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FURTO DE VEÍCULO
SEGURO DE DANOS
IMPUGNAÇÃO DA MATÉRIA DE FACTO
Sumário
I) O capital seguro representa o valor máximo da prestação a pagar pelo segurador, sendo que, salvo quando esteja determinado por lei, cabe ao tomador do seguro indicar ao segurador, quer no início, quer na vigência do contrato, o valor da coisa, direito ou património a que respeita o contrato, para efeito da determinação do capital seguro (cfr. art. 49.º, n.ºs. 1 e 2, da Lei do Contrato de Seguro (LCS), aprovada pelo D.L. n.º 72/2008, de 16 de abril). II) Nos seguros de danos a prestação do segurador está limitada ao valor do efectivo prejuízo, sem ultrapassar o valor do capital seguro (art. 128.º da LCS): O seguro de danos visa, apenas e no máximo, suprimir o dano efetivo, sofrido pelo segurado, não devendo proporcionar um lucro ao segurado. A prestação devida pelo segurador fica limitada ao dano decorrente do sinistro, até ao montante do capital seguro. III) O capital seguro não corresponde ao valor a pagar em caso de sinistro, mas ao valor até ao qual – ressalvados os casos em que ocorra, porventura, incumprimento ou cumprimento tardio da prestação convencionada a cargo do segurador – a seguradora se responsabiliza em caso de ocorrência de um sinistro. IV) A regra do artigo 128.º da LCS é supletiva, podendo ser afastada por convenção contrária das partes, acordando no valor do interesse seguro atendível para o cálculo da indemnização, muito embora esse valor não deva ser “manifestamente infundado” (cfr. artigo 131.º da LCS) e a convenção deva ser expressa (no sentido de que o valor do capital seguro será o valor indemnizatório) e prévia (ao momento de condicionamento da obrigação de indemnização). V) Na falta de estipulação nos termos do art. 131.º da LCS, importará apreciar se o valor do capital seguro, corresponde ao valor do bem. Se tal suceder, o valor da prestação da seguradora estará encontrado. No caso de não haver tal correspondência, a prestação da seguradora corresponderá ao valor apurado (valor venal ou de mercado), como valor em risco. VI) O recorrente que pretenda impugnar a matéria de facto tem que proceder à indicação concreta de meios de prova que pretende utilizar, nos termos da al. b) do n.º 1, do art. 640.º do CPC. VII) O autor, recorrido na apelação, pretendendo ampliar o objeto do recurso com impugnação de matéria de facto, encontra-se adstrito a observar os ónus de impugnação constantes do mencionado art. 640.º do CPC, com as devidas adaptações, ónus que não é observado se o impugnante não identifica, nem individualiza, por qualquer modo, o concreto depoimento ou testemunho gravado, que pretende utilizar em sede de impugnação, não bastando a alusão genérica a uma categoria ou tipo de meios de prova produzidos.
Texto Integral
Acordam na 2.ª Secção do Tribunal da Relação de Lisboa:
1. Relatório:
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PS…, identificado nos autos, instaurou a presente ação declarativa de condenação com processo comum contra SEGURADORAS UNIDAS, S.A., também identificada nos autos, pedindo a condenação da ré a:
- pagar-lhe o valor venal do veículo, fixado em €40.695,53;
- restituir-lhe o prémio de seguro referente ao 2º semestre da anuidade, por este pago, no valor de €628,29; e
-pagar-lhe os juros de mora vencidos, no montante de a €1.101,97, acrescido dos juros de mora vincendos até efectivo e integral pagamento.
Invocou, em síntese, ser proprietário da viatura veículo automóvel de marca BMW, modelo Série 5- Touring Diesel, de matrícula …-RA-…, segurada na R. e que no dia 18 de Fevereiro de 2017 lhe terá sido furtada altura em que foi assistir a um jogo de futebol no estádio do Sporting Clube de Portugal, tendo feito queixa do furto à PSP e participou à ré, a qual não aceita pagar a indemnização que o A. vem pedir nesta acção.
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A ré contestou, concluindo pela existência de fraude na elaboração do seguro e na descrição do furto realizada pelo autor, que afasta como verosímil, declinando qualquer responsabilidade.
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O autor apresentou resposta à matéria de exceção.
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Foi elaborado despacho saneador, fixado o objecto do litigio e os temas de prova.
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Realizada que foi audiência de julgamento, em 29-10-2019 foi proferida sentença decidindo, na parcial procedência da acção, condenar “a R. a pagar ao A. a quantia indemnizatória no valor de €40.695,53, acrescida de juros vencidos e vincendos e até integral pagamento”.
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Não se conformando com a referida sentença, dela apela a ré, formulando as seguintes conclusões: “1 - Entende a Recorrente que face à matéria de facto provada quanto ao valor venal do veículo e valor que o Recorrido despendeu com a sua aquisição, deveria ter sido outra a solução jurídica alcançada no que concerne ao valor da condenação pelo furto do veículo, violando a sentença Recorrida o preceituado nos art.ºs 128º e 132º do Regime Jurídico do Contrato de Seguro e 562º do Código Civil. 2 – A motivação do presente recurso prende-se exclusivamente com matéria de direito, sendo a questão a decidir a de saber se assiste ao Recorrido o direito a ser ressarcido, num seguro de danos próprios, pelo valor do capital seguro quando este é bastante superior (i) ao valor de aquisição do veículo e (ii) ao seu valor venal. 3 – A este respeito, deu o Tribunal recorrido como provado, nomeadamente, que: dd) O valor venal do veículo em causa seria de cerca de Euros 25.000,00; jj) O custo global do veículo para o A. ascendeu a Euros 19.559,86; mm) Na sequência da importação do veículo, em 5 de Março de 2016, o A. celebra com a R. um contrato seguro de responsabilidade civil automóvel com coberturas de danos próprios; nn) Aqui se incluindo a cobertura de Furto ou Roubo com um capital seguro de Euros 40.695,53. 4 – Com base nesta factualidade, decidiu-se o Tribunal recorrido pela condenação da Recorrente no pagamento ao Recorrido da quantia de €40.695,53 (capital seguro). 5 – O seguro em causa nos autos é um seguro de responsabilidade civil automóvel, sendo a Recorrente accionada no âmbito da comummente designada cobertura de danos próprios. 6 – Estamos perante um contrato que visa a transferência para uma seguradora da responsabilidade que ao tomador ou segurado caberia assumir, na hipótese de ocorrência de determinados eventos, que constituem o risco assumido pela seguradora. 7 – Enquanto seguro de danos, a teleologia do contrato situa-se em que a entidade seguradora assume o risco que constitui para o património do segurado a perda ou afectação patrimonial da coisa - em consequência, a obrigação da seguradora é limitada pelo valor da coisa, em caso de perda, ou pela diminuição de valor, no caso de mera afectação. 8 – Todavia, o contrato de seguro menciona necessariamente o valor atribuído à coisa, ou seja, o valor seguro. 9 – A questão colocada é assim a de saber se a obrigação de indemnizar se mede pelo valor seguro ou, ao invés, pelo valor real da coisa com o limite máximo do valor seguro. 10 – Nos termos do art.º 43º do Regime Jurídico do Contrato de Seguro, o segurado deve ter um interesse digno de protecção legal relativamente ao risco coberto, sob pena de nulidade do contrato – é a consagração do princípio do interesse. 11 – Dispõe o n.º 2 do citado art.º 43º RJCS que no seguro de danos, o interesse respeita à conservação ou à integridade de coisa, direito ou património seguros. 12 – A razão de ser da exigência da verificação de um interesse para a válida constituição do contrato de seguro encontra paralelo na consagração de que na sua vida e funcionamento o contrato se mantenha fiel àquele interesse e à sua quantificação, agora enquanto medida de indemnização. 