LOCAÇÃO
TRANSMISSÃO CONTRATUAL DO LOCADOR
SUB-ROGAÇÃO LEGAL
Sumário

a) O art. 1057º do C. Civil prevê a transmissão da posição contratual do locador, ao determinar que a locação acompanha a transmissão do direito com base no qual foi celebrado o contrato, sem prejuízo das regras do registo (emptio non tollit locatum), tratando-se de uma sub-rogação legal no contrato.
b) Os efeitos da sub-rogação legal operam a partir do momento em que ocorre a situação que a faz actuar, ou seja, tal como na cessão da posição contratual, os efeitos operam ex nunc, e não retroativamente.
c) Por isso, a responsabilidade pela indemnização devida ao locatário pelos prejuízos causados por uma inundação, por violação do contrato, é da locadora ao tempo da inundação, e não se transmite ao novo proprietário, salvo se este assumir a dívida.

Texto Integral

APELAÇÃO Nº 5382/16.0T8CBR.C1

( 3ª Secção Cível)

Relator – Jorge Arcanjo


Acordam no Tribunal da Relação de Coimbra

I - RELATÓRIO


1.1.- A Autora – C..., com sede na ..., instaurou acção declarativa, com forma de processo comum, contra os Réus

B... e marido M...

J...

R..., S.A.

Alegou, em resumo:

Em Agosto de 2013 os 1º e 2º Réus eram locadores e a Autora locatária do r/chão e cave do prédio urbano sito na ..., em Coimbra, descrito na 2ª Conservatória do Registo Predial de Coimbra sob o nº ... e inscrito na matriz sob o artigo ...

A Autora tem por objeto social o comércio de material ortopédico e similares, exercendo no locado a sua atividade comercial.

No dia 19 de Agosto de 2013, um colaborador da Autora, ao entrar no referido estabelecimento comercial, deparou-se com uma inundação no piso da cave, que teve a sua origem na rutura de canalização existente ao nível do tecto. Esta área do estabelecimento comercial é utilizada como armazém, ficando ali depositado o stock dos produtos comercializados pela autora. A água proveniente da referida rutura inutilizou as caixas e/ou sacos danificou os produtos, impossibilitando a sua comercialização.

A ocorrência desta inundação, suas causas e consequências foram comunicados aos 1º e 2º Réus e, a mando destes, cerca de uma semana depois, começaram as obras para substituição da canalização danificada.

A ocorrência deste sinistro foi também participada à F... – Companhia de Seguros, S.A., ao abrigo de um contrato de seguro do ramo “Multirisco Comércio e Serviços”, titulado pela apólice nº ..., em vigor à data do sinistro, no qual estava contratada a cobertura “Danos por Água”. Esta seguradora mandou proceder à averiguação do sinistro e peritagem dos danos causados pelo mesmo.

Os produtos danificados e inutilizados foram adquiridos aos respetivos fornecedores pelo valor global de €34.706,31.

A referida Companhia de Seguros ordenou a recolha dos produtos danificados, na situação de salvados, pela empresa C..., Ldª, aguardando a regularização do sinistro por parte da referida seguradora. Porém, a Seguradora informou a autora que declinava a responsabilidade de indemnizar os danos causados pelo sinistro.

Inconformada com esta decisão, a Autora intentou ação judicial contra a F..., S. A., que correu termos sobre o processo nº ..., pela Instância Central de Coimbra – Secção Cível – J1, pedindo a condenação da Seguradora a pagar-lhe indemnização por todos os danos causados pelo sinistro. Nesse processo foi proferida sentença, confirmada pelo Tribunal da Relação de Coimbra, que absolveu do pedido a seguradora.

Os produtos considerados como salvados foram vendidos pela F..., S.A. à sociedade C..., Ldª, pelo valor de €2.500,00, tendo a autora recebido esta quantia da referida sociedade.

Em consequência da inundação, a Autora perdeu todo o seu stock. Após a conclusão do processo de limpeza e arrumação do espaço afetado, A autora retomou o funcionamento do seu estabelecimento comercial. Mas em virtude deste sinistro, a sua faturação anual diminuiu em montante não inferior a €12.000,00, a sua perda de lucro mensal é, em média, de cerca de €200,00.

