SEGURO DE SAÚDE
NULIDADE DE SENTENÇA
EXCESSO DE PRONÚNCIA
ANULABILIDADE DO CONTRATO
Sumário

I - A nulidade por excesso de pronúncia prevista no artigo 615.º, n.º 1, alínea c), do CPC, pode dizer respeito à matéria de facto.
II - Ainda que o artigo 5.º do CPC tenha deixado de mencionar na epígrafe o princípio dispositivo (epígrafe do anterior artigo 264.º do CPC), é dele que trata quando determina que incumbe às partes a formação da matéria de facto da causa, mediante a alegação, nos articulados, dos factos essenciais que integram a causa de pedir e as exceções.
III - Se o segurado omitiu dolosamente informações sobre a sua saúde que eram relevantes para a apreciação do risco pela seguradora, concede-se a esta o direito de opor a anulabilidade do contrato, nos termos do artigo 25.º, n.º 1, do Regime Jurídico do Contrato de Seguros.
IV - O dolo previsto no citado artigo 25.º é o «dolo-vício» ou «dolo-artimanha», por contraposição ao «dolo-culpa», pelo que o segurador terá de demonstrar que o dolo o conduziu ao erro e que, se conhecesse o erro, não teria celebrado o contrato, remetendo-se para o regime dos artigos 253.º e 254.º do Código Civil.

Texto Integral

Acordam na 2.ª Secção Cível do Tribunal da Relação de Lisboa

I - Relatório
1. A Ré Metlife Europe d.a.c. - Sucursal em Portugal interpôs recurso de apelação da sentença que julgou a presente ação parcialmente procedente.
2. FJ… intentou ação declarativa de condenação, sob a forma de processo comum, contra Metlife Europe d.a.c. - Sucursal em Portugal, formulando os seguintes pedidos:
«A.) Que seja declarado válido e em vigor à data da incapacidade, o contrato de seguro do ramo vida, associado ao financiamento imobiliário, titulado pela apólice nº …, que celebrou com a Ré, destinado a garantir o capital máximo em divida em cada anuidade, em caso morte, invalidez total e permanente, por acidente, ou invalidez absoluta e definitiva, por doença.
B.) Seja a Ré, obrigada a restituir os prémios de seguros válidos, desde a data em que foi diagnosticada a doença e incapacidade de 67%, que incapacita o Autor, até a data da propositura da acção, com juros a partir da citação, à taxa legal.
C.) Seja a Ré, obrigada a restituir todas as quantias pagas até a presente data, pagas ao Banco Millennium, BCP, desde a data que foi diagnosticada a doença e incapacidade de 67% que o incapacita e até a propositura da acção, com juros a partir da citação, à taxa legal.
D.) Pagar as quantias que se vierem a liquidar, correspondente as mensalidades que sejam pagas ao Banco Millennium, BCP , a partir da data da instauração da acção.
 E.) Seja pago ao Banco Millennium, BCP, a parte do capital que a mesma mutuou, e que ainda tiver em dívida.
F.) Seja a Ré, condenada a pagar a quantia de € 10.000 ( dez mil euros ) pelos danos não patrimoniais sofridos pelo autor
Alegou, em suma, que:
- Em 7.12.2011, celebrou com o Banco Millennium BCP um contrato de mútuo para aquisição de habitação no valor aproximado de 70 000,00 €;
- Associado a esse empréstimo, celebrou com a Ré um contrato de seguro de ramo vida, a fim de garantir o pagamento do capital em dívida ao Banco em caso de morte, invalidez permanente ou invalidez por doença;
- Em maio de 2012, foi-lhe diagnosticada uma patologia do aparelho respiratório, estando desde agosto de 2012 sem exercer qualquer atividade;
- Em 2013, foi-lhe fixada a incapacidade de 67%, na sequência do que acionou o seguro em 28.2.2014;
- Tendo a Ré respondido em 6.10.2014 que o contrato padece de anulabilidade com fundamento na omissão pelo Autor, à data da celebração, do seu real estado de saúde;
- A posição assumida pela Ré vem-lhe causando insónias, ansiedade e depressão.
3. A Ré apresentou contestação, na qual deduziu as exceções da prescrição e da anulabilidade do contrato de seguro por falsas declarações, a alegou que a invalidez do Autor está excluída da apólice de seguro porque decorre de uma patologia pré-existente e impugnou os danos morais do Autor.
4. O Autor apresentou «requerimento» de resposta à matéria das exceções.
5. A Ré considerou o «requerimento» inadmissível, pediu o seu desentranhamento e afirmou relegar para momento posterior a resposta.
6. O Tribunal a quo proferiu o seguinte despacho:
«Resposta às excepções:
O articulado de resposta do autor às excepções contidas na defesa da ré ficará nos autos ao abrigo do disposto nos artºs 547º e 6º, nº 1 do Código de Processo Civil, uma vez que facilita, agilizando-o, o saneamento da acção.
Segundo se julga, esse articulado mantém-se nos limites do contraditório sobre as excepções arguidas, não constituindo o artº 25º do mesmo a invocação de um facto novo superveniente, uma vez que a alegação é especulativa ou meramente hipotética atenta a sua formulação: “por mera hipótese académica poderia admitir-se que este não compreendeu o conteúdo e alcance das perguntas a si dirigidas”.
Não existe, assim, qualquer direito de resposta que assista à ré sobre a matéria desse articulado.
Notifique.»
7. Convidado a concretizar os pedidos genéricos constantes das alíneas B) e C), o Autor formulou os seguintes pedidos:
B) Seja a Ré, obrigada a restituir ao Autor, o valor global de 247,27 €, liquidados por este àquela, a título de prémios de seguros válidos sob os empréstimos bancários n.ºs … e …, desde a data em que foi diagnosticada a doença e incapacidade de 67%, que incapacita o Autor, até à data da propositura da ação, acrescidos de juros a partir da citação, à taxa legal;
C) Seja a Ré obrigada a restituir ao Autor todas as quantias por ele pagas a título de empréstimos bancários n.ºs … e …, ao Banco Millennium, BCP, desde a data que foi diagnosticada a doença e incapacidade de 67% que o incapacita , até a propositura da ação, no valor global de 1 642,81 €, com juros a partir da citação, à taxa legal.
8. Dispensada a audiência prévia, identificou-se o seguinte objeto do litígio:
«Cumpre aferir da validade do contrato de seguro celebrado entre o autor e a ré, e, afirmada esta, se o sinistro participado se mostra, ou não, excluído da cobertura contratada.
Importando também averiguar se o autor tem direito à restituição das prestações do empréstimo que pagou ao banco mutuante e, bem assim, dos prémios de seguro que satisfez à ré, desde a data do sinistro até à data da propositura da acção e desta data em diante. E ainda seja restituída a parte do empréstimo em dívida ao banco.
Saber se o autor tem direito a ser ressarcido de danos não patrimoniais que alegou
9. Enunciaram‑se os seguintes temas da prova:
1) A pedido da Ré, o Autor realizou exame global de saúde antes da subscrição da proposta de seguro.
2) Exame que revelou encontrar-se o Autor sem quaisquer problemas de saúde.
3) O Autor sempre deu conhecimento à Ré do agravamento do seu estado de saúde.
4) Vendo-se sem poder trabalhar e angariar meios para cumprir com os pagamentos ao banco, o Autor passou várias noites sem dormir.
5) Levando-o essa situação a um estado de angústia, ansiedade, depressão, e sofrimento.
6) Aquando da adesão à apólice do contrato de seguro, o Autor subscreveu a seguinte «Declaração de Saúde»: «A(s) Pessoa(s) Segura(s) declara(m):
- Encontrar-se em bom estado de saúde e não se encontrar de baixa clínica por doença ou acidente nem ter interrompido a sua actividade laboral durante mais de 1 mês nos últimos 3 anos, por doença ou acidente.
- Nunca lhe ter sido diagnosticada ou tratada nenhuma das seguintes situações:
a) Tumores malignos ou benignos;
b) Doenças de sangue, anemia, linfomas, etc.;
c) Doenças cardíacas ou circulatórias, hipertensão arterial, angina de peito, etc.;
d) Diabetes, colesterol elevado ou outras doenças endócrinas: tiroideia, etc.;
e) Doenças do tubo digestivo, fígado, pâncreas, etc.;
f) Doenças do foro respiratório, asma, bronquite, etc.;
g) Doenças do foro urológico, rins, bexiga, próstata, etc.;
h) Acidente vascular cerebral, epilepsia ou qualquer outra doença ou perturbação do sistema nervoso;
i) Sida ou teste positivo para o HIV I ou II;
j) Doenças reumatismais ou osteoarticulares.
- Não apresentar sequelas de doenças ou acidentes.
- Não ter sido submetido, nem ter expectativas de vir a ser submetido, no prazo de 6 meses, a alguma intervenção cirúrgica
7) E declarou, sob a epígrafe «Declaração Final», que:
«O Tomador do Seguro e o candidato a Pessoa Segura declaram que são residentes em Portugal, estão conscientes de que as informações prestadas servem de base ao contrato de seguro e que todas as respostas e dados fornecidos estão completos e são verdadeiros. Reconhecem e aceitam que eventuais omissões, inexactidões e falsidades no que respeita a dados de fornecimento quer obrigatório, quer facultativo, são da sua responsabilidade e poderão ter as consequências previstas na lei e contempladas no artigo 6º das Condições Gerais do Seguro de Vida Individual entregues com a assinatura desta Proposta».
8) O Autor respondeu negativamente às seguintes questões constantes do ponto 5 do referido «Questionário Médico»:
«Sofre ou sofreu de alguma(s) doença(s) relacionadas com:
(...) b) Diabetes, Doenças da Tiróide, Colesterol elevado?
c) Aparelho Cardiovascular, Hipertensão Arterial, Sopros, Febre Reumática, Varizes, Sistema Circulatório?
d) Aparelho Respiratório, Asma, Bronquite, Tuberculose, Doenças Pulmonares?
(...) j) Doenças Osteoarticulares e Reumatismais: Artrose, Artrite Reumatoide?
(...) n) Outras doenças não mencionadas atrás? Especifique.»
9) O autor respondeu negativamente às seguintes questões constantes do ponto 9 do referido «Questionário Médico», é perguntado o seguinte:
«Está medicado em relação a alguma Patologia? Em caso afirmativo descrimine.»
10) Em 30.6.2011, o Autor sofria de acordo com
«Estudo Radiológico da Coluna Cervical
Ligeiro esboço osteofitário.
Ligeira diminuição da amplitude dos espaços inter-vertebrais9 de C3/34 e C4/C5.
Alinhamento posterior conservado.
Estudo Radiológico da coluna Dorsal
Ligeiro esboço osteofitário.
Ligeira diminuição dos espaços inter-vertebrais11 a nível anterior.
Alinhamento posterior conservado.
Estudo Radiológico da Coluna Lombar
Normal morfologia / estrutura dos corpos vertebrais.
Espaços inter-vertebrais íntegros.
Alinhamento posterior conservado.
Sem sinais de listesis.
Hiperlordose lombar.»
11) Em 30.6.2011, o Autor padecia das patologias descritas sob alínea j) à data da adesão ao seguro.
12) Em julho de 2010, foram diagnosticadas ao Autor: obesidade e diabetes tipo II.
13) O Autor omitiu à Ré sofrer de insuficiência respiratória, venosa e cardíaca.
14) O Autor apresentou as primeiras complicações do foro respiratório em 18.5.2012 e 27.6.2012.
10. Após a audiência final, proferiu-se sentença, da qual consta o seguinte dispositivo:
«a) condenar a ré a pagar ao autor a quantia de € 1.667,00 que este entregou a título de juros e capital ao Millennium BCP.
b) condenar a ré a entregar ao Millennium BCP, a título de indemnização pelo sinistro que afectou o autor, em cumprimento do contrato de seguro titulado pela apólice nº …, de 07.12.2011, com efeitos reportados a 01.12.2011, o capital devido, à data de 27.02.2014, deduzido das quantias pagas pelo autor entre Fevereiro de 2014 e Outubro de 2017, no âmbito dos contratos de empréstimo nºs … e …, até ao limite do capital seguro, mediante apuramento da quantia a liquidar em incidente próprio.
c) absolver a ré do demais peticionado.
d) condenar autor e ré nas custas na proporção do respectivo decaimento – art.º 527º/1 do nCPC..»
11. Inconformada com o assim decidido, a Ré interpôs recurso de apelação da sentença, apresentando as seguintes CONCLUSÕES:
«1. O Tribunal a quo errou no julgamento de facto ao não dar como integralmente provado o teor do ponto 7 dos temas da prova, tal como impunha a prova produzida, designadamente porque com o requerimento com a refª nº 28239610, de 19.02.2018, o autor não impugnou o documento nº 8 da contestação, nem tão pouco alegou - ali ou em qualquer outro momento processual - que a ré não o informou que a falsidade, omissão ou inexactidão das informações que estava a prestar tinham como consequência a anulabilidade do contrato de seguro.
2. Mas mais, o autor também não alegou que a assinatura constante na proposta de seguro - o mencionado documento nº 8 da contestação — não lhe pertencia, sendo que só na página da referida declaração final o autor apôs a sua assinatura 4 vezes, duas na qualidade de tomador do seguro e as outras duas na qualidade de pessoa segura.
3. Nos termos do disposto no nº 1 do art. 374º e dos nºs 1 e 2 do art. 376º do CC, os factos contantes da "declaração final", concretamente, que o autor tinha conhecimento de que a falsidade, omissão ou inexactidão das declarações/informações por si prestadas implicavam a anulabilidade do contrato de seguro consideram-se provados.
4. Ainda que o segurado tivesse assinado a declaração sem consciência do seu alcance - no que não se concede - sempre se dirá que não poderia o autor opor essa circunstância à ora ré.
5. Em face do exposto, deverá a decisão sobre o ponto nº 17 da matéria de facto provada ser revogada e substituída por uma outra que julgue provado que o autor,
«E declarou, sob a epígrafe "Declaração Final", o que:
"O Tomador do Seguro e o candidato a Pessoa Segura declaram que são residentes em Portugal, estão conscientes de que as informações prestadas servem de base ao contrato de seguro e que todas as respostas e dados fornecidos estão completos e são verdadeiros. Reconhecem e aceitam que eventuais omissões, inexactidões e falsidades no que respeita a dados de fornecimento quer obrigatório, quer facultativo, são da sua responsabilidade e poderão ter as consequências previstas na lei e contempladas no artigo 6º das Condições Gerais do Seguro de Vida Individual entregues com a assinatura desta Proposta", tal como consta do tema 7 dos temas da prova.