13 – O princípio indemnizatório encontra acolhimento no art.º 128º RJCS (a prestação devida pelo segurador está limitada ao dano decorrente do sinistro até ao montante do capital seguro), visando, fundamentalmente, obstar à especulação no âmbito dos seguros e dissuadir a fraude e determinar os critérios do montante indemnizatório. 14 – Veja-se a este respeito, a título exemplificativo, o Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 24.04.2012 em www.dgsi.pt. Conforme sumário do referido acórdão: I - Verifica-se uma situação de sobresseguro sempre que, ab initio ou no decurso do contrato, o objecto do seguro tenha um valor inferior ao declarado, ou seja, um valor inferior àquele pelo qual se encontra seguro. II - A questão do sobresseguro e a consagração do principio do indemnizatório, que vinha sendo objecto de expressa regulação no art. 435.º do CCom, é actualmente regulada pelo DL n.º 72/2008, de 16-04, o qual no seu art. 132.º diz que “se o capital seguro exceder o valor do interesse seguro é aplicável o disposto no artigo 128.º, podendo as partes pedir a redução do contrato” sendo precisamente este art. 128.º que mantém, na legislação nacional relativa ao contrato de seguro, a consagração do princípio do indemnizatório, referindo que “a prestação devida pelo segurador está limitada ao dano decorrente do sinistro até ao montante do capital seguro”. III - Em caso de sobresseguro (originário ou posterior), o contrato deve, por força do principio do indemnizatório, na forma em que este se encontra consagrado na legislação sobre seguros, ser considerado ferido de invalidade na parte excedente, ou seja, na parte em que o valor exceda o do objecto segurado – arts. 128.º e 132.º, n.º 1, do DL n.º 72/2008. IV - A justificação para esta realidade normativa não pode deixar de ter presente o principio segundo o qual o dever de indemnizar visa colocar o lesado na posição que teria se não fosse o dano, significando isto que o quantum indemnizatório deve corresponder ao prejuízo efectivamente sofrido – principio geral contido no art. 562.º CC –, não podendo nunca constituir um meio de proporcionar um injustificado enriquecimento do lesado, ter um carácter especulativo ou. muito menos. constituir um modo fraudulento de enriquecimento patrimonial. V - As razões da regulamentação da questão do sobresseguro (ou seguro excedente) devam ser, como são, consideradas verdadeiras razões de ordem pública, destinadas à salvaguarda do princípio do indemnizatório, daí resultando que se deva considerar ferida de nulidade absoluta toda a parte do valor contratualmente coberto que exceda o valor do objecto segurado. VI - A limitação da obrigação de indemnizar ao montante real do objecto seguro decorre, directa e exclusivamente, do disposto no art. 128.º do DL n.º 72/2008.” 15 – Apesar de constituir principio de valoração omnipresente, importa lembrar que o direito nunca pode ser desagregado de sentido ético nem tão pouco da boa fé que constitui, aliás um principio estruturante da nossa ordem jurídica. 16 – Os factos provados nos autos, em concreto o valor venal do veículo (factos provados alínea dd)), considerado como o valor de mercado do bem à data do sinistro, e o valor do capital seguro (factos provados alínea nn)) conduzem-nos à existência de uma situação de sobresseguro em que o valor do objecto seguro é significativamente inferior ao declarado e, consequentemente, àquele pelo qual se encontra seguro. 17 – A situação de sobresseguro verifica-se sempre que "ab initio" ou no decurso do contrato o objecto do seguro tenha valor inferior ao valor pelo qual está seguro. 18 – (i) Determinando o princípio do indemnizatório, com acolhimento no art.º 128.º do RJCS, que a prestação devida pelo segurador está limitada ao dano decorrente do sinistro até ao montante do capital seguro, e (ii) visando tal princípio obstar a um enriquecimento ilícito por parte do segurado – o que sucederia se o mesmo, comprovando-se que o bem é de valor inferior àquele pelo qual se encontra seguro, fosse indemnizado pelo valor do capital seguro, (iii) a indemnização nos presentes autos terá de se considerada limitada ao valor venal apurado. 19 – Tem aqui plena aplicação o princípio indemnizatório (art.ºs 128º e 132.º RJCS), pelo que, tendo sido dado como provado o valor venal deste veículo em concreto, terá, forçosamente, que se atender a ele para a fixação da indemnização. 20 – É esta também a interpretação que se encontra vertida nos Acórdãos do Supremo Tribunal de Justiça de 23.01.2014 e de 18.06.2015 (www.dgsi.pt): estas decisões versam sobre situações de sobresseguro em que se decidiu pela condenação da seguradora pelo valor venal do bem à data do sinistro, sendo este considerado como o valor de mercado do veículo, afastando-se expressamente a consideração do valor do capital seguro como faz a sentença recorrida. 21 – A decisão recorrida, ao determinar a indemnização do Recorrido pelo valor do capital seguro, ignorando o custo em concreto com a aquisição do bem e o valor venal que ficou provado nos autos, leva, precisamente, à situação de enriquecimento que se pretendeu evitar ao consagrar expressamente na lei o princípio do indemnizatório: por um bem que tem um valor venal de cerca de €25.000,00 receberia o Recorrido mais de €40.000,00! 22 – Não é esta a finalidade do contrato de seguro. 23 – O Recorrido não sofreu um dano patrimonial equivalente ao valor do capital seguro: sendo indemnizado por este valor, teremos uma situação de enriquecimento ilegítimo, afastando-se a intenção exclusivamente indemnizatória dos seguros de risco e, como tal, violando-se o que se pretendeu deixar expressamente consagrado na Lei. 24 – Conforme Acórdão do STJ de 23.01.2014, proferido no processo 703/10.1TBEPS.G1.S1 “Sempre se dizendo, se for caso de censura da conduta da seguradora, ao aceitar valor do veículo tão desfasado do real, com tanta ligeireza, maior sendo o prémio a receber, naturalmente, não menos o será o do tomador do seguro, que, por razões que, no mínimo, não são fáceis de entender, atribui ao objecto do risco valor superior ao dobro do que o mesmo valia (…)” 25 – Não deixando de ter presente que estamos no domínio de um mero seguro de danos, nem sempre o valor do bem corresponde ao capital pelo qual este se encontra seguro, o que justifica a existência das figuras do sobre-seguro e do sub-seguro. 26 – No caso em apreço, provou-se que o valor do capital seguro (€40.695,53) não correspondia ao valor de mercado do veículo. Tal conclusão mantém-se verdadeira quer atendamos ao valor que o A. despendeu na aquisição do veículo (€ 19.559,86), quer atendamos ao valor venal também dado como assente (cerca de € 25.000,00). 27 – Donde, fosse qual fosse o valor atendível, sempre estaríamos perante uma situação de sobrevalorização do capital seguro. 28 – Face a tudo o que se deixou exposto, é manifesto que deverá ser revogada a decisão recorrida por ser claramente violadora das regras aplicáveis à situação de sobresseguro. 29 – O segurado deve ser ressarcido do prejuízo que efectivamente sofreu, não podendo o seguro constituir fonte de rendimento para os lesados. 30 – Apenas assim não seria se fosse de aplicar o regime excepcional do Decreto-Lei n.º 214/97, de 16 de Agosto, o que manifestamente não sucede: nenhuma questão se pode colocar quanto à tabela de actualização do valor seguro, quer face ao regime constante das condições gerais juntas aos autos, quer porquanto o sinistro ocorreu logo no decurso da primeira anuidade da apólice (factos provados c) e mm): contrato de seguro celebrado em 05.03.2016, com sinistro ocorrido em 18.02.2017). 31 – Em suma, no que respeita ao furto do veículo, considerando-se o mesmo como provado, estará a Recorrente obrigada a indemnizar a diferença que desse furto decorreu para o património do Recorrido: ou seja, montante equivalente ao valor venal do veículo, dado como provado”.
