QUEBRA DE SIGILO PROFISSIONAL
ADVOGADO
INTERESSE PREPONDERANTE
Sumário


SUMÁRIO
(da responsabilidade da Relatora - art. 663.º, n.º 7 do CPC)

I. O sigilo profissional de advogado não é um dever absoluto; mas a razão de ser da sua existência (assente simultaneamente nas privadas confiança e lealdade entre o cliente e o advogado, e no público interesse da boa administração da justiça, que exige uma advocacia livre e independente) impõe que só em casos excepcionais possa ser quebrado.

II. Recusando-se uma testemunha advogada a prestar depoimento em audiência de julgamento, invocando o dever de sigilo profissional, e não sendo dispensada do mesmo pela Ordem dos Advogados, deve o tribunal superior decidir a questão em função da ponderação que faça dos interesses em litígio, por forma a fazer prevalecer o interesse preponderante.

III. O apuramento de qual seja o interesse preponderante faz-se mediante uma apreciação dos contornos do litígio concreto (fundada na específica natureza da acção e na relevância e intensidade dos interesses em confronto), face aos quais o depoimento pretendido terá de ser necessário (tendo em conta o pedido, a causa de pedir, os temas de prova, e os ónus e as regras de prova) e imprescindível (no sentido da prova não poder ser obtida de outro modo); e considerando ainda os princípios da proporcionalidade, da adequação e da necessidade (limitando-se a restrição do dever de sigilo profissional ao mínimo indispensável à realização dos valores pretendidos alcançar).

IV. Numa acção declarativa em que se discuta a (in)validade de um contrato de arrendamento, por alegada verificação de erro na declaração ou vícios de vontade dos seus outorgantes, e em que estes foram ouvidos em audiência de julgamento, não se revela necessário, e muito menos imprescindível, para a descoberta da verdade e a boa decisão da causa o depoimento de advogada que apenas tomou conhecimento dos alegados vícios decorridos que foram mais de cinco anos sobre a sua verificação, e exclusivamente por meio do que lhe foi dito pelas partes que a consultaram.

Texto Integral


Acordam, em conferência (após corridos os vistos legais) os Juízes da 1.ª Secção Cível do Tribunal da Relação de Guimarães, sendo

Relatora - Maria João Marques Pinto de Matos;
1.º Adjunto - José Alberto Martins Moreira Dias;
2.º Adjunto - António José Saúde Barroca Penha.

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I – RELATÓRIO

1.1. J. M. e mulher, M. M., residentes no Lugar …, da união de freguesias de … (… e …), em Guimarães, propuseram uma acção declarativa, sob a forma de processo comum, contra C. S., residente na Rua …, n.º .., na freguesia de … (…), em Fafe, pedindo que

· fosse declarado nulo e de nenhum efeito (por falta de consciência ou de vontade nas declarações proferidas por eles próprios), ou subsidariamente anulado (por erro na declaração, ou erro essencial, ou reserva mental, deles próprios, e/ou dolo da Ré) o hipotético contrato de arrendamento a prazo certo, subscrito por ambas as aqui partes, em Julho de 2013;

· fosse declarada a invalidade e a ineficácia, no que tange a eles próprios, da oposição da Ré à renovação do dito contrato de arrendamento de Julho de 2013 (e consequente pedido dela, de desocupação e entrega do locado dele objecto);

· e fosse a Ré condenada a reconhecer a existência, a validade, a eficácia e a vigência do inicial contrato de arrendamento incidente sobre o mesmo prédio, agora de sua propriedade, em que eles próprios sucederam na posição dos primitivos arrendatários.

Alegaram para o efeito, em síntese, ser o prédio que constitui a sua actual residência inicial propriedade dos pais da Ré, que há mais de 64 anos o arrendaram para habitação aos pais do Autor marido, e onde este sempre residiu, inclusivamente depois de casado com a Autora mulher.
Mais alegaram que, tendo falecido os primitivos arrendatários, beneficiaram eles próprios em 1994 da transmissão do contrato de arrendamento a seu favor, vindo em 2008 a Ré a beneficiar ela própria da transmissão mortis causa do prédio dele objecto, com o falecimento dos respectivos pais.
Alegaram ainda os Autores que, pretextando falsamente em 2013 a mera legalização do arrendamento nas finanças, a Ré obteve a assinatura de ambos num documento escrito, que só muito depois constataram consubstanciar novo e distinto contrato de arrendamento, a prazo certo, de que nunca tiveram consciência ou vontade de subscrever; e tendo-se a Ré, em 08 de Fevereiro de 2018, oposto por escrito à sua renovação.
Os Autores arrolaram seis testemunhas.

1.2. Regularmente citada, a Ré (C. S.) contestou, pedindo que a acção fosse julgada improcedente, por não provada; e deduzindo reconvenção, pedindo que:

· fosse ela própria declarada e reconhecida como dona do prédio urbano objecto do contrato de arrendamento em causa nos autos, sendo os Autores condenados a reconhecerem tal direito:

· fossem os Autores condenados a restituírem-lhe o dito prédio, devoluto de pessoas e coisas, bem como a absterem-se da prática de quaisquer actos que atentassem contra o seu direito de propriedade;

· fossem os Autores condenados a pagarem-lhe uma indemnização pela ocupação ilícita e abusiva do dito prédio, à razão de € 50,00 por mês, desde 30 de Junho de 2018 e até à sua efectiva desocupação.

· Alegou para o efeito, em síntese, ser falsa a quase totalidade dos factos invocados pelos Autores, estando ainda já caduco o direito de pedirem a anulação do contrato de arrendamento, com prazo certo, celebrado no início de Julho de 2013, por vício de vontade, por terem intentado a presente acção muito depois de ter decorrido um ano do conhecimento dos termos em que tinham outorgado o dito acordo.
Já em sede de reconvenção, a Ré invocou o seu direito de propriedade sobre o imóvel em causa, a natureza e os termos do contrato de arrendamento celebrado com os Autores relativo a ele, a válida oposição à sua renovação, a falta de restituição do imóvel no termo do dito acordo, e a possibilidade de o arrendar por € 50.00 por mês.
A Ré arrolou duas testemunhas; e requereu que os Autores prestassem depoimento de parte a toda a matéria da reconvenção.

1.3. Os Autores replicaram, pedindo que a reconvenção fosse julgada improcedente, sendo eles próprios absolvidos de todos os pedidos reconvencionais.
Impugnaram para o efeito a matéria pertinente à alegada validade e eficácia do contrato de arrendamento assinado em Julho de 2013, bem como da oposição à sua renovação, realizada pela Ré em Fevereiro de 2018, reiterando o que já tinham afirmado na sua petição inicial.
Os Autores aditaram ao seu requerimento probatório inicial o depoimento de parte da Ré à matéria da réplica.

1.4. Devendo ser ouvida como testemunha I. M., advogada, o Tribunal a quo solicitou ao Conselho Regional ... da Ordem dos Advogados o levantamento de sigilo profissional relativamente à mesma, esclarecendo que o objecto do depoimento pretendido era relativo «às consultas pela mesma efectuadas as autores (…) no âmbito das consultas jurídicas dadas a estes no Gabinete de Consulta Jurídica da Câmara Municipal ... (…), bem como para que seja permitido à Il Advogada consultar os relatórios por si elaborados nas referidas consultas a fim de esclarecer o âmbito destas, mais concretamente para que possa responder aos artigos 23.º a 27.º e 41.º da Réplica».

1.5. O Conselho Regional ... da Ordem dos Advogados indeferiu o pedido formulado, por entender que «a entidade que vem requerer a dispensa de sigilo não tem legitimidade para o efeito», já que não fora a própria Advogada a requerer a dispensa de sigilo profissional, nem ter sido o incidente processado no Tribunal superior àquele onde fora suscitado.

