SENTENÇA
ERROS MATERIAIS
RECTIFICAÇÃO
Sumário

I - Os “erros materiais” previstos nos artigos 613.º e 614.º do CPC traduzem-se na divergência entre a vontade real e a vontade declarada do julgador, e só a verificação de tal vício permite o afastamento da regra da intangibilidade da sentença, não se confundindo com os “erros de julgamento”, que ocorrem nas situações em que o julgador disse o que queria dizer mas decidiu mal, decidiu contra lei expressa ou contra os factos provados”.
II - Há erro material quando se verifica inexatidão na expressão da vontade do julgador, por lapso notório, sendo que a divergência entre a vontade real e a declarada não deve suscitar fundadas dúvidas antes ser patente, através de outros elementos da decisão, ou, até, do processo.

Texto Integral

Apelação: 3338/18.7T8PNF.P1
Tribunal recorrido: Judicial da Comarca do Porto Este, Juízo do Trabalho de Penafiel.
Recorrente: B…
Recorrida: C… – Companhia de Seguros, S.A.
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Relator: Nélson Fernandes
1º adjunto: Des. Rita Romeira
2º adjunto: Des. Teresa Sá Lopes
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Acordam na Secção Social do Tribunal da Relação do Porto:

I – Relatório
1. Nos autos de processo especial emergente de acidente de trabalho foi a final, em 1.ª instância, com data de 28 de outubro de 2019, proferida sentença, de cujo dispositivo se fez constar, nomeadamente:
“Pelo exposto, decido:
I) Declarar que o Sinistrado B…, em consequência do acidente de trabalho objecto dos presentes autos, apresenta uma incapacidade parcial permanente de 5% desde 2 de Julho de 2018, data da alta definitiva.
II) Em consequência, condeno a C… – Companhia de Seguros, S.A., a pagar ao Sinistrado:
1 - A pensão anual, vitalícia e actualizável de €3.552,50 (três mil, quinhentos e cinquenta e dois euros e cinquenta cêntimos), a ser paga adiantada e mensalmente até ao 3º dia de cada mês, no seu domicílio, devida a partir do dia 3 de Julho de 2018 (dia seguinte ao da alta), correspondendo cada prestação a 1/14 da pensão, bem como subsídio de férias e de Natal, no valor de 1/14 da pensão anual, a serem pagos nos meses de Junho e Novembro de cada ano respectivamente, prestações essas acrescidas de juros de mora, à taxa legal, devidos desde o dia do respectivo vencimento até efectivo e integral pagamento.
Esta pensão é actualizada a partir de 1 de Janeiro de 2019 para o montante de €3.609,34 (três mil, seiscentos e nove euros e trinta e quatro cêntimos).
2- A quantia de €30,00 (trinta euros) relativa à indemnização por despesas de deslocação do Sinistrado, acrescida de juros de mora, à taxa legal, devidos desde o dia 13 de Junho de 2019 até efectivo e integral pagamento.”
Mais fez constar, de seguida, o seguinte:
“Oportunamente e dado que a pensão – atento o grau de incapacidade –, é obrigatoriamente remível, proceda-se ao cálculo do capital, indo depois os autos ao Ministério Público – artigos 148º nº 3 e 4 "ex vi" artigo 149º do C. P. Trabalho.
Diligencie-se pelo pagamento dos exames médico-legais realizados no âmbito dos presentes autos, sendo os honorários devidos ao Sr. Perito do fixados de acordo com o que resulta da tabela legal.
Fixo à causa o valor de €59.690,69.
Custas pela Companhia.
Registe e notifique.”

1.1 Com data de 20 de dezembro de 2019 apresentou C… – Companhia de Seguros, S.A., requerimento em que requer que seja esclarecido “se a pensão é ou não remível, renovando o prazo concedido para pagamento das quantias devidas ao sinistrado.”

1.2 Na vista aberta seguidamente ao Ministério Público em 1.ª instância consta o seguinte:
“Fls.140: Promovo se informe que que a pensão atribuída ao sinistrado, no montante de 3552,50€, deverá ser paga em 1/14, conforme decisão proferida nos autos.
Nesse sentido, desde já se promove que a entidade responsável comprove nos autos o pagamento das prestações já vencidas.”

