DIREITO DE PREFERÊNCIA
NOTIFICAÇÃO PARA A PREFERÊNCIA
PROPOSTA CONTRATUAL VINCULATIVA
Sumário

A notificação do obrigado à preferência, contendo todos os elementos necessários à decisão do preferente, configura uma proposta contratual que, uma vez aceite, se torna vinculativa.

Texto Integral



Apelação nº 609/19.9T8FND.C1

Relator: Des. Manuel Capelo         

J.A.: Sr. Des. Falcão de Magalhães

J.A.: Sr. Des. Pires Robalo

              Acordam no Tribunal da Relação de Coimbra

I- Relatório

No Tribunal Judicial da Comarca de Castelo Branco - Juízo Local Cível do Fundão – na presente acção com forma de processo comum, a sociedade S..., Lda. demanda M..., pedindo que seja a ré condenada a celebrar consigo o negócio projectado na comunicação à preferência e aceite pela autora com estipulação de prazo, bem como a condenação da ré numa sanção pecuniária compulsória à taxa diária de €50,00 por cada dia de atraso na celebração da escritura pública de compra e venda.

Alegou, para o efeito, que após a ré lhe transmitir que iria vender o imóvel a que alude no artigo 8.º da petição inicial, exerceu cabalmente o seu direito de preferência, tendo a ré incumprido o mesmo.

Na contestação, a ré defende que não obstante ter enviado a missiva a que a autora alude no artigo 8.º na petição inicial, a mesma consubstanciou um mero lapso, até porque o aludido imóvel não foi objecto de contrato de compra e venda e sim de arrendamento. Mais informou aí a ré que iria intentar de imediato a competente acção de preferência contra a autora e que requereria a suspensão da presente instância, invocando como fundamento a pendência de causa prejudicial.

Neste sentido veio a ré posteriormente a requerer a suspensão da instância por ter intentado a acção de preferência a que aludiu.

No despacho saneador veio o tribunal a indeferir o pedido de suspensão da instância requerido pela ré e, julgando a acção procedente condenou “a ré M... a celebrar com a autora o negócio projectado na comunicação à preferência S..., Lda., descrito no ponto 5 dos factos provados, no prazo de 30 dias a contar do trânsito em julgado da presente sentença e (…) com vista a assegurar a eficácia do acima determinado, fixou em €50,00 a importância devida por cada dia em que a ré não cumprir o determinado (…).”

Inconformada com esta decisão dela interpôs recurso a ré concluindo que:

...

Nestes termos deve ser dado provimento ao recurso e, em consequência, anular-se a sentença recorrida, substituindo-se por outra de acordo com o propugnado nas conclusões antecedentes, assim se fazendo Justiça.!

A recorrida contra-alegou defendendo a confirmação da decisão recorrida.

    Cumpre decidir.

    Fundamentação

O tribunal em primeira instância julgou provada a seguinte matéria de facto:

“1. Encontra-se inscrito em nome da autora o imóvel sito em ..., com natureza rústica e inerente matriz ... e natureza urbana e inerente matriz ..., com cultura arvense de regadio, cultura arvense, montado de sobreiros, olival, pinhal, pomar de citrinos, mato e pastagem e edifício com rés-do-chão e primeiro andar e descrito na Conservatória do Registo Predial sob o artigo ...

2. O dito imóvel confronta ...

3. Encontra-se inscrito em nome da autora um imóvel sito em ..., com natureza rústica e inerente matriz ..., com pinhal e mato e descrito na Conservatória do Registo Predial sob o artigo ...