1.6. Formulando então a testemunha advogada o pertinente pedido de dispensa de sigilo profissional (por previamente o ter invocado para se recusar a depor), não foi decidido o mesmo até 10 de Julho de 2019 - data agendada para a sua inquirição, derradeira em sede de audiência de julgamento -, pelo que foi proferido despacho suspendendo-a, lendo-se nomeadamente no mesmo:
«(…)
Atendendo a que a testemunha que falta ouvir, a Il. Advogada Dr.ª I. M., ainda não obteve resposta do Conselho Regional da Ordem dos Advogados do …, dá-se sem efeito a presente audiência.
Não sendo dispensado o sigilo profissional, será suscitado incidente junto do Tribunal da Relação, pelo que não se designa, por ora, nova data para continuação da audiência de julgamento.
(…)»

1.7. Vindo a dispensa de sigilo profissional a ser indeferida, foi proferido despacho pelo Tribunal de 1.ª instância, solicitando a este a dispensa de sigilo profissional, quanto à testemunha advogada referida, lendo-se nomeadamente no mesmo:

«A testemunha I. M., I. advogada que prestou apoio judiciário na modalidade de consulta jurídica aos Réus, não logrou obter a seu pedido a dispensa de sigilo profissional pela Ordem dos Advogados, nos termos do artigo 92.º, n.º 4 do Estatuto da Ordem dos Advogados.
Assim, a testemunha invocou validamente o segredo profissional para se recusar depor, declarando que prestou efetivamente consulta jurídica aos Réus, mas não tem acesso aos documentos, que estão na Câmara Municipal – onde é prestado o apoio.
Mantendo-se o interesse em obter o depoimento da testemunha e documentos da consulta jurídica, com vista a apurar da veracidade dos factos alegados pelos Réus, afigura-se-nos que a relevância para a descoberta da verdade em obter o depoimento É superior ao valor de confiança que o sigilo visa proteger, sendo certo que um dos interesses a proteger no sigilo é dos próprios Réus, que pediram a dispensa.
Pelo exposto, determina-se, nos termos e ao abrigo das disposições conjugadas dos artigo 417.º, n.º 3, alínea c) e 497.º, n.º 3, do Código de Processo Civil, e 135º, do CPP, que se autue por apenso cópia eletrónica da ata, dos articulados oferecidos pelas partes, das pronúncias da O.A. e do presente despacho e se autue por apenso e se remeta o apenso com a indicação incidente para a dispensa do dever do sigilo ao Venerando Tribunal Relação de Guimarães, solicitando-se tal dispensa. Os autos aguardarão a decisão sobre tal incidente e após será designada data para a continuação do julgamento.
Notifique.»

1.8. Recebidos aqui os autos, foi solicitado ao Conselho Regional ... da Ordem dos Advogados a emissão de parecer sobre o levamento de sigilo profissional em causa, sendo o mesmo proferido, defendendo a recusa de quebra do segredo profissional da testemunha advogada em causa, por nomeadamente não poderem «subsistir dúvidas de que a verdade pode (e deve) ser alcançada sem a quebra do segredo profissional por outros meios, mormente ouvindo os próprios Autores».

1.9. Notificadas as partes do seu teor, vieram: os Autores, pedir que se determinasse a quebra do segredo profissional, autorizando-se a testemunha a depor e permitindo a junção aos autos de todos os documentos elaborados por ela na sequência das consultas jurídicas que lhes prestou; e a Ré, concordar e subscrever o dito parecer.
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II - QUESTÕES QUE IMPORTA DECIDIR

Mercê do exposto, uma única questão foi submetida no presente incidente à apreciação deste Tribunal:

· Questão Única - Justifica-se o levantamento do sigilo profissional de advogado, invocado pela testemunha I. M. nos autos principais (nomeadamente, por se verificarem os pressupostos legais que autorizam esse levantamento), por forma a que possa depor em audiência de julgamento ?
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III - FUNDAMENTAÇÃO DE FACTO

Com interesse para a apreciação da questão enunciada, encontram-se assentes nos autos os factos elencados em «I - RELATÓRIO» (relativos ao seu processamento), que aqui se dão por integralmente reproduzidos.
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IV - FUNDAMENTAÇÃO DE DIREITO

4.1. Dever de colaboração com a justiça - Recusa legítima

4.1.1.1. Princípio da cooperação

Lê-se no art. 417.º, n.º 1 do CPC (como já antes se lia, no art. 519.º, n.º 1 do anterior CPC) que todas «as pessoas, sejam ou não partes na causa, têm o dever de prestar a sua colaboração para a descoberta da verdade, respondendo ao que lhes for perguntado, (...) facultando o que lhes for requisitado e praticando o atos que forem determinados».
Mais se lê, no art. 7.º, n.º 4 do CPC (como já antes se lia, no art. 266.º, n.º 4 do anterior CPC) que sempre «que alguma das partes alegue justificadamente dificuldade séria em obter documento ou informação que condicione o eficaz exercício de faculdade ou o cumprimento de ónus ou dever processual, deve o juiz, sempre que possível, providenciar pela remoção do obstáculo».

Os preceitos referidos são indiscutível concretização do princípio da cooperação (consagrado expressamente no nosso sistema após a reforma de 1995/1996, por via do Decreto-Lei n.º 329-A/95, de 12 de Dezembro, e do Decreto-Lei n.º 180/96, de 25 de Setembro), princípio estruturante de todo o processo civil (aqui na sua vertente material, e relativo à instrução da causa). Segundo o mesmo, existe um dever geral - das partes e de terceiros - de colaborarem com o tribunal, com vista «ao apuramento da verdade e à justa composição do litígio», fim último que o art. 411.º do CPC comete ao juiz.

Assume-se, com ele, uma «concepção moderna do processo civil, que passa a ser visto como uma comunidade de trabalho, assim se apelando ao contributo de todos os intervenientes processuais na realização dos fins do processo e responsabilizando-os pelos resultados obtidos» (Paulo Pimenta, Processo Civil Declarativo, Almedina, 2014, pág. 26, com bold apócrifo) (1).

Reconhece-se que no processo civil não são raros os casos em que, para a prova de determinados factos, se torna fundamental a obtenção de elementos que se encontram na disponibilidade exclusiva de terceiros (v.g. testemunhas ou instituições), e cujos beneficiários são terceiros à causa ou, sendo parte interessada, não concedem a autorização para a sua revelação.

Compreende-se, por isso, que a epígrafe do art. 417.º do CPC seja «Dever de cooperação para a descoberta da verdade», e que a epígrafe do art. 7.º do CPC seja «Princípio da cooperação»; e que as partes e os terceiros a quem o tribunal o solicitar tenham que facultar objectos que constituem meio de prova (arts. 429.º, 432.º e 436.º, todos do CPC), prestar depoimento e/ou declarações de parte, e depoimento testemunhal (arts. 452.º, 466.º e 526.º, todos do CPC), esclarecer o relatório pericial (art. 486.º do CPC), ou submeter-se a inspecção judicial e ao exame pericial (arts. 467.º e 490.º, ambos do CPC).

Mais se compreende que se leia, no n.º 2 do art. 417.º citado, que aqueles «que recusem a colaboração devida são condenados em multa, sem prejuízo dos meios coercitivos que forem possíveis», sendo que a omissão grave do dever de cooperação pode, inclusivamente, dar lugar à condenação da parte como litigante de má fé (art. 542.º, n.º 2, al. c) do CPC).
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4.1.1.2. Recusa (legítima) de cooperação

Contudo, e nos termos do n.º 3 do art. 417.º citado, a «recusa [de colaboração] é (…) legítima se a obediência importar: violação da integridade física ou moral das pessoas (al. a); intromissão na vida privada ou familiar, no domicílio, na correspondência ou nas telecomunicações (a. b); ou violação do sigilo profissional ou de funcionário público, ou do segredo do Estado, sem prejuízo do disposto no nº 4» (al. c).
Particularizando quanto ao sigilo profissional, desde cedo se aceitou que o exercício de certas profissões, bem como o funcionamento de certos serviços, exige ou pressupõe, pela própria natureza das necessidades que visam satisfazer, que os indivíduos que a eles tenha que recorrer revelem factos que contendem com a esfera íntima da sua personalidade, quer física, quer jurídica. Quando esses serviços ou profissões são de fundamental importância colectiva, porque virtualmente todos os cidadãos carecem de os utilizar, a inviolabilidade dos segredos conhecidos através do seu funcionamento ou exercício constitui, como condição indispensável de confiança nessas imprescindíveis actividades, um interesse público (conforme Parecer do Conselho Consultivo da Procuradoria Geral da República n.º 110/56, publicado no BMJ n.º 67, pág. 124, citado no Parecer do Conselho Consultivo da Procuradoria Geral da República n.º 49/1991, de 12.03.1993, cujo relator foi Ferreira Ramos).
Logo, o segredo profissional consiste na reserva que todo o indivíduo deve guardar sobre os factos conhecidos no desempenho das suas funções, ou como consequência do seu exercício, factos que lhe incumbe ocultar, quer porque o segredo lhe é pedido, quer porque ele é inerente à própria natureza do serviço ou da sua profissão (Fernando Elói, «Da Inviolabilidade das correspondências e do sigilo profissional dos funcionários telégrafo-postais», O Direito, Ano LXXXVI, 1954, pág. 81) (2).