1.3 Em 8 de janeiro de 2020 o Tribunal a quo proferiu decisão com o teor que se transcreve:
“Fls.140 a 150: Analisada a decisão de fls.128 a 132, constata-se que a mesma, por lapso manifesto, contém uma inexatidão, pois que na parte final se refere “Oportunamente e dado que a pensão – atento o grau de incapacidade – é obrigatoriamente remível, proceda-se ao cálculo do capital indo depois os autos ao Ministério Público – artigos 148, nº3 e 4 “ex vi” artigo 149º do C.P.Trabalho”.
Perante tudo o que consta daquela sentença, incluindo a parte decisória, conclui-se que se trata de um lapso manifesto, ao qual não é alheia a chamada “tirania do computador”, pois que, desde logo, a Seguradora é condenada, na parte decisória, a pagar, não o capital de remição, mas antes uma pensão anual, vitalícia e actualizável.
Pelo exposto, ao abrigo do disposto no art. 614º, nº1, do C.P.Civil, decido rectificar a sentença de fls. 128 a 132, deixando de constar na mesma aquele supra transcrito parágrafo onde se determina que se proceda ao cálculo do capital de remição.
Consequentemente, indefere-se o requerido pelo Sinistrado a fls. 147 a 150.
Mais determino a notificação da C… – Companhia de Seguros, S.A. para, no prazo de 10 dias, juntar aos autos o comprovativo do pagamento das prestações devidas ao sinistrado já vencidas, advertindo-a de que a pensão fixada ao sinistrado deverá ser paga nos termos que decorrem da sentença proferida, ou seja, correspondendo cada prestação a 1/14 da pensão, bem como o subsídio de férias e de Natal, no valor de 1/14 da pensão anual, a serem pagos nos meses de Junho e Novembro de cada ano respectivamente.
Notifique.”

2. Inconformado, apresentou o Sinistrado recurso dessa decisão.
Das suas alegações constam as seguintes conclusões:
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……………………………
2.1 Contra alegou a Responsável, concluindo do modo seguinte:
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2.2 O recurso foi admitido em 1.ª instância como de apelação, com subida imediata, nos próprios autos e com efeito meramente devolutivo.

3. O Exmo. Procurador-Geral Adjunto, por entender que há uma clara alteração substancial do decidido que ultrapassa o entendimento do que seja a mera correção do erro ou lapso de escrita, emitiu parecer no sentido da procedência do recurso.
3.1 Notificado, não ocorreu pronúncia sobre o aludido parecer.

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Cumpre apreciar e decidir.

II – Questões prévias
1. Junção de documento
Com as alegações junta o Recorrente documento, dizendo dizer respeito a Acórdão que cita e que tal junção é feita para mais fácil consulta.
Não obstante não se tratar propriamente de documento, esclarecendo-se que para o efeito se fará aqui uma interpretação claramente muito abrangente do regime previsto no n.º 2 do artigo 651.º do Código de Processo Civil (CPC), admite-se a junção.

III – Questões a resolver
Sendo pelas conclusões que se delimita o objeto do recurso (artigos 635º/4 e 639º/1/2 do CPC – aplicável “ex vi” do art. 87º/1 do Código de Processo do Trabalho (CPT) –, integrado também pelas que são de conhecimento oficioso e que ainda não tenham sido decididas com trânsito em julgado, a única questão a decidir prende-se com saber se é conforme à lei a decisão recorrida de retificação da sentença anteriormente proferida.
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IV – Fundamentação
a) Os factos relevantes para a apreciação do recurso constam da decisão recorrida, como resulta do relatório que antecede.