Em 2008 a conduta já havia sofrido outra rutura, danificando, do mesmo modo, bens que a autora ali armazenava, situação que foi comunicada aos então proprietários – 1º e 2º Réus, que nada fizeram, tendo a autora que contratar um canalizador para executar os trabalhos necessários à reparação da rutura.

Em Setembro de 2009 a Autora alertou os proprietários para o mau estado da canalização, continuando aqueles a ignorar o alerta.

Na data da inundação a Autora pagava a renda aos 1º e 2º Réus. Mas em 2 de Abril de 2014 foi registada na Conservatória do Registo Predial a favor da 3ª Ré a aquisição do imóvel, por doação daqueles, e em 2 de Julho de 2014, foi registada na mesma Conservatória a aquisição do prédio a favor da 4ª Ré.

Pediu a condenação da Ré R..., S.A a pagar à Autora aquantia de €32.206,31, o montante de €6.800,00, acrescido de €200,00 mensais, a partir de Julho de 2016, inclusive, até ao termo da presente ação e juros moratórios à taxa anual de 4% desde a citação até integral pagamento; Ou a condenação daquele ou aqueles, solidariamente ou não, que, pela prova produzida na audiência final, vier a concluir-se que é ou são responsáveis pelo ressarcimento dos danos supra discriminados.

A Ré R..., S.A. contestou, negando a sua responsabilidade porque o sinistro ocorreu em 19 de Agosto de 2013 e só em 20 de Julho de 2014 é que passou a ser proprietária do imóvel, e impugnou os danos.

Os Réus B..., M... e J... contestaram defendendo-se, em síntese, com a excepção da ilegitimidade dos 2º, 3º e 4º Réus, da nulidade do contrato de arrendamento, da ineptidão da petição inicial com fundamento na falta ou deficiência da causa de pedir, e impugnaram os danos.

A Autora respondeu às exceções, pedindo a condenação dos réus como litigantes de má-fé.

A 4ª Ré pediu a condenação da Autora como litigante de má-fé.

1.2.- No saneador julgou-se procedente a excepção da ilegitimidade passiva dos 2º, 3º e 4º Réus, absolvendo-os da instância. A autora recorreu do despacho que julgou os 2º, 3º e 4º réus partes ilegítimas, tendo a Relação de Coimbra revogado a decisão e, julgando procedente o recurso, decidiu pela continuidade dos 3º e 4º Réus na ação até à decisão final.

1.3.- Realizada audiência de julgamento foi proferida sentença que, na parcial procedência da acção, decidiu:

a) Absolver as Rés J... e R..., S. A. do pedido;

b) Absolver a Autora do pedido de condenação por litigância de má-fé;

c) Condenar a Ré B... a pagar à Autora a quantia de €30.347,13 (trinta mil trezentos e quarenta e sete euros e treze cêntimos), acrescida de juros de mora, à taxa de 4%, desde a citação até integral pagamento, absolvendo-a quanto ao mais peticionado;

d) Condenar a Ré B... como litigante de má-fé, no pagamento da multa correspondente a 3 (três) UC’s.

e) Condenar nas custas a Autora e a Ré B... na proporção do decaimento.

1.4.- Inconformada, a Autora recorreu de apelação, com as seguintes conclusões:

...

1.5.- Inconformada, a Ré B... recorreu de apelação, com as seguintes conclusões:

            ...

            A Autora contra-alegou no sentido da improcedência do recurso, suscitando a questão prévia do não conhecimento do recuso quanto à condenação da Ré/Apelante por litigante de má fé.


II – FUNDAMENTAÇÃO

            2.1.- Delimitação do objecto dos recursos

A Ré/Apelante B..., no início das alegações delimitou o recurso “à específica e distinta decisão da sentença no que tange à indemnização pelos danos emergentes e lucros cessantes reclamados pela A., e bem assim à condenação desta a título de litigante de má-fé, o que faz com reapreciação da matéria de facto”.