6. O Tribunal a quo errou no julgamento de facto ao não considerar provado que a omissão do réu sobre o seu verdadeiro estado de saúde foi intencional.
7. Com efeito, tendo o autor requerido a aposentação por incapacidade dois meses antes da subscrição do contrato de seguro e, para aquele efeito, ter relatado pormenorizadamente não só as patologias de que padecia, como a situação de baixa médica em que se encontrava naquela altura, evidente se torna que ao não ter o mesmo grau de cuidado na celebração do contrato de seguro, fê-lo propositadamente.
8. É o que resultado do confronto documentos notificados às partes por notificação de 22.03.2019, com a ref.ª nº 385437316 (designadamente o relatório médico e o relatório médico do Dr. LS…) com as declarações prestadas na proposta de seguro que constitui o documento nº 8 da contestação.
9. As regras da lógica e da experiência não permitem que se conclua que quem adopta dois critérios distintos para responder às mesmas perguntas não esteja a agir de forma intencional.
10. A mesma dualidade de critérios não permite que se conclua que se tratou de uma hipotética falta de consciência do alcance daquilo que se estava a declarar.
11. Atente-se, ainda, nas declarações de parte do autor, durante as quais este esclareceu que as respostas ao questionário médico, ainda que preenchidas pelo mediador, foram-no de acordo com as informações do próprio autor - as declarações de parte do autor encontram-se gravadas em Sistema H@bilus Media Studio com início no minuto 00.00m.01s e final ao minuto 00h.32m.58s.
12. E, quando questionado sobre a celebração do contrato em causa nos autos, o autor declarou, sem sequer ser perguntado, que se estivesse doente não teria mudado de seguradora. Daqui deverá extrai-se as devidas ilações.
13. As regras da lógica e da experiência impõem concluir que quem profere semelhante afirmação fá-lo, precisamente, porque sabia perfeitamente que para a seguradora é importante que a pessoa segura não esteja doente.
14. Ora, se a mesma pessoa que tem esta consciência responde ao questionário médico da forma que o autor respondeu — não verdadeira — então, é porque o fez propositadamente. E este propósito, esta intencionalidade demonstram o dolo.
15. Em face do exposto, deverá ser aditado à matéria de facto um novo ponto com a seguinte redacção: "O autor omitiu da ré as patologias de que sabia ser portador intencionalmente".
16. Embora não conste expressamente da matéria de facto não provada, o Tribunal a quo parece ter entendido que a ré, ora apelante, não demonstrou que as informações omitidas pelo autor teriam influído na celebração do contrato.
17. O segurado celebrou com a ré um contrato de seguro de vida com cobertura complementar de invalidez total e permanente e que, à data em que o celebrou, já tinha pedido a reforma por incapacidade e já estava de baixa médica há 9 meses.
18. As regras da lógica e da experiência, e sem necessidade de qualquer outra consideração, impõem que se conclua que, com toda a certeza, a ré não teria pelo menos aceite contratar a cobertura complementar de invalidez total e permanente pois, aceitou — sem saber — segurar um risco que já se tinha verificado.
19. Em todo o caso, o depoimento da testemunha NM…, a este propósito não deixou margem para dúvidas, a ré não teria aceite, pelo menos não nos mesmos termos - o depoimento da testemunha encontra-se gravado em Sistema H@bilus Media Studio com inicio no minuto 00.01m.07s e final ao minuto 00h.05m.42s.
20. Mas mais, do documento nº 8 petição inicial decorre que a ré teria recusado a celebração do contrato, pois foi isso mesmo que informou o segurado por carta de 06.10.2014, ainda antes de ter comunicado a anulação do contrato.
21. Em face do exposto, deverá ser aditado à matéria de facto provada um novo ponto, com a seguinte redacção: "Caso o autor tivesse revelado o seu verdadeiro estado de saúde, a ré não teria aceite celebrar o contrato".
22. Do exposto decorre que o segurado prestou falsas declarações aquando da subscrição do contrato e que o fez de forma intencional e dolosa, o que determina a anulabilidade do contrato.
23. A anulabilidade do contrato de seguro tem por consequência a sua ineficácia e, subsequentemente, a desobrigação da apelante de efectuar o pagamento da prestação convencionada no contrato de seguro.
24. Em face do exposto, deve a decisão ora recorrida ser revogada e substituída por uma outra que, alterando a matéria de facto ora impugnada, julgue a acção improcedente, por não provada e, em consequência, absolva a ré, ora apelante, dos pedidos.
25. Caso assim não se entenda, no que não se concede, sempre se dirá que a douta sentença recorrida é nula, nos termos e para os efeitos da alínea d) do nº 1 do art. 615º do CPC.
26. O autor não alegou que a ré não cumpriu o dever de informação, por sua vez, a ré não tinha por que alegar que o fez, na medida em que tal facto não é essencial à procedência dos fundamentos invocados na defesa.
27. Pelo que, ao decidir pela improcedência da defesa da ré com base num facto que não foi objecto do litígio nem resultou da instrução, a douta sentença recorrida violou, não só o princípio do dispositivo como, ainda, o princípio do contraditório, ambos estruturantes do processo civil.
28. Aliás, e em face do exposto, forçoso é concluir que a douta sentença ora recorrida constitui uma decisão surpresa.
29. Assim, o Tribunal a quo conheceu de uma questão que não foi suscitada pelas partes e que não adveio ao seu conhecimento pela instrução da causa, pelo que a douta sentença recorrida é nula, nos termos e para os efeitos do disposto na alínea d) do nº 1 do art. 615º do CPC.
30. Ao decidir como decidiu o Tribunal a quo violou os arts. 24º e 25º do RJCS, os arts, 374º, nº 1 e 376º, nºs 1 e 2 do CC, o art. 3º, nºs 1 e 3, o art. 5º do CPC
Propugna, por isso, a Apelante que seja dado provimento ao recurso e, em consequência, seja revogada a decisão recorrida e substituída por uma outra que absolva a Apelante dos pedidos.
12. O Autor não apresentou alegação de resposta.
13. O recurso de apelação foi admitido com subida de imediato, nos próprios autos e efeito meramente devolutivo.
14. O Tribunal a quo pronunciou-se sobre a nulidade por excesso de pronúncia, considerando que «Analisados os argumentos da ré não lhe assiste razão, salvo melhor opinião, uma vez que a matéria de facto sobre a qual o tribunal se pronunciou foi alegada pelo próprio autor quanto ao âmbito da informação que lhe foi fornecida, não colhendo, pois, a arguição de nulidade.»
Colhidos os vistos legais, cumpre apreciar e decidir.
*
II - Âmbito do recurso de apelação
Sendo o objeto do recurso balizado pelas conclusões da Recorrente (artigos 635.º, n.º 4, 639.º, n.º 1, do CPC), ressalvadas as questões que sejam do conhecimento oficioso do tribunal (artigo 608.º, n.º 2, ex vi do artigo 663.º, n.º 2, do mesmo diploma), a solução a alcançar pressupõe a análise das seguintes questões:
- Da nulidade da sentença por excesso de pronúncia, ao abrigo do artigo 615.º, n.º 1, do CPC, no segmento em que considera que a Ré não cumpriu o seu dever de informação e extrai as consequências de tal incumprimento;
- Do erro de julgamento na decisão sobre a matéria de facto, designadamente,
. quanto ao ponto 17 da factualidade provada, na parte em que restringiu a factualidade do ponto 7 dos Temas da Prova;
. do aditamento à matéria de facto da seguinte factualidade: «O autor omitiu da ré as patologias de que sabia ser portador intencionalmente»;
. do aditamento à matéria de facto do seguinte ponto: «Caso o autor tivesse revelado o seu verdadeiro estado de saúde, a ré não teria aceite celebrar o contrato».
- Do enquadramento jurídico, devendo aquilatar-se, em particular, das seguintes questões:
- da anulabilidade do contrato de seguro por incumprimento doloso do dever de informação pelo Autor;
- do direito à «cessação do contrato» por declarações omissas por negligência;
- da exclusão do sinistro do âmbito de cobertura do contrato de seguro de vida e de invalidez permanente por patologias pré-existentes do Autor.
*
III - Fundamentação
Fundamentação de facto
São os seguintes os factos considerados provados na sentença recorrida [acrescenta-se os pontos 6 e 8, ao abrigo dos artigos 663.º,n.º 2, e 607.º, n.º 4, 2.ª parte, do CPC, e altera-se os pontos 17 e 23, em conformidade com a decisão sobre a impugnação da matéria de facto]:
1. Por escritura pública outorgada em 20.8.2002, no Cartório Notarial da Moita, FJ… e FJa…, adquiriram, pelo preço de 67 500,00 €, o prédio urbano composto de rés-do-chão para habitação, dependência e quintal, sito na Travessa …, n.ºs …, … e …, da freguesia de Gaio-Rosário, concelho da Moita, inscrito na matriz sob o art.º …, com o valor patrimonial de 155,47 €, descrito na Conservatória do Registo Predial da Moita sob o n.º …, da mesma freguesia [alínea a)].
2. No mesmo ato, o Autor e esposa confessaram-se devedores da quantia de 60 000,00 € emprestada pelo Banco Comercial Português para aquisição do imóvel acima descrito [alínea b)].
3. Pela apólice de seguro de vida n.º …, de 7.12.2011, com efeitos reportados a 1.12.2011 (data da subscrição da proposta pelo autor) encontra-se garantido pela MetLife Europe d.a.c. – Sucursal em Portugal, o pagamento do capital em dívida, à data do sinistro, até ao limite de 49 970,78 €, do crédito concedido pelo Banco Comercial Português, em que este figura como beneficiário irrevogável, e em que é tomador e segurado FJ… e segurada FJa…, em caso de morte/invalidez total permanente, por acidente ou invalidez por doença, de qualquer um destes [alínea c)].
4. Dispõe a cláusula 2.ª das Condições Especiais:
«Para efeitos desta cobertura complementar, entende-se por: a) INVALIDEZ TOTAL E PERMANENTE – situação em que, em consequência de doença ou de acidente, a Pessoa Segura fique total e definitivamente incapaz de exercer qualquer profissão compatível com os seus conhecimentos e aptidões.» [alínea d)].
5. Dispondo a cláusula 3.1. das Condições Especiais (complementar de invalidez total e permanente):
«Através desta cobertura complementar o Segurador garante o pagamento, por antecipação, do capital seguro em caso de morte expresso nas condições particulares se a pessoa segura ficar em situação de invalidez total e permanente por motivo de doença ou de acidente (...)».
E a cláusula 3.1. das Condições Gerais estabelece que:
«O(s) risco(s) cobertos no Artigo 2º não está(ão) coberto(s) no(s) seguinte(s) caso(s):
(…) e) Patologia, lesão ou deficiência preexistente, de que a Pessoa Segura seja portadora à data da entrada em vigor da Apólice».
6. Dispondo a cláusula 3.3. das Condições Especiais (complementar de invalidez total e permanente):
«É condição necessária e suficiente para o reconhecimento da invalidez a verificação simultânea dos seguintes requisitos: a) ser clinicamente constatada, com fundamento em elementos objectivos, por um médico da Seguradora, não sendo possível esperar qualquer melhoria do estado de saúde da Pessoa Segura; b) corresponder a um grau de desvalorização igual ou superior a 60%, de acordo com a Tabela Nacional de Incapacidades Permanentes em Direito Civil; c) ser reconhecida previamente pela Instituição da Segurança Social pela qual a Pessoa Segura se encontra abrangida; d) ser precedida de uma incapacidade absoluta (completa impossibilidade física, clinicamente comprovada, de exercer a sua profissão ou ocupação profissional) e durar mais de 180 dias consecutivos, sendo esse período alargado para dois anos, nos casos de alienação mental ou perturbações psíquicas.» [alínea e)]».
[6A. Consta do artigo 6.º das condições gerais do contrato, sob a epígrafe «Declaração inicial de risco», que:
«6.1 - O Tomador do Seguro e pessoa Segura estão obrigados, antes da celebração da contrato, a declarar com exactidão todas as circunstâncias que conheçam e razoavelmente devam ter por significativas para a apreciação do risco pelo Segurador.
6.2 - Em caso de incumprimento doloso do dever referido em 6.1, o contrato é anulável mediante declaração enviada pelo Segurador ao Tomador do Seguro:
a) Não tendo ocorrido sinistro, esta declaração deve ser enviada no prazo de 3 meses a contar do conhecimento daquele incumprimento;
b) No caso referido na alínea a), o Segurador tem direito ao prémio devido até o final do prazo, salvo se tiver ocorrido dolo ou negligência grosseira do Segurador ou do seu representante;
c) Em caso de sinistro ocorrido antes de o Segurador ter tido conhecimento do incumprimento doloso ou no decurso do prazo previsto na alínea a), o sinistro não será coberto e aplicar-se-á o regime geral da anulabilidade;
d) Em caso de dolo do Tomador do Seguro ou da Pessoa Segura com o propósito de obter uma vantagem, o prémio é devido até ao termo do contrato.
6.3 - Em caso de incumprimento com negligência do dever referido em 6,1, o Segurador pode, mediante declaração a enviar ao Tomador do Seguro no prazo de 3 meses a contar do seu conhecimento:
a) Não tendo ocorrido sinistro, propor uma alteração do contrato, fixando um prazo, não inferior a 14 dias, para o envio da aceitação ou, caso a admita, da contraproposta, ou fazer cessar o contrato, demonstrando que, em caso algum, celebra contratos para a cobertura de riscos relacionados com o facto omitido ou declarado inexactamente;
b) No caso referido na alínea a), o contrato cessa os seus efeitos 30 dias após o envio da declaração de cessação ou 20 dias após a recepção pelo Tomador do Seguro da proposta de alteração, caso este nada responda ou a rejeite;
c) No caso referido na alínea b), o prémio é devolvido pro rata temporis;
d) Em caso de sinistro ocorrido antes da cessação ou da alteração do contrato, cuja verificação ou consequências tenham sido influenciadas por facto relativamente ao qual tenha havido omissões ou inexactidões negligentes:
i. O Segurador cobre o risco na proporção da diferença entre o prémio pago e o prémio que seria devido, caso, aquando da celebração do contrato, tivesse conhecida o facto omitido ou declarado inexactamente;
ii. O Segurador não cobre o risco e fica apenas vinculado à devolução do prémio, se demonstrar que, em caso algum, teria celebrado o contrato se tivesse conhecido o facto omitido ou declarado inexactamente.»]
