DIREITO DE REGRESSO
CONDUÇÃO SOB O EFEITO DO ALCÓOL
NEXO DE CAUSALIDADE
CULPA
Sumário

1- À luz do artº 27º, nº 1, al. c), do DL nº 291/2007, de 21/08, constituem pressupostos do direito de regresso pela seguradora contra o condutor de veículo:
a) Que a seguradora tenha pago/satisfeito uma indemnização a terceiro lesado por ocorrência de acidente de viação em que foi envolvido um veículo seu segurado;
b) Que o condutor desse seu veículo tenha (culposamente) dado causa ao acidente;
c) E que o condutor desse seu veículo segurado fosse então portador de uma taxa de alcoolemia superior à legalmente admitida/permitida.

2- Pressupostos esses que são cumulativos e cujo ónus de alegação e prova incumbe à seguradora.
3- Nesse ónus não se inclui já a prova do nexo de causalidade entre a condução sob a influência do álcool e a ocorrência do acidente.
4- Está cientificamente comprovado que a ingestão de álcool diminui, na exata medida do crescendo do seu teor, a capacidade de reação e de concentração, assim como a capacidade motora e sensorial, nomeadamente a visual, provocando, uma demora na reação aos estímulos, donde influir (ou, pelos menos, poder influir), nessa medida, na atividade da condução de veículos, dado diminuir (adequadamente) a aptidão de quem conduz os mesmos.
5- Não constituindo a condução sob a influência do álcool, só por si, uma presunção legal de culpa na produção do acidente, todavia, - e não permitindo a matéria factual apurada concluir pela culpa efetiva de qualquer condutor na produção do acidente – essa culpa pode ser estabelecida por via do recurso a presunções judiciais/naturais, nas quais se integram ou podem integrar a condução sob o efeito do álcool em conjugação de análise, perante o caso concreto, com os demais factos apurados.

Texto Integral

Apelação nº. 516/18.2T8TCNT.C1

(3ª. secção cível)

Relator: Isaías Pádua

Adjuntos:

Des. Teresa Albuquerque

Des. Manuel Capelo


Acordam neste Tribunal da Relação de Coimbra

I- Relatório


1. No Tribunal Judicial da Comarca de Coimbra - Juízo Local Cível de Cantanhede -, a autora, A... – Sucursal em Portugal, instaurou (no ano de 2018) contra a ré, C..., ambos melhor identificados nos autos, a presente ação declarativa, com forma de processo comum, pedindo que o último seja condenado a pagar-lhe a quantia de € 12.600,00, acrescida dos juros de mora, vencidos e vincendos, à taxa legal, até integral e efetivo pagamento.

Para o efeito alegou, em síntese, o seguinte:

Nas circunstâncias de tempo (20/08/2017), lugar e modo por si descritas no articulado da petição inicial, ocorreu um acidente de viação que envolveu dois veículos automóveis de passageiros, o de matrícula ...-RH-..., tripulado por P... mas pertença de M..., e o de matrícula ...-TD-..., conduzido pela ré mas propriedade de F... Portugal S.A., encontrando-se a responsabilidade civil do último por causados terceiros então validamente transferida para autora.

Acidente esse que ficou a dever-se à conduta estradal culposa de ambos os condutores (na sequência de uma manobra de ultrapassem do TD e de uma manobra de mudança de direção do RH), tendo, na sequência de averiguações efetuadas, sido acordado fixar essa concorrência culpas na proporção de 70% para a condutora daquele seu veículo segurado.

Por virtude de tal, a autora veio a pagar uma indemnização no valor de € 12.600,00 à proprietária do veículo RH, em consequência dos danos causados neste último veículo e que conduziram a que fosse considerada a sua perda total.

Como, porém, a ré conduzia então aquele seu veículo segurado sob a influência do álcool, circunstância essa que foi igualmente causal do acidente, pretende agora a autora exercer o direito de regresso contra a mesma, por forma a dela obter o pagamento da quantia que despendeu.

2. Contestou a ré, defendendo-se por impugnação motivada, imputando a responsabilidade da produção do acidente unicamente ao culposo comportamento estradal do condutor do RH, negando ainda que o teor da taxa de alcoolemia com que então conduzia tivesse, em alguma medida, sido causal do referido do acidente, questionando ainda o âmbito dos danos sofridos por aquele veículo.