4. O dito imóvel confronta ...

5. No dia 23 de maio de 2019 a autora recebeu uma missiva endereçada pela ré datada de 14 de maio de 2019 com os seguintes dizeres: “Venho na qualidade de proprietária dar conhecimento a V. Ex(a) (s). que vamos vender o prédio inscrito na respectiva matriz urbana sob o n.º ... e na matriz rústica sob o n.º ... e descrito na Conservatória do Registo Predial do Fundão sob o n.º ..., sito em ... pelo valor de quarenta e dois mil euros, a F... A escritura pública de compra e venda ou documento particular autenticado será realizado no prazo máximo de 30 dias na cidade de Castelo Branco e o pagamento do preço será efectuado da seguinte forma: i) com a assinatura do contrato de promessa de compra e venda é paga através de cheque a quantia de 4.200 euros (quarto mil e duzentos euros), que ocorrerá após o prazo para V. Ex(a) (s.) preferirem na referida transmissão; ii) com a outorga da escritura pública de compra e venda será pago o remanescente que ascende a 37.800 (trinta e sete mil oitocentos euros). Como confinante, assiste-lhe o direito de preferir na referida transmissão. Pelo exposto, fico a aguardar no prazo legal de oito dias, findo o qual se não houver comunicação de V. Ex(s) (s), nesse sentido, caducará o respectivo direito, nos termos do artigo 416 n.º2 do Código Civil.”

6. No dia 29 de maio de 2019 a autora enviou à ré uma missiva com os seguintes dizeres: “pretende exercer o direito de preferência na venda do imóvel sito em ..., inscrito na matriz urbana sob o n.º ... e na matriz rústica sob o n.º ... e descrito na CRP do Fundão sob o n.º ..., pelo preço e condições que constam da V. carta de 14 de maio de 2019 (…) solicita assim que desenvolvam as diligências necessárias para a realização do contrato promessa e prometido e nos remetam a documentação actualizada do imóvel.”

7. No dia 02 de Agosto de 2019 a autora enviou à ré notificação judicial avulsa a comunicar o exercício do direito de preferência.

8. No dia 10 de setembro de 2019 a ré enviou à autora a missiva com os dizeres: “Venho por este meio informar que foi por lapso enviada uma carta de direito de preferência relativamente ao imóvel misto sito em ..., inscrito na matriz predial urbana com o artigo ... e na matriz predial rústica com o artigo ... da freguesia de ..., descrito na Conservatória do Registo Predial do Fundão sob o número ... O negócio a realizar é sobre uma habitação de primeira residência permanente, parte integrante da propriedade, onde inclusive já residem os compradores há mais de ano e meio e na qual já efectuaram diversas obras de benfeitorias. Ambas as propriedades têm artigos urbanos contidos nelas e o valor dos prédios urbanos prevalece sobre o valor dos prédios rústicos nos dois casos, o que leva a considerar que ambas as propriedades se destinam prioritariamente a habitação e em segundo plano a exploração agrícola ou florestal. Constata-se ainda que as cultuas das duas propriedades são diferentes, sendo que na quinta do ... existe uma exploração agrícola de regadio, enquanto que na quinta da ... existe uma exploração florestal e silvo pastoral. Assim sendo, a S..., Lda. não tem direito de preferência nestas circunstâncias, pelo que iremos proceder à escritura de compra e venda previamente acordada pelo Contrato de Promessa de Compra e Venda já assinado em 31 de Outubro de 2018.”

Além de delimitado pelo objecto da acção e pelos eventuais casos julgados formados na instância recorrida e pela parte dispositiva da decisão impugnada que for desfavorável ao impugnante, o âmbito, subjectivo ou objectivo, do recurso pode ser limitado pelo próprio recorrente. Essa restrição pode ser realizada no requerimento de interposição ou nas conclusões da alegação (arts. 635 nº3 e 4 e 637 nº2 do CPC).

Na observação destas prescrições normativas concluímos que o objecto do recurso interposto se resume em saber se existe causa prejudicial que determine a suspensão da instância nos presentes autos e se, quanto ao mérito da decisão, a acção deveria ter sido julgada improcedente como reclama a recorrente, por não verificação dos pressupostos da preferência protestada pela autora.

Quanto à suspensão da instância, o tribunal recorrido entendeu indeferir esse requerimento da ré que, com base numa acção que dizia ter interposto depois de esta ter sido intentada, reclamava que tal acção obstava ao prosseguimento dos presentes autos.