Mais se lê, no n.º 4 do art. 417.º do CPC que, deduzida «escusa com fundamento na alínea c) do número anterior [violação do sigilo profissional ou de funcionário público, ou do segredo do Estado], é aplicável, com as adaptações impostas pela natureza dos interesses em causa, o disposto no processo penal acerca da verificação da legitimidade da escusa e da dispensa do dever de sigilo invocado».
De forma conforme, lê-se no art. 497.º, n.º 3 do CPC que devem «escusar-se a depor os que estejam adstritos ao segredo profissional, ao segredo de funcionários públicos e ao segredo de Estado, relativamente aos factos abrangidos pelo sigilo, aplicando-se este caso o disposto no n.º 4 do artigo 417.º»
Logo, o «dever de cooperação para a descoberta a verdade tem dois limites; o respeito pelos direitos fundamentais, imposto pela Constituição e referido nas alíneas a) e b) do nº 3 (cf. os arts. 25-1 CP, 26-1 CP e 34-1 CP); o respeito pelo direito ou dever de sigilo, a que se refere a alínea c) do nº 3».
Contudo, enquanto que o primeiro limite é absoluto, não podendo o tribunal ultrapassá-lo, o segundo não o é, conforme desde logo resulta da redacção do n.º 4 do art. 417.º do CPC, e da remissão por ele feita para o CPP (conforme José Lebre de Freitas e Isabel Alexandre Código de Processo Civil Anotado, Volume. 2.º, 3.ª edição, Almedina, Março de 2018, pág. 223).
Com efeito, lê-se no art. 135.º, n.º 1 do CPP que os «ministros de religião ou confissão religiosa e os advogados, médicos, jornalistas, membros de instituições de crédito e as demais pessoas a quem a lei permitir ou impuser que guardem segredo podem escusar-se a depor sobre os factos por ele abrangidos».
Havendo, porém, «dúvidas fundadas sobre a legitimidade da escusa, a autoridade judiciária perante a qual o incidente se tiver suscitado procede às averiguações necessárias»; e, se «após estas, concluir pela ilegitimidade da escusa, ordena, ou requer ao tribunal que ordene, a prestação do depoimento» (n.º 2 do art. 135.º citado).
Dir-se-á, assim, que invocada a escusa do dever de cooperação com o tribunal, por alegadamente o mesmo implicar violação de segredo profissional, e existindo dúvidas sobre a legitimidade da sua invocação, o juiz decide, depois de proceder às averiguações necessárias; e, caso conclua pela ilegitimidade da escusa, determina a forma de cooperação requerida, cuja inobservância ficará, então, sujeita às cominações estabelecidas no n.º 2 do art. 417.º do CPC.
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4.1.1.3. Sigilo profissional de advogado

4.1.1.3.1. Sede legal

Lê-se no art. 92.º do Estatuto da Ordem dos Advogados (doravante EOA, aprovado pela Lei n.º 145/2015, de 09 de Setembro, que revogou o anterior Estatuto, aprovado pela Lei n.º 15/2005, de 26 de Janeiro), sob a precisa epígrafe «Segredo Profissional», no seu n.º 1 que: «O advogado é obrigado a guardar segredo profissional no que respeita a todos os factos cujo conhecimento lhe advenha do exercício das suas funções ou da prestação dos seus serviços, designadamente: a) A factos referentes a assuntos profissionais conhecidos, exclusivamente, por revelação do cliente ou revelados por ordem deste; b) A factos de que tenha tido conhecimento em virtude de cargo desempenhado na Ordem dos Advogados; c) A factos referentes a assuntos profissionais comunicados por colega com o qual esteja associado ou ao qual preste colaboração; d) A factos comunicados por coautor, corréu ou cointeressado do seu constituinte ou pelo respetivo representante; e) A factos de que a parte contrária do cliente ou respetivos representantes lhe tenham dado conhecimento durante negociações para acordo que vise pôr termo ao diferendo ou litígio; f) A factos de que tenha tido conhecimento no âmbito de quaisquer negociações malogradas, orais ou escritas, em que tenha intervindo».
Precisa-se ainda, no mesmo art. 92.º, que: «A obrigação do segredo profissional existe quer o serviço solicitado ou cometido ao advogado envolva ou não representação judicial ou extrajudicial, quer deva ou não ser remunerado, quer o advogado haja ou não chegado a aceitar e a desempenhar a representação ou serviço, o mesmo acontecendo para todos os advogados que, direta ou indiretamente, tenham qualquer intervenção no serviço» (n.º 2); «O segredo profissional abrange ainda documentos ou outras coisas que se relacionem, direta ou indiretamente, com os factos sujeitos a sigilo» (n.º 3); «O dever de guardar sigilo quanto aos factos descritos no n.º 1 é extensivo a todas as pessoas que colaborem com o advogado no exercício da sua atividade profissional, com a cominação prevista no n.º 5» (n.º 7).
Por fim, lê-se no n.º 5 do mesmo art. 92.º, que os «atos praticados pelo advogado com violação de segredo profissional não podem fazer prova em juízo».

Consagra-se, assim, nos nºs 1, 2 e 7 do art. 92º citado o dever profissional de sigilo de advogado (um dos deveres de segredo profissional expressamente considerados no art. 135.º, n.º 1 do CPP) e as pessoas que estão obrigadas a observá-lo; e nos nºs 1 e 3 estabelece-se o objecto desse dever.
Logo, resulta hoje expressamente da lei que o âmbito do sigilo profissional de advogado deve ser entendido em termos amplos, não se restringindo aos factos que sejam conhecidos por via do exercício de mandato judicial, antes abrangendo todos os que sejam conhecidos por via do exercício da advocacia, e assentem na confidencialidade que é própria relação de confiança em que a mesma se funda (3).
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4.1.1.3.2. Ratio / Natureza

O sigilo profissional de advogado visa, essencialmente, duas finalidades: proteger a imprescindível confiança entre o advogado e o seu cliente (numa vertente eminentemente privada); e preservar o interesse público na correcta e eficaz administração da justiça (numa vertente eminentemente pública) (4).
Com efeito, o «segredo profissional sendo radicalmente um dever para com o cliente, já que sem ele seria impossível o estabelecimento da relação de confiança, resulta também de um compromisso da Advocacia para com a sociedade. Na verdade, a função social desempenhada pelos Advogados implica, para além da independência e isenção, o reconhecimento do seu papel de confidentes necessários» (Fernando Sousa Magalhães, Estatuto da Ordem dos Advogados Anotado e Comentado, Almedina, 11.ª edição, 2017, pág. 137).