Pelo que terminou pedindo, a improcedência da ação.

3. Mais tarde realizou-se a audiência de discussão e julgamento (com a gravação da mesma).

4. Seguiu-se a prolação da sentença que, no final, julgou a ação improcedente, absolvendo a R. do pedido.

5. Inconformada com tal sentença, dela apelou a autora, tendo concluído as respetivas alegações de recurso nos seguintes termos:

...

6. Contra-alegou a R. pugnando pela improcedência total do recurso e pela manutenção integral do julgado.

7. Corridos que foram os vistos legais, cumpre-nos, agora, apreciar e decidir.


II- Fundamentação

1. Do objeto do recurso

É sabido que é pelas conclusões das alegações dos recorrentes que se fixa e delimita o objeto dos recursos, não podendo o tribunal de recurso conhecer de matérias ou questões nelas não incluídas, a não ser que sejam de conhecimento oficioso (artºs. 635º, nº. 4, 639º, nº. 1, e 608º, nº. 2, do CPC).

Ora, calcorreando as conclusões das alegações do recurso, verifica-se que as questões que se nos impõe aqui apreciar e decidir são as seguintes:

a) Da impugnação/alteração da decisão da matéria de facto;

b) Do direito de regresso da autora sobre a ré.

2. Pelo tribunal da 1ª. instância foram dados como provados os seguintes factos

...

Factos não provados (dados pelo mesmo tribunal):

...

3. Quanto à 1ª. questão.

3.1 Da impugnação/alteração da decisão da matéria de facto.

...

Termos, pois, em que perante tudo o que se deixou exposto se decide, na improcedência da sua impugnação, manter intangível/inalterada a matéria de facto fixada pelo tribunal da 1ª. instância.

4. Quanto à 2ª. questão.

- Do direito de regresso da autora sobre a ré.

Com a presente ação pretende a autora ser reembolsada (por via do direito de regresso previsto na al. c) do nº. 1 do artº. 27º do DL nº. 291/2007, de 21/08), da quantia indemnizatória que pagou à proprietária do veiculo automóvel envolvido em acidente de viação com aquele um outro segurado em si e cujo condutor (a aqui ré) circulava então com uma taxa alcoolemia superior à legalmente permitida.

E questão aqui em análise tem a ver com o julgamento do mérito da causa, e que se traduz em saber se se verificam os pressupostos do aludido direito de regresso que a autora/seguradora veio exercer através da desta ação contra a ré (condutora do veículo em si segurado envolvido no tal acidente de viação).

Na sentença recorrida, julgou-se a ação improcedente, absolvendo-se a ré do pedido, com o fundamento de a autora não ter logrado provar a culpa da ré na produção do dito acidente (que consubstancia um dos pressupostos daquele direito) – entendimento também perfilhado pela ré na suas contra-alegações -, ao contrário do que defende a autora neste seu recurso.

Apreciando.

Tendo o acidente ocorrido em 20/08/2017, é insofismável (como tribunal a quo e as partes também reconhecem) que o reclamado direito regresso deve ser apreciado à luz da legislação então em vigor: o DL nº. 291/2007, de 21/08, que - revogando “o velho” DL nº. 522/85, de 31/12, que regulava então a matéria – aprovou o novo regime do sistema de seguro obrigatório de responsabilidade civil automóvel, transpondo parcialmente para a ordem jurídica interna a Diretiva n.º 2005/14/CE, do Parlamento Europeu e do Conselho, de 11 de Maio, que altera as Diretivas nºs. 72/166/CEE, 84/5/CEE, 88/357/CEE e 90/232/CEE, do Conselho, e a Diretiva n.º 2000/26/CE, relativas ao seguro de responsabilidade civil resultante da circulação de veículos automóveis.

Diploma esse que, sob a epígrafe “Direito de regresso da empresa de seguros”, passou, naquilo que para aqui importa, a dispor no seu artº. 27º nº. 1 al. c) que: “Satisfeita a indemnização, a empresa de seguros apenas tem direito de regresso contra o condutor, quando este tenha dado causa ao acidente e conduzir com uma taxa de alcoolemia superior à legalmente admitida (…).”