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O autor contra-alegou tendo concluído o seguinte: “1ª Nos termos das alegações de recurso da Recorrente, “a motivação do presente recurso prende-se exclusivamente sobre matéria de direito, encontrando-se, assim, delimitado o âmbito do recurso, sendo que a questão a decidir será a de saber se assiste a o Recorrido o direito a ser ressarcido pelo furto, no âmbito do seguro de danos próprios , pelo valor do capital seguro quando este é bastante superior quer ao valor de aquisição do veiculo , quer ao seu valor venal”. 2ª No entender do Recorrido, não merece o aresto recorrido qualquer censura no que concerne ao direito aplicável; 3ª De facto, e salvo melhor opinião, não releva para os autos o preço pelo qual o aqui Recorrido adquiriu o veículo porquanto o facto é que o adquiriu e era proprietário do mesmo: se o preço que custeou foi um bom ou um mau preço, se foi um bom ou um mau negócio, para o Recorrido ou para quem lho vendeu, é aqui irrelevante. 4ª O que releva é que para efeitos de seguro a Recorrente atribuiu ou concordou atribuir ao veículo, na posse de todos os elementos relevantes (marca, matricula, ano de fabrico, características do veiculo) e após o ter inspecionado, um determinado valor, valor esse que não foi definido unilateralmente pelo Recorrido mas que resultou, como sempre resulta, da conformidade do valor indicado pelo Recorrido com o valor de mercado do veículo, à data da contratação da apólice e de acordo com tabelas ou índices que a Recorrente, enquanto seguradora, tem definidos, não estando na disponibilidade dos segurados negociar ou determinar livre, unilateral e aleatoriamente valores neste âmbito, designadamente valores que não tenham o mínimo de correspondência com o valor do objecto segurado, até porque os valores são inseridos na plataforma informática da seguradora e são por esta validados anteriormente à celebração do contrato de seguro. 5ª Se a Recorrida tinha dúvidas acerca do valor do veículo – dúvidas essas que em momento algum manifestou – impendia sobre si o ónus de solicitar os elementos adicionais que considerasse adequados ou pertinentes para dissipar essas dúvidas. 6ª Conforme bem se refere no douto Acórdão da Relação de Lisboa de 22/11/2018, no âmbito do Processo nº 18262/17.2T8LSB.L1-2, “O valor dado a um veículo automóvel para efeitos de seguro que possa ser imputa do à organização de meios de uma seguradora , designadamente pela introdução de dados do veículo num sistema informático utilizado pela mesma, precedida de uma vistoria, e que é aceite pelo segurado, corresponde ao valor real do veículo e/ou pode ser considerado como sendo um valor obtido por acordo antecedido de uma perícia (um sucedâneo do acordo previsto no art. 131 da LCS), pelo que, por regra, não tem razão de ser a invocação de falta de coincidência entre o valor seguro e o valor real ou de falta de acordo quanto ao valor (sendo que essa invocação, pela seguradora, nestas circunstâncias, sempre se poderia dizer manchada pelo abuso de direito: art. 334 do CC) ”. 7ª Em suma, esta posição da Recorrente, de vir agora, depois de ter acordado um valor para efeitos de celebração de seguro, depois de ter cobrado prémios de acordo com esse valor que determinou, pôr em causa o valor do veículo é claramente um abuso de direito, como enunciou o Tribunal a quo e como os Venerandos Desembargadores não podem deixar de reconhecer. 8ª Quando o valor do interesse seguro tiver sido acordado, como sucedeu no caso concreto, “não se aplica o principio indemnizatório (qua aliás não será um principio de ordem pública)”, sendo que tem sido entendido que “embora para que haja um valor acordado não basta a aceitação da proposta do tomador pela seguradora, a situação normal, ao menos no seguro automóvel facultativo, será o de o valor seguro ser um valor acordado”, não podendo as seguradoras “sob pena de abus o de direito (…) na modalidade de venire contra factum proprium, opor aos tomadores o valor real depois do sinistro ter ocorrido para evitarem sobreindemnizações, se antes de celebrarem o contrato nada fizeram para o apurar, como o que evitar a celebrar o contrato com sobresseguro (e com os inerentes sobreprémios) apesar de o poderem ter feito com facilidade, se tivessem actuado com um mínimo de diligência que a boa-fé lhes impunha” – neste sentido, Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa de 18/04/2013, no âmbito do Processo nº 2212/09.2TBACB.L1-2, in www.dgsi.pt. 9ª Como bem refere o citado aresto, “se a Ré, com base numa simples avaliação num espaço de tempo que se estima inferior a 1 minuto, pode calcular o valor real seguro, é inconcebível que se abstenha de o fazer no momento da contratação do seguro, aceitando celebrá-lo, dando origem assim, segundo ela, a um sobresseguro, com os inerentes sobreprémios, para só quando ocorre o sinistro se lembrar de fazer tal avaliação, para então a opor ao tomador do seguro, visando com isso evitar aquilo que ela chamará de uma sobreindemnização ”. 10ª “No âmbito do seguro facultativo de danos próprios em viatura automóvel, enquanto não for actualizado, nos termos legais, o valor do veículo seguro, a considerar para efeitos de indemnização em caso de perda total, e tal actualização comunicada ao tomador de seguro, as seguradoras estão constituídas na obrigação de responder, em caso de sinistro, com base no valor seguro apurado à data do vencimento do prémio imediatamente anterior à ocorrência do sinistro” – cfr. Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa de 25/06/2009, no âmbito do Processo nº 515/05.0TBMTJ.L1-2, in www.dgsi.pt. 11ª “O DL n.º 214/97, de 16/08 estabeleceu um regime especial para o seguro facultativo de danos próprios em veículo automóvel, instituindo regras de transparência em matéria de sobresseguro que impõem às seguradoras a elaboração de tabelas de desvalorização periódicas automáticas para determinação da indemnização. 2 Enquanto não for atualizado o valor do veículo seguro, as seguradoras estão obrigadas a responder com base no valor seguro apurado à data do vencimento do prémio imediatamente anterior à ocorrência do sinistro» - cfr. Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães de 11/07/2013, in www.dgsi.pt. 12ª Tal entendimento, que se acolhe, baseia-se no facto de o Decreto-Lei nº 72/2008 ter vindo regular a actividade seguradora em geral e não ter revogado o Dl 214/97 de 16 de Agosto, diploma que se mantém em vigor e contempla regime expresso, aplicável ao seguro automóvel, prescrevendo que em tal caso de sobresseguro a indemnização corresponderá ao valor efectivamente seguro, independentemente da desvalorização real da viatura. 