7. Em 1.9.2012, o Autor foi aposentado, por incapacidade, pela Caixa Geral de Aposentações [alínea f)].
8. Tendo-lhe sido fixada, em 27.4.2014, por uma Junta Médica uma incapacidade de 67%, incapacidade considerada instalada desde 2013 [,constando do quadro que definiu tal incapacidade, por referência à TNI - Anexo I, aprovada pelo Decreto-Lei n.º 352/2007, de 23.10, que o utente é portador das seguintes deficiências:
- Capítulo VII, grau II;
- Capítulo VI, 2.2;
- Capítulo III, 7;
- Capítulo X, grau II, conforme documento n.º 5, junto com a petição inicial]
[alínea g)].
9. Em 28.2.2014, o Autor participou o sinistro à Ré, tendo esta respondido conforme consta da carta, datada de 6.10.2014 (junta como cópia a fls. 17), cujo conteúdo se dá aqui por integralmente reproduzido [alínea h)].
10. A Ré por carta datada de 13.10.2014 (junta como cópia a fls. 18) comunicou ter concluído que, à data da subscrição da apólice n.º …, o Autor não informou a Ré sobre o seu verdadeiro estado de saúde na proposta de seguro que serviu de base à emissão da apólice, o que teria condicionado a aceitação do risco e que a apólice se encontrava anulada desde 1.10.2014 [alínea i)].
11. Em 3.2.2013, foi emitida a declaração que consta de fls. 14v subscrita pela médica MJ…, da qual consta designadamente que o autor sofre de: «(...) asma brônquica com hipersensibilidade a ácaros - classe 3 - rinite alérgica e importante sinusite maxilar esq. O estudo funcional respiratório revelou a existência de alteração ventilatória obstrutiva grave, envolvendo grandes e pequenas vias aéreas. As exacerbações são frequentes no decurso de infecções respiratórias, cursando frequentemente com insuficiências respiratória parcial (...)» [alínea j)].
12. Relativamente ao empréstimo n.º …, o Autor, entre fevereiro de 2014 e outubro de 2017, pagou 285,45 € de capital e 505,42 € a título de juros. Ascendendo o valor das mensalidades devidas em 2018 a 24,19 €. Sendo o capital emprestado em dívida, desde agosto de 2018, de 4 265,54 € [alínea k)].
13. Relativamente ao empréstimo n.º …, entre fevereiro de 2014 e outubro de 2017, o autor pagou 851,94 € de juros [alínea l)].
14. Ascendendo o valor das mensalidades devidas no ano de 2018, a 130,00 € (até 20.6.2018) e, a partir de 20.7.2018, 199,94 €, sendo devidos 151,29 € relativos à prestação de agosto. Sendo o capital emprestado em dívida, desde agosto de 2018, de 26 573,14 € [alínea m)].
15. O Autor liquidou o valor de 247,27 €, a título de prémios de seguros, devidos entre fevereiro e setembro de 2014 [alínea n)].
16. Aquando da adesão à apólice do contrato de seguro, o Autor subscreveu a seguinte «Declaração de Saúde»: «A(s) Pessoa(s) Segura(s) declara(m):
- Encontrar-se em bom estado de saúde e não se encontrar de baixa clínica por doença ou acidente nem ter interrompido a sua actividade laboral durante mais de 1 mês nos últimos 3 anos, por doença ou acidente.
- Nunca lhe ter sido diagnosticada ou tratada nenhuma das seguintes situações:
a) Tumores malignos ou benignos;
b) Doenças de sangue, anemia, linfomas, etc.;
c) Doenças cardíacas ou circulatórias, hipertensão arterial, angina de peito, etc.;
d) Diabetes, colesterol elevado ou outras doenças endócrinas: tiroideia, etc.;
e) Doenças do tubo digestivo, fígado, pâncreas, etc.;
f) Doenças do foro respiratório, asma, bronquite, etc.;
g) Doenças do foro urológico, rins, bexiga, próstata, etc.;
h) Acidente vascular cerebral, epilepsia ou qualquer outra doença ou perturbação do sistema nervoso;
i) Sida ou teste positivo para o HIV I ou II;
j) Doenças reumatismais ou osteoarticulares.
- Não apresentar sequelas de doenças ou acidentes.
- Não ter sido submetido, nem ter expectativas de vir a ser submetido, no prazo de 6 meses, a alguma intervenção cirúrgica.» [ponto 6) dos temas da prova].
17. [Sob a epígrafe «Declaração Final» consta que] Alterado
O Autor declarou, sob a epígrafe «Declaração Final», que:
«O Tomador do Seguro e o candidato a Pessoa Segura declaram que são residentes em Portugal, estão conscientes de que as informações prestadas servem de base ao contrato de seguro e que todas as respostas e dados fornecidos estão completos e são verdadeiros. Reconhecem e aceitam que eventuais omissões, inexactidões e falsidades no que respeita a dados de fornecimento quer obrigatório, quer facultativo, são da sua responsabilidade e poderão ter as consequências previstas na lei e contempladas no artigo 6º das Condições Gerais do Seguro de Vida Individual entregues com a assinatura desta Proposta» [ponto 7) dos temas da prova].
18. O Autor respondeu negativamente às seguintes questões constantes do ponto 5 do referido «Questionário Médico»:
«Sofre ou sofreu de alguma(s) doença(s) relacionadas com:
(...) b) Diabetes, Doenças da Tiróide, Colesterol elevado?
c) Aparelho Cardiovascular, Hipertensão Arterial, Sopros, Febre Reumática, Varizes, Sistema Circulatório?
d) Aparelho Respiratório, Asma, Bronquite, Tuberculose, Doenças Pulmonares? (...)
j) Doenças Osteoarticulares e Reumatismais: Artrose, Artrite Reumatoide?
(...) n) Outras doenças não mencionadas atrás? Especifique.» [ponto 8) dos temas da prova].
19. O Autor respondeu negativamente às seguintes questões constantes do ponto 9 do referido «Questionário Médico», é perguntado o seguinte:
«Está medicado em relação a alguma Patologia? Em caso afirmativo descrimine.» [ponto 9) dos temas da prova].
20. Em 30.6.2011, o Autor sofria de acordo com:
«Estudo Radiológico da Coluna Cervical
Ligeiro esboço osteofitário.
Ligeira diminuição da amplitude dos espaços inter-vertebrais9 de C3/34 e C4/C5.
Alinhamento posterior conservado.
Estudo Radiológico da colina Dorsal.
Ligeiro esboço osteofitário.
Ligeira diminuição dos espaços inter-vertebrais 11 a nível anterior.
Alinhamento posterior conservado.
Estudo Radiológico da Coluna Lombar
Normal morfologia / estrutura dos corpos vertebrais.
Espaços inter-vertebrais íntegros.
Alinhamento posterior conservado.
Sem sinais de listesis.
Hiperlordose lombar.» [ponto 10) dos temas da prova]
21. O Autor padecia das patologias descritas sob a alínea j) do ponto 18) à data da adesão ao seguro. [ponto 11) dos temas da prova]
22. Em julho de 2010, foi diagnosticada ao Autor, pelo menos, obesidade. [ponto 12 dos temas da prova]
23. [O Autor omitiu à Ré sofrer de insuficiência respiratória, venosa e cardíaca. [ponto 13) dos temas da prova] Alterado
O Autor omitiu intencionalmente à Ré a informação de que padecia de insuficiência respiratória, venosa e cardíaca.
São os seguintes os factos considerados não provados na sentença recorrida:
24. A pedido da Ré, o Autor realizou exame global de saúde antes da subscrição da proposta de seguro [ponto 1) dos temas da prova].
25. Exame que revelou encontrar-se o Autor sem quaisquer problemas de saúde [ponto 2) dos temas da prova].
26. O Autor sempre deu conhecimento à Ré do agravamento do seu estado de saúde [ponto 3) dos temas da prova].
27. Vendo-se sem poder trabalhar e angariar meios para cumprir com os pagamentos ao banco, autor passou várias noites sem dormir [ponto 4) dos temas da prova].
28. Levando-o essa situação a um estado de angústia, ansiedade, depressão, e sofrimento [ponto 5) dos temas da prova].
29. O Autor apresentou as primeiras complicações do foro respiratório em 18.5.2012 e 27.6.2012 [ponto 14) dos temas da prova].
Apreciação do recurso
Da nulidade da sentença por excesso de pronúncia
a) A Apelante alega que a sentença recorrida é nula, por excesso de pronúncia, nos termos do artigo 615.º, n.º 1, alínea d), do CPC.
Argumenta, para tanto, que o princípio do dispositivo determina que o processo é das partes e que a decisão do juiz é limitada pelo objeto do litígio que estas fixaram, ainda que com liberdade para aplicar o Direito em moldes diferentes do alegado, e sem olvidar o cumprimento do princípio do contraditório.
Em particular, sustenta que não foi alegada nem resultou da instrução da causa a violação do dever de informação por parte da Ré.
Conclui que, ao decidir pela improcedência da defesa da Ré com base num facto que não foi objeto do litígio nem resultou da instrução, a sentença recorrida desrespeitou os princípios do dispositivo e do contraditório, ambos estruturantes do processo civil, e incorreu na nulidade prevista na alínea d) do n.º 1 do artigo 615.º do CPC.
b) Preceitua o artigo 615.º, n.º 1, alínea d), do CPC que a sentença é nula quando o juiz deixe de pronunciar-se sobre questões que devesse apreciar ou conheça de questões de que não podia tomar conhecimento.
Trata-se de um vício formal, em sentido lato, traduzido em error in procedendo ou erro de atividade.
O excesso de pronúncia gerador da nulidade em apreço, refere-se aos pontos essenciais de facto e de direito que constituem o centro do litígio, quer seja no que respeita ao pedido como às exceções.
Na verdade, o excesso de pronúncia previsto no artigo 615.º, n.º 1, alínea c), do CPC, pode dizer respeito ao julgamento de facto.
Com efeito, antes da entrada em vigor do atual código, a pronúncia exorbitante do acórdão que decidia a questão de facto era subsumida a uma norma especial hoje desaparecida (artigo 653.º, n.º 3, do CPC de 1961), pelo que não é correto recuperar sem ressalvas a doutrina então desenvolvida em torno deste tema, que excluía do leque das nulidades tal situação (cf. Alberto dos Reis, Código de Processo Civil Anotado, Vol. IV, Coimbra, Coimbra Editora, 1987 (reimp.), p. 500).
Neste sentido da verificação do excesso de pronúncia, pode consultar-se Miguel Teixeira de Sousa, «Jurisprudência (705)», de 16 de outubro de 2017, disponível em blogippc.blogspot.com, e Paulo Ramos de Faria, in Revista Julgar Online, outubro de 2019, p. 37, nota 66).
Passemos então à apreciação do alegado excesso de pronúncia, ou seja, ao invocado facto de o Tribunal de 1.ª instância se ter pronunciado sobre questão que nenhuma das partes suscitou no processo, excedendo-se, assim, o âmbito da solução do conflito nos limites por elas pedidos.
c) Lê-se na fundamentação de Direito da sentença recorrida:
«Dúvidas não restam, por conseguinte, estarmos em presença de cláusulas contratuais gerais quanto às quais -, nos termos previstos pelo artigo 5º da Lei n.º 446/85 de 25.10 - Lei das Cláusulas Contratuais Gerais, na redacção actual conferida pelo DL n.º 323/2001, de 17/12 -, impende sobre a ré o dever de comunicação ao tomador e segurado, de modo adequado e com antecedência, para que dela tomem conhecimento, recaindo o ónus da prova da comunicação adequada e efectiva sobre a ré.
É certo que o art.º 21º/1 do RJCS estabelece que as informações referidas nos artigos precedentes (art.º 18, 19º e 20º do mesmo diploma legal) devem ser prestadas de forma clara, por escrito e em língua portuguesa, antes do tomador do seguro se vincular. Devendo a proposta de seguro conter uma menção comprovativa de que as informações que o segurador tem de prestar foram dadas a conhecer ao tomador do seguro (art.º 5).
Prevê-se, além do dever especificado no art.º 18º do RJCS, no art.º 22º do mesmo diploma legal, um dever especial de esclarecimento - cfr. artigo 22º do mesmo diploma legal – cabendo ao segurador, segundo o n.º 2 desta norma, não só responder a todos os pedidos de esclarecimento efectuados pelo tomador do seguro, mas ainda chamar a atenção deste para o âmbito da cobertura proposta, nomeadamente exclusões.
A verdade é que não foi provado ou sequer alegado que ré tenha cumprido o dever de informar o autor das obrigações que sobre este impendia contidas nas cláusulas 6.1. e 6.2. das Condições Gerais do Contrato de Seguro antes da respectiva celebração.
Conforme entendimento propugnado no Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça, de 02.012.2013, proferido no processo nº 306/10.0TCGMR.G1.S1, acessível in www.dgsi.pt, os deveres de informação implicam um verbalizar, um esclarecimento real, oral e expresso do "funcionário, do profissional-utilizador", sem necessidade de serem impulsionados pelo cliente.
(…) Ou seja, no que respeita aos contratos de seguro, em particular nos seguros de vida associados ao crédito à habitação, o legislador teve a percepção que a disparidade entre as partes ainda é maior em resultado da realidade socioeconómica e psicológica associada aos contratos de seguro do ramo vida e o contexto em que são celebrados: por um lado, os segurados tendem a não prestar muita atenção ao conteúdo do contrato de seguro, pois é visto como um elemento meramente acessório em relação ao empréstimo, e, por outro lado, as seguradoras, não raras vezes, aproveitando-se desta situação, inserem cláusulas contratuais gerais prejudiciais aos interesses do segurado.”
Com efeito, de acordo com o estatuído no artº 5º que versa sobre o dever de comunicação a cargo do [segurador], o Dec. Lei nº 446/85, de 25 de Outubro, estabelece no seu nº 1 que “As cláusulas contratuais gerais devem ser comunicadas na íntegra aos aderentes que se limitem a subscrevê-las ou a aceitá-las”.
Dispondo o artº 6º/1/2 do Decreto-Lei n.º 446/85, de 25 de Outubro, quanto ao dever de informação que: “O contratante que recorra a cláusulas contratuais gerais deve informar, de acordo com as circunstâncias, a outra parte dos aspectos nelas compreendidos cuja aclaração se justifique (nº1); “Devem ainda ser prestados todos os esclarecimentos razoáveis solicitados” (nº 2).