Tal disposição veio substituir, em tal matéria do direito de regresso das seguradoras, a que anteriormente constava da al. c) do artº. 19 do revogado DL nº. 522/85 de 31/12, que estabelecia, a esse propósito, que “Satisfeita a indemnização, a seguradora apenas tem direito de regresso contra o condutor, se este (…) tiver agido sob a influenciado álcool (…).

Conforme é sabido, no âmbito da vigência desse DL nº. 522/85, e face à controvérsia então instalada na nossa jurisprudência sobre interpretação daquele normativo citado (e na qual sobressaíam duas correntes de opinião, uma defendendo que sobre a seguradora apenas impendia o ónus de provar a condução sob influência de álcool e outra no sentido de a mesma ter ainda que provar o nexo de causalidade entre a condução sob essa influência do álcool e a ocorrência do acidente), veio a ser proferido o Acórdão Uniformizador de Jurisprudência nº. 6/2002, de 28/05/2002 (DR 1ª. S, de 18/07/2002), que, seguindo o último entendimento, fixou a seguinte jurisprudência: “A alínea c) do artigo 19.º do Decreto-Lei n.º 522/85, de 31 de Dezembro, exige para a procedência do direito de regresso contra o condutor por ter agido sob influência do álcool o ónus da prova pela seguradora do nexo de causalidade adequada entre a condução sob o efeito do álcool e o acidente.

E é no contexto de tal polémica, e conhecedor da mesma, que o nosso legislador fez publicar o sobredito DL nº. 291/2007, de 21/08, regulando o direito de regresso das seguradoras através do citado artº. 27º, e particularmente no que concerne às situações em que ocorram acidentes de viação em que o condutor é portador de uma taxa de alcoolemia (nº. 1 al. c)).

Não obstante a alteração da lei (diga-se, desde já, em seu desabono, que se o legislador pretendesse manter a interpretação que vinha então sendo seguida, não teria alterado o texto, dando-lhe outra redação), existe ainda uma pequena corrente minoritária que persiste ainda em interpretar o citado artº. 27º, nº. 1 al. c), em consonância com a doutrina que foi fixada pelo referido AUJ nº. 6/2002.

Porém, trata-se, a nosso ver, de uma corrente de opinião cada vez menos expressiva, pois que perante a redação desse citado normativo – na qual o legislador “apagando” a anterior expressão “agido sob influência do álcool” e substituindo-a pelo muito mais objetivado segmento “conduzir com uma taxa de alcoolemia superior à legalmente admitida” -, é hoje claramente dominante, sobretudo na nossa jurisprudência, a corrente de opinião, e na qual nos incluímos, que defende estar a seguradora dispensada de provar o nexo de causalidade entre a condução sob a influência do álcool e a ocorrência do acidente, ou seja, e por outras palavras, a seguradora passou a estar desonerada de demonstrar o concreto nexo causal entre o erro ou falta cometido pelo condutor alcoolizado no exercício da condução - e que despoletou o acidente - e a dita situação de alcoolemia (envolvendo a normal e provável diminuição dos reflexos e capacidade reativa do condutor alcoolizado), bastando para tanto à seguradora, para consubstanciar o seu direito de regresso previsto em tal normativo legal, provar que o condutor deu culposamente causa ao acidente e que então conduzia com uma taxa de alcoolemia superior aquela legalmente permitida (ao que acresce, claro está, a prova do primeiro pressuposto de que já satisfez a indemnização no montante pretende agora reaver). No que concerne a este último pressuposto da dispensa de prova pela seguradora do referido nexo de causalidade entre a condução sob a influência do álcool e a ocorrência do acidente, uma sub-corrente surge dentro dessa dominante corrente de opinião defendendo tratar-se de uma presunção legal de que aquela tão só beneficia (artº. 350º, nº. 1, do CC), mas que, atenta a sua natureza, juris tantum, pode ser ilidida pelo condutor demandado (nº. 2 do citado artº. 350º). No sentido exposto vide, entre muitos outros, Acs do STJ de 09/04/2019, proc. nº. 1880/16.3T8BJA.E1.S2; de 06/04/2017, proc. nº. 1658/14.9TBVLG.P1.S1; de 07/02/2017, proc. nº. 29/13.9TVNF.G1.S1; de 08/09/2013, proc. nº. 525/04.9TBSTR.S1; de 28.13.2013, proc. nº. 995/10.6TVPRT.P1.S1, e de 09/10/2014, proc. nº. 582/11.1TBSTB.E1.S1, e Acs. da RC de 14/03/2017, proc. nº. 1160/15.1T8LRA-C1, e de 15/09/2015, proc. nº. 744/14.0TBVIS.C1, todos disponíveis em www.dgsi.pt.