b) - Discussão
1. Da retificação da sentença
1.1 Regime legal
Como se afirmou aquando da delimitação do objeto do recurso, a única questão a decidir prende-se com saber se é conforme à lei a decisão recorrida que procedeu à retificação da sentença anteriormente proferida.
Em face do que resulta das conclusões que apresentou, sustenta o Recorrente que, tendo a sentença sido notificada às partes bem como ao Ministério Público, sem que tenha sido apresentada qualquer reclamação, pedido de retificação de erros, esclarecimentos ou recurso ordinário ou mesmo extraordinário, transitando pois em julgado, a mesma consolidou-se na ordem jurídica, formando-se caso julgado, estando por essa razão vedada a possibilidade, em clara violação dos princípios da imodificabilidade da decisão, da sua irrevogabilidade e da certeza e segurança jurídicas, de ser substituída ou modificada por qualquer tribunal, incluindo aquele que a proferiu, mesmo tratando-se de normas imperativas sobre reparação dos acidentes de trabalho e mesmo que o juiz constate que a questão possa ter sido mal julgada, do que decorre, assim o conclui o Recorrente, ser ineficaz qualquer decisão proferida posteriormente, como é o caso do despacho de que se recorre, por violação do caso julgado – por violação, entre outros, dos artigos 613.º, 625.º, 580.º e 581.º do CPC e dos princípios da imodificabilidade da decisão, da sua irrevogabilidade e da certeza e segurança jurídicas.
Pronunciando-se a Apelada pela adequação do julgado, o Exmo. Procurador-Geral Adjunto nesta Relação, por sua vez, no parecer que emitiu, por entender que há no caso uma clara alteração substancial do decidido que ultrapassa o entendimento do que seja a mera correção do erro ou lapso de escrita, pronunciou-se no sentido da procedência do recurso.
Apreciando, impondo-se apurar da adequação do julgado, a tal tarefa nos propomos de seguida.
Resultando do n.º 1 do artigo 613.º do CPC que “[p]roferida a sentença, fica imediatamente esgotado o poder jurisdicional do juiz quanto à matéria da causa”, estipula-se porém no n.º 2 do mesmo normativo que “[é] lícito, porém, ao juiz retificar erros materiais, suprir nulidades e reformar a sentença, nos termos dos artigos seguintes”.
À retificação de erros materiais se refere depois o artigo seguinte (614.º do CPC), em que se dispõe:
“1 - Se a sentença omitir o nome das partes, for omissa quanto a custas ou a algum dos elementos previstos no n.º 6 do artigo 607.º, ou contiver erros de escrita ou de cálculo ou quaisquer inexatidões devidas a outra omissão ou lapso manifesto, pode ser corrigida por simples despacho, a requerimento de qualquer das partes ou por iniciativa do juiz.
2 - Em caso de recurso, a retificação só pode ter lugar antes de ele subir, podendo as partes alegar perante o tribunal superior o que entendam de seu direito no tocante à retificação.
3 - Se nenhuma das partes recorrer, a retificação pode ter lugar a todo o tempo.”
Face ao que resulta dos citados normativos, e desde logo, respondendo aliás diretamente e de modo expresso ao argumento do Recorrente baseado na pretensa violação do caso julgado, sem dúvidas que a lei admite, desde que se esteja perante situação subsumível à previsão do seu n.º 1, mesmo que nenhuma das partes tenha recorrido, a possibilidade de se proceder à retificação da sentença. Assim, a questão da admissibilidade legal da retificação da sentença depende afinal, limitada agora a análise ao que ao caso importa[1], da constatação de que essa padeça de “erros de escrita ou de cálculo ou quaisquer inexatidões devidas a outra omissão ou lapso manifesto”, caso em que, por a tal não se opor o caso julgado, “pode ser corrigida por simples despacho, a requerimento de qualquer das partes ou por iniciativa do juiz”.
Daí que o princípio da intangibilidade da decisão judicial, consagrado pelo artigo 613.º n.º 1, cesse quando a vontade nessa expressa não é aquela que o juiz quis consagrar, pois que, havendo erro material na expressão dessa vontade, não funciona então a regra da inalterabilidade, por ser licito ao juiz ajustar, precisamente mediante retificação, a vontade declarada à sua vontade real – através, precisamente, do mecanismo processual estabelecido no n.º 2 do mesmo normativo e, ainda, no artigo 614.º.
Porém, limitada a análise à retificação de erro de escrita (regime também aplicável aos demais casos previstos na lei), para que possa ser objeto de retificação terá de ressaltar esse erro da decisão ou das peças que a precederam, evidenciando que a vontade declarada diverge da vontade real – aos despachos judiciais, como as sentenças, constituindo, é certo, atos jurídicos, são aplicáveis, por analogia, as normas que regem os negócios jurídicos (artigo 295.º do Código Civil – CC), o que vale por dizer que, não se tratando é certo de um verdadeiro negócio jurídico, pois que não traduz uma declaração pessoal de vontade do julgador – antes exprimindo uma injunção aplicativa do direito, a vontade da lei, no caso concreto, correspondendo assim ao resultado de uma operação intelectual que consiste no apuramento de uma situação de facto e na aplicação do direito a essa situação[2] –, a decisão judicial há de valer também com o sentido que um declaratário normal, colocado na situação do real declaratário, possa deduzir do conteúdo nela expresso, ainda que menos perfeitamente (artigos 236.º, n.º 1, e 238., n.º 1, do CC), como ainda que “o simples erro de cálculo ou de escrita, revelado no próprio contexto da declaração ou através das circunstâncias em que a declaração é feita, apenas dá direito à rectificação desta” (artigo 249.º do CC).
Não cabem pois nesse âmbito, por serem coisa diversa, os casos em que se esteja perante o denominado erro de julgamento, em que o juiz disse afinal o que queria dizer, mas decidiu mal, ou contra lei expressa, ou contra os factos apurados[3].