13ª Por outro lado, o diploma em causa está em vigor, não tendo sido revogado pelo Decreto-Lei nº 72/2008, o que permite concluir que o legislador de 2008 quis manter à parte a disciplina do sobresseguro no que respeita ao seguro automóvel. 14ª Sufragamos pois, nesta sede, o entendimento jurisprudencial segundo o qual, perante a disciplina legal do Decreto-Lei nº 214/97, a conclusão a tirar não pode deixar de ser a de que, enquanto não for actualizado, nos termos legais, o valor do veículo seguro a considerar para efeitos de indemnização em caso de perda total/furto, e tal actualização comunicada ao tomador de seguro, as seguradoras estão constituídas na obrigação de responder, em caso de sinistro, com base no valor seguro apurado à data do vencimento do prémio imediatamente anterior à ocorrência do sinistro – cfr., neste sentido, ainda , Acórdão da Relação de Guimarães de 18/06/2013, no âmbito do Processo nº 703/10.1TBEPS.G1, in www.dgsi.pt. 15ª Ora, sendo o regime estabelecido no Decreto Lei nº 214/97 aplicável ao contrato em causa, facilmente se constata que, aquando do sinistro dos autos o valor a considerar para efeitos de indemnização era aquele que estava em vigor no contrato e em relação ao qual eram pagos os prémios de seguro. 16ª Do exposto, resulta que impende sobre a Recorrente a obrigação de indemnizar o Recorrido com base no valor seguro, mantendo-se na integra a decisão constante da douta Sentença recorrida. 17ª Caso assim não se entenda, o que apenas por mera cautela de patrocínio se equaciona, vem o Recorrido, nos termos e para os efeitos do artigo 636º do CPC, requerer a ampliação do objecto do recurso, nos termos que seguem. 18ª A decisão da matéria de facto quanto ao ponto dd) dos factos provados (“o valor venal do veiculo em causa seria de cerca de Eur os 25.000,00”) é de todo desconforme e contrária aos elementos probatórios recolhidos nos autos e deles constantes, não vislumbrando o Recorrido em que se baseou o douto Tribunal recorrido para considerar provado o facto vertido sob o ponto dd) da Matéria de Facto dada como provada. 19ª Analisados os depoimentos das testemunhas que prestaram depoimento em sede de audiência de julgamento e bem assim a documentação junta aos autos, não se encontra o mínimo resquício de prova de que o valor venal do veículo era de €25.000,00, conforme alegado pela Recorrente na sua Contestação (designadamente no artigo 18º da mesma) e declarado provado pelo Tribunal a quo. 20ª Contrariamente ao alegado pela Recorrente, o valor do objecto seguro, aceite aliás pela Recorrente, era, à data da aquisição, perfeitamente consentâneo com o valor de mercado do veiculo em causa, atendendo ao modelo e às características do mesmo - BMW Série 5 – Touring Diesel com caixa de velocidades automática, 2993 de cilindrada, 160 Kw e Pack M), características, aliás, substancialmente diferentes das características dos veículos que a Recorrente menciona no Doc. 10 junto com a contestação (que ou são carros com menos potência ou são carros com quase o dobro dos quilómetros ou com muito menos extras ou com caixa de velocidades manual), características que necessariamente impactam no valor respectivo. 21ª Já para não mencionar o facto de os referidos preços, constantes do Doc. 10 junto com a contestação, serem preços de aquisição dos veículos na Alemanha (ou seja, não contemplando os custos de transporte, inspecção e legalização em Portugal, designadamente de impostos), preços sem IVA e preços praticados mais de dois anos após a aquisição do veiculo pelo Recorrido no referido país, sendo óbvio e de conhecimento generalizado que em dois anos um veiculo perde, naturalmente, parte significativa do seu valor comercial. 22ª E manifesto de que o valor do veículo considerado para efeitos de seguro era consentâneo com o valor de mercado é o facto de mais de dois anos depois, veículos com características aparentemente similares estarem à venda por €25.750,00, conforme aliás decorre do Doc. 11 junto pela Recorrente com a contestação, E diz-se aparentemente similares porquanto mesmo o veiculo que a Recorrente utiliza para alegadamente demonstrar a sua tese – o veiculo alegadamente constante do Doc. 11 junto com a sua contestação, que corresponde, segundo a Recorrente, a um veiculo que foi segurado pelo Recorrido com a matricula …-QS-… – é um veiculo com características diferentes do veiculo em discussão nos presentes autos, até porque tem cilindrada inferior (1995, conforme consta do documento junto pela Recorrente, por contraposição aos 2993 de cilindrada da viatura em apreciação nos autos), não tem caixa de velocidades automática, não tem tecto panorâmico, enfim, é um veiculo bastante inferior em termos de valor…. 23ª Aliás, mais de 2 anos após a aquisição do veículo pelo Recorrido, designadamente em Fevereiro de 2018, veículos idênticos estavam à venda por aproximadamente €30.000,00, sem terem os extras que o veiculo em causa tinha (cfr. por todos, Doc. 1 junto com o requerimento apresentado pelo Autor aqui Recorrido em 19.02.2018, refª Citius 17978431)…. 24ª De igual modo, do depoimento das testemunhas inquiridas nos autos não é possível inferir o referido valor de €25.000,00 – nem qualquer outro concreto - como sendo o valor venal do veículo, porquanto nenhuma testemunha se pronuncia especificadamente e de forma sustentada sobre um valor em concreto. 25ª Dos autos consta apenas uma avaliação Eurotax, integrante do processo de legalização do veículo em Portugal, nos termos da qual, em 26.02.2016, o preço do veiculo em novo era de €70.663,00 (preço exactamente correspondente ao valor considerado pela Recorrida no contrato de seguro (cfr. Doc. 2 junto com a PI)) e o valor de cotação de venda corrigida do veiculo, para efeitos de calculo Eurotax, seria de €26.874,00, sendo que este valor considerava apenas o equipamento de serie devidamente descrito no documento (do qual não constam os items que foram segurados como extras, ou seja, o tecto panorâmico e as jantes em liga leve pack M, distintas das jantes de liga leve 17 que constituem equipamento de série). 26ª Tal equivale a dizer não só que a Recorrente teve acesso ao preço do veiculo em novo e o aceitou, fazendo-o constar da apólice, como também que não é crível que não tivesse tido acesso à cotação de venda corrigida Eurotax e à informação de que se tratava de um veiculo importado (o que se conclui quase automaticamente pela contraposição do ano do veiculo e da matricula). 