            Verifica-se, porém, que tanto nas alegações como nas conclusões não há qualquer referência à condenação por litigância de má fé.

            Nas contra-alegações a Autora suscitou, por isso, a questão prévia do não conhecimento do recurso quanto à condenação por litigância de má fé.

            No requerimento de interposição de recurso a parte pode, desde logo, delimitar o seu objecto, nomeadamente quando a parte dispositiva da sentença contiver decisões distintas (art.635º, nº2 CPC), mas, em todo o caso, tal não exonera o recorrente do cumprimento do ónus de especificação, quer o recurso verse sobre matéria de direito, quer incida sobre a matéria de facto (art.s 639 e 640 CPC) e, por conseguinte, indicar nas conclusões os fundamentos específicos da recorribilidade (art.637 nº2 CPC).

            Acontece que a Ré/Apelante omitiu por completo nas conclusões a impugnação quanto à condenação por litigância de má fé, e nem mesmo no corpo das alegações apresenta qualquer fundamento.

            Sabido que o requerimento de interposição de recurso é indeferido quando falte as conclusões (art.641 nº2 b) CPC), tal implica o não conhecimento do recurso em relação à distinta condenação por litigância de má fé.

            Nestes termos, e por ordem lógica, as questões colocadas nos recursos são as seguintes:

            A impugnação de facto (recurso da Ré B...);

A transmissão da posição do senhorio e a responsabilização da Ré R... SA (recurso da Autora).

            2.2.- Os factos provados ( descritos na sentença )

...

2.3.- Os factos não provados ( descritos na sentença )

...

2.4.- A impugnação de facto

O Tribunal da Relação pode reapreciar o julgamento da matéria de facto e alterar a decisão da 1ª instância nas situações previstas no art. 662, nº1 CPC (als a), b) e c) do nº1 do anterior art.712 do CPC).

Muito embora a revisão do Código de Processo Civil, operada pelo DL 329-A/95, de 12/2, haja instituído de forma mais efectiva a garantia do duplo grau de jurisdição da matéria de facto, o poder de cognição do Tribunal da Relação sobre a matéria de facto não assume uma amplitude tal que implique um novo julgamento de facto.

Para além da possibilidade de conhecimento estar confinada aos pontos de facto que o recorrente considere incorrectamente julgados, com os pressupostos adrede estatuídos no art.640 CPC, a verdade é que o controlo de facto, em sede de recurso, tendo por base a gravação dos depoimentos prestados em audiência, não pode aniquilar (até pela própria natureza das coisas) a livre apreciarão da prova do julgador, fundada também na base da imediação e da oralidade, pois na formação da convicção do julgador não intervém apenas elementos racionalmente demonstráveis, mas também factores não materializados.

Contrariamente ao que sucede no sistema da prova legal, em que a conclusão probatória é prefixada legalmente, no sistema da livre apreciação da prova o julgador detém a liberdade de formar a sua convicção sobre os factos, objecto do julgamento, com base apenas no juízo que fundamenta no mérito objectivamente concreto do caso, na sua individualidade histórica, adquirido representativamente no processo. O que se torna necessário é que no seu livre exercício da convicção o tribunal indique os fundamentos suficientes para que, através das regras da ciência, da lógica e da experiência, se possa controlar a razoabilidade daquela convicção do facto como provado ou não provado, possibilitando, assim, um controle sobre a racionalidade da própria decisão.

Neste contexto, o controle da Relação sobre a convicção alcançada pelo tribunal da 1ª instância, embora exija uma avaliação da prova (e não apenas uma mera sindicância do raciocínio lógico) deve, no entanto, restringir se aos casos de flagrante desconformidade entre os elementos de prova e a decisão, sendo certo que a prova testemunhal ou depoimento de parte é, notoriamente, mais falível do que qualquer outra, e na avaliação da respectiva credibilidade tem que reconhecer se que o tribunal a quo, pelas razões já enunciadas, está em melhor posição. Por isso se tem entendido não bastar qualquer divergência de apreciação e valoração da prova, impondo-se a ocorrência de erro de julgamento.

