos antes do registo que houver de ser feita, permite considerar o casamento e o divórcio desde o momento em que estes factos ocorreram.
44. Parece pois claro que, após a transcrição do casamento da Recorrente em Portugal, tal implicará que o casamento se considere, produza efeitos desde que o mesmo ocorreu, reitera-se 15 de Novembro de 1991, pelo que nenhuma questão poderá subsistir relativamente ao estado de casada da Recorrente com o interessado J. C..
45. Por fim, confirmando-se o estado de casada da Recorrente, também não subsistirão dúvidas relativamente ao regime de bens adotado pela Recorrente e marido, face ao estatuído no artigo 1717.º do Código Civil, mormente que na falta de convenção antenupcial, como foi o caso, o casamento se considera celebrado no regime da comunhão de adquiridos.
46. Terminando, a douta decisão recorrida, despacho de 13/09/2018 com a referência 21328778, violou o disposto nos artigos 1352.º do CPC aplicável e nos artigos1682º-A n.º 1, al. a) do Código Civil.
47. As referidas normas jurídicas deveriam ter sido aplicadas e interpretadas no sentido de julgar procedente a nulidade invocada pela recorrente.
48. Pelo exposto, deve declarar-se a nulidade da conferência de interessados realizada em 25/01/2018, com a consequente anulação de todos os atos subsequentes à mesma, praticados no processo de inventário com o n.º 2/13.7TBTMC.
49. Assim, declarando-se a nulidade em causa, dever-se-á revogar a decisão recorrida, proferida em 13/09/2018, reconhecendo-se à Recorrente o direito de ser convocada para a conferência de interessados, anulando-se a que foi realizada, bem como os atos subsequentes, devendo designar-se nova conferência, com a convocação, da ora recorrente, para a mesma.
50. Porém V.a (s) Ex.a (s) farão justiça.”

A cabeça-de-casal Corina Branca Esteves e as interessadas M. L., M. O. e M. A. apresentaram contra-alegações, sustentando a manutenção do decidido.

II. Delimitação do objeto do recurso

Face às conclusões das alegações da recorrente e sem prejuízo do que seja de conhecimento oficioso – artigos 608.º, n.º 2, 635.º, n.º 4, e 639.º, n.º 1, do Código de Processo Civil (CPC) -, importa apreciar se a conferência de interessados, realizada a 25-01-2018, enferma da causa de nulidade invocada pela apelante e respetivas consequências.
Corridos os vistos, cumpre decidir.

III. Fundamentação

1. Os factos

1.1. Os factos, as ocorrências e elementos processuais a considerar são os que já constam do relatório enunciado em I. supra, relevando ainda para a decisão do objeto do recurso os seguintes elementos e incidências processuais que se consideram devidamente documentadas nos autos:

1.1.1. Consta da ata da conferência de interessados realizada a 25-01-2018, além do mais, o seguinte:
(…)
FALTOSOS: (…) R. V., encontrando-se as cartas de notificação para a conferências devolvidas "com a indicação de recusadas” (…);
1.1.2. Consta da aludida ata, além do mais, a prolação pela Sr.ª Juíza do seguinte despacho:
«Antes de mais cumpre tomar posição acerca do teor do requerimento de fls. 252 e seguintes (refª 7570712) junto pela mandatária do interessado J. C., Exma Sra. Dr.ª C. G., no qual, entre o mais, refere que (a sua mulher) não foi notificada da renúncia ao mandato comunicado pela Ex.ª Sra. Dr.ª P. R.. Efectivamente, compulsados os autos constata-se que a referida notificação de renúncia não ocorreu, o quer urge levar a cabo de imediato.
De todo o modo, tal circunstancialismo não inviabiliza a realização da presente diligência, uma vez que não se encontra comprovado nos autos o interesse directo em demandar ou contradizer os factos constantes dos autos por parte daquela.
Em sítio algum, ao invés do alegado J. C., se extrai que o mesmo se encontra casado com a referida interveniente. Aliás, para o efeito basta consultar a certidão de nascimento do próprio, que se junta aos autos (e da qual previamente e verbalmente se determinou a junção), da qual ressalta que o mesmo se encontra no estado de solteiro.
Assim, não se vislumbra qual o interesse da interveniente nos presentes autos (sendo certo que àquela se impunha a prova), apesar de a mesma deles constar como tal e ter – a dado momento – sido representada por mandatária tendo para o efeito de lhe ser notificada a referida renuncia.
Ademais, compulsados os autos e informação supra, verifica-se que se encontra a faltar à presente diligência o interessado J. C. e a mandatária daquele nos autos Exma. Sr.ª Dr.ª C. G. (sem ter comunicado previamente qualquer impossibilidade de comparência e ou justificado a falta).
Ademais, também se encontra a faltar R. V., não tendo apresentado qualquer justificação para a sua falta.
Quanto à falta do interessado J. C., uma vez que o mesmo se encontra notificado nos termos do art.º 249.º o C.P.Civil, e não justificou a falta vai o mesmo condenado em 2 Ucs .
Quanto à interveniente R. V. por se entender que a sua presença não é obrigatória, não se condena em multa.
Quanto ao requerido pelo Ilustre Mandatária da Cabeça de casal, anuído pela Ilustre Mandatária aqui presente, defere-se o requerido, devendo para o efeito notificar-se o interessado J. C. e a interessada M. A., para no prazo de 15 dias entregar á cabeça de casal os respectivos bens.
Por último e atenta a falta dos interessados J. C. e a sua ilustre mandatária, poderia colocar-se a hipótese do adiamento da presente diligência nos termos do n.º 5 do art.º 1352.º do C.P.Civil aplicável, de todo o modo se diga que essa prorrogativa só seria de aplicar caso quer o interessado quer a respectiva mandatária tivessem de forma diligente, atempada e respeitosamente comunicado fundamentadamente a este Tribunal qualquer impedimento, o que não acontece.
Ainda que tal tivesse acontecido, resulta dos requerimentos supra a impossibilidade de os interessados chegarem a acordo na composição dos respectivos quinhões, pelo que atento ao plasmado no n.º 4 do citado normativo em caso algum lograria que esta diligência fosse adiada.»;
1.1.3. Encontra-se junta aos autos, a fls. 261, certidão do assento de nascimento de J. C., sem qualquer averbamento de casamento;
1.1.4. Encontra-se junta aos autos, a fls. 288 e seguintes, certidão de casamento de J. C. e R. V., realizado a 15-11-1991, na cidade de London, condado de …, Província de ..., no Canadá.

2. Apreciação sobre o objeto do recurso

Na presente apelação, interposta da sentença homologatória da partilha, foi impugnada a decisão interlocutória que julgou não verificada a nulidade, arguida pela apelante R. V. - invocando a qualidade de interessada na partilha, com fundamento no estado de casada com o interessado J. C., no regime da comunhão de adquiridos, desde o ano de 1991 -, da conferência de interessados realizada a 25-01-2018, em que não esteve presente, durante a qual foi deliberado por unanimidade aprovar o passivo e se procedeu a licitações de verbas constantes da relação de bens, designadamente bens imóveis.
Extrai-se da fundamentação da decisão interlocutória impugnada que a 1.ª instância não atendeu ao invocado casamento da apelante com o interessado J. C., em virtude de não se encontrar averbado no assento de nascimento deste, do qual se considerou decorrer o estado de solteiro daquele interessado, em consequência do que se concluiu não ser de admitir a litigância de R. V.. Mais se considerou não verificada a invocada falta de notificação da apelante para a diligência em causa e, de todo o modo, desnecessário o consentimento dos cônjuges dos interessados diretos na partilha para as concretas deliberações tomadas na conferência de interessados ou para a licitação realizada.
Discordando deste entendimento, sustenta a apelante que o seu casamento com o interessado J. C., celebrado a 15-11-1991 no estrangeiro, produz efeitos em Portugal apesar de não ter ainda sido transcrito, acrescentando que foi já solicitada a transcrição e que os respetivos efeitos retroagirão à data do casamento. Mais alega que não foi notificada para a conferência de interessados, a qual se realizou sem a sua presença, acrescentando que nela foram tomadas deliberações que exigiam o seu consentimento, dado que casada no regime de comunhão de adquiridos com o interessado J. C..
Importa apreciar, antes de mais, se assiste à apelante a qualidade de interessada na partilha, o que impõe se averigue da atendibilidade do casamento que invoca, celebrado a 15-11-1991 na Província de ..., no Canadá, com o interessado J. C..
Estando em causa o casamento de cidadão português - o interessado J. C. - celebrado no estrangeiro, encontra-se o mesmo sujeito a registo, conforme expressamente dispõe o artigo 1651.º, n.º 1, al. b), do Código Civil (CC), ao estatuir:
«1. É obrigatório o registo:
(…) b) dos casamentos de português ou portugueses celebrados no estrangeiro (…)».
Impondo o artigo 1.º, n.º 1, al. d), do Código do Registo Civil, a obrigatoriedade do registo do casamento, verifica-se que, através da alínea b) do n.º 1 do citado artigo 1651.º do CC, a lei estende esta regra ao casamento de português ou portugueses celebrado no estrangeiro.