Precisando a sua vertente mais privada, dir-se-á que o dever de guardar segredo profissional radica numa relação contratual de natureza privada, da qual resulta da confiança que se estabelece entre advogado e cliente e lealdade daquele pra com este (imprescindíveis para que sejam revelados todos os factos que permitam a defesa eficaz de direitos ou interesses cometida ao advogado). «O cliente, ou simples consulente, deve ter absoluta confiança na discrição do Advogado para lhe poder revelar toda a verdade, e considerá-lo como um “Sésamo que nunca se abre”» (António Arnaut, Estatuto da Ordem dos Advogados, 2.ª edição, Fora do Texto, 1995, pág. 60) (5).
Daí a tutela penal de que se reveste, lendo-se no art. 195.º do CP (sob a precisa epígrafe «Violação de segredo»») que, quem, «sem consentimento, revelar segredo alheio de que tenha tomado conhecimento em razão do seu estado, ofício, emprego, profissão ou arte é punido com pena de prisão até 1 ano ou com pena de multa até 240 dias» (6).

Precisando a vertente mais pública do sigilo profissional de advogado, dir-se-á radicar este (igualmente) na natureza social da função forense, sendo (também) um princípio de ordem pública: o patrocínio forense é considerado como «um elemento essencial à administração da justiça» (conforme art. 208.º da CRP), já que pressuposto no direito fundamental de acesso ao direito (conforme art. 20.º da CRP); e por isso se afirma que o advogado exerce «uma função pública de administração da justiça e é, por conseguinte, um órgão dessa administração» (Figueiredo Dias, Direito Processual Penal, Volume I, Coimbra Editora, 2004, pág. 471).
Logo, estando implícito no sigilo profissional o interesse público e preponderante da boa administração da justiça e o interesse da efectiva realização dos fins da actividade judicial (consagrado no art. 202º da CRP), constitui-se ele próprio como uma exigência transversal a qualquer Estado de Direito Democrático (consagrado no art. 2.º da CRP), para o qual é indispensável o exercício em plena liberdade e independência da advocacia.
Dir-se-á mesmo que, devido a esta ligação do segredo profissional ao estado de direito democrático, tende-se a considerar que as normas que o regulam são de ordem pública; e gozam de protecção constitucional.
Compreende-se, por isso, que se afirme que o «dever de guardar segredo profissional é uma regra de ouro da Advocacia e um dos mais sagrados princípios deontológicos. Foi sempre considerado honra e timbre da profissão, condição sine qua non da sua plena dignidade» (António Arnaut, Iniciação À Advocacia: História - Deontologia. Questões Práticas, 3.ª edição, Coimbra Editora, 1996, pág. 65). Logo, o segredo profissional, representando um dos deveres supremos do advogado, é um princípio estruturante da própria classe, que radica na função ético-social da advocacia: «o sigilo é um dever de toda a classe, é condição da plena dignidade do Advogado bem como da Advocacia» (Augusto Lopes Cardoso, Do Segredo Profissional da Advocacia, Centro Editor Livreiro da Ordem dos Advogados, 1998, pág. 17).
Compreende-se ainda que, sistematicamente, a Ordem dos Advogados exija que seja cumprido com zelo e intransigência; e que quaisquer derrogações que possa registar revistam sempre carácter excepcional (7).
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Contudo, lê-se no n.º 4 do art. 92.º do EOA que o «advogado pode revelar factos abrangidos pelo segredo profissional, desde que tal seja absolutamente necessário para a defesa da dignidade, direitos e interesses legítimos do próprio advogado ou do cliente ou seus representantes, mediante prévia autorização do presidente do conselho regional respetivo, com recurso para o bastonário, nos termos previstos no respetivo regulamento».
Enfatiza-se, a propósito, que não cabe ao cliente desvincular o advogado do segredo profissional a que este se encontra obrigado, em seu directo e imediato benefício, mas sim ao conselho regional respectivo (do advogado em causa) da Ordem dos Advogados; e, deste modo, resulta claramente revelada e garantida a vertente pública do sigilo profissional em causa.
Compreende-se agora melhor que se afirme que, não obstante o segredo profissional de advogado vise «especificamente a tutela da relação advogado/cliente, tendo em conta a protecção da confiança do indivíduo que recorre aos serviços do advogado, nele confiando, ao revelar-lhe factos de cariz sigiloso, que deseja que se mantenham privados, e que o faz no intuito de melhor esclarecer o advogado quando à situação de facto existente», «tal é prosseguido num plano secundário ou até reflexo.
O bem primeiro a ser tutelado é, de facto, o interesse geral, social, que deve ser posto na confidencialidade e secretismo que hão-de revestir as relações havidas no exercício de certas profissões» (Ac. do STJ, de 15.02.2000, Garcia Marques, CJSTJ, Ano VIII, Tomo I, págs. 85-91).
O regulamento referido na parte final do n.º 4 do art. 92.º do EOA é, precisamente, o Regulamento de Dispensa de Segredo Profissional (Regulamento n.º 94/2006 OA, de 25 de Maio de 2006), aprovado pelo Conselho Geral da Ordem dos Advogados (publicado no DR, 2.ª Série, n.º 113, de 12 de Junho de 2006).

Recorda-se ainda que se lê no art. 135.º, n.º 2 do CPP que, havendo «dúvidas fundadas sobre a legitimidade da escusa [de prestação de depoimento, por invocação de segredo profissional], a autoridade judiciária perante a qual o incidente se tiver suscitado procede às averiguações necessárias»; e se, «após estas, concluir pela ilegitimidade da escusa, ordena, ou requer ao tribunal que ordene, a prestação do depoimento».
Deste modo, o dever de sigilo profissional de advogado só poderá deixar de ser observado, grosso modo, em duas situações: por autorização da própria Ordem Profissional, mercê de requerimento feito pelo advogado que pretenda depor (art. 92.º, n.º 4 do EAO); ou por determinação judicial, nomeadamente quando o Tribunal considere ilegítima ou ilegal a recusa a depor (art. 135.º, n.º 2 do CPP) (8).
Fora destas das suas legais e taxativas excepções, a protecção de que goza é tal que a revelação de informações cobertas pelo sigilo profissional de advogado implicará, não só a já vista responsabilidade criminal do infractor (conforme art. 195.º do CP), como igualmente responsabilidade civil e deontológica (9).

As ditas excepções permitem, porém, afirmar que o sigilo profissional de advogado (contrariamente a outros segredos, como o religioso), não tem carácter absoluto, podendo sofrer restrições impostas pela necessidade de salvaguardar outros direitos ou interesses constitucionalmente protegidos. Um entendimento contrário deixaria sem protecção - fazendo perigar a respectiva tutela - tais outros interesses e valores, também eles constitucionalmente consagrados, como é o caso da necessidade de obtenção de provas, enquanto corolário do direito de acesso ao direito e a uma tutela jurisdicional efectiva (art. 20.º, n.º 1 da CRP) (10).

Adianta-se, porém, que malgrado o sigilo profissional de advogado não seja um direito absoluto, e podendo ceder perante a necessidade de salvaguardar o interesse público da cooperação com a justiça e outros interesses constitucionalmente protegidos, as restrições ao mesmo apenas poderão derivar de lei formal expressa; e a sua aplicação em concreto terá de ser objecto de adequado controlo jurisdicional (já que as excepções contempladas na lei pressupõem sempre um conflito de interesses, a necessitar de ponderação e cautelas).
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4.1.2. Caso concreto (subsunção ao Direito aplicável)