 Concretizando um pouco mais, observamos que na contestação a ré articulava que, não obstante ter enviado à autora uma carta para que esta pudesse preferir na venda de um imóvel que iria realizar, o envio dessa carta teria sido um lapso porque o aludido prédio não foi objecto de contrato de compra e venda, mas sim de arrendamento. E, deste modo, continua a ré, terá informado a autora desse lapso e de que iria intentar de imediato a competente acção de preferência contra ela (a autora) e requerer, em consequência, a suspensão da presente instância, invocando como fundamento a pendência de causa prejudicial.

Posteriormente veio a ré a intentar contra a autora acção em que, afinal, como pedido, pretende exercer a preferência sobre o prédio que nestes autos a autora identifica como sua propriedade, o qual, com base na vizinhança, lhe confere a preferência que a aqui ré lhe comunicou. Ou seja, o que a ré contende nessa outra acção que propôs é que o prédio que o preferente identifica como pressuposto de confinância para querer efectivar a sua preferência e que adquiriu, nesta aquisição devia ter sido dada preferência à aqui ré e não o foi. Assim, não o tendo sido, vem ela peticionar a anulação dessa venda e que lhe seja reconhecido o direito de preferência.

A razão da prejudicialidade invocada para a suspensão da instância retira-a a aqui ré do seguinte argumento: se a autora preferente quer preferir com base em ser proprietária de um imóvel confinante, imóvel este que adquiriu quando essa aquisição deveria ter sido oferecida primeiro à ré, se esta pretende accionar agora a preferência sobre esse prédio, a ser-lhe reconhecido esse direito, tal implicará que, nessa conformidade, fique sem sentido e fundamento a preferência reclamada pela autora porque deixaria de ser proprietária de qualquer prédio confinante que o habilitasse a exercer a preferência.

Num primeiro raciocínio exclusivamente de lógica substantiva cremos que a ré se segura em alguma razão. Efectivamente, a ser julgada procedente esta presente acção, reconhecendo-se à autora a preferência na aquisição que lhe foi oferecida pela ré enquanto prossegue a outra acção em que se vai apurar e decidir se a autora é ou não dona do prédio com base no qual exerce a preferência, tal permite que se julgue de forma definitiva uma matéria que pode vir a ser desmentida, nalgum dos seus pressupostos por uma outra decisão posterior. Em termos lógicos e cronológicos, enquanto está pendente o conhecimento e a decisão sobre o exercício do direito de preferência pode vir a ser suscitada uma questão que se possa eventualmente opor ao reconhecimento dessa preferência, mas o que importa saber é se tal circunstância admite ou não, em termos processuais, que deva esta questão, dita prejudicial, ser resolvida antes da que tenha sido proposta em primeiro lugar e obrigar à suspensão.

Processualmente o 272º, n.º 1, do CPC, estabelece que “O tribunal pode ordenar a suspensão quando a decisão da causa estiver dependente do julgamento de outra já proposta ou quando ocorrer outro motivo justificado”.

Este normativo concedendo ao tribunal o poder de ordenar a suspensão da instância quando a decisão da causa estiver dependente do julgamento de outra já proposta, enuncia a importância do que se deve entender como causa prejudicial, isto é, aquela que tenha por objecto pretensão que constitui pressuposto da formulada nos autos onde é suscitada a prejudicialidade (acção subordinada).

O Prof. Alberto dos Reis, a propósito, fixou, ainda com actualidade,  que a razão de ser da suspensão por causa prejudicial consiste na economia e a coerência dos julgamentos no sentido em que uma causa é prejudicial em relação a outra quando a decisão daquela pode prejudicar a decisão desta, isto é, quando a procedência da primeira tira razão de ser à existência da segunda. E se tal não sofre contestação em termos substantivos, como antes dissemos, a verdade é que o normativo que regula a suspensão impõe que a causa apresentada como prejudicial tenha de se encontrar já proposta, o que adverte, segundo cremos, para que seja impossível proceder à suspensão da instância com base na prejudicialidade do que se discute noutra, se esta tiver sido proposta posteriormente. Esta prioridade e antecedência constitui, obviamente, um dispositivo de segurança  que assenta na celeridade processual como interesse público indisponível[1] e que firma o entendimento de que uma acção proposta posteriormente, mesmo que tenha a aptidão para se poder constituir como prejudicial, exorbita os interesses de economia e coerência que justificam a suspensão da instância  de uma acção já proposta.