Sob a epígrafe Atendibilidade do casamento, dispõe o artigo 1669.º do Código Civil o seguinte:

«O casamento cujo registo é obrigatório não pode ser invocado, seja pelos cônjuges ou seus herdeiros, seja por terceiros, enquanto não for lavrado o respetivo assento, sem prejuízo das exceções previstas neste Código».
O artigo 2.º do Código do Registo Civil, por seu turno, com a epígrafe Atendibilidade dos factos sujeitos a registo, estatui o seguinte:
«Salvo disposição legal em contrário, os factos cujo registo é obrigatório só podem ser invocados depois de registados».
Neste domínio, importa ainda considerar o disposto no artigo 50.º, n.º 1, do Código do Registo Civil, ao dispor que o registo civil dos factos a ele sujeitos é lavrado por meio de assento ou de averbamento, esclarecendo o artigo 69.º, n.º 1, al. a), do mesmo código que o registo do casamento é averbado ao assento de nascimento.
Com relevo para a apreciação do objeto do presente litígio, decorre da análise conjugada dos indicados preceitos a obrigatoriedade do registo do casamento de português celebrado no estrangeiro, bem como a não atendibilidade, em regra, de tal casamento enquanto não for registado, assim não podendo ser invocado, seja pelos cônjuges ou seus herdeiros, seja por terceiros, enquanto não se encontrar averbado ao assento de nascimento.
Em anotação ao citado artigo 1651.º do CC, refere Luís Silveira (1): «Sendo o registo do casamento obrigatório (v. o art. 1.º do CRCivil), isso significa que ele não pode ser invocado nem produzir efeitos sem estar registado.
O registo do casamento não tem a natureza de mera prova nem mesmo de condição de oponibilidade a terceiros (como o registo predial).
O registo do casamento é, assim, condição de eficácia ou produção de efeitos do próprio ato.
A lei considera que, por razões de segurança e precisão nas relações sociais, os factos mais relevantes para o estatuto pessoal e familiar das pessoas – tal como o casamento – devem estar sujeitos a registo civil».
A apelante pretende se atenda a casamento celebrado no estrangeiro, com um cidadão português. Porém, do regime antes enunciado decorre a obrigatoriedade do registo do matrimónio contraído por qualquer português fora do país.
Verificando que o casamento que a apelante invoca ter celebrado no estrangeiro com o interessado J. C. não se encontra averbado ao assento de nascimento deste, cumpre concluir que não se encontra registado, pelo que não é eficaz, não podendo ser invocado, designadamente por qualquer dos cônjuges.
A apelante invoca a exceção a este regime prevista no artigo 1601.º, al. c), do CC, que estabelece como impedimento dirimente absoluto, obstando ao casamento da pessoa a quem respeita, «o casamento anterior não dissolvido, católico ou civil, ainda que o respetivo assento não tenha sido lavrado no registo do estado civil».
Porém, esta exceção ao regime geral, nos termos do qual o casamento só produz efeitos após a inscrição no registo civil, ao atribuir efeitos ao casamento não registado, destina-se especificamente a evitar situações de bigamia, não sendo aplicável ao caso presente.
A este propósito, em anotação ao artigo 1601.º do CC, refere Luís Silveira (2) o seguinte: «O impedimento previsto na al. c) tem por finalidade obstar à situação de bigamia, de acordo com o sistema de casamento monogâmico próprio da nossa cultura. (…)
Em derrogação da regra geral de que os atos sujeitos a registo só produzem efeitos após a inscrição no registo civil (arts. 1.º e 2.º do CRCivil), o casamento, católico ou civil, constitui impedimento mesmo que não registado. Esta solução reflete o respeito pelo valor substancial do contrato de casamento, enquanto tal. E tem em mira também evitar o surgimento de situações de bigamia, através da realização do registo do primeiro casamento após a celebração do segundo».