Posto isto, podemos concluir que, conforme resulta do citado artº. 27º, nº. 1, al. c), do DL nº. 291/2007, de 21/08, constituem pressupostos (cumulativos) do direito de regresso pela seguradora contra o condutor de veículo:

a) Que a seguradora tenha pago/satisfeito uma indemnização a terceiro lesado por ocorrência de acidente de viação em que foi envolvido um veículo seu segurado;

b) Que o condutor desse seu veículo tenha (culposamente) dado causa ao acidente;

c) E que o condutor desse seu veículo segurado fosse então portador de uma taxa de alcoolemia superior à legalmente admitida/permitida.

Pressupostos esses que, como factos constitutivos do seu invocado direito, incumbe à seguradora o ónus de alegar e provar (artº. 342º, nº. 1, do CC).

Reportando-nos caso em apreço, e face ao que se deixou expendido, é patente que se mostra preenchido o último pressuposto/requisito, pois que está provado que na altura do acidente em causa a ré conduzida o veículo segurado na autora com uma taxa de alcoolemia de 1,454 g/l (cfr. alínea M) dos factos provados), e portanto muito superior àquela legalmente permitida, a qual é, como se sabe, de 0,4 g/l (cfr. artº. 81º, nºs. 1 e 2, do CE), como preenchido se mostra igualmente o primeiro dos aludidos pressupostos, pois que em consequência do referido acidente a autora pagou à proprietária do outro veículo sinistrado envolvido no acidente a quantia de €12.600,00 (cfr. al. O) dos factos provados), que agora vem reclamar da ré.

O que se discute (constituindo aqui pomo de discordância) é se se mostra preenchido ou não o segundo daqueles requisitos, traduzido em saber se o aludido acidente foi causado (culposamente) pela ré?

E isso remete-nos, para o domínio da responsabilidade civil extracontratual por factos ilícitos (artº. 483º e ss. do CC), em que culpa na produção do acidente é um dos pressupostos em que se constitui a obrigação de indemnizar à luz dessa responsabilidade (cfr. Ac. do STJ de 06/04/2017, atrás citado).

O acidente em causa – ocorrido, no dia 20/08/2017, na Estrada Nacional 109, km ..., Distrito de Coimbra– envolveu o veículo ligeiro de passageiros com a matrícula ...-TD-..., segurado na autora, e então conduzido pela ré e o veículo ligeiro de passageiros com a matrícula ...-RH-..., propriedade de M..., mas que na altura era conduzido por P...

Em temos da dinâmica do acidente, que para aqui importa, apenas se apurou a seguinte materialidade factual:

- Que antes do acidente, ambos os condutores circulavam, no sentido Mira/Aveiro, na sua mão de trânsito, ou seja, pela hemi-faixa de rodagem direita.

- Que o embate entre os referidos veículos ocorreu na hemi-faixa de rodagem esquerda, quando o veículo TD efetuava uma manobra de ultrapassagem e o RH uma mudança de direção à esquerda.

- Que o local do acidente é uma reta com visibilidade superior a 100 metros, com uma via de sentido reversível de 6,50 metros, delimitada por terrenos agrícolas, cuja circulação é efetuada sem qualquer condicionante.

- Que a velocidade no local está limitada a 70 Km/hora.

- Que do embate resultaram danos materiais avultados para o veículo RH, na frente lateral esquerda, ao nível do pára-choques, capô, grelha, ótica e portas, bem como danos materiais avultados na frente lateral direita, ao nível do pára-choques, capô, grelha, ótica, e porta lateral.

- Que desse acidente não resultou qualquer marca/vestígio de travagem ou derrapagem.

De tais factos resulta que o embate o correu no decurso de uma manobra de ultrapassem efetuada pela ré (condutora do veículo TD) e de uma manobra de mudança e direção, para a sua esquerda, do condutor do veículo RH.