Os interesses de celeridade colhem-se, desde logo, quando o nº 2 do art. 272 citado estabelece que “Não obstante a pendência de causa prejudicial, não deve ser ordenada a suspensão se houver fundadas razões para crer que aquela foi intentada unicamente para se obter a suspensão ou se a causa dependente estiver tão adiantada que os prejuízos da suspensão superem as vantagens”. Repetindo a ideia de que o julgador, nas acções propostas posteriormente e que poderiam justificar a suspensão, deve ter o cuidado de observar se existem razões para o fazerem concluir que elas “foram plantadas” com a finalidade exclusiva de obter a suspensão, reforça, a seguir, que um critério decisivo para deferir ou não a suspensão é o de observar o estado da acção que seria suspensa, sendo de determinar a recusa sempre que o estado adiantado da mesma importasse prejuízos maiores que os benefícios.  E estes prejuízos por referência ao estado da acção em que são referidos, significam que, quanto mais perto a acção estiver do fim menos se justificaria a suspensão.

Assim, deve manter-se o indeferimento da suspensão determinada pelo tribunal recorrido uma vez que não só a causa prejudicial reporta a acção proposta posteriormente, o que torna decisivo o juízo de indeferimento, como também, porque a acção estava em condições de ser, e foi, decidida no despacho saneador o que sempre, mesmo a não existir outra razão mais forte, imporia o indeferimento da suspensão.

Assim, mantem-se a decisão de indeferimento julgada pelo tribunal recorrido, indeferindo-se nesta parte as conclusões de recurso.

 Quanto ao objecto do recurso e às razões da procedência da acção, a recorrente defende que a acção deveria ser julgada improcedente (e não procedente como o foi) porque, sendo verdade que existem duas correntes jurisprudenciais distintas quanto a solução da questão discutida, a que conduz a uma decisão mais acertada é a que foi rejeitada na sentença recorrida.

Situando os termos da discussão, observamos que de acordo com os factos provados, no dia 23 de maio de 2019 a autora recebeu uma carta endereçada pela ré e datada de 14 de maio de 2019 onde esta dava conhecimento de ir proceder à venda do prédio descrito na Conservatória do Registo Predial do Fundão sob o n.º ...; que a escritura pública de compra e venda ou documento particular autenticado seria realizado no prazo máximo de 30 dias informando igualmente o preço e a forma de pagamento e declarando que como confinante, assistia à autora, ora recorrida, o direito de preferir na referida transmissão, para o que concedia o prazo de oito dias.

Na sequência desta comunicação, a autora, ora recorrida, em 29 de maio de 2019 enviou à ré uma carta informando que pretendia exercer o direito de preferência na venda do imóvel solicitando que fossem desenvolvidas as diligências necessárias para e fosse remetida a documentação actualizada do imóvel.

No dia 02 de Agosto de 2019 a autora, ora recorrida,  enviou à ré notificação judicial avulsa a comunicar o exercício do direito de preferência, e no dia 10 de setembro de 2019 a ré enviou à autora uma carta em que comunicava que o envio da carta datada de 14 de maio tinha sido um lapso  por lapso porque o negócio a realizar era sobre uma habitação de primeira residência permanente, parte integrante da propriedade, onde já residiam os compradores há mais de ano e meio e que a autora, ora recorrida, afinal, não tinha direito de preferência.