27ª E tendo tido esse acesso, como teve ou estava ao seu alcance ter, não foi o facto de o valor de cotação Eurotax do veículo ser de €26.874,00 que a impediu de celebrar o contrato de seguro pelos valores que celebrou, exactamente por que a Recorrida sabe que a tabela Eurotax é uma mera tabela de referência no mercado de veículos usados, nem sempre correspondendo aos valores de mercado dos veículos, que dependem de múltiplos outros factores, como são os extras, o facto de se tratar de um veiculo mais ou menos comum no mercado, a conjuntura económica, a mera lei da oferta e da procura, enfim, uma multiplicidade de factores. 28ª Ou seja, pese embora o valor Eurotax seja inferior ao valor segurado, o mesmo é superior aos €25.000,00 que o tribunal a quo considerou como provado ser o valor venal do veículo e não considera os extras cujo valor foi também segurado. 29ª A prova de que o valor real do veículo não coincidia com o valor pelo qual ele foi segurado cabe à seguradora, como facto impeditivo do direito do Autor aqui Recorrido ao recebimento do valor acordado (art. 342/1 e 2 do CC), não tendo a seguradora logrado fazer prova, por qualquer forma, de que o valor real do veiculo, à data da contratação do seguro, era de €25.000,00. 30º Pelo contrario, a análise cuidada dos documentos juntos aos autos e da prova testemunhal produzida em sede de audiência de julgamento vêm tão-só confirmar que a Recorrente não fez por qualquer forma prova do valor venal do veiculo e, designadamente, de que tal valor era de €25.000,00, pelo que o Tribunal Recorrido deveria ter decidido de outra forma no que concerne ao concreto ponto da matéria de facto, julgando-o como não provado. 31ª Não colhe, pois, a argumentação e fundamentação jurídica alegada pela Recorrente, desde logo porquanto a mesma se baseia num concreto ponto da matéria de facto que tendo sido considerado provado pelo Tribunal a quo não o foi efectivamente. 32ª No mais, não merece a douta Sentença Recorrida qualquer censura ou reparo”.
* 2. Questões a decidir:
Sendo o objecto do recurso balizado pelas conclusões do apelante, nos termos preceituados pelos artigos 635º, nº 4, e 639º, nº 1, do CPC - sem prejuízo das questões de que o tribunal deva conhecer oficiosamente e apenas estando adstrito a conhecer das questões suscitadas que sejam relevantes para conhecimento do objeto do recurso - , as questões a decidir são:
* A) Da apelação da ré:
1) Do valor do veículo a atender para contabilização da prestação da ré. B) Da ampliação do objeto do recurso pelo autor: I) Impugnação da matéria de facto:
2) Questão prévia – Da não reapreciação da prova gravada, por incumprimento, pela apelante, do disposto no artigo 640.º do CPC.
3) Da alteração da matéria de facto constante da alínea dd) dos factos provados (“o valor venal do veiculo em causa seria de cerca de Euros 25.000,00”) com fundamento na prova documental produzida. C) Apreciação do recurso.
4) Se a sentença recorrida, ao indemnizar pelo valor do capital seguro, não atendendo ao custo de aquisição do veículo e ao valor venal que o mesmo teria, violou o disposto nos art.ºs 128º e 132º do Regime Jurídico do Contrato de Seguro e 562º do Código Civil?
* 3. Enquadramento de facto:
* A DECISÃO RECORRIDA CONSIDEROU COMO PROVADA A SEGUINTE FACTUALIDADE:
a) O Autor é proprietário do veículo automóvel de marca BMW, modelo Série 5- Touring Diesel, de matrícula …-RA-…;
b) O referido veículo encontrava-se, à data dos factos, segurado junto da Ré, ao abrigo da apólice nº …, a qual cobre, entre outros, os danos próprios e, designadamente, os riscos de furto ou roubo;
c) No dia 18-02-2017 o Autor foi, assistir a um jogo de futebol do Sporting Clube de Portugal no Estádio José de Alvalade, contra o Rio Ave Futebol Clube, tendo sido acompanhado por um amigo;
d) Nessa data, o Autor estacionou o seu veiculo na Rua António Couto, a 500 metros do referido estádio;
e) No final do jogo, o Autor saiu do estádio e, dirigindo-se ao local onde deixara o seu veiculo acima identificado estacionado, constatou que o mesmo já lá não se encontrava;
f) Supondo que o veiculo havia sido rebocado, o Autor dirigiu-se à 19ª Esquadra, Policia de Segurança Pública, em Telheiras tendo no local e pelos agentes presentes sido efectuadas diligências junto dos parques de depósito de veículos e enviada mensagem de telemóvel para o 3838, correspondente ao serviço SOS Reboques, sendo que em ambos os casos a resposta foi negativa;
g) Nesta sequência, e tudo indicando assim que o veiculo havia sido não rebocado mas furtado, o Autor foi então encaminhado para o departamento competente dentro da esquadra e apresentou participação criminal referente ao furto do veiculo e dos bens que se encontravam no seu interior, a saber uma cadeirinha de criança, a carta verde do seguro, o dispositivo de via verde e as chaves de acesso à sua habitação;
h) No dia 20 de Fevereiro -2ªf- o Autor contactou a sua mediadora de seguros - BM2 – Mediação de Seguros, Unipessoal Lda., com escritório no Centro Comercial Flamingos, Loja 50, 2660-329 Santo António dos Cavaleiros, por forma a participar a ocorrência à seguradora, ora Ré, o que esta fez;
i) Decorrido cerca de um mês, o Autor foi notificado do arquivamento do processo crime referente ao furto do veiculo;
j) Em finais de Março de 2017 a perita averiguadora ao serviço da Ré foi ao encontro do Autor, pediu-lhe a chave do veiculo (que este lhe entregou) e solicitou ao Autor esclarecimentos diversos;
l) O veiculo é do ano de 2011, tendo tido a primeira matricula em Portugal aquando da aquisição pelo A., em Março de 2016;
m) o A. mandou fazer uma chave num concessionário da Alemanha em virtude da viatura só ter uma chave na altura da compra;
n) Por carta datada de 26-04-2017 a Ré informou que não iria proceder à regularização dos danos decorrentes do sinistro alegando para o efeito que “de acordo com os elementos disponíveis informamos que no âmbito das diligências levadas a cabo pelos nossos serviços técnicos, foi-nos possível apurar a existência de vários elementos que nos levaram a concluir que o acidente em causa não se tratou de um evento súbito e fortuito”
o) Em 13-09-2017 o A. endereçou carta à R.;
p) O Autor procedeu, dentro do prazo, ao pagamento do aviso referente à segunda semestralidade do prémio de seguro, que lhe foi remetido pela Ré, no valor de € 628,29, tendo em consequência a Ré procedido à emissão da carta verde.