Perante tais manobras estradais, o tribunal a quo convocou, com pertinência, os seguintes normativos do C. da Estrada:

« Nos termos do art. 35º, nº 1 do CE “O condutor só pode efetuar as manobras de ultrapassagem, mudança de direção ou de via de trânsito, inversão do sentido de marcha e marcha atrás em local e por forma que da sua realização não resulte perigo ou embaraço para o trânsito.”

Prescreve o art. 36º, nº 1 do CE que “A ultrapassagem deve efetuar-se pela esquerda.”

De acordo com o art. 38º do CE:

1 - O condutor de veículo não deve iniciar a ultrapassagem sem se certificar de que a pode realizar sem perigo de colidir com veículo que transite no mesmo sentido ou em sentido contrário.

2 - O condutor deve, especialmente, certificar-se de que:

a) A faixa de rodagem se encontra livre na extensão e largura necessárias à realização da manobra com segurança;

b) Pode retomar a direita sem perigo para aqueles que aí transitam;

c) Nenhum condutor que siga na mesma via ou na que se situa imediatamente à esquerda iniciou manobra para o ultrapassar;

d) O condutor que o antecede na mesma via não assinalou a intenção de ultrapassar um terceiro veículo ou de contornar um obstáculo;

e) Na ultrapassagem de velocípedes ou à passagem de peões que circulem ou se encontrem na berma, guarda a distância lateral mínima de 1,5 m e abranda a velocidade.”

Por sua vez, “O condutor que pretenda mudar de direção para a esquerda deve aproximar-se, com a necessária antecedência e o mais possível, do limite esquerdo da faixa de rodagem ou do eixo desta, consoante a via esteja afeta a um ou a ambos os sentidos de trânsito, e efetuar a manobra de modo a entrar na via que pretende tomar pelo lado destinado ao seu sentido de circulação” – art. 44º, nº 1 do CE.

Prescreve o art. 21º, nºs 1 e 2 do CE que:

“1-Quando o condutor pretender reduzir a velocidade, parar, estacionar, mudar de direção ou de via de trânsito, iniciar uma ultrapassagem ou inverter o sentido de marcha, deve assinalar com a necessária antecedência a sua intenção.

2 - O sinal deve manter-se enquanto se efetua a manobra e cessar logo que ela esteja concluída. “

E nos termos do art. 24º, nº 1 do CE “1 - O condutor deve regular a velocidade de modo a que, atendendo à presença de outros utilizadores, em particular os vulneráveis, às características e estado da via e do veículo, à carga transportada, às condições meteorológicas ou ambientais, à intensidade do trânsito e a quaisquer outras circunstâncias relevantes, possa, em condições de segurança, executar as manobras cuja necessidade seja de prever e, especialmente, fazer parar o veículo no espaço livre e visível à sua frente.”

À luz de tal materialidade factualidade apurada e dos normativos legais atrás citados, o tribunal a quo considerou não se mostrar possível atribuir a culpa efetiva (subjetiva, pois a essa e só ela que está aqui em causa) a qualquer um dos condutores dos aludidos veículos envolvidos no acidente e particularmente à ré, e nem sequer a culpa presumida, extraída da presunção legal prevista à luz do artº. 503º, nº. 3, do CC (“Aquele que conduzir o veículo por conta de outrem responde pelos danos que causar, salvo se provar que não houve culpa da sua parte; se, porém, o conduzir fora do exercício das suas funções de comissário, responde nos termos do n.º 1”), argumentando a este respeito para o efeito que “não foi sequer invocada nem, por conseguinte, provada factualidade de onde se extraísse a relação de comissão prevista na norma.”

E daí que, não se tendo demonstrado a culpa da ré na produção do acidente, tenha concluído não se mostrar preenchido o segundo pressuposto atrás referido que vimos analisando, julgando, em consequência, improcedente a ação e absolvido aquela do pedido.

Quid iuris?

Importa, desde já dizer, que, perante a escassez da matéria factual, e particularmente no que concerne àquela referente à dinâmica do acidente, não é possível apurar da causa concreta/efetiva que motivou a acidente e, consequentemente, não se mostra possível concluir (como bem o fez o tribunal a quo) pela culpa efetiva (quer em exclusividade, quer em concorrência) de qualquer um dos condutores na produção do acidente, e em particular da ré, pois que tal materialidade não permite extrair a conclusão, em termos de censurabilidade da sua conduta, de que perante as circunstâncias concretas da situação a ré podia e deveria ter atuado de modo a evitar o acidente, sendo certo ainda que, não obstante conduzir um veículo de que não era proprietária, a escassez de tal matéria não permite lançar mão da presunção legal de culpa estatuída naquele citado artº. 503º, nº. 3, do CC.