Perante o exposto, a recorrente, depois de ter visto a acção proposta pela autora no sentido do reconhecimento da preferência que lhe foi oferecida julgada procedente, vem esgrimir que a notificação para a preferência, mesmo que contenha todos os elementos nucleares necessários para a decisão do preferente, não configura uma verdadeira proposta contratual que possa ser julgada vinculativa, mas antes consubstancia um convite a contratar, a que é aplicável a disciplina artigo 227.º do Código Civil.

Assim, conclui, a carta enviada à autora e a resposta remetida por esta, aceitando a preferência, não determinava o efeito jurídico que foi fixado na sentença, fundando este argumento na jurisprudência que cita[2] e da qual retira a conclusão de a declaração de pretender preferir não poder corresponder a uma aceitação de qualquer proposta porque a carta remetida pela ré/recorrente e apenas poder configurar uma informação do projecto de contrato e não mais que isso.

Quanto a esta questão, respeitante à natureza e aos efeitos jurídicos produzidos pela comunicação para preferir, o ac. do STJ de 7.12.2010 sinalizava já a divergência, quer na doutrina, quer na jurisprudência, relativamente a saber se a notificação para preferência envolve uma proposta contratual que, uma vez aceite, se torna vinculativa para o autor daquela comunicação, ou se configura antes um simples convite a contratar, tendo-se registado nesse acórdão como dominante a primeira posição[3] .

No sentido de que a notificação para preferência valerá como proposta contratual, em regra, desde que contenha todos os elementos necessários à decisão do preferente, ou seja, desde que observe os requisitos estabelecidos no nº 1 do art. 418º do CC, a qual, uma vez aceite, se torna vinculativa, além do acórdão de 21.2.2006 do STJ, outros mais, datados 19.10.2010, 9.7.98, 11.5.93, 31.3.93, 15.6.89 e de 2.3.99 propenderam a defender este entendimento. Em sentido contrário, porém, o acórdão do STJ de 8.1.2009 sustentava a posição de que a notificação para preferência não encerra uma verdadeira proposta contratual no sentido técnico-jurídico, antes se aproximando mais do chamado convite a contratar [4].

Julgamos que como matriz da exposição decisória, o acórdão do STJ de 27.11.2018, no proc. 14589/17.1T8PRT.P1.S1, que foi seguido pela decisão recorrida, constitui um bom e seguro itinerário porque tem actualidade cronológica, historifica a questão a resolver, fundamenta a resolução, identifica a solução maioritária e propõe esta como a adequada com argumentos em que nos revemos. 

Os termos da divergência, remetem para o que, conforme a doutrina e a jurisprudência do STJ entendem ser a natureza do direito legal de preferência e que é assumido como direito potestativo, com eficácia real, enquanto fundado em razões de interesse e ordem pública.

É nesta natureza que colhe razão e fundamento que os direitos legais de preferência impliquem uma limitação à liberdade contratual e ao próprio exercício do direito de propriedade e que se imponha um dever de comunicação no qual se transmita «o projecto de venda e as cláusulas do respectivo contrato», nos termos estabelecidos no nº 1 do art. 416º do CC. Assim, Antunes Varela sustentava que «Por um lado o preferente é titular de um verdadeiro direito de crédito, quer a preferência tenha, quer não tenha, eficácia real. Por outro lado, gozando de eficácia real, como sucede com os direitos legais de preempção, a preferência atribui ainda a esse sujeito a titularidade de um direito real de aquisição»[5] .

Na sua cronologia, como o entendeu o STJ[6], o primeiro momento do direito legal de preferência, ocorre quando o obrigado à preferência decide realizar o negócio, e isto porque, o dever de comunicação para preferência resulta da vontade séria, do obrigado à preferência a contratar, como se retira do texto do art. 416º, nº 1 do CC onde se lê “Querendo vender a coisa», e do art. 417º, nº 1 «Se quiser vender a coisa». A comunicação não assenta numa possibilidade em formação e ainda em forma de hipótese, mas supõe a sua resolução de vontade expressa num projeto concreto, constituído de todos os seus elementos estruturais e que deverá ser transmitido ao preferente para que perante ele, este possa emitir num curto prazo a sua decisão de preferir ou não.