q) No âmbito do seguro automóvel obrigatório o Autor transferiu para a Ré a respectiva responsabilidade civil do veiculo de matricula …-RA-…, através da apólice …, com inicio em 05-03-2016, que da listagem de coberturas da apólice contratadas fazia parte, entre outras, a cobertura de furto ou roubo;
r) À data dos factos a apólice encontrava-se válida e em vigor;
s) Foi participado à R. um furto como tendo ocorrido no dia 18-02-2017, entre as 19h15m e as 22h30m, aproximadamente e recebida a participação, a R. procedeu a diversas diligências de averiguação;
t) O veículo é um BMW série 5 adquirido em 2015 com cerca de 156.761km ;
u) Declarou o A. perante a R. que o veículo foi por si adquirido no final de 2015, na Alemanha, por € 35.000,00, pagos em dinheiro e que o veículo foi adquirido “essencialmente com objectivo de venda, mas na chegada a Portugal decidi ficar com o veículo para uso familiar”.
v) Há diversos anos que o A. trabalha no sector automóvel, tendo perfeita noção do valor de mercado dos veículos;
x) É sócio gerente da empresa PSNG Automóveis, Lda. com o NIPC 513939652, a qual foi constituída em 08-04-2016, data coincidente com o registo de propriedade do veículo seguro;
z) Foi também sócio da Sociedade denominada Stand 14, Lda., com o NIPC 507672887;
aa) Exerceu em 2005, funções de vendedor na empresa JVC Automóveis
bb) E foi trabalhador da empresa PowerBox, em 2007, no âmbito de seguro de garagista;
cc) Na sua actividade profissional, o A. adquire também frequentemente veículos importados, tendo efectuado, por exemplo, mais recentemente, seguro dos seguintes veículos importados:
-Peugeot de matrícula …-RU-…; (ii) BMW série 1, de matrícula …-RM-…;
- Peugeot de matrícula …-RU-… e
-BMW 525, de matrícula …-QS-…,
dd) O valor venal do veículo em causa seria de cerca de € 25.000,00;
ee) A apólice foi posteriormente anulada passando o veículo a estar seguro em nome de NP… desde 22-02-2017;
ff) O veículo em causa foi adquirido em 10-12-2015, tendo sido entregue ao A. em 17-12-2015, de acordo com a factura do stand Hugo-Automobile GmbH
gg) Pagando o A. pela sua aquisição o valor de € 13.500,00;
hh) Posteriormente, o veículo terá entrado em Portugal pela fronteira de Vilar Formoso, em 16-01-2016
ii) O veículo foi inspecionado em 23-02-2016 com a matrícula de origem D861A, com vista à matrícula do veículo em Portugal, tendo o resultado sido aprovado;
jj) O custo global do veículo para o A. ascendeu a € 19.559,86;
ll) O A. declarou perante a Autoridade Tributária que adquiriu o veículo pelos € 13.500,00;
mm) Na sequência da importação do veículo, em 05-03-2016, o A. celebra com a R. um contrato seguro de responsabilidade civil automóvel com coberturas de danos próprios;
nn) Aqui se incluindo a cobertura de Furto ou Roubo com um capital seguro de € 40.695,53
oo) O A. segurou o veículo com um capital de € 34.695,53 e declarou extras no valor de € 6.000,00;
oo) Nos extras o A. incluiu umas jantes em liga leve e um tecto panorâmico que indicou com um valor de € 4.000,00;
pp) A R. procedeu à leitura da chave da viatura entregue pelo A. que se confirmou pertencer ao veículo seguro, através da correspondência com o n.º do chassis (…);
qq) Foram lidos, entre outros, erros no sistema de incandescência do veículo seguro, detectado coletor de admissão/canais de admissão carbonizados e diversos registos na memória de falhas no grupo de instrumentos e, ainda, que a última actualização dia ocorreu a 19-02-2017 pelas 19h03m;
rr) Nessa data o veículo tinha 190.838km, mais 37.529km que os constantes à data da aquisição;
* A DECISÃO RECORRIDA CONSIDEROU COMO NÃO PROVADA A SEGUINTE FACTUALIDADE:
*
Da Pi:
E que a passagem na portagem de Carcavelos consta do extracto da Via Verde .
(O A. não juntou até ao momento das Alegações finais, da Audiência de Julgamento, qualquer extracto da Via Verde).
*
Da Contestação:
Da experiência que a R. tem, este aumento apenas tem justificação lógica quando se pretende depois vir a invocar e obter uma perda total do veículo
O A. tem um histórico significativo de viaturas seguras na R. - cerca de 33 veículos desde 2004
De todos os veículos segurados, apenas para este veículo em concreto foi subscrita a cobertura de furto ou roubo e apenas este foi furtado
Tendo o sinistro sido participado exactamente no termo da primeira anuidade do sinistro (ou seja, quando se iria vencer a segunda anuidade, implicando uma despesa adicional para o A.).
Veja-se, a título exemplificativo, os docs. 06 a 09 já juntos supra
Sendo certo que o veículo de marca BMW 525, com matrícula …-QS-…, já acima referido, é em tudo semelhante ao veículo objecto dos presentes autos, não tendo sido contratada a cobertura de furto ou roubo.
Os factos acima descritos levaram também a R. a averiguar as diversas relações que o A. mantém com outros intervenientes no sector automóvel,
Concluindo-se que o A. mantém relações muito próximas com outras entidades e pessoas que estão referenciadas na R. como sendo intervenientes em sinistros que relevam bastantes incongruências,
E cuja responsabilidade foi inclusive, em diversos casos, rejeitada pela R. por ter concluído que os sinistros participados não ocorreram conforme participado.
A ligação do A. ao ramo automóvel passa pelo Stand denominado Powerbox, como vendedor Estando em causa um Stand referenciado por sinistros que são controversos e com intervenção do respectivo sócio gerente e da sua esposa, os Senhores P… e ÂB…, que é, aliás, testemunha do A. nos presentes autos.