De facto, socorrendo-nos do que se escreveu no Acórdão do STJ de 23 de novembro de 2011[4], diremos também (citação):
“(...) “[H]á que distinguir, cuidadosamente, o erro material do erro de julgamento. O primeiro verifica-se quando o juiz escreveu coisa diversa do que queria escrever, quando o teor da decisão não coincide com o que o juiz tinha em mente exarar, quando, em suma, a vontade declarada diverge da vontade real. No segundo caso, o juiz disse o que queria dizer, mas decidiu mal, decidiu contra a lei expressa ou contra os factos apurados. Está errado o julgamento. Ainda que o juiz logo se convença de que errou, não pode socorrer-se do art. 667.° para emendar o erro. Por outras palavras: é necessário que do próprio conteúdo da decisão ou dos termos que a precederam se depreenda claramente que se escreveu manifestamente coisa diferente do que se queria escrever: se assim não for, a aplicação do art. 667.° é ilegal, pois importa evitar que, à sombra da mencionada disposição, o juiz se permita emendar erro de julgamento, espécie diversa do erro material. Mais particularmente, quanto ao erro de cálculo, importa salientar que este erro há-de também evidenciar-se através a decisão ou das peças que a precederam. O caso de erro de cálculo pressupõe que o juiz escreveu o que quis escrever, mas devia ter escrito coisa diversa. Errou as operações do cálculo, e porque as errou chegou a resultado diferente do que chegaria se as operações estivessem certas. Aqui o erro material ainda será, na maior parte dos casos, mais palpável do que na hipótese de simples erro de escrita” – cfr. “Código de Processo Civil Anotado”, 5.°, 132 a 134, do Prof. Alberto dos Reis, e RLJ, 87.°. O art. 249º do Código Civil estatui: “O simples erro de cálculo ou de escrita, revelado no próprio contexto da declaração ou através das circunstâncias em que a declaração é feita, apenas dá direito à rectificação desta”. Este normativo exprime um princípio geral aplicável a actos, quer judiciais, quer extrajudiciais – cfr. Acórdão deste Supremo Tribunal de Justiça, de 10.10.2002, Revista n.°1950/02, 2º, Sumários, 10/2002.”. Mais se refere, ainda, que “[o]s normativos dos arts. 666.º e 667º do Código de Processo Civil, conjugados com o art. 249º do Código Civil, não excluem que um ostensivo erro material, no caso um erro de cálculo, possa ser rectificado a todo o tempo. Não se trata de um erro de julgamento, nem de interpretar uma decisão judicial numa perspectiva que demande um esforço interpretativo com apelo às normas da hermenêutica jurídica, mas antes de fazer coincidir num documento (decisão judicial) o que o juiz quis dizer, mas que, por erro, não disse, incorrendo num erro evidente ou lapso manifesto.“ Lapso manifesto é, em princípio, aquele que de imediato resulta do próprio teor da decisão ou, no caso de elementos ou documentos inconsiderados, que de modo flagrante e sem necessidade de elaboradas demonstrações, logo revelem que só por si a decisão teria de ser diferente da que foi proferida” – Acórdão deste Supremo Tribunal de Justiça, de 14.3.2006 – Proc. 05B3878 – in www.dgsi.pt.No ensino do Professor Castro Mendes, in “Direito Processual Civil”, 1969, II, 313: “Erro material ou lapso é a inexactidão ou omissão verificada em circunstâncias tais que é patente, através dos outros elementos da sentença ou até do processo, a discrepância com os dados verdadeiros e se pode presumir por isso uma divergência entre a vontade real do juiz e o que ficou escrito”.
Esclareça-se, por último, que o regime que anteriormente se expôs está em linha com o entendimento sufragado no Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça indicado pelo Recorrente (e cuja cópia juntou), pois que, sem prejuízo de incidir tal Acórdão sobre situação diversa daquela que nos ocupa – no nosso caso está apenas em apreciação verificar da adequação ou não da decisão retificativa em face do teor da sentença retificada[5] e não pois, como naquele, um caso em que o acórdão do tribunal da relação, violando o caso julgado que se formara sobre a sentença inicialmente proferida, aprecia os critérios legais da fixação da pensão –, se limitou a afirmar, dando solução à situação que então se colocava, fazendo-o aliás constar no ponto III do sumário, que “Tendo já transitado em julgado a sentença que apreciou os critérios legais, e fixou a pensão devida por acidente de trabalho quando o juiz rectificou oficiosamente o montante da pensão atribuída ao autor que constava daquela, o (eventual) recurso que venha a ser interposto, há-de circunscrever-se ao mérito dessa rectificação (saber se se verificam, ou não, os pressupostos legais da rectificação decisória.” Ou seja, afinal o regime que antes expusemos, a respeito do modo e critérios a aplicar nestes casos, do qual resulta que se poderá retificar, a tal não se opondo o princípio da intangibilidade da decisão judicial consagrado pelo artigo 613.º n.º 1, a sentença quando a vontade nessa expressa não é aquela que o juiz quis consagrar – havendo erro material na expressão dessa vontade, não funciona, como o referimos já, a regra da inalterabilidade, por ser licito ao juiz ajustar, mediante retificação, a vontade declarada à sua vontade real, através, precisamente, do mecanismo processual estabelecido no n.º 2 do mesmo normativo e, ainda, no artigo 614.º. Já não, como o dissemos também, sendo que foi já nesse âmbito que o Acórdão indicado se centrou, os casos em que o juiz disse o que queria dizer, ainda que tenha decidido mal, mesmo contra a lei expressa, pois que nesses casos, tratando-se de erro de julgamento, não são ultrapassáveis mediante mera retificação, razão pela qual, enquanto tais, ficam abrangidos pelo princípio da intangibilidade da decisão judicial, consagrado pelo artigo 613.º n.º 1 do CPC.