Mercê da vital importância para o segurado do conhecimento das implicações decorrentes da inobservância do dever prestar informação relevante à seguradora, a ausência de comunicação das cláusulas contratuais nos termos expostos e a violação do dever de informação por banda da seguradora, impõe-se concluir pela eliminação das cláusulas 6.1. e 6.2. do contrato, conforme estipulado no artigo 8.º/b) do Dec. Lei nº 446/85. “(...) Consideram-se excluídas dos contratos singulares: (...) b) As cláusulas comunicadas com violação do dever de informação, de molde que não seja de esperar o seu conhecimento efectivo;(...)”
Rejeita a ré ainda a sua responsabilidade contratual na cláusula 3.1.e) constante das Condições Gerais com o conteúdo constante do ponto 5) dos elenco dos factos provados, segundo a qual “O(s) risco(s) cobertos no Artigo 2º não está(ão) coberto(s) no(s) seguinte(s) caso(s): e) Patologia, lesão ou deficiência pré-existente, de que a Pessoa Segura seja portadora à data da entrada em vigor da Apólice”.
Porém, também neste aspecto não lhe assiste razão, valendo aqui o mesmo fundamento que se acaba de expender, ou seja, não demonstrou a ré, conforme lhe incumbia, ter procedido à explicação do conteúdo de tal clausulado, não bastando ao desiderato pressuposto pelos art.ºs 5º, nº 3 e 6º, nº 1 do DL nº 446/85 a simples obtenção da assinatura da proposta pelo tomador.
Destarte a ré ao não ter cumprido o ónus de demonstrar ter informado cabalmente o autor quanto ao conteúdo do mencionado clausulado, contra si há-de ser decida a acção, segundo o significado essencial do ónus da prova que dita como se deve decidir, quando se não prova certo facto, isto é, há-de este non liquet sobre o thema probandum, resolver-se contra a ré, já que sobre ela impendia aquele ónus - artigos 8º, nº1, do Código Civil e 516º, do Código de Processo Civil – (cfr. Antunes Varela e outros, Manual de Processo Civil, 2ª edição, página 447, Pires de Lima e Antunes Varela, Código Civil Anotado, volume I, 3ª edição, página 304 e o acórdão da Relação de Coimbra de 3/2/1981, in Colectânea de Jurisprudência, 1981, tomo 1, página 32), na medida em que estava em causa facto impeditivo do direito que o autor pretende fazer valer na presente acção - artigos 342º/1 do Código Civil.
Em conformidade, conclui-se pela plena validade do contrato de seguro, pelo que deverá a ré accionar o seguro plasmado na apólice n.º …, associado ao contrato de financiamento celebrado entre o tomador do seguro e o Millennium BCP, beneficiário do seguro. (…)» (negrito e subl. nossos).
Ressalta desta fundamentação, designadamente no segmento por nós assinalado, a estranha asserção de que a Ré não provou um facto que seria impeditivo da procedência das exceções por si própria invocadas.
Conclui-se mesmo na sentença recorrida que, ao não ter cumprido o ónus de demonstrar ter informado cabalmente o Autor quanto ao conteúdo do clausulado, a Ré vê contra si resolvido este non liquet sobre o thema probandum, ao abrigo dos artigos 8.º, n.º 1, do Código Civil e 516.º, do CPC, na medida em que estava em causa facto impeditivo do direito que o Autor pretende fazer valer na presente ação.
Não há dúvida que já o CPC de 1961 consagrara uma conceção de ónus da prova dito objetivo por contraposição ao anterior enquadramento subjetivo.
Esta conceção encontrou arrimo no princípio da aquisição processual e no maior peso conferido ao princípio do inquisitório, que passou a dominar, pelo menos de um ponto de vista potencial, toda a instrução do processo.
Como se sumariou no acórdão do TRP de 1.7.2008 (processo 0823594, in www.dgsi.pt),
«1 – Ónus de prova não se confunde simplesmente com ónus de apresentar prova.
2 – Por força do disposto no art. 515.º do CPC, não existe um verdadeiro ónus de prova subjectivo no processo, pelo menos enquanto o tribunal não se declara em estado de dúvida quanto a determinado facto que deveria ser provado por determinada parte.
3 – Até lá, o que existe é um ónus de prova objectivo, produto dos princípios da aquisição processual e do inquisitório
Com a enunciação dos temas da prova consagrada no artigo 596.º do CPC de 2013 tornou-se mais claro que as normas de distribuição do ónus da prova destinam-se a ser aplicadas quando, no final, o juiz verifica que certos factos essenciais não foram provados, visto que tem, mesmo assim, que proferir a sentença (proibição de uma decisão non liquet - artigo 8.º do Código Civil).
Sem embargo, este ónus de prova objetivo, que constitui uma verdadeira regra de decisão, pressupõe um outro ónus, olvidado na fundamentação em análise - o ónus de alegação.
Preceitua o artigo 5.º do CPC que:
«1 - Às partes cabe alegar os factos essenciais que constituem a causa de pedir e aqueles em que se baseiam as exceções invocadas.
2 - Além dos factos articulados pelas partes, são ainda considerados pelo juiz:
a) Os factos instrumentais que resultem da instrução da causa;
b) Os factos que sejam complemento ou concretização dos que as partes hajam alegado e resultem da instrução da causa, desde que sobre eles tenham tido a possibilidade de se pronunciar;
c) Os factos notórios e aqueles de que o tribunal tem conhecimento por virtude do exercício das suas funções.
3 - O juiz não está sujeito às alegações das partes no tocante à indagação, interpretação e aplicação das regras de direito
 Contrariamente ao que sucedida no artigo 264.º do CPC de 1961, a epígrafe do preceito já não se reporta especificamente ao princípio do dispositivo, especificando antes o ónus de alegação das partes e poderes de cognição do tribunal.
Como é óbvio, o princípio do dispositivo não foi derrogado.
Subjacente ao processo civil está um litígio de direito privado, em regra disponível, sendo as partes as únicas portadoras do interesse na sua propositura em tribunal.
Aliás, o princípio do dispositivo decorre do livre exercício da iniciativa económica privada (artigo 61.º, n.º 1, da Constituição da República Portuguesa - doravante CRP), do direito à propriedade privada (artigo 62.º, n.º 1, da CRP) e da liberdade de iniciativa e de organização empresarial (artigo 80.º, alínea c), da CRP).
São ainda corolários do princípio do dispositivo o artigo 3.º do CPC, que consagra a necessidade do pedido e da contradição e, claro, as alíneas d) e e) do n.º 1 do artigo 615.º do mesmo diploma, as quais continuam a prever a nulidade da sentença que, como vimos, conheça de questões de que não se podia tomar conhecimento ou condene em pedido diverso do formulado.
Como bem esclarecem Lebre de Freitas e Isabel Alexandre, embora o artigo 5.º do CPC «tenha deixado de mencionar na epígrafe o princípio dispositivo (epígrafe do anterior art. 264), substituído pela expressão “ónus de alegação das partes”, é dele que se trata, na vertente do princípio da controvérsia (…), bem como do princípio da legalidade do conteúdo da decisão», consistindo o aspeto principal daquele princípio «em que às partes cabe a formação da matéria de facto da causa, mediante a alegação, nos articulados, dos factos principais, isto é, dos que integram a causa de pedir, fundando o pedido, e daqueles em que se baseiam as exceções perentórias». (in Código de Processo Civil Anotado, Vol. 1.º, 3.ª Ed., 2014, pp. 13 e 14).
Sem prejuízo de os factos da causa poderem ser alegados por qualquer das partes, cada uma tem o ónus de alegação daqueles que têm um efeito que lhes é favorável (alegação dos factos constitutivos do direito a cargo de quem se arroga tê-lo - artigo 552.º, n.º 2, alínea d) - e dos factos impeditivos, modificativos e extintivos a cargo da contraparte - artigos 572.º, alínea c), e 576.º, n.º 3, do CPC).
Ainda que a alteração da epígrafe do preceito tenha feito correr rios de tinta, teve por finalidade conferir maior rigor ao seu conteúdo, moldando-o ao efetivo teor do artigo, que «não trata apenas do princípio dispositivo, nem este é apenas tratado no art. 5º» (cf. Paulo Ramos de Faria e Ana Loureiro, Primeiras Notas ao Novo CPC, Os artigos da reforma, Vol. I, 2.ª Ed., 2014, pp. 34-35).
Em suma, o princípio do dispositivo determina que o processo é das partes e que a decisão do juiz é limitada pelo objeto do litígio, ainda que com a liberdade de aplicar o direito em moldes diferentes do alegado, com a prévia observância do princípio do contraditório.
Regressando ao caso concreto, na petição inicial o Autor fundou os pedidos formulados na celebração de um contrato de seguro com a Ré, associado a um contrato de crédito à habitação, e na verificação de um sinistro coberto por aquele seguro - a invalidez permanente do segurado.
O Tribunal a quo considerou que a Ré violou o dever de informação do Autor das cláusulas contratuais do contrato.
Porém, analisados os articulados, constata-se que o Autor não deduziu qualquer contra‑exceção impeditiva dos direitos de anulação e de «cessação do contrato» ou da invocada exclusão da cobertura do sinistro.
E não haveria motivo para a Ré alegar tal facto, na medida em que não seria essencial à procedência dos fundamentos invocados na sua defesa.
Será um vislumbre de tal alegação o artigo 25.º do «requerimento» de resposta às exceções?
Consta deste artigo que:
«O A. é pessoa de pouco estudos (...) e pela existência confessa da R. da complexidade excessiva na terminologia clínica vertida no aludido contrato de seguro, acompanhado pela ausência de leitura e explicação das cláusulas contratuais por banda da R. ao A., por mera hipótese académica poderia admitir-se que este, não compreendeu o conteúdo e alcance das perguntas a si dirigidas.» (negrito e subl. nossos)
O Tribunal de 1.ª instância tomou uma posição muito clara quanto a esta «alegação», tendo decidido que:
«Resposta às excepções
O articulado de resposta do autor às excepções contidas na defesa da ré ficará nos autos ao abrigo do disposto nos arts. 547º e 6º, nº 1 do Código de Processo Civil, uma vez que facilita, agilizando-o, o saneamento da acção. (…) Segundo se julga, esse articulado mantém-se nos limites do contraditório sobre as excepções arguidas, não constituindo o artº 25º do mesmo a invocação de um facto novo superveniente, uma vez que a alegação é especulativa ou meramente hipotética atenta a sua formulação: “por mera hipótese académica poderia admitir-se que este não compreendeu o conteúdo e alcance das perguntas a si dirigidas”.
Não existe, assim, qualquer direito de resposta que assista à ré sobre a matéria desse articulado.
Notifique.»
Resulta deste despacho que a Ré não tinha «direito de resposta à resposta», precisamente porque o artigo 25.º lança apenas uma «hipótese académica».
O que não é atendível, pois, se nos termos do artigo 574.º, n.º 1, do CPC, o réu deve tomar posição definida perante os factos que constituem a causa de pedir invocada pelo autor, sem dúvida que também o autor deve tomar posição definida perante os factos que integram a exceção invocada pelo réu.
Registe-se que o despacho em apreço não foi objeto de recurso, pelo se formou caso julgado formal (artigo 620.º, n.º 1, do CPC).
Ademais, no decurso do processo, designadamente durante a instrução da causa, nunca foi suscitada a questão do cumprimento do dever de informação por parte da Ré.
Basta a audição dos depoimentos gravados em sistema H@bilus Media Studio para assim concluir.
É paradoxal afirmar que a Ré tinha que provar factos que não estavam em discussão.
Nem se diga que esta questão de facto estava equacionada no tema da prova 7.
A entender-se assim, o tema da prova de saber se o Autor declarou o que consta da «declaração final» que, afinal, assinou constituiria um chapéu que serviria a todos os vícios da vontade e falhas nos deveres de comunicação e de informação.
Ao decidir como decidiu, o Tribunal a quo não respeitou em toda a linha o princípio do dispositivo.
De igual modo não foi observada a estrutura dialética do processo, pelo que a decisão proferida redundou numa decisão-surpresa.
Com efeito, prevê o artigo 3.º, n.º 3, do CPC que seja concedida às partes a possibilidade de, antes de ser proferida a decisão, se pronunciarem sobre questões suscitadas oficiosamente pelo juiz em termos inovatórios, mesmo que apenas de direito.
O Tribunal a quo conheceu de uma questão de facto (e também de Direito) que não foi suscitada pelas partes nem chegou ao seu conhecimento por via da instrução da causa.
Pelo exposto, a sentença recorrida é nula por excesso de pronúncia, na parte em que conheceu da violação do dever de informação por banda da Ré e, em consequência, considerou excluídas as cláusulas contratuais gerais descritas nos factos provados, designadamente a cláusula 3.1., ao abrigo do artigo 8.º, alínea b), do Decreto-Lei n.º 446/85, de 25.10, diploma que aprovou o regime jurídico das cláusulas contratuais gerais.
Julga-se, pois, procedente a alegação da nulidade parcial da sentença por excesso de pronúncia.
Da impugnação da decisão sobre a matéria de facto
Os poderes do Tribunal da Relação relativamente à modificabilidade da decisão de facto estão consagrados no artigo 662.º do CPC.
Nos termos do artigo 640.º do CPC, incumbe ao recorrente que impugne a referida decisão, sob pena de rejeição do recurso, especificar os concretos pontos de facto que considera incorretamente julgados, os concretos meios probatórios constantes do processo ou de registo ou gravação que imponham decisão sobre os pontos da matéria de facto impugnados diversa da recorrida e a decisão que, no seu entender, deve ser proferida sobre as questões de facto impugnadas.
Acresce que, nos termos da alínea b) do n.º 2 do citado artigo 640.º, quando os meios probatórios invocados como fundamento do erro na apreciação das provas tenham sido gravados, incumbe ao recorrente, sob pena de imediata rejeição do recurso nessa parte, indicar com exatidão as passagens da gravação em que se funda o seu recurso, sem prejuízo de poder proceder à transcrição dos excertos que considere relevantes.
A Apelante mencionou os pontos concretos que impugna e a decisão que, no seu entender, deve ser proferida. De igual modo, indicou as passagens da gravação ou as transcrições de excertos dos depoimentos que considera serem relevantes.
Assim, estão preenchidos os requisitos previstos no artigo 640.º do CPC.
Depois de auditado o suporte áudio da audiência final, cumpre apreciar a impugnação da decisão sobre a matéria de facto, indagando se a convicção criada no espírito do Tribunal a quo é ou não merecedora de reparos.
Vejamos.