Concretizando, verifica-se que, no âmbito de uma acção declarativa com vista ao reconhecimento da existência, plena validade e eficácia de um contrato de arrendamento celebrado há mais de 64 anos, e de cuja transmissão os Autores teriam beneficiado - por ser inválido, e de nenhum efeito, um outro, subscrito por eles no início de Julho de 2013 -, foi arrolada como testemunha I. M., advogada, que aqueles teriam consultado após se terem confrontado com a oposição da Ré, em Fevereiro de 2018, à renovação do dito segundo contrato de arrendamento.
Mais se verifica que, tendo a Ilustre Advogada conhecido os factos objecto do seu pretendido depoimento precisamente no âmbito de consulta jurídica prestada aos Autores, disponibilizada pelo Gabinete de Consulta Jurídica da Câmara Municipal ..., está vinculada ao sigilo profissional, nos termos do art. 92.º, n.º 1, al. a) e n,º 2 do EAO (isto é, estão em causa «factos cujo conhecimento lhe adveio do exercício das suas funções», «referentes a assuntos profissionais conhecidos, exclusivamente, por revelação do cliente», e independentemente do «serviço solicitado ou cometido não envolver representação judicial ou extrajudicial, nem dever ser remunerado»).
Por fim, verifica-se que, tendo a mesma Ilustre Advogada solicitado a quebra do dito sigilo profissional ao Conselho Distrital do … da Ordem dos Advogados (viabilizando assim ao seu depoimento em juízo), viu recusada a mesma
Logo, mostra-se legal/legítima a invocação do dever de segredo profissional em causa (de sigilo de advogado), feita por testemunha advogada, como fundamento de recusa do cumprimento do seu dever de colaboração com a Justiça, como correctamente o entendeu o Tribunal de 1.ª Instância.
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Assente no caso dos autos a legitimidade ou legalidade da escusa invocada pela dita testemunha, dela porém não resulta a resposta à questão que se coloca no presente incidente, já que o que nele se pretende saber é se, não obstante o dever de sigilo profissional de advogado (aqui indiscutível), se justifica o seu levantamento, face aos concretos interesses conflituantes em presença.
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4.2. Levantamento de sigilo profissional de advogado – Critério

4.2.1.1. Incidente de levantamento de sigilo profissional de advogado

Recorda-se que se lê no art. n.º 4 do art. 417.º do CPC que, deduzida «escusa com fundamento na alínea c) do número anterior [no caso, violação do sigilo profissional], é aplicável, com as adaptações impostas pela natureza dos interesses em causa, o disposto no processo penal acera da verificação da legitimidade da escusa e da dispensa do dever de sigilo invocado».
Recorda-se ainda que se lê, no art. 135.º, nº 2 do CPP (a propósito da verificação da legitimidade da escusa invocada), que, havendo «dúvidas fundadas sobre a legitimidade da escusa, a autoridade judiciária perante a qual o incidente se tiver suscitado procede às averiguações necessárias»; e se, «após estas, concluir pela ilegitimidade da escusa, ordena, ou requer ao tribunal que ordene, a prestação do depoimento».
Por fim (e concluindo pela dita legitimidade da escusa), lê-se no n.º 3 do art. 135.º do CPP citado que o «tribunal superior àquele onde o incidente tiver sido suscitado pode decidir da prestação de testemunho com quebra do segredo profissional sempre que esta se mostre justificada, segundo o princípio da prevalência do interesse preponderante, nomeadamente tendo em conta a imprescindibilidade do depoimento para a descoberta da verdade, a gravidade do crime e a necessidade de proteção de bens jurídicos».

Logo, o incidente de escusa de sigilo profissional de advogado, uma vez invocado este, desdobra-se em duas fases: uma primeira em que, havendo dúvidas sobre a legitimidade da invocação, será ao juiz da causa que caberá proceder às averiguações necessárias e proferir decisão, ordenando ele próprio a prestação do depoimento quando conclua pela ilegitimidade da recusa; e uma segunda em que, já tendo o juiz decidido previamente sobre a legitimidade da escusa, ordena a subida do incidente ao tribunal imediatamente superior ao seu, para que este aprecie e decida sobre a verificação dos pressupostos legais de quebra do sigilo profissional em causa (11).
Caberá, assim, ao tribunal onde o incidente se suscite pela primeira vez pronunciar-se sobre a legitimidade da escusa; e caberá ao tribunal superior para onde o mesmo seja remetido pronunciar-se exclusivamente sobre a quebra do sigilo profissional (12).
Compreende-se que assim seja, já que, vinculando o segredo profissional «todos aqueles que, por via do exercício de profissão, têm acesso às informações indicadas, e no caso da legitimidade da recusa, visto a informação (ou depoimento) estar protegida pelo segredo, só o levantamento do sigilo pode obrigar a entidade à prestação da informação» (conforme Acórdão Uniformizador de Jurisprudência nº 2/2008, do STJ, de 13 de Fevereiro de 2008, publicado no DR, 1.ª Série, n.º 63, de 31 de Março de 2009).

Quer no caso de apreciação da legitimidade da recusa, quer no caso de apreciação da justificação para quebra de sigilo profissional, «a decisão da autoridade judiciária ou do tribunal é tomada ouvido o organismo representativo da profissão relacionada com o segredo profissional em causa, nos termos e com os efeitos previstos na legislação que a esse organismo seja aplicável» (art. 135.º, n.º 4 do CPP).
Admite-se, porém, que, quando o dito organismo já se tenha pronunciado sobre os fundamentos próprios da recusa para depor (isto é, não apenas sobre qualquer questões formais, nomeadamente a legitimidade do requerente da dispensa de sigilo profissional), possa ser dispensada a sua reiterada audição (na fase posterior, de apreciação dos fundamentos de quebra do dito sigilo) (13).
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4.2.1.2. Critério de decisão - Interesse preponderante/Imprescindibilidade

Recorda-se que se lê no art. 135.º, n.º 3 do CPP que «o tribunal superior àquele onde o incidente tiver sido suscitado pode decidir da prestação de testemunho com quebra do segredo profissional sempre que esta se mostre justificada, segundo o princípio da prevalência do interesse preponderante, nomeadamente tendo em conta a imprescindibilidade do depoimento para a descoberta da verdade, a gravidade do crime e a necessidade de proteção de bens jurídicos».
Mais se lê, no Regulamento de Dispensa de Segredo Profissional (Regulamento n.º 94/2006 OA, de 25 de Maio de 2006), no seu art. 4.º: «A dispensa do segredo profissional tem carácter de excepcionalidade» (n.º 1); «A autorização para revelar factos abrangidos pelo segredo profissional, apenas é permitida quando seja inequivocamente necessária para a defesa da dignidade, direitos e interesses legítimos do próprio advogado, cliente ou seus representantes» (n.º 2); «A decisão do Presidente do Conselho Distrital, nos termos do EOA e do presente regulamento, aferirá da essencialidade, actualidade, exclusividade e imprescindibilidade do meio de prova sujeito a segredo, considerando e apreciando livremente os elementos de facto trazidos aos autos pelo requerente da dispensa».
Logo, e antes de mais, o critério de decisão a adoptar será o de fazer prevalecer o interesse preponderante, isto é, o tribunal superior poderá dispensar o titular do sigilo profissional - no caso, de advogado - se considerar relevante o interesse civil a satisfazer com a sua quebra (José Lebre de Freitas e Isabel Alexandre, Código de Processo Civil Anotado, Volume 2.º, 3.ª edição, Almedina, Março de 2018, págs. 223-225).
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Contudo, nesta ponderação do que seja «o interesse preponderante que deva prevalecer», deverá o Tribunal atender aos critérios gerais de resolução de colisão de direitos (nomeadamente, constitucionais).
Com efeito, lê-se no art. 18.º, n.º 2 da CRP que «a lei só pode restringir os direitos, liberdades e garantias nos casos expressamente previstos na Constituição, devendo as restrições limitar-se ao necessário para salvaguardar outros direitos ou interesses constitucionalmente protegidos».
Compreende-se, assim, que se afirme que, no conflito de direitos em presença (sigilo profissional de advogado/confiança do cliente/reserva da vida privada versus realização da justiça) deverá prevalecer o mais relevante; mas essa relevância terá de ser aferida à luz do caso concreto, e dos princípios da proporcionalidade, da adequação e da necessidade (neste sentido, Ac. da RL, de 19.09.2006, Graça Amaral, Processo n.º 5900/2006-7).
Precisando, tendendo ao conteúdo e função específica de cada um dos direitos, pretender-se-á obter o máximo de protecção de cada um deles, sem os descaracterizar no seu núcleo essencial (princípio constitucional da concordância prática, face à vocação de integridade e completude que cada direito constitucional tem ínsita); e o sacrifício que tiver que se verificar, será apenas o necessário à realização essencial do outro (princípios constitucionais da proporcionalidade, da adequação e da necessidade).
Afirma-se, por isso, que estando em causa o exercício simultâneo de dois direitos constitucionais, em colisão (reserva da vida privada versus realização da justiça), a solução de tal litígio deverá resultar de um juízo de ponderação, que procure, em face da situação concreta, encontrar e justificar a solução mais conforme ao conjunto dos valores constitucionais, assim se actuando o critério da ponderação de bens (neste sentido, Vieira de Andrade, Direitos Fundamentais na Constituição de 1976, Almedina, pág. 220).
Do mesmo modo se entende o disposto no art. 335.º do CC, segundo o qual, «havendo colisão de direitos iguais ou da mesma espécie, devem os titulares ceder na medida do necessário para que todos produzam igualmente o seu efeito, sem maior detrimento para qualquer das partes» (nº 1), sendo que, no caso de os direitos serem «desiguais ou de espécie diferente, prevalece o que deva considerar-se superior» (nº 2).