1.2 Aplicação ao caso do regime anteriormente exposto
Aplicando ao caso o regime que anteriormente se expôs, o que se constata, salvo o devido respeito, adiante-se desde já, é que não ocorre fundamento, face ao que consta da sentença, bem como do despacho em que o tribunal a quo procedeu à sua retificação, para considerar que não esteja em causa, emergindo essa conclusão de modo a nosso ver suficientemente claro da própria sentença, um erro material ou inexatidão só compreensível em face de lapso manifesto em que aquele Tribunal incorreu – como aliás o mesmo Tribunal o considerou no despacho retificativo que é objeto do presente recurso.
De facto, analisada a sentença, constata-se que a inclusão na sua parte final do parágrafo “Oportunamente e dado que a pensão – atento o grau de incapacidade – é obrigatoriamente remível, proceda-se ao cálculo do capital indo depois os autos ao Ministério Público – artigos 148, nº3 e 4 “ex vi” artigo 149º do C.P.Trabalho”, para além de em bom rigor não se poder propriamente dizer que integre o dispositivo da sentença propriamente dito, assim onde se decide a causa em termos de definição dos direitos aí afirmados para as partes – pois que se assume também como determinação para a secção para que proceda oportunamente ao cálculo do capital de remição –, não se adequa minimamente, entrando afinal em direta contradição, como o que imediatamente antes se fez constar no dispositivo, pois que aí consta a condenação expressa e inequívoca da Responsável Seguradora no pagamento ao Sinistrado de uma pensão anual (cujo valor se fixou), a ser paga adiantada e mensalmente até ao 3.º dia de cada mês – “pensão anual, vitalícia e actualizável de €3.552,50 (três mil, quinhentos e cinquenta e dois euros e cinquenta cêntimos), a ser paga adiantada e mensalmente até ao 3º dia de cada mês, no seu domicílio, devida a partir do dia 3 de Julho de 2018 (dia seguinte ao da alta), correspondendo cada prestação a 1/14 da pensão, bem como subsídio de férias e de Natal, no valor de 1/14 da pensão anual, a serem pagos nos meses de Junho e Novembro de cada ano respectivamente, prestações essas acrescidas de juros de mora, à taxa legal, devidos desde o dia do respectivo vencimento até efectivo e integral pagamento”, mais se determinando, ainda, que “Esta pensão é actualizada a partir de 1 de Janeiro de 2019 para o montante de €3.609,34 (três mil, seiscentos e nove euros e trinta e quatro cêntimos)”.
Daí que, salvo o devido respeito, se impusesse sempre afastar tal contradição, pois que, releve-se o uso da expressão, “das duas uma”, ou a pensão é paga “adiantada e mensalmente até ao 3º dia de cada mês”, como antes é afirmada no dispositivo, ou se trata de pensão “obrigatoriamente remível” de tal modo que se justifique que se proceda ao cálculo do capital de remição.
Ora, importando então apurar qual das afirmações (como vimos contraditórias) se adequa aos fundamentos que se fizeram constar da sentença, ou seja qual o sentido que pode ser tido como evidenciado, ressalta, a nosso ver com clareza, que a real vontade do julgador, em face do que fez constar do texto (da fundamentação da sentença), em que se esclarecem os fundamentos de facto e de direito em que se fundamenta tal vontade e decisão, não dá cobertura, mínima que seja, pois que a essa não se faz qualquer referência, à afirmação de que a pensão seja obrigatoriamente remível, estando antes em conformidade, diversamente, nessa parte sim, com a condenação constante do ponto II), n.º 1, do dispositivo da sentença.
Nos termos expostos, manifesta se nos apresenta, como o dissemos por mero recurso ao texto da sentença, a conclusão de que só por lapso se explica (lapso manifesto, como o Tribunal a quo o considerou no despacho retificativo) que na mesma se tenha incluído, no seu final, contrariando o antes afirmado no seu dispositivo, que “Oportunamente e dado que a pensão – atento o grau de incapacidade – é obrigatoriamente remível, proceda-se ao cálculo do capital indo depois os autos ao Ministério Público”.
Sendo esse o caso, enquanto tal, poderia e deveria a sentença ser retificada, como o foi no caso, através do despacho recorrido, que procedeu à retificação – em face do regime legal aplicável, esse que anteriormente expusemos, claudicando pois os argumentos do Recorrente que apresentou nas conclusões do presente recurso.
Improcede em conformidade o presente recurso.