Ponto 17. dos factos provados
Sob a epígrafe «Declaração Final» consta que:
«O Tomador do Seguro e o candidato a Pessoa Segura declaram que são residentes em Portugal, estão conscientes de que as informações prestadas servem de base ao contrato de seguro e que todas as respostas e dados fornecidos estão completos e são verdadeiros. Reconhecem e aceitam que eventuais omissões, inexactidões e falsidades no que respeita a dados de fornecimento quer obrigatório, quer facultativo, são da sua responsabilidade e poderão ter as consequências previstas na lei e contempladas no artigo 6º das Condições Gerais do Seguro de Vida Individual entregues com a assinatura desta Proposta».
Foi enunciada, sob o ponto 7 dos temas da prova, a questão de saber se o Autor declarou, sob a epígrafe «Declaração Final», o que consta do documento que assinou.
Da análise comparativa do tema da prova 7 com o ponto 17 da factualidade provada, emerge uma restrição da factualidade daquele tema, pois foi retirada a expressão «declarou que».
A Apelante sustenta que a restrição do tema da prova 7 não tem cabimento, pois o Autor não impugnou a assinatura do documento n.º 8 junto com a contestação, pelo que este tem força probatória plena, ao abrigo dos artigos 374.º, n.º 1, e 376.º, n.ºs 1 e 2, do Código Civil.
Lê-se na motivação da decisão sobre a matéria de facto que:
«(i.) Factos provados
Quanto à subscrição das declarações médicas não resultou demonstrado que não tenha sido mediante informação do autor que foram assinaladas as diversas opções que se colocavam na “Declaração se Saúde”, “Declaração Final”, “Questionário Médico”, mencionados nos pontos 6), 8 e 9) dos temas da prova.
Na verdade, o autor em declarações de parte refere ter sido o mediador que assinalou nos diversos campos dos referidos formulários as opções às questões que os mesmos contêm, referiu que o mesmo lhe ia perguntando antes de escrever.
Já no que se refere ao conhecimento que o autor teria das implicações que as respostas a esses questionários envolveria ao nível da avaliação do risco pela ré, não ficou claro, apesar da assinatura constante da proposta de seguro, que o autor tenha ficado ciente delas, pressuposto que presidiria à emissão da declaração de vontade, o que justifica a resposta restritiva, ao ponto 7) dos temas da prova
Apreciando:
O Autor não disse em parte alguma que as assinaturas constantes da proposta de seguro - o mencionado documento n.º 8 da contestação - não lhe pertenciam.
Note-se que logo a seguir à página da «declaração final» acima transcrita, o Autor apôs a sua assinatura na qualidade de tomador do seguro e de pessoa segura.
Dispõe o artigo 374.º, n.º 1, do Código Civil que «A letra e assinatura, ou só a assinatura, de um documento particular consideram-se verdadeiras, quando reconhecidas ou não impugnadas, pela parte contra quem o documento é apresentado (...)».
E lê-se no artigo 376.º, n.ºs 1 e 2, do Código Civil que:
«1. O documento particular cuja autoria seja reconhecida nos termos dos artigos antecedentes faz prova plena quanto às declarações atribuídas ao seu autor, sem prejuízo da arguição e prova da falsidade do documento.
2. Os factos compreendidos na declaração consideram-se provados na medida em que forem contrários aos interesses do declarante; mas a declaração é indivisível, nos termos previstos para a prova por confissão».
Ora, não tendo o Autor impugnado as assinaturas com o seu nome ou invocado a falsidade material do documento, não é compreensível a argumentação no sentido da falta de declaração de vontade do Autor.
Já vimos que o Autor não alegou a violação do dever de informação por banda da Ré.
Mas percorridos os articulados, também não descortinamos a invocação do vício da falta de consciência da declaração, contemplado no artigo 246.º do Código Civil.
Preceitua este normativo, sob a epígrafe «Falta de consciência da declaração e coação física», que a declaração não produz qualquer efeito, se o declarante não tiver a consciência de fazer uma declaração negocial ou for coagido pela força física a emiti-la.
A não ser que um documento contenha regulamentação que o seu subscritor não podia em caso algum prever, a sua vinculação sem prévia leitura decorre do princípio da responsabilidade, sendo que se o subscritor assinou sem ler fez seu o conteúdo do documento (cf. acórdão do TRG de 15.1.2015, disponível em www.dgsi.pt).
Em face do que precede, o ponto n.º 17 da matéria de facto provada deve ser alterado, de molde a que que não se suscite qualquer dúvida ou incerteza relativamente à efetiva declaração de vontade do Autor, passando a dele constar que «O Autor declarou, sob a epígrafe «Declaração Final», que (…)».
Faz-se um parêntesis para esclarecer que a impugnação da matéria de facto é assim decidida atendendo às ilações retiradas pelo Tribunal recorrido na fundamentação da sentença, que merecem o nosso reparo.
A conclusão poderia ser a mesma em sede de fundamentação de direito, pois a assinatura de alguém após uma declaração que lhe é imputada, sem vícios que lhe sejam assacados, significa isso mesmo, «declarar».
Ponto 23 dos factos provados - O Autor omitiu à Ré sofrer de insuficiência respiratória, venosa e cardíaca.
A Apelante requer que sejam aditados à matéria de facto dois novos pontos com a seguinte redação:
i. O Autor omitiu da Ré as patologias de que sabia ser portador intencionalmente.
ii. Caso o Autor tivesse revelado o seu verdadeiro estado de saúde, a Ré não teria aceite celebrar o contrato.
Relativamente ao ponto i., considera a Apelante que, se dúvidas existissem sobre a intencionalidade da omissão do Autor, as declarações de parte foram esclarecedoras, na medida que as respostas ao questionário médico, ainda que preenchidas pelo mediador, foram-no de acordo com as informações prestadas pelo próprio Autor.
A Apelante sustenta que o Autor escolheu, deliberadamente, dar as respostas que deu, pois pretendia mudar o seguro de vida associado ao empréstimo da casa, de forma a pagar um prémio mais baixo.
Mais argui que as regras da lógica e da experiência não permitem concluir que quem afirma que «se tivesse problemas de saúde não mudava de Companhia», o tenha afirmado aleatoriamente.
Pelo contrário - afirma a Apelante -, as regras da lógica e da experiência impõem que quem profere semelhante afirmação fá-lo, precisamente, porque sabia que para a seguradora era importante que a pessoa segura não estivesse doente.
Conclui que o Autor omitiu as informações propositada e intencionalmente.
No que respeita ao ponto ii), a Apelante requer o aditamento do facto, não obstante não figure da matéria provada ou a não provada.
Argui que o segurado celebrou com a Ré um contrato de seguro de vida com cobertura complementar de invalidez total e permanente e que, à data em que o celebrou, tinha pedido a reforma por incapacidade e já estava de baixa médica há nove meses.
Afirma que as regras da lógica e da experiência impõem que se conclua que a Ré não teria pelo menos aceite contratar a cobertura complementar de invalidez total e permanente pois, aceitou - sem saber - segurar um risco que já se tinha verificado.
Ainda que assim não se entenda, considera que o depoimento da testemunha NM… e o documento n.º 8 junto com a petição inicial são esclarecedores e demonstrativos da factualidade que pretende ver aditada.
Lê-se na motivação da decisão sobre a matéria de facto que:
«(…) Já no que se refere ao conhecimento que o autor teria das implicações que as respostas a esses questionários envolveria ao nível da avaliação do risco pela ré, não ficou claro, apesar da assinatura constante da proposta de seguro, que o autor tenha ficado ciente delas, pressuposto que presidiria à emissão da declaração de vontade, o que justifica a resposta restritiva, ao ponto 7) dos temas da prova.
10) Este facto mostra-se comprovado pelo documento junto a fls. 117, constituído por um relatório médico, datado de 30.06.2011, respeitante ao estudo imagiológico da coluna que contem a informação clínica enunciada neste tema da prova.
11) e 12) Da análise da prova documental, em particular do relatório médico para efeitos de reforma, constante de fls. 114, datado de 13.10.2011, resulta inelutavelmente a demonstração de que anteriormente à subscrição da proposta de seguro o autor padecia de doença do foro respiratório com as incidências enunciadas na al. j).
Sobre o documento constituído pela informação médica constante de fls. 113 mostrou-se esclarecedor o depoimento do Clínico – LA… - que a subscreveu em 27.02.2012, e elucidou em audiência exercer medicina familiar em Alhos Vedros, onde consultou o autor no Centro Clínico ASS, durante os anos de 2007/2008 e 2011, explicando o motivo porque mencionou a bronquite asmatiforme na referida informação, dando conta de que o fez porque fazia parte da história clínica do paciente, o que é corroborado pela ficha de consulta externa do Centro Hospitalar Barreiro-Montijo, datada 12.07.2010, que também refere a existência de antecedentes de bronquite, bem como o teor da ficha de utente do autor na Clinica Médica, Lda. Moiticare da qual consta informação datada de 02.06.2009 de o autor padecer de bronquite asmatiforme.
O acervo documental que se acaba de enunciar deixou claro que o autor padecia de doença do foro respiratório diagnosticada anteriormente à data da aceitação da proposta de seguro. Não tendo, aliás, sido infirmado por outos meios de prova, sendo de notar que o relatório clínico elaborado pela médica MJ… junto pelo autor (fls. 14v), muito embora datado de 03.02.2013, referencia que o autor já tinha indicação para cumprir terapêutica broncodilatadora e anti-inflamatória que na altura foi optimizada.
Do documento de fls. 213 retira-se também que, pelo menos desde 12.07.2010 se encontrava diagnosticada a obesidade do autor, não evidenciando, contudo, que tenha sido na mesma ocasião efectuado o diagnóstico da diabetes. Sendo de salientar o testemunho do já mencionado Clínico LA…, que, como já referido, consultou o autor entre 2007 e 2008, voltando a vê-lo em 2011, e que asseverou, de acordo com a história clínica do seu conhecimento, que o autor, para além de outras patologias, sofria de obesidade e patologia respiratória, referindo que ‘’fazia ventilador” quanto a esta e que, quando o autor o procurou pela primeira vez, o fez na sequência de infecções respiratórias.
13) A apreciação global da documentação clínica concatenada, por um lado, com o relatório médico elaborado pelo médico LS… (fls. 114) em 13.10.2011 no qual este enuncia a história clínica do autor para efeitos de reforma, entre as quais se encontram a patologia de bronquite asmatiforme como crises de agudização frequentes; raquialigias por discopatias das L3, L4, L5 e S1; e insuficiência veno-linfáctica dos membros inferiores com edema de estase muito acentuado, e, por outro lado, as respostas dadas aos questionários que instruíram a proposta de seguro constantes de fls. 55v e 56, não deixa dúvida sobre a omissão das informações, veiculadas dois meses antes da aceitação da proposta de seguro, à Caixa Geral de Aposentações pelo autor, infirmando que o conhecimento dessas patologias tivesse advindo ao autor apenas nas datas de 18.05.2012 e 27.06.2012.»
A sentença recorrida inclui pronúncia sobre a matéria de facto na fundamentação de direito.
Sem prejuízo de se tratar de uma técnica menos depurada, urge coligir da fundamentação de direito as asserções sobre a matéria de facto que deveriam ter enquadramento na motivação da sentença.
Assim:
«É sabido que prestadas tais declarações pelo tomador e segurado no âmbito da formação dos contratos de seguro, as declarações inexactas e omissas inelutavelmente influem na formação da vontade real do segurador na medida em que a decisão de contratar e a definição dos respectivos termos contratuais se basearam em factos ou circunstâncias ignoradas ou omitidas.
Com efeito, demonstrado ficou que, não obstante o conhecimento detido pelo autor acerca do seu estado de saúde, respondeu negativamente às acima referidas questões ínsitas nos questionários de adesão.
Porém, não foi alegado e, concomitantemente, não se demonstrou que o tivesse feito por descuido ou com o propósito de omitir as doenças e tratamentos a que já havia sido sujeito, ou que tivesse conhecimento da sua importância para avaliação do risco pela seguradora, tanto mais que a ré não logrou provar que o autor emitiu a declaração a que aludia o ponto 7) dos temas da prova.
(…) Como se encontra reflectido na factualidade apurada, a resposta às questões ínsitas nos pontos 6), 8) e 9) mostra uma actuação do autor não conforme com tal interpretação ao omitir informações sobre o seu estado de saúde. Porém, fê-lo por não saber do dever de as prestar e, muito menos, resultou que o tivesse feito com dolo, com o conhecimento de que estava a omitir informações que seriam determinantes para a avaliação do risco por banda da seguradora, ora ré. Não sendo despiciendo anotar que o autor é alguém que toda a sua vida trabalhou nos Serviços Municipalizados na limpeza de colectores, não estando familiarizado com propostas contratuais com a alguma complexidade cuja compreensão é exigente mesmo para quem se encontra num patamar de literacia superior ao do autor.
(…) A ré contesta, no entanto, a satisfação do valor peticionado invocando ter o segurado omitido informações relevantes quando subscreveu consigo o contrato, ao responder negativamente às questões constantes dos questionários de adesão descritas no ponto 16), 17), 18) e 19), não tendo resultado provado, no entanto, que tal omissão tivesse sido levada a cabo com o intuito de determinar a seguradora a uma avaliação errónea do risco que iria segurar.» (negrito nosso).
Emerge da factualidade assim dispersa e por nós destacada que o Tribunal a quo considerou provado não só que «23. O Autor omitiu à Ré sofrer de insuficiência respiratória, venosa e cardíaca», mas também que sabia padecer de tais patologias.
Também decorre da fundamentação da sentença que o Tribunal recorrido não considerou que o Autor tivesse omitido tais declarações por descuido ou com o intuito de determinar a seguradora a uma avaliação errónea do risco que iria segurar.
Cumpre, porém, retornar aos factos essenciais alegados pela Ré em sede de exceção.
Consta da contestação o seguinte:
«83.º
Ora, perante o acervo factual acima exposto, dúvidas não podem restar – e não restam – de que quando aderiu à apólice de seguro em causa nos autos, o autor prestou falsas declarações.
84.º
Acresce que, é do conhecimento geral das pessoas medianamente informadas que as doenças como aquelas de que o segurado padece – insuficiência respiratória (ainda que inicialmente apenas com o diagnóstico de asma), insuficiência venosa, insuficiência cardíaca, por exemplo – implicam cuidados e tratamentos especiais e um acompanhamento médico assíduo e vitalício!
85.º
Estas doenças assumem uma tal gravidade – como, reitera-se, é do conhecimento geral – que o segurado não as podia omitir, fazendo a ré crer que gozava de boa saúde.
86.º
Aliás, o fornecimento de informação desta natureza – como, mais uma vez, é do conhecimento geral – é essencial para a seguradora fazer uma avaliação do risco que vai assumir com a celebração do contrato.