Contudo, e como desde cedo alertou a doutrina, a definição da superioridade de um direito em relação a outro terá que ser feita em concreto, pela ponderação dos interesses que cada titular visa atingir, não podendo - por exemplo - afirmar-se que o interesse pessoal seja, em todas as circunstâncias, superior ao patrimonial (Professor Pessoa Jorge, Pressupostos da Responsabilidade Civil, pág. 201, com bold apócrifo).
Por outras palavras, «há que verificar se os direitos colidentes têm uma estrutura formal e um fundamento axiológico-normativo assentes quer em interesses juridicamente tutelados de qualidade e grau idênticos quer em interesses concretos juridicamente tutelados de qualidade e grau diverso mas de peso equilibrado, ou, diferentemente, se na colisão de direitos há predominância de interesses juridicamente tutelados de uma das partes.
Mas esta (…) «ponderação (…) não pode ser exclusivamente feita mediante uma abstracta comparação de bens e valores jurídicos tutelados, pois depende largamente da situação concreta».
Assim, na «hierarquização legal dos valores pessoais e patrimoniais volta a imperar a importância objectiva de tais valores para a realização dos fins jurídicos da comunidade, particularmente, no que toca ao mais imediato e fundamental do comum da existência humana. Daí que, nem sempre os valores pessoais precedam os valores patrimoniais. Tal precedência verifica-se, sem dúvida, quanto ao valor da personalidade humana total integrando todos os valores singulares da personalidade, quanto ao valor da dignidade humana essencial e quanto aos valores vitais. Fora disto, já a indispensabilidade ou a importância de certos valores patrimoniais básicos poderão sobrepor-se ao relevo de valores de personalidade menos prementes» (Rabindranath V. A. Capelo de Sousa, O Direito Geral de Personalidade, Coimbra Editora, 1995, pág. 534 a 549) (14).

Por fim, reitera-se que, «mesmo o direito inferior deve ser respeitado até onde for possível e apenas deve ser limitado na exacta proporção em que isso é exigido pela tutela razoável do conjunto principal de interesses. Inclusivamente, caso sejam possíveis e adequados vários modos de exercício dos direitos superior e inferior, a solução legal do conflito impõe que as partes adoptem modos alternativos de exercício que respeitem a diferença axiológico-jurídica em causa e se mostrem não colidentes entre si ou, se isso não foi possível, impõe que o titular do direito predominante adopte o modo de exercício mais moderado ou menos gravoso, que limite ao mínimo o direito secundário» (Rabindranath V. A. Capelo de Sousa, O Direito Geral de Personalidade, Coimbra Editora, 1995, pág. 549).
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Particularizando agora a «prevalência do interesse preponderante», no que ao sigilo profissional de advogado diz respeito, pressupõe a mesma que a prestação de depoimento se decida depois de ponderados jurisdicionalmente os interesses em confronto, isto é, da relação de confiança e lealdade entre o cliente o advogado e da realização da justiça (esta quer no caso concreto, pela precisa pretensão da sua quebra - com acrescida produção de prova -, quer no âmbito geral da defesa intransigente de um dos principais traços de uma advocacia livre e independente); e essa ponderação incumbe ao tribunal imediatamente superior àquele em que o incidente se tiver suscitado (conforme Acórdão Uniformizador de Jurisprudência n.º 2/2008, do STJ, de 13 de Fevereiro de 2008, publicado no DR, 1.ª Série, n.º 63, de 31 de Março de 2009).

Por outras palavras, o tribunal superior, ao realizar esse juízo, deverá «actuar segundo critérios prudenciais, realizando uma cautelosa e aprofundada ponderação dos delicados e relevantes interesses em conflito: por um lado, o interesse na realização da justiça e a tutela do direito à produção da prova pela parte onerada; por outro lado, o interesse tutelado com o estabelecimento do dever de sigilo, maxime o interesse da contraparte na reserva da vida privada, a tutela da relação de confiança que a levou a confiar dados pessoais ao vinculado pelo sigilo e a própria dignidade do exercício da profissão» (Carlos Francisco de Oliveira Lopes do Rego, Comentários ao Código de Processo Civil, Volume I, 2.ª edição, Almedina, págs. 457-458).
Contudo, para o efeito não bastam afirmações apriorísticas de que o interesse na realização e na boa administração da justiça, atenta a sua dimensão social, deverá prevalecer sobre o interesse particular do cliente/consulente do advogado em não ver divulgada informação que confiou a este; ou que, estando em causa um direito de personalidade (à reserva da vida privada), o mesmo deverá prevalecer sobre o reconhecimento de um direito patrimonial (objecto da acção judicial onde se pretende obter o depoimento sujeito a sigilo profissional de advogado).

Impõe-se, pelo contrário (e, por isso, se reafirma) que esse juízo de ponderação tenha que «ter, sempre e necessariamente, em conta a natureza dos interesses em causa: desde logo, trata-se de interesses privados (e não interesses públicos, como sucede necessariamente no âmbito do processo penal) que poderão, por sua vez, revestir natureza pessoal ou patrimonial – e, neste último caso, de valores muito variáveis. (…)

Daqui decorre que a dispensa do invocado sigilo dependerá sempre de um juízo concreto, fundado na específica natureza da acção e na relevância e intensidade dos interesses da parte que pretende obter prova através daquela dispensa» (Carlos Francisco de Oliveira Lopes do Rego, ibidem, com bold apócrifo) (15).
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Vem-se, assim, defendendo que, no âmbito do processo civil (em que estão em causa interesses privados), a quebra do sigilo profissional de advogado surge com características marcadamente excepcionais, em conjunturas muito particulares (16); deverá ser aferida com base na estrita necessidade (numa lógica de imprescindibilidade da informação pretendida); e limitar-se ao mínimo indispensável à concretização dos valores pretendidos alcançar.

Precisa-se ainda que «a imprescindibilidade do depoimento para a descoberta da verdade significa duas coisas: a descoberta da verdade é irreversivelmente prejudicada se a testemunha não depuser ou, depondo, o depoimento não incidir sobre os factos abrangidos pelo segredo profissional e, portanto, o esclarecimento da verdade não pode ser obtido de outro modo, isto é, não há meios alternativos à quebra do segredo profissional que permitam apurar a verdade» (Paulo Pinto de Albuquerque, Comentário ao Código de Processo Penal À luz da Constituição da República e da Convenção Europeia dos Direitos do Homem, 4.ª edição, Universidade Católica Portuguesa, pág. 379).

Ora tudo isto é claramente reafirmado pelo art. 4.º do Regulamento de Dispensa de Segredo Profissional, quando impõe que na decisão de dispensa do segredo profissional (aqui, pelo Presidente do Conselho Distrital respectivo, directamente ao advogado que lha requeira), se afira da essencialidade, actualidade, exclusividade e imprescindibilidade do meio de prova sujeito a segredo.