Por outro lado, a prova deve ser valorada no seu conjunto, reclamando uma ponderação global segundo o standard da “probabilidade lógica prevalecente” em que havendo versões contraditórias sobre determinado facto, o julgador deve escolher das diferentes probabilidades a que, perante o conjunto dos elementos probatórios, se evidencie como a mais provável (cf. Michele Taruffo, La Prueba de Los Hechos, 2002, pág.292 e segs.).

É com base nestes princípios que se passa a aquilatar do recurso de facto, após audição integral da gravação da prova em audiência.

A Ré/Apelante impugnou os factos provados em 16, 17, 20, 21, 22, 30, 32, 33 e 34, pretendendo que se julguem não provados, dizendo pôr em causa toda a documentação de suporte que sustenta o valor dos danos e as conclusões dos depoimentos das testemunhas ... ( a quem chama de “embuste” e “farsante” ).

Conforme consta da fundamentação, o tribunal justificou a decisão com base na prova documental, pericial e testemunhal.

Impõe-se, desde logo, as seguintes observações prévias:

Em primeiro lugar, o resumo descrito na sentença sobre de cada um dos depoimentos é inteiramente fidedigno e corresponde com notável rigor a uma síntese da posição expressa.

Depois, sendo legítima a “valoração distinta” que a Ré/Apelante pretende fazer dos elementos de prova, há que referir, no entanto, que a transcrição parcial dos depoimentos não traduz a globalidade dos mesmos, saindo, assim, truncados. Sirva de exemplo a transcrição do depoimento de ..., que a Apelante omite na passagem relevante (00:06:00 a 00:06:37), quando o mesmo refere que lhe foram facultadas as facturas do material e que as conferiu. Perguntado como foi feito o apuramento dos prejuízos e a que conclusão chegou, disse – “ Foi com base no material que estava danificado parcialmente, portanto não tinha aproveitamento, portanto foi contabilizado com base nas referências que estavam nas respectivas caixas e embalagens. Depois foram-nos facultadas as facturas desse material que conferimos de acordo com as referências “.

Acresce que se para a Ré/Apelante o depoimento da testemunha ... não deve ser valorado por ser um “embuste” e um “farsante”, a verdade é que não se compreende a razão pela qual não pôs em causa a sua credibilidade e razão de ciência na própria audiência de julgamento, através do incidente da contradita (art.521 CPC), que era o meio processual idóneo para o efeito, e não o recurso.

Considerando que o relatório pericial (fls. 396 e segs.) não incidiu expressamente sobre os factos impugnados, reportando-se apenas aos lucros cessantes com a perda de rendimentos, o julgamento de facto é suportado pelo depoimento das testemunhas e os documentos juntos, e ambos os meios probatórios de livre apreciação, não se exigindo aqui a prova tarifada.

Sobre a força probatória dos documentos particulares impõe-se distinguir a força probatória formal e a material. Quanto à formal, há que diferenciar se o documento é assinado ou não pelo seu autor, porque não sendo assinado é sempre de livre apreciação. Quando assinado, não sendo impugnada a letra e/ou a assinatura, tem-se por estabelecida a sua genuinidade (força probatória formal), e uma vez fixada releva a força probatória material, ou seja, apenas faz prova plena da materialidade das declarações (art.376 nº1 CC). Já os factos compreendidos na declaração consideram-se provados, mas só na medida em que forem contrários aos interesses do declarante (art.376 nº2 CC), cuja razão de ser assenta no facto de poder ser concebida como confissão extrajudicial (cf. arts.358 nº2 e 376 nº2 CC ).

Para comprovar os alegados danos patrimoniais a Autora juntou um conjunto de documentos que assumem a natureza de documentos particulares (listagens, facturas), cuja veracidade formal não foi posta em causa, mas dado que não estão assinados eles são de livre apreciação (art.366 CC).