87.º
Assim ao omitir estes factos, bem como ao declarar que se encontrava de boa saúde o segurado proferiu falsas declarações.
88.º
A 16 de Abril de 2008, o Decreto-Lei n.º 72/2008 aprovou a Lei do Contrato de Seguro, que entrou em vigor no dia 1 de Janeiro de 2009, sendo, como tal, ao abrigo do seu artigo 2.º, n.º 1, aplicável ao caso sub judice.
89.º
O artigo 24.º da Lei do Contrato de Seguro, acolhe a obrigação do tomador do seguro ou segurado, antes da celebração do contrato, de declarar com exactidão todas as circunstâncias que conheça e razoavelmente deva ter por significativas para a apreciação do risco pelo Segurador, sob pena de, em determinados casos, o Segurador não estar obrigado a cobrir o sinistro.
90.º
No artigo 25.º, a Lei do Contrato de Seguro, prevê, mais concretamente, que, em caso incumprimento doloso, o Segurador não está obrigado a cobrir o sinistro que ocorra antes de ter tido conhecimento do incumprimento doloso, seguindo-se o regime geral da anulabilidade.
91.º
Assim, tendo o segurado omitido e declarado inexactamente circunstâncias relevantes para a ré fazer uma correcta avaliação do risco coberto pelo contrato de seguro, a ré não está obrigada a cobrir o sinistro (15) (16).
92.º
A anulabilidade do negócio surge pelo facto do interesse da ré não ter sido suficientemente atendido aquando da adesão ao contrato de seguro.
93.º
E prevalece ainda que o segurado tenha agido com mera negligência.
94.º
Podendo ser invocada pelas pessoas em cujo interesse a lei a estabelece (artigo  287.º, n.º 1, doCC) e tem efeito retroactivo (artigo 289.º do CC).
95.º
Como refere António Menezes Cordeiro (17):
“Perante a exigência do cumprimento dum negócio inválido, a parte visada pode defender-se por excepção. Antes disso, porém, ela já podia, licitamente, recusar a prestação.”
96.º
A anulabilidade do contrato de seguro tem por consequência a sua ineficácia e, subsequentemente, a desobrigação da ré de efectuar o pagamento da prestação convencionada no contrato de seguro.
97.º
As falsas declarações implicam, no caso concreto, a anulabilidade do contrato, o que se requer seja declarada.
98.º
A anulabilidade do contrato de seguro é uma excepção peremptória e, enquanto tal, importa a absolvição da ré, nos termos e para os efeitos do disposto no artigo 576.º, n.º 3, do C.P.C.» (negrito nosso).
Resulta dos excertos por nós assinalados que, embora não seja tão clara quanto podia e devia, a Ré não deixa de se reportar a falsas declarações. A falsidade implica a alegação do conhecimento pelo Autor das patologias de que padecia e o propósito de as omitir.
Vejamos agora se tais factos, que a Ré considera integrarem o conceito de dolo previsto no artigo 25.º do Decreto-Lei n.º 72/2008, de 16.4, diploma que aprovou o Regime Jurídico do Contrato de Seguro, também conhecido por Lei do Contrato de Seguro (doravante, LCS), ficaram demonstrados.
Como vimos, o Tribunal a quo considerou indubitável que o Autor omitiu o dever de informação a que se reporta o artigo 24.º, n.º 1, da LCS.
Acresce que resultou do depoimento da testemunha LS… (médico, diretor clínico da seguradora Metlife desde 1985) que, dois meses antes da aceitação da proposta de seguro, o Autor relatara tais patologias à Caixa Geral de Aposentações, para efeitos de reforma.
E a prova documental confirma e evidencia tal testemunho.
Na verdade, por notificação de 22.3.2019, foram as partes informadas do processo de reforma do Autor perante a Caixa Geral de Aposentações.
Do referido processo resulta que o Autor requereu a aposentação por incapacidade a 12.10.2011, isto é, menos de dois meses antes de subscrever o contrato de seguro de vida, com cobertura complementar de invalidez total e permanente em causa nestes autos.
Consta do relatório médico que foi elaborado na sequência desse pedido de aposentação, preenchido de acordo com informações fornecidas pelo ora Autor, o seguinte:
«Elementos de Ordem Profissional
(...) 2. Situação laboral actual (a trabalhar, desempregado, com incapacidade temporária Baixa):
De baixa há 9 meses
Não obstante estes acontecimentos recentes, o Autor respondeu «não» a todas as perguntas do questionário de saúde, inclusive àquelas que se reportavam às patologias pelas quais veio, pouco tempo depois, a ser considerado reformado por invalidez de grau de incapacidade 67%.
Atente-se no quadro que definiu tal incapacidade, por referência à TNI - Anexo I, aprovada pelo Decreto-Lei n.º 352/2007.
Dele resulta que o Autor é portador das seguintes deficiências:
- Capítulo VII, grau II (doenças respiratórias, que incluem a asma brônquica)
- Capítulo VI, 2.2 (doenças cardiovasculares, que incluem lesões venosas e linfáticas);
- Capítulo III, 7 (nevralgias e radiculalgias);
- Capítulo X, grau II (perturbações funcionais moderadas em psiquiatria).
Da análise da prova documental junta aos autos, destaca-se que o contrato de mútuo para aquisição de habitação foi celebrado em 2002 e que o contrato de seguro de vida em apreço foi celebrado em 7.12.2011, com efeitos reportados a 1.12.2011.
Em declarações de parte, o Autor explicou que já tinha um seguro de vida, mas que pretendeu um seguro que implicasse um prémio mais reduzido.
Como bem observa a Apelante, na proposta de seguro que constitui o documento n.º 8 da contestação, sob a epígrafe "Declaração de Saúde", o segurado subscreveu a seguinte declaração:
«A(s) Pessoa(s) Segura(s) declara(m):
- Encontrar-se em bom estado de saúde e não se encontrar de baixa clínica por doença ou acidente nem ter interrompido a sua actividade labora) durante mais de 1 mês nos últimos 3 anos, por doença ou acidente
Mais adiante na proposta, no ponto 11 do questionário médico, é perguntado se «Esteve ou está em situação de incapacidade temporária por um período superior a 3 meses nos últimos 3 anos? Em caso afirmativo, indique quando e porquê
Ao que o Autor respondeu «Não».
Ora, como acabou de se expor, menos de dois meses antes, à Caixa Geral de Aposentações e à mesma pergunta, o Autor respondeu que se encontrava de baixa há 9 meses.
Voltando à análise do relatório médico que foi elaborado na sequência do pedido de aposentação, mais adiante na mesma página, consta o seguinte:
«II. Anamnese
1. Descrição da situação clínica (queixas do examinado, início da doença, evolução, Terapêuticas aplicadas):
Doente de 51 anos, que refere bronquite asmatiforme (desde os 6 anos) (...)
2. Antecedentes pessoais e familiares relevantes
Op. A hérnia abdominal aos 28 anos.
HTA».
Na página 3 do mesmo documento, consta ainda o seguinte:
«III. Exame objectivo
(...) 2. Específico (face às queixas do examinado):
Obesidade
Edema e alt. Tróficas acentuadas (...)»
Com a mesma notificação de 22.03.2019, foram as partes notificadas de um relatório médico subscrito por LS… (Relatório Médico para efeitos de reforma), datado de 13.10.2011, com o seguinte teor:
«RELATÓRIO MÉDICO PARA EFEITOS DE REFORMA
O Sr. FJ…, vigilante de parque municipal (Câmara da Moita) tem os seguintes problemas de saúde:
1. Bronquite asmatiforme, com crises de agudização frequentes
2. Raquialgias/lombocitalgias por discopatias L3-L4-L5-S1
3. Insuficiência veno-linfática dos membros inferiores com edema de estase muito acentuado.
Estas patologias são limitantes para o exercício da profissão
Ora, no ponto 5 do referido «Questionário Médico», que consta do documento n.º 8 da contestação, é perguntado o seguinte:
«Sofre ou sofreu de alguma(s) doença(s) relacionadas com:
(…) b)    Diabetes, Doenças da Tiróide, Colesterol elevado?
c) Aparelho Cardiovascular, Hipertensão Arterial, Sopros, Febre Reumática, Varizes, Sistema Circulatório?
d) Aparelho Respiratório, Asma, Bronquite, Tuberculose, Doenças Pulmonares?
(...) j) Doenças Osteoarticulares e Reumatismais: Artrose, Artrite Reumatoide?
(...) n) Outras doenças não mencionadas atrás? Especifique
A todas estas questões o segurado respondeu «não».
No ponto 9 do mesmo «Questionário Médico», é perguntado o seguinte:
«Está medicado em relação a alguma Patologia? Em caso afirmativo descrimine
Ao que o segurado respondeu, novamente, «não».
Esta dualidade de critérios não se justifica.
O Autor tinha a estrita noção das informações que devia prestar para requerer a sua aposentação por invalidez.
Tudo isto é muito pouco compaginável com a asseveração de que o Autor não tinha consciência do que estava a fazer, pois tendo «trabalhado toda a sua vida trabalhou nos Serviços Municipalizados na limpeza de colectores [não é bem assim, pois exerceu anteriormente as funções de pasteleiro], não estando familiarizado com propostas contratuais com alguma complexidade cuja compreensão é exigente mesmo para quem se encontra num patamar de literacia superior ao do autor, atentemos nas declarações de parte do Autor
Esta asserção não encontra respaldo em qualquer depoimento prestado, designadamente nas declarações de parte do Autor, que se encontram gravadas em Sistema H@bilus Media Studio (com início no minuto 00.00m.01s e final ao minuto 00h.32m.58s).
J: O que é que aconteceu, explique-nos lá?
A: Porque Assim, nas suas declarações de parte, o Autor esclareceu que as respostas ao questionário médico, ainda que preenchidas pelo mediador, foram-no de acordo com as suas informações.
Quando questionado sobre a celebração do contrato em causa nos autos, o Autor esclareceu o seguinte:
«J: Entretanto, houve aqui uma alteração no seguro que o senhor tinha.
A: Sim, Doutora.
isto foi assim, doutora, eu, na altura, o seguro foi feito...
J: Na altura?
A: Na altura que comprei a casa...
J: Na altura em que fez o empréstimo...
A: Na altura quando eu comprei a casa, foi incluído o seguro de vida e o seguro do...
J: Multirriscos, já vi isso aqui.
A: ...multirriscos. Mas diferentes.
J: Sim.
A: O seguro de multirriscos da casa eu nunca cheguei a mudar.
J: Nunca chegou?
A: Nunca cheguei a mudar, pelo menos na Companhia mantenho novamente no Millennium BCP. Ora, eu tinha uma motorizada, salvo erro, ou um com um agente no Montijo, agente de seguros, e ele até calhou um dia, virou-se para mim, e vai assim: "Ó F…, tu já tens o seguro aqui do carro, da motorizada",: já não me lembro o que era:
"E não tens casa?", e eu assim: "Tenho", "Então e quanto é que estás a pagar?", eu assim: "Estou a pagar x", "É pá tenho uma Companhia boa de seguros que é mais barato, e uma boa Companhia". Ele fez a simulação, e realmente era mais barato, e eu disse:
"Sim, senhor"... era MJo... ou... era um agente que trabalhava para a MetLife também. E o senhor tinha-me dito se eu não queria mudar. E eu mudei, como era mais barato, mudei. Agora pergunta-me uma coisa, se eu tivesse problemas, doutora, eu nunca ia mudar para outra Companhia. Nunca tinha... ia mudar para outra
Companhia. Porquê? Porque eu já tinha aquela Companhia já há vários anos, eu nunca mudava se tivesse problemas de saúde, está a perceber? Nunca mudava, mantinha a mesma Companhia. Como sempre.
J: Quando é que foi essa conversa?
A: Esse quê, doutora?
J: Essa conversa que teve.
A: Com quem?
J: Com o agente.
A: Ó senhora doutora., isso foi logo quando... assim que começou o seguro, praticamente. Ele fez a simulação, eu lá vi que era mais barato, e pronto, o outro seguro foi anulado, e entrou este em vigor. Pronto.
J: Porque é que diz que se tivesse doente, não mudava?
A: Porque não.
J: Diga lá porquê?
A: Dra., se eu tivesse doente, nunca ia mudar para esta Companhia de Seguros, mantinha-me com a outra Companhia.
J: Porquê?
A: Ó doutora, porque era o seguro de início, que eu tinha começado de início, mantinha. Mantinha.»
Do quanto se acaba de transcrever resulta, inequivocamente, que ao contrário do que entendeu o Tribunal a quo, o Autor tinha perfeita consciência do contrato que estava a celebrar e das questões sobre a sua saúde que lhe eram colocadas, bem sabendo da importância das respostas negativas para o valor do próprio prémio.
A alegação da Ré deve, pois, proceder nesta parte.
Nessa sequência, a redação do ponto 23 da factualidade provada deve ser alterada de forma a que dela conste que o Autor, que sabia das patologias que omitiu (é o que decorre da própria sentença recorrida, ainda que não conste do elenco dos factos), teve intenção de as omitir (alteração requerida pela Ré/Apelante).
23. O Autor omitiu intencionalmente à Ré a informação de que padecia de insuficiência respiratória, venosa e cardíaca.
Ainda a propósito da mesma temática, a Apelante requer que seja aditado à matéria de facto o seguinte ponto:
ii. Caso o Autor tivesse revelado o seu verdadeiro estado de saúde, a Ré não teria aceite celebrar o contrato.
Relembramos a relevância do ónus de alegação na apreciação da impugnação da decisão da matéria de facto.
O que foi alegado pela Ré neste particular?
Vejamos algunes excertos da contestação.
«86.º
Aliás, o fornecimento de informação desta natureza – como, mais uma vez, é do conhecimento geral – é essencial para a seguradora fazer uma avaliação do risco que vai assumir com a celebração do contrato.
87.º
Assim ao omitir estes factos, bem como ao declarar que se encontrava de boa saúde o segurado proferiu falsas declarações.»
91.º
Assim, tendo o segurado omitido e declarado inexactamente circunstâncias relevantes para a ré fazer uma correcta avaliação do risco coberto pelo contrato de seguro, a ré não está obrigada a cobrir o sinistro (15) (16).
92.º
A anulabilidade do negócio surge pelo facto do interesse da ré não ter sido suficientemente atendido aquando da adesão ao contrato de seguro.
93.º
E prevalece ainda que o segurado tenha agido com mera negligência.