As relações do A. com a família B… são diversas e de há longa data conforme, por exemplo, sucede com o veículo de matrícula …-JL-…, cuja propriedade se encontrava registada em nome da esposa do tomador – AR… (cfr. doc. 17 que se protesta juntar) e passou para a esfera patrimonial de PC...
Ou com o veículo de matrícula …-…-LM: em 2004, o A. contrata seguro para este veículo, anexando comprovativo de experiência de condução e ausência de sinistralidade assinada pelo proprietário da PowerBox.
* 4. Enquadramento jurídico:
* A) Da apelação da ré:
A ré restringiu o objeto do recurso à matéria de direito.
Por seu turno, o autor, para o caso de procedência da apelação, vem nos termos do n.º 2 do artigo 636.º do CPC, ampliar o objecto do recurso, com vista à reapreciação da matéria de facto contida na alínea dd) dos factos provados.
* 1) Do valor do veículo a atender para contabilização da prestação da ré.
A ré apela relativamente ao valor indemnizatório, considerando que a decisão recorrida não atendeu à prova produzida, referente ao custo de aquisição do veículo e ao valor venal que o mesmo teria.
Considera a recorrente que importa saber se assiste ao autor “o direito a ser ressarcido, num seguro de danos próprios, pelo valor do capital seguro quando este é bastante superior (i) ao valor de aquisição do veículo e (ii) ao seu valor venal”.
O autor considera que deve ser negado provimento ao recurso.
A decisão recorrida teceu, nomeadamente, as seguintes considerações: “A e R. através de mediador de seguros realizaram o seguro automóvel cuja cópia se encontra a fls.8 v e seguintes, o qual incluía actos de vandalismo onde se insere o furto ou o roubo. Esta apólice estava à data da ocorrência -18-2-2019, em vigor. Atento o princípio da liberdade contratual expressamente reafirmado no art. 11º do RJCS, o contrato de seguro é regulado pelas estipulação da respetiva apólice, que não sejam proibidas pela lei e, subsidiariamente, pelas disposições do RJCS e ainda, subsidiariamente pelas disposições da lei comercial e da lei civil (art. 4º do RJCS). Sendo o contrato de seguro um contrato de adesão, é-lhe aplicável o regime das Cláusulas Contratuais Gerais, aprovado pelo D.L. n.º 446/85, de 25/10, e sucessivas alterações, pelo que na interpretação do clausulado no contrato de seguro, embora se imponha seguir o critério interpretativo geral enunciado no art. 236º do CCivil, que consagra a teoria da impressão do destinatário, em caso de duvida sobre o alcance interpretativo a dar a esse clausulado após aplicação daquele critério interpretativo geral, deverá prevalecer o sentido mais favorável a quem beneficia do contrato, ou seja, o segurado (art. 11º, n.º 2 do DL n.º 446/85, de 25/10). O contrato de seguro celebrado entre as partes abrangendo o risco de perda do veículo por acto de terceiro, no caso de apropriação ilícita sem violência –furto- ou com violência –roubo- mediante o qual a R. assumiu a obrigação de reparar os danos sofridos pelo aqui A. resultantes da subtração e da privação da propriedade e posse da viatura segura, consubstancia um “típico contrato de risco, garantia e conservação do património do segurado”, seguro em que a indemnização que for devida, verificado o sinistro, “surge como uma forma de reparação ou ressarcimento do dano a favor do segurado” . Na tipologia dos contratos de seguro enunciada no RJCS, o contrato de seguro em análise integra o tipo denominado “seguro de danos”, previsto no título II do RJSC – arts. 123º a 174º desse diploma. Em sede de repartição do ónus da prova desses pressupostos, essa repartição deve fazer-se de harmonia com a previsão traçada na norma jurídica que serve de fundamento à pretensão deduzida Neste sentido impende sobre o A. o ónus da prova da verificação do “sinistro”, por se tratar de elemento constitutivo do direito indemnizatório que se arroga titular perante a R. O art. 99º do RJSC, define “sinistro” como aquilo que é “correspondente à verificação, total ou parcial, do evento que desencadeia o acionamento da cobertura do risco previsto no contrato”, resultando daqui que o “sinistro” é o facto gerador que determina o pagamento da indemnização devida ao lesado, pelo que, consentaneamente com o disposto no n.º 1 do art. 342º do CCivil impende sobre o A. o ónus da alegação e da prova do “sinistro” como facto constitutivo do direito indemnizatório que se arroga titular perante a seguradora. -A prova do furto: No caso em apreço, o ora A. participou um sinistro à sua seguradora ora R. e o mesmo traduziu-se na participação de um furto. A ora R. defende-se entendendo que o A. prestou declarações inexactas aquando da realização do seguro, tendo em vista a participação do furto que veio a fazer, entendendo que o mesmo não ocorreu, mas foi deliberadamente apresentado como tal pelo segurado que visava o lucro. Ora, de toda a prova trazida aos autos e devidamente valorada e deixada consignada em III- a) a rr), a formalização de uma queixa junto das autoridades policiais, feita em circunstâncias tais que não ponham em causa a seriedade da mesma, é quanto a nós e salvo melhor entendimento a prova do mesmo e isso está devidamente documentado nos autos. Caberá então à seguradora a prova de circunstâncias capazes de afastar a prova de primeira aparência do furto feita por aquela queixa e tal não ocorreu no caso presente. Atribuiu-se àquela queixa de furto um valor de prova bastante “que cede perante a simples dúvida que o julgador, confrontado com outros elementos de prova, tenha sobre a realidade do facto por ela em princípio provado -art. 346 CCivil. A queixa às autoridades policiais, desencadeia impreterivelmente uma investigação imparcial e um lapso de tempo perfeitamente suficiente para essa investigação bem como para a investigação que a seguradora entenda levar cabo, de modo a poder apurar as circunstâncias que possam contrariar a prova de primeira aparência do furto. No caso e apreço a seguradora não fez prova de quaisquer circunstâncias suficientes para pôr em dúvida aquela prova”.
Estas considerações não são colocadas em crise pela ré, ora recorrente.
Todavia, já assim não sucede relativamente ao apuramento do valor da prestação a cargo da ré efetuado pelo Tribuna recorrido: “(…) Valor declarado da viatura: A aqui seguradora põe em causa a veracidade das declarações prestadas pelo segurado aquando da realização do seguro e quanto à viatura segurada, uma vez que o valor declarado foi inflacionado, uma vez que em Portugal o veiculo não valeria mais que menos cerca de 10 mil euros e o segurado ainda colocou como extras da viatura, itens que foram enquadrados na folha de construção como sendo de fabrica, não aceitando que tal seja categorizado como extras, como as jantes e o tecto de abrir. O valor do seguro do veículo corresponde ao seu valor real, dado pela seguradora e aceite pelo tomador do seguro. Aquando da realização do seguro, a seguradora não pediu ao A. quaisquer elementos para aceitar o seguro tal como foi feito, nem quaisquer outros documentos, nomeadamente quanto aos extras declarados que a seguradora identifica como sendo de serie e não extras. Sendo certo até que ao realizar um seguro com danos próprios, incluindo o furto, o segurado aceita pagar um prémio superior, que a R. aceitou e recebeu. A seguradora validou o contrato de seguro nos exactos termos em que foi realizado e cobrou os prémios, aceitando até que depois da participação do furto, que esta apólice se transformasse em simples responsabilidade civil sem danos próprios, para uma outra viatura, não a tendo anulado (…)” (assim, a sentença recorrida).