E em anotação ao citado artigo 1651.º do CC acrescenta ainda o mencionado autor (3): «Constitui exceção única a este regime o teor do art. 1601.º-c), que estabelece como impedimento de casamento o casamento anterior não dissolvido, ainda que o respetivo assento não tenha sido lavrado no registo civil. Compreende-se que, no propósito de evitar a bigamia, a lei se não tenha norteado pela circunstância formal da realização do registo, apoiando-se antes na realidade social do matrimónio».
Em conclusão, não logrando a apelante demonstrar a transcrição em Portugal do casamento que invoca ter celebrado com o interessado J. C., o qual não se encontra averbado ao assento de nascimento deste, não poderá invocá-lo, designadamente para efeitos de intervenção nos presentes autos de inventário, em que se procede à partilha da herança aberta por óbito de H. C., falecido a 06-01-2010, pai do mencionado interessado.
Na linha deste entendimento, considerou o Ac. do STJ de 27-03-2014 (4) o seguinte: «Não havendo indicação de que o casamento da ré e do pai dos autores tenha sido transcrito em Portugal não pode o mesmo ser invocado para efeitos dele retirar efeitos patrimoniais».
Nesta conformidade, mostra-se acertada a decisão recorrida, ao não ter atendido ao casamento invocado pela apelante e, em consequência, ter considerado não ser de admitir a litigância de R. V..
Tal impõe se julgue improcedente a nulidade da conferência de interessados arguida pela apelante, conforme decidido, e prejudica a apreciação das demais questões suscitadas na apelação, relativas à notificação da data designada para a conferência de interessados e à obrigatoriedade da intervenção da recorrente naquela diligência.
Pelo exposto, na improcedência da impugnação deduzida pela apelante à decisão interlocutória de 13-09-2018, cumpre julgar improcedente a apelação, confirmando o despacho impugnado e a sentença recorrida.
Tal como resulta da regra enunciada no artigo 527.º, n.º 1, do CPC, a responsabilidade por custas assenta num critério de causalidade, segundo o qual, as custas devem ser suportadas, em regra, pela parte que a elas houver dado causa ou, não havendo vencimento, pela parte que tirou proveito do processo. Neste domínio, esclarece o n.º 2 do citado preceito, entende-se que dá causa às custas a parte vencida, na proporção em que o for.
No caso em apreciação, como a apelação foi julgada improcedente, as custas da apelação são integralmente da responsabilidade da recorrente, atento o seu decaimento.

Síntese conclusiva:

Não se encontrando demonstrada a transcrição em Portugal do casamento que a apelante alega ter celebrado no estrangeiro com português interessado direto na partilha, o qual não se encontra averbado ao assento de nascimento deste, não poderá invocá-lo, designadamente para efeitos de intervenção no inventário a que se procede para partilha da herança aberta por óbito do pai daquele interessado.

IV. Decisão

Pelo exposto, acordam os Juízes deste Tribunal da Relação em julgar improcedente a apelação, confirmando-se a decisão interlocutória impugnada e a sentença recorrida.
Custas pela apelante.


Guimarães, 9 de junho de 2020
(Acórdão assinado digitalmente)

Paulo Reis (relator)
Espinheira Baltar (1.º adjunto)
Luísa Duarte Ramos (2.º adjunto)


1. Cfr. Código Civil Anotado, Coord. Ana Prata, Volume II, Coimbra, Almedina, 2017, pg. 536.
2. Ob. cit., pg. 489.
3. Ob. cit., pgs. 536-537.
4. Relatora: Maria dos Prazeres Beleza, p. 879/06.2TBSXL.L1.S1 - 7.ª Secção - disponível em www.dgsi.pt.