Porém, haverá que considerar o seguinte:

Em matéria de acidentes de viação, a culpa não se confunde com uma mera violação de uma norma destinada a proteger interesses alheios e, como tal, a infração de uma regra legal de trânsito não implica automaticamente, sem mais, a existência de culpa do agente, pois a ilicitude e a culpa não se confundem (cfr., entre outros, Ac. STJ. de 15/1/80, in “BMJ. nº. 293, pág. 285” e Ac. RL. de 26/1/95, in “CJ, Ano XX, T1, pág. 101).

Assim, haverá que apreciar em concreto a conduta do agente, embora essa infração às regras estradais possa constituir um índice semiótico da existência de um comportamento culposo do lesante, mas por via da factualidade que integra essa infração e não pela mera circunstância de ser uma infração estradal. Isto é, uma infração aos preceitos estradais não é só por si sinónimo de culpa, mas porque cometida no âmbito da condução automóvel, ato voluntário humano, inculca a imprudência do agente. Desse modo, vem sustentando a jurisprudência dominante que, sob pena de se onerar o lesado insuportavelmente com a demonstração do nexo de imputação ético-jurídico do facto ilícito à vontade do condutor, por infração de norma regulamentar que protege interesses alheios, não se torna necessária a prova da concreta previsibilidade do evento, sempre que este se situe no círculo de interesses privados que a norma pretendeu acautelar, doutrinando-se existir uma presunção judicial de negligência. (cfr. ainda o Ac. da RC de 14/03/2017, proc. nº. 1160/15.1T8LRA-C1, disponível em www.dgsi.pt).

Por fim, importa ainda dizer que a não existência de qualquer presunção de culpa não se confunde com a possibilidade, não afastada, de o tribunal recorrer a presunções naturais/judiciais para vencer algumas dificuldades especiais de prova, a chamada «prova de primeira aparência» (cfr. artº. 349º do CC), considerando-se que para provar a culpa no domínio da responsabilidade por factos ilícitos basta que o prejudicado possa estabelecer factos que, segundo os princípios da experiência geral, tornem verosímil a culpa (vide, entre outros, Ac. da RC de 15/3/83, in “CJ, Ano VIII, T2, pág. 15”).

Posto isto, avancemos mais decisivamente para a solução do caso concreto.

Como já se deixou referido, no momento do acidente a ré conduzia o veículo automóvel com uma taxa de alcoolemia de 1,454 g/l (cfr. alínea M) dos factos provados), e portanto muito superior àquela legalmente permitida, a qual é, como se sabe, de 0,4 g/l, sendo que no caso essa taxa situava-se mesmo no mais alto dos escalões legalmente estabelecidos (cfr. artº. 81º, nºs. 1, 2, e 6 al. a), do CE), constituindo-se mesmo como ilícito criminal (cfr. artº 292º do CP).

E ao fazê-lo a ré violou, desde logo, o comando estradal do citado artº. 80º, nº. 1, do CE, que proíbe a condução sob a influência de álcool.

Comando esse que visa precisamente, além do mais, zelar pela segurança rodoviária, e particularmente de todos aqueles cidadãos que circulam nas vias públicas, sabido que são os efeitos nocivos do álcool, sobretudo a acima da taxa legalmente permitida. Na verdade, está cientificamente comprovado que a ingestão de álcool diminui, na exata medida do crescendo do seu teor, a capacidade de reação e de concentração, assim como a capacidade motora e sensorial, nomeadamente a visual, provocando, uma demora na reação aos estímulos, donde influir, nessa medida, na atividade da condução de veículos, dado diminuir (adequadamente) a aptidão de quem conduz esses veículos.