Quanto à prova testemunhal depuseram sobre os factos impugnados as testemunhas ... (colaborador da Autora), ... (sócio gerente da sociedade C... Lda, R... (perito e funcionário da ...), L... (perito supervisor e colaborador da ...) e cujos depoimentos são de livre apreciação (art.607 nº5 CPC).

Para justificar a impugnação de facto a Ré/Apelante argumenta, no essencial, com os seguintes tópicos: a falta de rigor das testemunhas; a incongruência dos elementos contabilísticos/tributários da Autora porque os elementos oficiais (IES) apontam para uma divergência com os registados no sistema informático; a Autora apenas juntou comprovativo da compra de parte do stock danificado; a listagem (saída de stock) não substitui as guias de transporte, nos termos legais.

C... (colaborador da Autora desde há 15/16 anos) fez um relato pormenorizado e consistente, pois foi quem se deslocou às instalações, verificou a inundação, chamou os bombeiros e descreveu os bens existentes na cave que ficaram danificados, e foi ele quem acompanhou o perito da  seguradora (...) na conferência dos mesmos. Explicitou a maneira como foi feito o apuramento de todos os bens danificados e a listagem do stock (com cujos documentos foi confrontado em audiência), utilizando o documento do inventário e a conferência que o referido perito realizou, esclarecendo que a lista foi feita depois do perito conferir os bens. E quanto ao preço esclareceu que o mencionado foi o preço de aquisição, conferido através das facturas. Em contra-interrogatório esclareceu não saber se o perito da seguradora chegou a falar com o contabilista da Autora, mas reafirmou haver entregue ao perito os documentos comprovativos da compra e que fizeram a conferência dos artigos danificados. Sobre a questão das guias de transporte referiu que o senhor que procedeu ao transporte trazia uma guia e levou a relação agrafada (listagem).

... (engenheiro, funcionário da ... Peritagem) confirmou haver efectuado a peritagem ( solicitada pela Seguradora ) e elaborou o relatório junto, tendo feito uma descrição pormenorizada da inspecção ao local (tirou as fotografias) e do modo como realizou o apuramento dos prejuízos. Referiu que o apuramento foi feito através de um inventário que lhe foi apresentado e que conferiu o material com base nessa listagem (tendo em conta a referência das respectivas caixas) e os preços foram conferidos com base em facturas, sendo que o valores indicados correspondem ao valor real pago pelo produto, ou seja, o preço de aquisição deduzido do IVA e do desconto comercial. No contra-interrogatório confirmou novamente o apuramento realizado em face do inventário e do valor das facturas, que conferiu (“conferi as facturas”), embora não possa já precisar se lhe foram entregues todas ou apenas algumas (“não lhe posso precisar isso. Isso só vendo nos arquivos mortos”).

... (colaborador da ... Peritagem, perito supervisor), confirmou o relatório de fls. 464 e segs, embora não se tenha deslocado ao local, e por isso não acompanhou a recolha dos salvados. Confrontado com a circunstância de no relatório se mencionar 8% das facturas, explicitou que não obstante a referência à amostragem, certamente que lhe foram apresentadas todas as facturas, pelo que a amostragem é fidedigna (“nós para regularizarmos os prejuízos e os aceitarmos temos que ter as facturas correspondentes á mercadoria toda “ ).

... (sócio gerente da C..., Lda ) esclareceu que se deslocaram ao local para avaliar os salvados e quer os receberam, cujo material foi conferido com a listagem que acompanhou a carga, mas não se recorda se foi feita uma guia de transporte. Confirmou ter sido efectuada a conferência do material quando o receberam e “estava tudo conforme o que estava na listagem”. Sobre a demora no pagamento esclareceu que tal se deu ao litígio entre a Autora e a Seguradora.

Da conjugação e análise crítica destes depoimentos com os documentos juntos resulta a forma como foi feito o apuramento do material danificado e do respectivo valor, sendo convergentes e consistentes os depoimentos. Quanto à quantidade, cada um dos bens e preço foi claramente explicitado o procedimento, através da conferência com a listagem. No tocante ao valor do preço, a referência à amostragem no relatório de fls. 464 e segs. não parece que infirme os valores, dado que as facturas foram conferidas, como justificaram as testemunhas ... (tendo este explicitado que correspondia ao valor real pago).