94.º
Podendo ser invocada pelas pessoas em cujo interesse a lei a estabelece (artigo  287.º, n.º 1, doCC) e tem efeito retroactivo (artigo 289.º do CC).»
Não sofre dúvida que a Ré invocou as declarações omissivas com dolo, conducente à anulabilidade do contrato e, subsidiariamente, as declarações omissivas por negligência.
No que concerne à negligência, nos termos do artigo 26.º, da LCS, o direito potestativo de «cessação do contrato» (a doutrina diverge quanto à qualificação desta cessação como anulabilidade ou resolução do contrato) depende do seguinte requisito: que o segurador demonstre que em caso algum, teria celebrado o contrato se tivesse conhecido o facto omitido ou declarado inexactamente, ficando apenas vinculado à devolução do prémio [n.º 4, alínea b)].
Quanto ao dolo, como veremos em sede de enquadramento jurídico, a doutrina e a jurisprudência aparta-se quanto à aplicabilidade deste requisito do artigo 26.º, n.º 4, alínea b), da LCS.
Revertendo ao caso concreto, constata-se que esta factualidade não consta do elenco dos factos da sentença recorrida.
Entende a Apelante que, no caso concreto, este facto dispensaria qualquer prova.
Argumenta que o fim do contrato de seguro é precisamente, o de segurar um risco futuro e incerto, e não eventos que já tenham ocorrido.
Ora, antes de mais, a prova produzida não aponta no sentido indicado pelo Autor.
À pergunta se os fatores omitidos pelo Autor tivessem sido revelados, isso teria alguma consequência na celebração do contrato, a testemunha NM… respondeu «Poderia acontecer que o risco fosse aceite, mas agravado. Ou então, por outro lado, que não fosse mesmo aceite, fosse recusado pela Companhia, o seguro, em si.»
E, no mais, até se constatou que o Tribunal a quo, aquando do depoimento da testemunha JS…, não permitiu a inquirição sobre esta matéria.
Quanto à prova documental, decorre da análise do documento n.º 8 da petição inicial que se trata de uma carta da Ré para o Autor, datada de 6.10.2014, com o seguinte teor:
«(...) Após análise clínica efectuada pelo Departamento Médico da MetLife, lamentamos informar que não iremos dar seguimento ao processo de sinistro supra no âmbito da Apólice em questão.
De facto, aquando da subscrição do contrato de seguro, a Pessoa Segura não informou a MetLife sobre o seu verdadeiro estado de saúde, a qual por essa razão não teve capacidade de avaliar devidamente o risco, correspondente ao verdadeiro estado de saúde da Pessoa Segura que, com base nas informações agora na sua posse, teria recusado».
Porém, este documento poderia servir de meio de prova para o facto em apreço, mas nunca serviria para substituir a alegação do próprio facto (acórdão do TRG de 14.3.2019 (p. 415/11.9TBAVV.G1, in www.dgsi.pt), por mais óbvio que pareça (sem ser notório), sob pena de desrespeito do princípio do dispositivo.
A Ré não alegou o facto integrante das exceções da anulabilidade e do direito à «cessação do contrato» que pretende aditar, como lhe incumbia nos termos dos artigos 5.º, n.º 1, e 572.º, alínea c), do CPC.
Tal facto é essencial, segundo as várias soluções plausíveis de direito que serão infra melhor explicitadas.
Em face do exposto, improcede esta alegação da Ré.
Enquadramento jurídico
Da exceção da anulabilidade por omissões dolosas na declaração inicial de risco
A Apelante invocou a anulabilidade do contrato de seguro.
Fundamenta esta exceção no artigo 24.º, n.º 1, da LCS, que acolhe a obrigação de o tomador do seguro ou segurado, antes da celebração do contrato, «declarar com exactidão todas as circunstâncias que conheça e razoavelmente deva ter por significativas para a apreciação do risco pelo segurador», e no artigo 25.º, n.º 1, do mesmo diploma, que prevê que, «Em caso de incumprimento doloso do dever referido no n.º 1 do artigo anterior, o contrato é anulável mediante declaração enviada pelo segurador ao tomador do seguro.»
A causa de pedir na presente ação é complexa. O Autor exige da Ré o cumprimento de contrato de seguro do ramo vida, invocando a verificação do sinistro aí contemplado - a invalidez permanente.
Como é sabido, o contrato de seguro é um contrato pelo qual o segurador assume a cobertura de determinados riscos, comprometendo-se a satisfazer as indemnizações ou a pagar o capital seguro em caso de ocorrência de sinistro, nos termos acordados. A prestação devida pela seguradora pode ser efetuada à pessoa no interesse da qual o seguro é celebrado (o segurado) ou a terceiro designado pelo tomador do seguro (o beneficiário) ou ainda a uma terceira pessoa que tenha sofrido prejuízos que o segurado deva indemnizar (o terceiro lesado) - cf. artigo 1.º da LCS.
O sinistro corresponde, na definição do artigo 99.º da LCS, à verificação, total ou parcial, do evento que desencadeia o acionamento da cobertura do risco previsto no contrato.
No caso em apreço estamos perante um seguro de pessoas, cujo objeto, de acordo com o disposto no artigo 175.º, n.º 1, da LCS, é aquele que compreende a cobertura de riscos relativos à vida, à saúde e à integridade física de uma pessoa ou grupo de pessoas.
Na modalidade de seguro de vida, o artigo 183.º da LCS estabelece que o segurador cobre um risco relacionado com morte ou a sobrevivência da pessoa segura, mas o artigo 184.º, n.º 1, alínea a), do mesmo diploma logo determina que se aplica o disposto relativamente ao seguro de vida aos seguros complementares dos seguros de vida relativos a danos corporais, incluindo, nomeadamente, a incapacidade para o trabalho e a morte por acidente ou invalidez em consequência de acidente ou doença.
O contrato de seguro rege-se pelo princípio da liberdade contratual, tendo carácter supletivo as regras constantes do Regime Jurídico do Contrato de Seguro, embora com os limites estatuídos na Secção II do Capítulo I deste diploma (artigo 11.º) na qual se elencam as normas imperativas.
São, assim, aplicáveis no caso vertente as condições particulares, especiais e gerais em tudo que não contrarie normas de cariz imperativo consagradas da LCS.
O contrato de seguro sub judice está associado a um contrato de financiamento que havia sido contratado entre os tomadores do seguro (Autor e então mulher) e o Millennium BCP, S.A. no ano de 2002, que na qualidade de credor hipotecário surge como beneficiário irrevogável.
Daí que o Autor exija precisamente, verificado que foi o risco inerente à aposentação por incapacidade fixada em 67%, considerada instalada desde 2013, a realização da prestação que se reconduz ao pagamento do montante financiado, ainda em dívida, ao mutuante/beneficiário.
O Decreto-Lei n.º 72/2008 autonomizou o regime jurídico do contrato de seguro e introduziu algumas novidades.
Foram equacionadas pelo legislador as várias problemáticas em torno do regime dos deveres pré-contratuais a cargo do segurador e do tomador do seguro ou segurado.
Na verdade, o contrato de seguro reveste-se de inúmeras especificidades que o distinguem dos contratos em geral.
Para além de conter cláusulas contratuais gerais, destinadas a serem aceites pelo tomador do seguro ou segurado sem a sua prévia negociação, pelo que este se limita à sua adesão, é celebrado com o segurador, parte com poder negocial mais forte.
Contrapondo os vários interesses em jogo e balanceando as especificidades que caracterizam o contrato de seguro, o legislador consagrou os deveres pré-contratuais de informação que incumbem ao segurador e ao tomador do seguro, nos artigos 18.º a 23.º da LCS e 24.º a 26.º da Lei do Contrato de Seguro, e os mencionados deveres a cargo do segurado, nos artigos 24.º a 26.º do mesmo diploma.
Os artigos 18.º a 26.º da LCS constituem normas jurídicas relativamente imperativas, o que significa que o seu teor só poderá ser alterado se tal se mostrar mais favorável ao tomador do seguro, segurado ou beneficiário, tal como previsto no artigo 13.º da LCS.
Estatui-se, desde logo, um dever geral de informação pelo tomador ou segurado quanto a circunstâncias relevantes para a apreciação do risco, no artigo 24.º, n.º 1, da LCS.
Prevê-se ainda a aplicabilidade deste preceito a circunstâncias cuja menção não seja solicitada em questionário eventualmente fornecido pelo segurador para o efeito (n.º 2 do citado artigo).
O dever de informação que impende sobre o tomador do seguro ou sobre o segurado destina-se a dar a conhecer à seguradora os factos relevantes para a avaliação do risco do seguro. 
Nas palavras de Luís Poças, a «declaração de risco traduz‑se num autêntico dever de verdade material» (O Dever de Declaração Inicial do Risco no Contrato de Seguro, Coimbra: Almedina, 2013, p. 335).
O «questionário é uma das formas de declaração inicial do risco pelo candidato tomador do seguro ou pessoa segura que tem por objetivo a ponderação por parte da seguradora dos riscos a correr com a celebração do contrato que lhe é proposto» (cf. acórdão do STJ de 6.7.2011, p. 2617/03.2TBAVR.C1.S1, in www.dgs.pt),
No regime que vigora entre nós não existe obrigatoriedade de apresentação de um questionário por parte da seguradora.
Porém, os questionários predominam nos seguros de pessoas e que «sendo um questionário respondido com seriedade e de boa fé, nada mais haverá, em princípio, a acrescentar» (Menezes Cordeiro, Direito dos Seguros, Coimbra: Almedina, 2013, p. 579).
No caso de um seguro de vida com cobertura complementar de invalidez total e permanente, como é o dos autos, exige-se ao tomador ou ao segurado que manifestem as circunstâncias relativas à saúde do segurado que conhecem no momento da declaração, o que, para a seguradora, tendo em conta a avaliação dos riscos que vai assumir é, em princípio, relevante ou para a decisão de contratar ou para a definição concreta do conteúdo do contrato.
Foi apresentado ao ora Autor (bem como à sua ex-mulher) um questionário com questões concretamente formuladas a propósito da sua saúde e que ele preencheu.
A questão que se coloca no presente processo prende-se com as respostas dadas pelo Autor a algumas perguntas concretas e não a quaisquer circunstâncias cuja menção não tivesse sido solicitada no dito questionário.
Efetivamente, na data em que contratou a apólice de seguro, o Autor procedeu ao preenchimento de um questionário médico e, sabendo que padecia de insuficiência respiratória, venosa e cardíaca, respondeu «não» a todas as questões atinentes a estas patologias.
Os artigos 25.º e 26.º da LCS fazem a destrinça das situações de omissões ou inexatidões dolosas das omissões ou inexatidões negligentes.
A «inexatidão» corresponde ao vício da declaração que é falsa, desconforme à verdade, à realidade objetiva conhecida. A «omissão» é o vício da declaração que silencia uma circunstância relevante, não a revelando total ou parcialmente (cf. acórdão do TRL de 28.6.2018, p. 1462-16.0T8LSB.L1-2, in www.dgsi.pt).
Estipula o n.º 1 do artigo 25.º da LCS que, em caso de incumprimento doloso do dever de declaração inicial do risco, previsto no artigo 24.º, o contrato é anulável mediante declaração enviada pelo segurador ao tomador do seguro.
Neste âmbito, e na linha do entendimento propugnado por Pedro Romano Martinez, há que distinguir o dolo enquanto modalidade de culpa e o dolo enquanto vício da vontade (comentários complementares de Pedro Romano Martinez, Lei do Contrato de Seguro, 3.ª ed., Coimbra: Almedina, 2016, pp. 153 a 155).
O dolo-culpa constitui um elemento subjetivo de uma ação (ou de uma omissão), que corresponde ao juízo feito pelo agente em determinada atuação, encontrando-se patente no n.º 1 do artigo 483.º do Código Civil.
Neste sentido, dolo e negligência constituem modalidades de culpa ou de ilicitude subjetiva (Autor e obra citada, p. 153).
Enquanto no dolo, o agente atua de forma voluntária contra a norma jurídica em questão, na negligência o agente «atinge o bem jurídico, protegido pela norma, por não haver observado as regras de cuidado aplicáveis», pelo que «a sua vontade não foi dirigida direta, necessária ou eventualmente contra a norma jurídica em jogo», que, todavia, não acompanhou por não ter adotado o grau de diligência exigível (Menezes Cordeiro, Direito dos Seguros, Coimbra: Almedina, 2013, p. 582).
No segundo caso, o dolo é um vício da vontade, também conhecido por «dolo-artimanha» ou seja, «é uma ação que, necessariamente, é acompanhada do elemento subjetivo dolo» (Joana Galvão Telles, Deveres de informação das partes, in Temas de Direito dos Seguros, coord. de Margarida Lima Rego, 2.ª ed., Coimbra: Almedina, 2016, p. 382).
O «dolo-artimanha» corresponde ao «dolus malus» definido no n.º 1 do artigo 253.º do Código Civil, definido como «qualquer sugestão ou artifício que alguém empregue com a intenção ou consciência de induzir ou manter em erro o autor da declaração, bem como a dissimulação, pelo declaratário ou terceiro, do erro do declarante».
Contrapõe-se ao erro simples, ou seja, aos casos em que a declaração negocial se formou «com algum desvio em relação ao que se queria dizer por ter assentado em pressupostos ou informações insuficientes ou incorretas, mas sem que tenha havido intenção do declarante de provocar tal situação», nos termos dos artigos 247.º, 251.º e 252.º do Código Civil. (Joana Galvão Teles, obra citada, p. 382).
Diferentemente, Luís Poças entende que o dolo previsto no artigo 25.º da LCS consiste num mero estado subjetivo do proponente ou da censurabilidade da sua conduta, pelo que poderão não estar reunidos os requisitos do dolus malus e o segurador poderá não incorrer em erro.
Segundo esta tese, o dolo não está necessariamente orientado para o engano, ou seja, o proponente incumpre dolosamente quando quer mentir ou omitir relativamente a um facto que sabe ser relevante, mesmo que o seu propósito não seja enganar o segurador (mas, apenas, por exemplo, ocultar um facto embaraçoso).
Conclui o Autor que importante no artigo 25.º da LCS é a vontade e consciência de mentir ou omitir, independentemente de qualquer propósito (obra citada, pp. 468 e 469).
A título de exemplo, na jurisprudência, o acórdão do TRP de 15.11.2018 (p. 12886/16.2T8PRT.P1, in www.dgsi.pt) segue a tese do «dolo-vício» e o acórdão do TRG de 9.11.2017, citado na sentença recorrida (p. 4317/13.6TBBRG.G1, www.dgsi.pt) alinha no diapasão do «dolo-culpa».