Compreende-se, por isso, que se decida que: o segredo profissional deve ceder, «excepcionalmente, perante outros valores que, no caso concreto, se lhe devam sobrepor, designadamente, quando os elementos sob segredo se mostrem imprescindíveis para a protecção e efectivação e direito ou interesses jurídicos mais relevantes» (Ac. do STJ, de 15.02.2018, Henrique Araújo, Processo n.º 1130/14.7TVLSB.L1.S1); o «critério legal a utilizar vinculado à lei processual (…), para decidir da prestação de testemunho com quebra do segredo profissional, é que esta se mostre justificada, sendo o princípio da prevalência do interesse preponderante, nomeadamente tendo em conta a imprescindibilidade do depoimento para a descoberta da verdade, (…) e a necessidade de protecção e bens jurídicos» (Ac. do STJ, de 05.04.2018, Pires da Graça, Processo n.º 2/16.5TRPRT-A.S1); a «quebra do segredo profissional só deve ser autorizada ou imposta quando estejam em causa interesses excepcionalmente relevantes e quando a sua revelação surja como última ratio, Isto é, o não depoimento vale como regra geral e a obrigação de depor como a excepção» (Ac. da RG, de 17.12.2019, Alcides Rodrigues, Processo n.º 74/18.8T8GMR.G1).

Compreende-se, ainda, que, não invocando a parte interessada na quebra de sigilo profissional de advogado a concreta factualidade sobe a qual pretende que seja produzido o depoimento em causa, já se tenha decidido que não pode a pretendida quebra ser autorizada, precisamente por não dispor o Tribunal superior de factos que permitam concluir pela excepcionalidade da situação sub judice, e absoluta necessidade/imprescindibilidade do depoimento pretendido.

Concluindo, em sede de processo civil, a dispensa de invocado sigilo profisinal de advogado reveste natureza excepcional; depende sempre de um juízo concreto, fundado na específica natureza da acção e na relevância e intensidade dos interesses da parte que pretende obter prova através daquela dispensa; e só deverá ser concedida se a informação pretendida for necessária (tendo em conta o pedido, a causa de pedir, os temas de prova, bem como os ónus e as regras de prova) e imprescindível (no sentido de não poder ser obtida de outro modo).
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4.2.2. Caso concreto (subsunção ao Direito aplicável)

Concretizando, verifica-se que, na acção declarativa que constitui os autos principais, os Autores pretendem que se reconheça a invalidade e absoluta ausência de produção de efeitos de um contrato de arredamento que subscreveram com a Ré em Julho de 2013, bem como a posterior oposição desta, em Fevereiro de 2018, à sua renovação; e se reconheça a existência, validade e plana eficácia de um outro, celebrado há mais de 64 anos, sobe o mesmo imóvel, hoje propriedade da Ré, e no que teriam sucedido na posição de arrendatários.

Logo, e indiscutivelmente, estamos perante um conflito de interesses privados, já que, sendo o direito da Ré de exclusiva natureza patrimonial, preponderantemente o é também o invocado nos autos pelos Autores (que pretendem salvaguardar, com a pretensão de desvinculação do segredo profissional em causa); e impõe-se ainda considerar a simultânea e indesmentível natureza pública do interesse subjacente ao sigilo de advogado (em benefício da comunidade geral dos cidadãos, constituinte do Estado de Direito Democrático, fundado nomeadamente na boa administração da justiça, para cuja realização é imprescindível uma advocacia livre e independente, e o carácter excepcional das quebras daquele).

Verifica-se ainda que, salvo o devido respeito por opinião contrária, os Autores não aduziram nos autos quaisquer razões que justificassem que se viesse a dar prevalência à pretendida defesa de interesses privados próprios (repete-se, aqui concretizados numa vertente exclusivamente patrimonial) face ao da classe profissional dos Advogados, reconhecida esta como imprescindível à boa administração da justiça.
Logo, à preponderante vertente patrimonial do direito privado dos Autores, opõe-se o interesse público da boa administração da justiça, assente no respeito do sigilo profissional de advogado, cujas derrogações terão necessariamente de revestir carácter excepcional; e, assim, ficou por demonstrar, atentos os contornos do caso concreto, que aquele seja o interesse preponderante, face aos em presença.
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Prosseguindo, reconhecendo os Autores (inclusivamente na sua apreciação ao mesmo), que o que a testemunha advogada «percecionou e tomou conhecimento direto» foi exclusivamente «por via das consultas jurídicas prestadas aos Autores», em data necessariamente posterior a Fevereiro de 2008, estando em causa factos ocorridos em Julho de 2013, não se vê que o seu depoimento se mostre sequer necessário, quanto mais imprescindível, para o juiz da causa «apurar a verdade e proceder à justa composição do litígio» (art. 411.º do CPC).
Com efeito, invocando os Autores nos autos vícios de vontade (v.g. erros próprios - na declaração e erro vício, este dolosamente provocado pela Ré -, e reserva mental desta), alegadamente verificados na subscrição do contrato de arrendamento a prazo certo em Julho de 2013, o que a testemunha advogada possa vir a referir em juízo resultará necessariamente do que eles próprios lhe disseram, quando a consultaram após Fevereiro de 2018, uma vez confrontados com a vontade da Ré, de se opor à renovação e um tal contrato de arrendamento.
Logo, e como bem o ajuizou o Parecer pedido ao Conselho Regional ... da Ordem dos Advogados, a testemunha em causa «apenas poderá referir no seu testemunho o que ouviu da boca dos seus clientes», ou seja, «poderá, quando muito, prestar o que usualmente se denomina um testemunho indirecto»; e, no caso, os Autores já o prestaram directamente em juízo (tal como, aliás, a Ré), quando nessa qualidade foram ouvidos na audiência de julgamento que se encontra suspensa (não sendo a força probatória a conferir às suas declarações legalmente inferior àquela a conferir a um depoimento indirecto, se tido como admissível (17)).

Concluindo, tendo presente os contornos do caso concreto, e ponderados os interesses e direitos em presença (nomeadamente, o interesse dos Autores à produção de prova sobre direito privado seu, de natureza preponderantemente patrimonial, concretização do seu mais amplo direito de acesso ao Direito, e o interesse público na boa administração da justiça, que exige uma advocacia independente e a natureza excepcional das eventuais derrogações do sigilo profissional a que está sujeita), não se justifica-se o levantamento do dever de sigilo profissional de advogado, invocado pela testemunha I. M..
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V- DECISÃO

Pelo exposto, e nos termos das disposições legais citadas, acordam os Juízes deste Tribunal da Relação em julgar improcedente o presente incidente de levantamento de sigilo profissional e, em consequência, em

· Não dispensar a testemunha I. M., advogada, do cumprimento do dever de sigilo profissional que invocou para não depor em sede de audiência de julgamento que se realiza perante o Tribunal de 1.ª Instância, sobre os factos alegados na réplica (que conheceu mercê de consulta que lhe foi feita pelos Autores, no Gabinete de Consulta Jurídica da Câmara Municipal ...).
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Custas nos termos que venham a ser determinados na decisão de mérito a proferir nos autos principais (art. 527.º, n.º 1 do CPC).
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Guimarães, 18 de Junho de 2020.
O presente acórdão é assinado electronicamente pelos respectivos

Relatora - Maria João Marques Pinto de Matos;
1.º Adjunto - José Alberto Martins Moreira Dias;
2.º Adjunto - António José Saúde Barroca Penha.