Neste contexto, não parece que a objecção invocada pela Apelante deva proceder e postule notório erro na apreciação da prova.

Desde logo, e contrariamente ao alegado, os depoimentos não aparentam falta de rigor (foram pormenorizados, depuseram as testemunhas de forma justificada e responderam dizendo o que sabiam e o que não sabiam ou já não se lembravam), e convergiram entre si. Não se vê incongruência na listagem dos stocks pela circunstância de os elementos do IES apontarem valores diferentes pela simples razão de que nem todos os bens existentes nas instalações ficaram danificados (mesmo na cave houve bens que se aproveitaram), como foi afirmado. E depois a referência à amostragem no relatório de fls. 464 e segs. não significa que não tenha havido conferência integral com todas facturas, como foi realçado pelas testemunhas ..., e parece resultar até do próprio relatório ao mencionar “ as restantes facturas estão em nosso poder”.

Num juízo de valoração global, tendo em conta o critério de orientação exposto, porque a prova indicada pela Ré/Apelante não impõe decisão diversa, improcede a impugnação de facto, mantendo-se incólume a factualidade descrita na sentença.

2.5.- A transmissão da posição do senhorio e a responsabilização da Ré R..., SA:

A sentença recorrida condenou a Ré B... a indemnizar a Autora (arrendatária) pelos danos causados pela inundação, com fundamento em responsabilidade contratual (violação da obrigação de manutenção do gozo da coisa (art. 1031 CC)), por ser a locadora do imóvel à data da inundação (Agosto de 2013), não relevando a posterior alienação do imóvel locado para a Ré J..., por doação registada em 2/4/2014, nem a sucessiva transferência da propriedade para a Ré R..., SA, em 2/7/2014, razão pela qual as absolveu do pedido.

A Autora/Apelante impugna de direito alegando que, por força do art.1057 do CC, a única responsável pela indemnização é a demandada R..., SA.

O art. 1057 do CC prevê a transmissão da posição contratual do locador, determinando que a locação acompanha a transmissão do direito com base no qual foi celebrado o contrato, sem prejuízo das regras do registo (emptio non tollit locatum).

Tanto no plano doutrinário, como jurisprudencial, é mais ou menos consensual o entendimento de que se trata de uma sub-rogação legal no contrato, visto que o subingresso no contrato opera sem um negócio adrede realizado, mas por força (ope legis) de uma situação criada por outro negócio causal da transferência da propriedade.

Neste sentido, elucida Mota Pinto que “a categoria dogmática adequada a exprimir este efeito translativo da relação locatícia inerente à transmissão do direito real onde assenta a posição de locador seja a de sub-rogação legal no contrato de locação e não de cessão do contrato “ (Cessão da Posição Contratual, Reimpressão, 1982, pág. 87). E esta qualificação tem sido seguida pela jurisprudência (cf., por ex., Ac STJ de 9/7/1998 (proc. nº98A396), Ac STJ de 26/6/2012 (proc. nº 159/2006), disponíveis em www dgsi.pt).

Coloca-se, porém, a questão de saber se o adquirente sucede nos direitos e obrigações criados em momento anterior à sub-rogação.

Quanto aos efeitos da sub-rogação legal existe identidade de situações com a cessão da posição contratual (cf. Mota Pinto, loc. cit., pág. 493), de tal forma que há até quem considere preferível o entendimento de que se trata no art.1057 do CC de uma “cessão forçada ou ex lege” (cf. Henrique Mesquita, Obrigações Reais e Ónus Reais, 1990, pág. 147).

Neste contexto, os efeitos da sub-rogação legal operam a partir do momento em que ocorre a situação que a faz actuar, ou seja, tal como na cessão da posição contratual, os efeitos operam ex nunc, e não retroactivamente.

Também na cessão da posição contratual o cedente libera-se das suas obrigações para com o contraente cedido desde o momento em que a substituição se torne eficaz em relação a este, porquanto a partir daqui é o novo sujeito (cessionário) que ingressa na posição daquele, com a configuração do contrato-base que se apresenta nesse momento.