A jurisprudência tem ainda divergido quanto à exigência ou não do requisito da essencialidade do erro para o segurador.
O acórdão do STJ de 8.11.2018 (p. 399/14.1TVLSB.L1.S1, www.dgsi.pt) aponta claramente no sentido afirmativo, destacando-se do sumário o seguinte:
«(…) III. Se o segurado omitiu dolosamente informações sobre a sua saúde que eram relevantes para a apreciação do risco pela seguradora, concede-se à seguradora o direito de opor a anulabilidade do contrato, nos termos do art.º 25.º, n.º 1 do Regime Jurídico do Contrato de Seguros, remetendo-nos para uma situação em tudo idêntica ao regime da anulabilidade do erro causada por dolo estatuído no direito substantivo civil - art.º 254.º do Código Civil - no contexto do erro sobre o objecto do negócio – art.º 251º do Código Civil – e - artº. 247º, do Código Civil – sendo pertinente saber se o erro foi factor determinante da declaração negocial emitida – essencialidade do elemento sobre que incidiu o erro – e se o destinatário da declaração conhecia ou devia conhecer essa essencialidade, sendo estes os requisitos comuns de anulabilidade.
IV. Constituem requisitos essenciais do erro sobre o objecto, não só a essencialidade para o declarante do elemento sobre que recaiu o erro, mas também, o conhecimento ou dever de não ignorar essa essencialidade por parte do declaratário, sendo que a essencialidade do erro é um conceito de direito que deve ser deduzido dos factos provados e das circunstâncias que os rodeiam
No mesmo sentido, pode consultar-se o acórdão do TRP de 15.11.2018 (supra citado), no qual se afirma que, para anular o contrato, o segurador terá de demonstrar que o dolo o conduziu ao erro e que, se conhecesse o erro, não teria celebrado o contrato, ou seja, terá de demonstrar a essencialidade do erro.
Já o acórdão do TRC de 17.9.2019 (p. 3833/17.5T8LRA.C1, www.dgsi.pt) segue a tese contrária, nele se afirmando que «A anulabilidade do contrato de seguro prevista no art. 25º, nº 1, da LCS basta‑se com o incumprimento doloso daquele dever, não sendo imprescindível que a omissão ou declaração inexacta seja susceptível de influenciar o segurador na decisão de contratar
Segue esta linha de orientação o acórdão do TRP de 4.9.2015 (p. 172/13.4TBMAI.P1, www.dgsi.pt), no qual se sumariou que:
«IV – Para a anulabilidade do contrato de seguro prevista no art. 25º, nº 1, da LCS não é exigível a omissão ou a declaração inexacta susceptíveis de influenciar a seguradora na decisão de contratar, tal apenas acontece para as omissões ou inexactidões negligentes [artigo 26.º, nº 4 al. b) da LCS]
Seguimos o entendimento dominante na doutrina, segundo o qual o artigo 25.º da LCS regula um caso de «dolo-vício».
O que tem como consequência a necessidade da verificação da dupla causalidade exigida nos artigos 253.º e 254.º do Código Civil: o dolo tem de ser causa do erro do segurador e o erro tem de ser essencial, sendo a causa da anulabilidade.
Deste modo, para anular o contrato o segurador terá de demonstrar que o dolo o conduziu ao erro e que, se conhecesse o erro, não teria celebrado o contrato.
Descendo ao caso concreto, à luz das considerações expendidas, verificamos que ainda que se pudesse retirar do facto provado sob o ponto 23 da matéria de facto que o Autor agiu dolosamente, com o intuito de facilitar a contratação do seguro e nas melhores condições, o que não se concede por este Tribunal não poder ir além dos factos objeto da impugnação, não ficou demonstrado outro requisito que o regime do artigo 25.º da LCS pressupõe.
Assim, face à factualidade considerada provada e não provada, não é possível concluir que o erro provocado pela violação dolosa do dever de informação tenha isso essencial para a sua decisão de contratar, ou seja, que se conhecesse o erro, a Ré não teria celebrado o contrato.
Resta, pois, saber se é aplicável in casu o regime do erro simples, consagrado no artigo 26.º da LCS.
Da exceção da anulabilidade por omissões negligentes na declaração inicial de risco
O regime anterior, previsto no artigo 429.º do Código Comercial, previa a sanção da nulidade (que a jurisprudência e a doutrina apelidavam, de forma unânime, de «anulabilidade») para o incumprimento do dever de declaração inicial do risco, sem distinção entre dolo e negligência e boa ou má-fé.
Com a Lei do Contrato de Seguro, o legislador concedeu um tratamento diferenciado às omissões ou inexatidões negligentes, fruto das anteriores discussões na doutrina e na jurisprudência em torno do artigo 429.º do Código Comercial.
Seguindo este rumo, o artigo 26.º da LCS consagra o direito potestativo de alteração ou cessação do contrato por parte do segurador.
Na verdade, as omissões ou inexatidões negligentes têm uma gravidade inferior às omissões ou inexatidões dolosas, uma vez que assentam na inobservância de deveres de cuidado por parte do tomador do seguro ou segurado que, no entanto, não quis nem se conformou com o resultado.
Tornou-se necessário consagrar um regime menos gravoso para as omissões ou inexatidões negligentes, uma vez que o regime da anulabilidade se revelaria excessivamente desfavorável ao tomador do seguro ou segurado.
Estipula o artigo 26.º, n.º 1, da LCS que, em caso de incumprimento negligente do dever de declaração inicial do risco, o segurador tem o direito, mediante declaração a enviar ao tomador do seguro, no prazo de três meses a contar do seu conhecimento, a propor uma alteração do contrato, fixando um prazo não inferior a 14 dias para o envio da aceitação ou, caso a admita, da contraproposta, nos termos da alínea a), ou a fazer cessar o contrato, demonstrando que, em caso algum, celebra contratos para a cobertura de riscos relacionados com o facto omitido ou declarado inexatamente, de acordo com a alínea b).
Qual o significado da expressão «fazer cessar o contrato» que o legislador adotou no âmbito do artigo 26.º, n.º 1, alínea b), da LCS?
Na doutrina, alguns autores sustentam que está em causa uma cessação do contrato com base na sua invalidade, uma vez que estão em causa vícios que afetaram o negócio na fase pré-contratual, ou seja, durante a sua formação, para além do facto de a lei exigir ao segurador que demonstre, caso queira fazer cessar o contrato, que nunca o teria celebrado se tivesse conhecimento dos factos omitidos ou inexatamente declarados.
Neste sentido, entre outros, se pronunciarem Filipe Albuquerque, Uma outra abordagem em Torno das Declarações Inexatas e Reticentes no âmbito do Contrato de Seguro. Os Arts. 24.º a 26.º do DL 72/2008, de 16 de abril, in Estudos em Homenagem ao Professor Doutor Jorge de Figueiredo Dias, vol. IV, Coimbra Editora, Coimbra, 2010, pp. 627 a 635, e Menezes Cordeiro, obra citada, p. 586, que entende que está aqui em causa uma anulação sui generis, total ou parcial.
Em sentido diverso, Luís Poças sustenta que está em causa a resolução do contrato, uma vez que «a cessação (resolução) surge mais associada a uma solução de equidade - inviabilidade de manutenção do negócio sem que se verifique um prejuízo inaceitável para o segurador - do que a uma reação pelo incumprimento culposo do dever de declaração inicial do risco», pelo que «a resolução não se fundamenta apenas no incumprimento negligente: ela requer adicionalmente que o segurador em caso algum tivesse aceite o risco» (obra citada, p. 516). Segue esta linha de pensamento Vanessa Louro, elucidando que «Porventura, no intuito de estabelecer uma sanção menos gravosa atendendo à menor censurabilidade da conduta do Tomador do Seguro/Segurado, atribuiu menor relevância ao erro no caso das omissões negligentes. Até porque esta resolução aparece como expediente subsidiário, sendo a primeira solução a de manutenção do contrato com as devidas alterações, extraindo-se daqui uma preocupação do legislador em conservar o contrato.» (in Declaração Inicial do Risco no contrato de seguro: Análise do regime jurídico e breve comentário à jurisprudência recente dos Tribunais Superiores, Revista Eletrónica de Direito, n.º 2, junho de 2016, disponível em www.cije.up.pt/, pp. 29 e 30)
Patrícia Daniela Pedra de Matos defende que, independentemente da discussão doutrinal, «a adoção da expressão “direito potestativo do segurador à sua cessação” é suficiente, sem prejuízo de considerarmos que, tendo em conta todos os argumentos suprarreferidos, e com base nas finalidades prosseguidas aquando da criação da LCS, a intenção do legislador se aproximará mais da resolução do que da anulabilidade do contrato.» (Dos Deveres Pré-Contratuais no Contrato de Seguro, outubro de 2017, in https://repositorium.sdum.uminho.pt/, p. 95).
É verdade que a LCS não é clara neste ponto, uma vez que adotou o termo «anulabilidade» no artigo 25.º, mas utiliza a expressão «fazer cessar o contrato» no artigo 26.º. Tal como Luís Poças, propendemos para considerar a figura mais próxima da resolução do contrato.
O artigo 26.º, n.º 4, do da LCS refere-se às situações em que, antes da cessação do contrato ou da sua alteração, tenha ocorrido um sinistro cuja verificação ou cujas consequências tenham sido influenciadas por facto relativamente ao qual tenha havido omissões ou inexatidões negligentes.
Neste particular, a LCS introduz uma novidade: a necessidade de existência de nexo causal entre os factos omitidos ou inexatamente declarados e o sinistro ocorrido de forma a ser possível a cessação do contrato por parte do segurador.
Logo, ocorrendo um sinistro cuja verificação ou cujas consequências tenham sido influenciadas por facto relativamente ao qual tenha havido omissões ou inexatidões negligentes por parte do tomador do seguro ou segurado, o segurador tem duas hipóteses: ou cobre o sinistro na proporção da diferença entre o prémio pago e o prémio que seria devido caso tivesse conhecido o facto omitido ou declarado inexatamente aquando da celebração do contrato [alínea a) do n.º 4 do artigo 26.º da LCS]; ou não cobre o sinistro e fica apenas vinculado à devolução do prémio, demonstrando que, em caso algum, teria celebrado o contrato se tivesse conhecido o facto omitido ou declarado inexatamente [alínea b) do n.º 4 do artigo 26.º da LCS].
Neste particular, a Ré alega apenas o seguinte:
«92
A anulabilidade do negócio surge pelo facto do interesse da ré não ter sido suficientemente atendido aquando da adesão ao contrato de seguro.
93.º
E prevalece ainda que o segurado tenha agido com mera negligência.
94.º
Podendo ser invocada pelas pessoas em cujo interesse a lei a estabelece (artigo  287.º, n.º 1, doCC) e tem efeito retroactivo (artigo 289.º do CC)
Decorre do exposto que a Ré invoca a anulabilidade do contrato de seguro por omissões negligentes.
Qualifique-se esta pretensão como pedido de anulação ou de resolução do contrato, certo é que a Ré pretende afastar a cobertura do risco pelo seguro também por omissões negligentes.
Tal significa que lhe incumbia alegar um facto essencial  - que, em caso algum, teria celebrado o contrato se tivesse conhecido o facto omitido ou declarado inexactamente. O que não fez, como ressalta da análise da contestação.
Mais uma vez, tendo presente o princípio do dispositivo, na sua dimensão concretizada nos artigos 5.º, n.º 1, e 572.º, alínea c), do CPC, não pode ser considerada esta factualidade, pelo que improcede também a exceção do direito à «cessação do contrato» por omissão negligente do dever de informação previsto nos artigos 24.º, n.º 1, e 26.º da LCS.
Em face das considerações supra expendidas, é mister concluir pela improcedência das exceções da anulabilidade e da cessação do contrato de seguro, por omissões dolosas ou negligentes.
Da exclusão da cobertura do seguro de patologias e deficiências pré-existentes
Com a nulidade parcial da sentença por excesso de pronúncia, na parte em que conheceu da violação do dever de informação por banda da Ré e, em consequência, considerou excluídas as cláusulas contratuais gerais descritas nos factos provados, ao abrigo do artigo 8.º, alínea b), do Decreto-Lei n.º 446/85, subjaz o teor dessas cláusulas.
Ora, compulsado o contrato de seguro celebrado entre as partes, verifica-se que o risco da invalidez do Autor está excluído da sua cobertura.
Com efeito, dispõe a cláusula 3.1. das Condições Especiais (complementar de invalidez total e permanente) que:
«Através desta cobertura complementar o Segurador garante o pagamento, por antecipação, do capital seguro em caso de morte expresso nas condições particulares se a pessoa segura ficar em situação de invalidez total e permanente por motivo de doença ou de acidente (...)».
Lê-se na cláusula 3.1 das condições gerais do contrato que:
«O(s) risco(s) cobertos no Artigo 2º não está(ão) coberto(s) no(s) seguinte(s) caso(s):
(…) e) Patologia, lesão ou deficiência preexistente, de que a Pessoa Segura seja portadora à data de entrada em vigor da Apólice».
Ora, o Autor celebrou o contrato de seguro em 1.12.2012.
Como resulta do ponto 23, quando celebrou o contrato de seguro era já portador das patologias que vieram a determinar a invalidez permanente.
Caso tivesse sido transmitida a informação da verificação dessas patologias e a Ré tivesse aceitado ainda assim a celebração do contrato nos mesmos moldes, as cláusulas especificamente acordadas prevaleceriam sobre esta cláusula contratual geral, como resulta do disposto no artigo 7.º do Decreto-Lei n.º 446/85.
Porém, não foi o que sucedeu.
Urge, pois, concluir que ficou demonstrado que o risco da invalidez do Autor está excluído da cobertura de risco do contrato de seguro
Do sentido da decisão do recurso e da responsabilidade quanto a custas
Em face do exposto, a apelação deve proceder, revogando-se a sentença recorrida, a qual deve ser substituída por outra que julgue a ação improcedente e absolva a Ré do pedido.
Considerando que o Apelado ficou vencido, é responsável pelo pagamento das custas da ação e do recurso, ao abrigo dos artigos 527.º, 529.º e 697.º, n.º 4, do CPC.
*
IV - Decisão
Nestes termos, decide-se julgar a apelação procedente e, em consequência, revogar a sentença recorrida, substituindo-a por outra que julga a ação improcedente e absolve a Ré do pedido.
Mais se condena o Recorrido nas custas do recurso e da ação.
*
Lisboa, 21 de maio de 2020
Gabriela Cunha Rodrigues
Arlindo Crua
António Moreira