Neste sentido a comunicação não inaugura um diálogo negocial com possibilidade de troca de propostas e contrapropostas, mas encerra os termos concretos e inegociáveis de um negócio relativamente ao qual o preferente apenas pode aceitar ou recusar e, por isso, não entendemos que possa qualificar-se como um convite a contratar, no sentido de configurar somente um “ acto tendente a provocar uma proposta, resumindo-se a um incentivo para que alguém dirija uma proposta contratual a quem convida, cabendo depois a este o papel de aceitar ou não a proposta [7]. Ou como densifica de sentido Antunes Varela, «o notificado não é, no bom rigor das coisas, chamado a preferir: é sim chamado a contratar, se quiser. E ele tem o direito de ser chamado a preferir, não apenas o direito de ser chamado a contratar»[8] .

A exigência do art. 416º, nº 1 do CC quanto a serem comunicadas as cláusulas do respectivo contrato ilustra, no texto e no sentido, precisamente que não se está a dar conhecimento de uma simples vontade hipotética de se vir a contratar, mas sim de um verdadeiro contrato, construído e completo em todos os seus elementos e que será realizado com outrem, já definido, caso o preferente não esteja interessado. Isto é, o contrato em si mesmo já existe, faltando apenas saber, consoante seja a resposta do preferente, quem e não já o que, figurará nele.

Como bem assinala Antunes Varela, a comunicação a que alude o art. 416º citado é diferente daquela outra situação em que seja realizada pelo obrigado à preferência uma comunicação dirigida ao preferente antes de ter qualquer projecto ajustado de venda com terceiro. Como simples prospecção de vontade é de todo admissível que o obrigado à preferência possa indagar junto do preferente se este estará interessado em adquirir caso fosse considerada a venda uma vez que pode, inclusivamente, perante a resposta que for dada (caso seja dada), avançar ou desistir da ideia de vir a realizar a venda elaborando então a proposta com os seus elementos. Não é censurável que um proprietário, seja porque razão seja, não queira que o confinante venha a ficar com o seu prédio em caso de venda e que a disponibilidade para preferir possa determinar decisivamente a resolução de venda. O que não pode é, depois de ter firmado a resolução de vender a outrem que não o preferente e estando o contrato completo nas suas cláusulas, perante a disponibilidade para preferir do confinante, arrepender-se e dizer, “então assim, penso melhor, e já não vendo”. 

Em resumo, desde que os requisitos enunciados no nº 1 do art. 416º do CC estejam preenchidos, ou seja, desde que a comunicação para preferência contenha os elementos necessários à decisão do preferente, aquela «deve ser qualificada como uma proposta de contrato. Se este não estiver sujeito a forma (ou depender de formalidades a que a comunicação do obrigado à preferência e a resposta do preferente obedeçam), deve entender-se que a declaração de querer preferir feita pelo preferente aperfeiçoa o contrato (…). Caso a celebração do contrato dependa de requisitos formais que a comunicação do obrigado à preferência e a resposta do preferente não preencham, importa distinguir (…) Se a comunicação do obrigado à preferência e a resposta do preferente forem feitas em documento assinado (A., por exemplo, tendo-se comprometido a dar preferência a B. na venda de determinado imóvel, comunica-lhe por carta que projecta vendê-lo a C. e indica as cláusulas da projectada venda; B., também por carta, responde que quer preferir), deve entender-se que se concluiu um contrato-promessa (cfr. o artigo 410º, nº 2) com as respectivas consequências (…)» [9]. E no mesmo sentido, mas na perspectiva do que se passa na esfera jurídica do preferente e nos efeitos jurídicos na mesma produzidos a partir do momento em que o obrigado à preferência decide realizar o negócio, pode colher-se em Henrique Mesquita que “(…) ao preferente assistem sucessivamente, antes que aquele negócio se efetive, os seguintes direitos: o direito (creditório) a que lhe sejam notificados os termos essenciais do projeto de alienação; o direito (potestativo) de, na sequência desta notificação, declarar que pretende preferir - declaração esta que, conjugada com a do notificante, dará origem a uma relação creditória equiparável, pelo seu conteúdo e efeitos, a um contrato-promessa bilateral, ou tornará mesmo perfeito o contrato definitivo, se em ambas as declarações (a do obrigado à preferência, que equivale a uma proposta de contrato, e a do preferente, que se traduz na aceitação dessa proposta) houver sido observada a forma exigida para a celebração deste contrato; finalmente, o direito (creditório) de exigir, após ter declarado a vontade de exercer a preferência, que o obrigado a esta realize com ele o negócio projectado, sempre que aquela declaração não baste para o consumar”[10].