A este propósito escreve Antunes Varela – “Tanto a perda dos direitos como a liberação das obrigações operam em princípio ex nunc e não com efeito retroactivo, pois a cessão abrange a relação nascida do contrato básico com a sua configuração actual e não com a sua primitiva estrutura” ( Das Obrigações em Geral, II, 4ª ed., pág.390 )

Ao dissertar sobre os efeitos entre o cessionário e o cedido, esclarece Mota Pinto  – “Da circunstância de a relação contratual se transferir no estado em que se acha na titularidade do cedente, como é o resultado correspondente ao intuito das partes, deriva a consequência de, nas relações duradouras, se não poderem considerar transmitidas para o cessionário as obrigações já vencidas no momento da cessão, salva a hipótese de estipulação efectiva nesse sentido. Não pode considerar-se correspondente ao normal intuito das partes abranger na transmissão da posição contratual créditos que, apesar de ainda não extintos, já o deviam estar, por ter ocorrido o seu vencimento. Dai que tais elementos da relação contratual se devam considerar destacadas dela, quando se trata de definir o objecto da cessão da posição contratual. Bem poderá acontecer que tais créditos vencidos se transfiram, quer no que respeita à sua titularidade activa, quer no concernente à sua titularidade passiva; necessária será, porém, uma cláusula suplementar que faça acrescer esse efeito à eficácia normal da cessão de contrato”. Em princípio vigorará, portanto, quanto à delimitação objectiva do negócio de cessão, o regime correspondente ao princípio da irrectroactividade dos factos jurídicos, no sentido de um ingresso ex nunc”. ( Cessão da Posição Contratual, pág.487 e 488). E citando jurisprudência alemã, exemplifica, precisamente no âmbito do arrendamento, dizendo que, na falta de uma cláusula suplementar, a transferência da relação locatícia está limitada às rendas vincendas.

Esta orientação tem apoio no direito positivo, pois o art.594 CC determina a aplicação à sub-rogação, com as necessárias adaptações, do disposto nos arts. 582 a 584 CC.

Por isso, a responsabilidade pela indemnização é da locadora ao tempo da inundação, facto que consubstancia o ilícito contratual. E justifica-se que assim seja. Em primeiro lugar porque a modificação é subjectiva, logo existe uma correspondência entre o responsável pela indemnização e o sujeito que praticou o ilícito contratual. Em segundo lugar porque não estamos perante as chamadas “obrigações ambulatórias” que estão ligadas à coisa, e por causa dela (propter rem).

Neste contexto, não tendo havido uma assunção cumulativa ou liberatória da dívida por parte da Ré R..., SA (actual senhoria), não pode esta ser responsabilizada pela indemnização.

            2.6.- Síntese conclusiva

a) O art. 1057 do CC prevê a transmissão da posição contratual do locador, ao determinar que a locação acompanha a transmissão do direito com base no qual foi celebrado o contrato, sem prejuízo das regras do registo (emptio non tollit locatum), tratando-se de uma sub-rogação legal no contrato.

b) Os efeitos da sub-rogação legal operam a partir do momento em que ocorre a situação que a faz actuar, ou seja, tal como na cessão da posição contratual, os efeitos operam ex nunc, e não retroactivamente.

c) Por isso, a responsabilidade pela indemnização devida ao locatário pelos prejuízos causados por uma inundação, por violação do contrato, é da locadora ao tempo da inundação, e não se transmite ao novo proprietário, salvo se este assumir a dívida.


III – DECISÃO

            Pelo exposto, decidem:

1)

Não conhecer do recurso da Ré B... quanto à parte da decisão que a condenou como litigante de má fé.

2)

Julgar improcedentes os recursos e confirmar a sentença.

3)

            Condenar cada um dos recorrentes nas custas da respectiva apelação.

            Relação de Coimbra, 15 de Junho de 2020.

Jorge Arcanjo ( Relator)

Isaías Pádua

Teresa Albuquerque


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