Desso modo, dado o elevado teor da taxa de álcool com que então circulava a ré, e considerando ainda, por um lado, que o acidente ocorreu numa reta com visibilidade superior a 100 metros – atento o sentido de marcha em seguia ao veículo por si tripulado -, apresentando-se a via no local com uma largura de 6,50m, por outro, que a velocidade no local está limitada a 70 km/h, e, por fim, os elevados danos (e a sua localização) sofridos pelo outro veículo (RH) envolvido no acidente (de marca Mercedes), e que levaram à sua perda total (tudo apontando ter sido embatido, de forma violenta, pelo veículo TD, quando executava a mudança de direção), tudo isso faz inculcar a ideia, através do recurso presunções judiciais/naturais (não ilididas) a que atrás aludimos, de que a ré atuou, no caso, de forma imprevidente/negligente.

Imprevidência/negligência essa causada pelo elevado teor de álcool com que a ré circulava, que lhe terá retirado a necessária clarividência para evitar o acidente, assim, a ele dando causa (não sabemos se de forma exclusiva ou em concorrência de culpas com o condutor do outro veículo).

É assim de presumir (enfatiza-se, por vir do recurso às sobreditas presunções judiciais/naturais, assentes na alta taxa de alcoolemia com que então circulava em conjugação com a demais factualidade atrás referida) a culpa da ré na produção do acidente, a ele dando causa (desconhecendo-se, repete-se, se de forma exclusiva ou em concorrência de culpas com o condutor do veículo RH). Apontando no sentido que se deixou exposto vide ainda Ac. da RC de 14/03/2017, proc. nº. 1160/15.1T8LRA-C1, disponível em www.dgsi.pt, e Maria Amália Santos, “O Direito de Regresso das Seguradora nos Acidentes de Viação”, in  Revista  Julgar Online, Novembro 2018)

Desse modo, é de concluir que se mostra preenchido o último dos pressupostos que vínhamos analisando, e com ele, como vimos, todos os demais pressupostos legais que permitem à autora exercer o direito de regresso contra à ré obtendo dela o pagamento da quantia que peticiona na presente ação.

Termos, pois, em que se concede provimento ao recurso, revogando-se sentença da 1ª. instância e julgando procedente a ação.


III- Decisão

Assim, em face do exposto, acorda-se, na procedência do recurso, em revogar a sentença da 1ª. instância e, em consequência, condenar a ré, C..., a pagar à autora, A... Europe Limited, a quantia de €12.600,00 (doze mil e seiscentos euros), acrescida dos juros de mora, vencidos – desde a data da sua citação para ação - e vincendos, à taxa legal, até integral e efetivo pagamento.

Custas – da ação e do recurso - pela ré/apelada (artº. 527º, nºs. 1 e 2, do CPC).

Sumário

1- À luz do artº. 27º, nº. 1, al. c), do DL nº. 291/2007, de 21/08, constituem pressupostos do direito de regresso pela seguradora contra o condutor de veículo:

a) Que a seguradora tenha pago/satisfeito uma indemnização a terceiro lesado por ocorrência de acidente de viação em que foi envolvido um veículo seu segurado;

b) Que o condutor desse seu veículo tenha (culposamente) dado causa ao acidente;

c) E que o condutor desse seu veículo segurado fosse então portador de uma taxa de alcoolemia superior à legalmente admitida/permitida.

2- Pressupostos esses que são cumulativos e cujo ónus de alegação e prova incumbe à seguradora.

3- Nesse ónus não se inclui já a prova do nexo de causalidade entre a condução sob a influência do álcool e a ocorrência do acidente.

4- Está cientificamente comprovado que a ingestão de álcool diminui, na exata medida do crescendo do seu teor, a capacidade de reação e de concentração, assim como a capacidade motora e sensorial, nomeadamente a visual, provocando, uma demora na reação aos estímulos, donde influir (ou, pelos menos, poder influir), nessa medida, na atividade da condução de veículos, dado diminuir (adequadamente) a aptidão de quem conduz os mesmos.

5- Não constituindo a condução sob a influência do álcool, só por si, uma presunção legal de culpa na produção do acidente, todavia, - e não permitindo a matéria factual apurada concluir pela culpa efetiva de qualquer condutor na produção do acidente – essa culpa pode ser estabelecida por via do recurso a presunções judiciais/naturais, nas quais se integram ou podem integrar a condução sob o efeito do álcool em conjugação de análise, perante o caso concreto, com os demais factos apurados.

Coimbra, 2020/06/26