No resumo do deixado exposto, julgamos que a construção normativa que melhor acolhe o direito do preferente é aquela que configura a notificação do obrigado à preferência, como como uma verdadeira proposta contratual que, contendo todos os elementos necessários à decisão do preferente, uma vez aceite se torna vinculativa. E, deste modo, entendemos dever improceder a Apelação.

Em síntese conclusiva deixa-se expresso que:

-  A notificação do obrigado à preferência, contendo todos os elementos necessários à decisão do preferente, configura uma proposta contratual que, uma vez aceite, se torna vinculativa.

Decisão

Pelo exposto acorda-se em julgar improcedente a Apelação e, em consequência, confirmar a decisão recorrida.

Custa pelo Apelante.

Coimbra, 26 de Junho de 2020


***



[1] Neste sentido veja-se Paulo Ramos de Faria e Ana Luísa Loureiro [In “Primeiras Notas ao novo Código de Processo Civil”, 2013, Volume I, Almedina, págs. 242, 243] a propósito de o legislador ter estabelecido que da suspensão não pode resultar o adiamento da audiência final, mas que serve igualmente para confirmar que o sentido da celeridade indica que esta se impõe mais, quanto mais próximo do seu termo estiver a acção. 
[2] Acórdãos do Tribunal da Relação do Porto de 11 de Março de 1996, publicado na CJ, Ano XXI, tomo II,
pág. 188; o acórdão da Relação de Lisboa, datado de 26 de Novembro de 1998, o acórdão da Relação de Coimbra de05/04/2001, proferido no processo n.º 1244/09.5TBTNV.C1, e os Acórdãos do Supremo Tribunal de Justiça de 19/04/2001, proferido no processo n.º 419/01-7 e de 08/01/2009, proferido no processo n.º 08B2772.
[3] Reforçando este entendimento, o acórdão de 21.2.2006.
[4] Em sentido intermédio, o ac. do STJ de 19.4.2001 no proc. 419/01, in dgsi.pt defendia que sendo um convite a contratar se lhe aplicava o art. 227º do CC.

[5] Antunes Varela, RLJ, 105, pp. 12/3
[6] Vd. ac. de 27-11-2018 no proc. 14589/17.1T8PRT.P1.S1, in dgsi.pt
[7] Carlos Lacerda Barata, Da Obrigação de Preferência, 2002, pág. 106.
[8] Antunes Varela, em anotação ao ASTJ, de 22.2.84, RLJ, 3777, 363.

[9] Vd. Pires de Lima e Antunes Varela, Código Civil Anotado, I, 3ª ed., pág. 366, e, anteriormente, Vaz Serra, RLJ, 101, pp. 233 e ss.; igualmente, desde que a comunicação preencha os apontados requisitos legais, correspondendo ela a verdadeira proposta de contrato, entre outros, além de Pires de Lima e Antunes Varela, adiante citados, Inocêncio Galvão Telles, Direito das Obrigações, 7ª ed., 1997, pág. 168, Almeida e Costa, Direito das Obrigações, 12ª ed., 2009, pág. 450 e António Menezes Cordeiro, Tratado de Direito Civil Português, II, tomo II, 2010, pp. 496 e 500.
[10] Obrigações Reais e Ónus Reais, 1990, Reimpressão, 2003, pp. 225/8