1. Pronunciando-se especificamente sobre o princípio da cooperação, Fernando Pereira Rodrigues, O Novo Processo Civil. Os Princípios Estruturantes, 2013, Almedina, Novembro de 2013, págs. 101-124.
2. No mesmo sentido, Ac. do STJ, de 15.02.2000, CJSTJ, Ano VIII, Tomo I, págs. 85-89, onde nomeadamente se lê que o segredo profissional consiste na proibição de revelar factos ou acontecimentos de que se teve conhecimento ou que foram confiados em razão e no exercício de uma actividade profissional.
3. Defendendo o carácter amplo do sigilo profissional em causa, Ac. da RP, de 27.05.2008, José Vieira e Cunha, Processo n.º 0821390, in www.dgsi.pt, como todos os demais citados sem indicação de origem; ou Ac. do STJ, de 15.02.2000, CJSTJ, Ano VIII, Tomo I, págs. 85-91.
4. Na dupla vertente referida, e numa jurisprudência uniforme, Ac. da RL, de 23.02.2017, Cristina Branco, Processo n.º 1130/14.7TDLSB-C.L1-9, onde nomeadamente se lê que, tanto «o dever de sigilo que a lei substantiva prescreve como o direito ao sigilo que o direito processual reconhece, visam salvaguardar simultaneamente bens jurídicos de duas ordens distintas. A par dos interesses individuais da preservação do segredo sobre determinados factos, protegem-se igualmente valores ou interesses de índole supra-individual e institucional que, por razões de economia, poderemos reconduzir a confiança sobre que deve assentar o exercício de certas profissões». Ainda Ac. do STJ, de 15.02.2018, Henrique Araújo, Processo n.º 1130/14.7TVLSB.L1.S1, onde nomeadamente se lê que o «dever de guardar segredo profissional tem as suas raízes no princípio da confiança, no dever de lealdade do advogado para com o constituinte, mas também na dignidade da advocacia na sua função de manifesto interesse público. Nas palavras de António Arnaut, o fundamento ético-jurídico do sigilo profissional de advogado radica no princípio da confiança e na natureza social da função forense. A obrigação de segredo transcende, por consequência, a mera relação contratual, assumindo-se como princípio de ordem pública e representando uma obrigação do advogado não apenas para com o seu constituinte, mas também para com a própria classe, a Ordem dos Advogados e a comunidade em geral».
5. No mesmo sentido, António José e Lima, Do Segredo Profissional, 1939, citado no Ac. da RL, de 09.03.1995, CJ, Ano XX, Tomo II, pág. 69, onde se lê que «a profissão de advogado tem, por consequência, de inspirar uma confiança sem limites e assegurar uma discrição absoluta (…). Pode dizer-se que a profissão de advogado se assemelha, de certo modo, à do confessor e é assim uma espécie de sacerdócio que impõe, a quem o exerce, deveres indeclináveis e obrigações rigorosas».
6. A concreta incriminação em causa leva a que haja quem defenda que, presentemente, «é clara a prevalência da tutela da privacidade, bem jurídico pessoal, face ao bem jurídico supra-individual institucional, (…), sem prejuízo de os valores supra-individuais, que se “identificam com o prestígio e confiança em determinadas profissões e serviços, como condição do seu eficaz desempenho”, aparecerem sempre incindivelmente associados à punição da violação do sigilo profissional, embora “com o estatuto de interesses (apenas) reflexa e mediatamente protegidos”» (conforme já citado Ac. da RL, de 23.02.2017, Cristina Branco, Processo n.º 1130/14.7TDLSB-C.L1-9).
7. Reconhecendo expressamente o carácter excepcional de qualquer quebra autorizada de sigilo profissional de advogado, lê-se no art. 4.º, n.º 1 do Regulamento de Dispensa de Segredo Profissional (Regulamento n.º 94/2006 OA, de 25 de Maio de 2006), que a «dispensa do segredo profissional tem carácter de excepcionalidade».
8. A ilegitimidade da escusa invocada por testemunha para não depor poderá resultar, designadamente, por a mesma não exercer com carácter regular a profissão a que a lei permite ou impõe o sigilo profissional invocado, ou não reunir os requisitos necessários para o seu exercício, ou não ter conhecido os factos no exercício da mesma, ou não ser uma das pessoas legalmente vinculada ao dito segredo, ou não se verificarem os requisitos específicos fixados nos estatutos profissionais para o efeito, como seja a prévia consulta e decisão de organismo representativo da profissão (conforme Luís Filipe Pires de Sousa, Prova Testemunhal, 2014, Agosto de 2014, Almedina, pág. 242).
9. Sobre as várias formas de responsabilidade em que incorre o advogado que viole o sigilo profissional a que está obrigado - e ainda com absoluto interesse para todas as demais questões pertinentes àquele segredo -, Cremilda Maria Ramos Ferreira, Sigilo Profissional na Advocacia, Coimbra Editora,1991; e Rodrigo Santiago, Do Crime de Violação de Segredo Profissional no Código Penal de 1982, Almedina, Coimbra 1992.
10. Neste sentido, Ac. do STJ, de 14.01.1997, BMJ, n.º 463, pág. 472, onde nomeadamente se lê que «o direito ao sigilo (…), em si próprio inquestionável, à luz do moderno âmbito do direito de personalidade, não pode considerar-se absoluto de tal forma que fizesse esquecer outros direitos fundamentais, como o direito ao acesso à justiça (a menos que, contra “o civilizado” artigo 1.º do CPC, se privilegiasse a “justiça” privada !) ou, por exemplo, o dever de cooperação, tradicional no processo civil português». Já antes o Tribunal Constitucional decidira no mesmo sentido, ao pronunciar-se sobre o segredo bancário, lendo-se nomeadamente no seu Ac. n.º 278/95, de 31.05.1995 (publicado no DR, 2.ª Série, de 28.07.1995), que o mesmo «não é um direito absoluto, antes pode sofrer restrições impostas pela necessidade de salvaguardar outros direitos ou interesses constitucionalmente protegidos», como de «investigação criminal».
11. Neste sentido, e a propósito do incidente de escusa de segredo profissional de advogado, Carlos Francisco de Oliveira Lopes do Rego, Comentários ao Código de Processo Civil, Volume I, 2.ª edição, Almedina, 2004, pág. 457; Paulo Pinto de Albuquerque, Comentário ao Código de Processo Penal À luz da Constituição da República e da Convenção Europeia dos Direitos do Homem, 4.ª edição, Universidade Católica Portuguesa, 2008, pág. 377; e Luís Filipe Pires de Sousa, Prova Testemunhal, 2014, Almedina, agosto de 2014, págs. 240, e 254-255.
12. Neste sentido, do diferente objecto de decisão dos dois tribunais envolvidos no incidente de levamento de sigilo profissional de advogado, Ac. da RG, de 10.07.2019, Joaquim Boavida, Processo n.º 2084/17.3T8VRL-A.G1, onde nomeadamente se lê que «estando os factos submetidos a sigilo, o que a Relação julga não é a justificação da escusa, mas sim se a quebra do sigilo profissional se justifica, após ponderação dos interesses em conflito, ajuizando qual deles deverá, in casu, prevalecer. O n.º 3 do artigo 135.º do CPP é claro ao dispor que o tribunal superior decide a prestação de depoimento com quebra do segredo profissional sempre que esta se mostre justificada. Portanto, justificada será a quebra do sigilo e não a escusa». Reiterando-o, Ac. da RG, de 17.12.2019, Alcides Rodrigues, Processo n.º 74/18.8T8GMR.G1.
13. Neste sentido, defendendo que - em hipótese como esta - a reiteração dessa audição consubstanciaria um acto inútil, proibido pelo art. 130.º do CPP, Ac. da RG, de 17.12.2019, Alcides Rodrigues, Processo n.º 74/18.8T8GMR.G1.
14. No mesmo sentido, Ac. da RL, de 20.02.1992, CJ, 1992, Tomo I, pág. 160, onde se lê que «os direitos de diferente natureza em conflito (por exemplo direitos de personalidade e direitos patrimoniais) não implicam sempre e necessariamente a prevalência de uns sobre outros; tudo depende da relatividade concreta dos interesses e dos factos provados».
15. Pronunciando-se igualmente sobre a aplicação do princípio da prevalência do interesse preponderante (como critério de decisão de quebra de sigilo profissional), em termos idênticos aos aqui expostos, António Santos Abrantes Geraldes, Paulo Pimenta e Luís Filipe Pires e Sousa, Código de Processo Civil Anotado, Volume I, Almedina, 2018, pág. 492.
16. Neste sentido, do carácter excepcional de qualquer derrogação, Ac. do STJ, de 15.02.2000, CJSTJ, Ano VIII, Tomo I, págs. 85-91, onde nomeadamente se lê «que nesta matéria vigora um princípio de subsidiariedade, porque, sendo o segredo profissional “timbre da advocacia e condição sine qua non da sua própria dignidade”, a sua revelação só será possível como última ratio».
17. Sobre a discussão gerada em torno da (in)admissibilidade do depoimento indirecto, Luís Filipe Pires de Sousa, Prova Testemunhal, 2014, Almedina, Agosto de 2014, págs. 177-198).