A responsabilidade pelas custas recai sobre o Recorrente, sem prejuízo de isenção ou benefício que lhe tenha sido atribuído (n.º 1, parte final, do artigo 527.º do CPC.)
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V – DECISÃO:
Nestes termos, acordam os juízes da Secção Social do Tribunal da Relação do Porto em declarar improcedente o recurso.
Custas pelo Recorrente, sem prejuízo de isenção ou benefício que lhe tenha sido atribuído.
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Porto, 18 de maio de 2020
(acórdão assinado digitalmente)
Nelson Fernandes
Rita Romeira
Des. Teresa Sá Lopes
______________
[1] Sem considerar pois os demais casos previstos na norma.
[2] Como se refere no Acórdão STJ, de 5/11/98, proc. 98B712, ITIJ, citando Rosenberg e Schwab, citado por sua vez no Ac. STJ de 3 de Fevereiro de 2011, Relator Conselheiro Lopes do Rego, in www.dgsi.pt.
[3] Como se refere no Ac. STJ de 9 de Junho de 2009, Relator Conselheiro Helder Roque, in www.dgsi.pt, por apelo aos ensinamentos de Alberto dos Reis, Código de Processo Civil Anotado, V, 1981, págs. 130 e 134; e RLJ, Ano 87º, pág. 144.
[4] Então referindo-se ao artigo 667.° do CPC, mas com plena aplicação ao regime que resulta do atual Código, assim o artigo 614.º - Relator Conselheiro, Fonseca Ramos, in www.dgsi.pt.
[5] Como se refere na conclusão III do mesmo Acórdão, solução que aqui acompanhamos: “Tendo já transitado em julgado a sentença que apreciou os critérios legais, e fixou a pensão devida por acidente de trabalho quando o juiz rectificou oficiosamente o montante da pensão atribuída ao autor que constava daquela, o (eventual) recurso que venha a ser interposto, há-de circunscrever-se ao mérito dessa rectificação (saber se se verificam, ou não, os pressupostos legais da rectificação decisória”