Será que esta conclusão do Tribunal recorrido merece censura?
Vejamos:
O contrato de seguro é a convenção pela qual uma das partes – a seguradora – se obriga, mediante retribuição – prémio – paga pela outra parte – o segurado – a assumir determinado risco – e, caso este ocorra, a satisfazer ao segurado ou a terceiro, uma indemnização pelo prejuízo ou um montante previamente estipulado (cfr. Almeida Costa, in Revista de Legislação e Jurisprudência, Ano 128.º, n.º 3862, pp. 20-21).
Trata-se do “contrato pelo qual uma parte, mediante retribuição, suporta um risco económico da outra parte ou de terceiro, obrigando-se a dotar a contraparte ou o terceiro dos meios adequados à supressão ou atenuação de consequências negativas reais ou potenciais da verificação de um determinado facto” (assim, Margarida Lima Rego; Contrato de seguro e terceiros. Estudo de Direito Civil, Coimbra, 2010, p. 66).
No artigo 1.º do D.L. n.º 72/2008, de 16 de abril, que aprovou a Lei do Contrato de Seguro (LCS), dispõe-se sobre o conteúdo típico do contrato de seguro, dizendo-se que: “Por efeito do contrato de seguro, o segurador cobre um risco determinado do tomador do seguro ou de outrem, obrigando-se a realizar a prestação convencionada em caso de ocorrência do evento aleatório previsto no contrato, e o tomador do seguro obriga-se a pagar o prémio correspondente”.
Como referem Pedro Romano Martinez e outros (Lei do Contrato de Seguro – Anotada; Almedina, 2009, p. 38, nota IV), “a obrigação do segurador não é a de assumir o risco de outrem, mas de realizar a prestação resultante de um sinistro associado ao risco de outrem. O que caracteriza particularmente o contrato de seguro é a obrigação, assumida pelo segurador, de pagar uma prestação relacionada com o risco do tomador do seguro ou de outrem”.
Constitui, deste modo, o risco um elemento essencial ou típico do contrato de seguro, traduzindo-se o mesmo na possibilidade de ocorrência de um evento ou facto futuro e incerto de natureza fortuita com consequências desfavoráveis para o segurado, nos termos configurados no contrato.
O risco é assim delimitado em função do tipo de evento como tal contemplado, bem como relativamente à localização e ao tempo em que possa ocorrer.
Na prática negocial, a delimitação do risco, mormente na vertente causal, é tecnicamente feita, primeiro, por cláusulas definidoras da chamada “cobertura de base” e, depois, pela descrição de hipóteses de exclusão ou de delimitações negativas daquela base.
Por outro lado, subjacente a qualquer crédito indemnizatório emergente do contrato de seguro está o sinistro, consubstanciando-se este como a realização do risco previsto no contrato de seguro, desencadeador, pela sua própria natureza, da garantia subjacente ao seguro; não coincide necessariamente com o acidente, mas com as consequências deste.
Deste modo, enquanto o risco se traduz na “previsão abstracta do evento, como possível ou provável”, o sinistro é, por sua vez, “a realização e concretização desse evento”.
A verificação do risco corresponde à ocorrência daquilo que no preceito se designa por “evento aleatório”. O qualificativo parece ser usado, neste contexto, como um sinónimo de incerto. “O evento cuja verificação dá azo ao pagamento da prestação convencionada deve estar previsto no contrato – com efeito, fora do contrato um evento é apenas um evento. (…). O sinistro – quando acontecer – será assim um facto jurídico, um “evento” que o direito considera relevante e a que, por isso, associa determinados efeitos. (…). É o contrato que o transforma em “sinistro” (assim, Margarida Lima Rego; “O contrato e a apólice de seguro”, in Temas de Direito dos Seguros; II, Almedina, 2012, p. 21).
Relativamente à indemnização do segurador, o artigo 1.º da LCS preferiu a designação realização da “prestação convencionada”. “Esta escolha dever-se-á à circunstância de nem todos os seguros se encontrarem subordinados ao princípio indemnizatório (…). Na verdade, em sentido próprio, só existe obrigação de indemnizar quando o direito aponta um responsável por um dano sofrido em esfera alheia, embora haja nos seguros alguma tradição em recorrer a este termos num sentido mais amplo” (assim, Margarida Lima Rego; “O contrato e a apólice de seguro”, in Temas de Direito dos Seguros; II, Almedina, 2012, p. 21).
Mas, como resulta do artigo 43.º da LCS, “o segurado deve ter um interesse digno de proteção social, relativamente ao risco coberto, sob pena de nulidade do contrato” (n.º 1), respeitando o interesse, no âmbito do seguro de danos, à “conservação ou à integridade da coisa, direito ou património seguros” (n.º 2)
Por seu turno, “o capital seguro representa o valor máximo da prestação a pagar pelo segurador por sinistro ou anuidade de seguro, consoante o que esteja estabelecido no contrato”, sendo que, salvo quando esteja determinado por lei, “cabe ao tomador do seguro indicar ao segurador, quer no início, quer na vigência do contrato, o valor da coisa, direito ou património a que respeita o contrato, para efeito da determinação do capital seguro” (cfr. artigo 49.º, n.ºs. 1 e 2, da LCS).
Como referem Pedro Romano Martinez e outros (Lei do Contrato de Seguro – Anotada; Almedina, 2009, p. 200, nota III), “o número 1 dispõe sobre o plafonamento da prestação do segurador”.
E sublinham os mesmos Autores (ob. Cit., p. 201) que: “nos seguros de natureza indemnizatória – em geral seguros de danos – a prestação do segurador fica sempre limitada ao valor do efectivo prejuízo, sem ultrapassar o valor do capital seguro (artigo 128.º). Em caso de sub seguro (artigo 134.º) pode acontecer que o segurador, tendo em conta o montante do efectivo dano, só responda na proporção entre o valor do interesse em risco e o valor seguro. É o que ocorrerá se não houver convenção em sentido diverso”.
Relativamente ao artigo 49.º, n.º 2, da LCS, os mesmos Autores (ob. Cit., p. 201) consideram que a melhor leitura do preceito aponta para o seguinte: “- no âmbito dos seguros obrigatórios o capital ou valor mínimo a segurar decorrerá, em princípio, da lei que institua cada um deles ou de normativo que o regulamente; - no âmbito dos seguros facultativos plenamente regidos pela autonomia privada a solução regra é a de que cumpre ao tomador do seguro indicar, de forma explícita e clara, o valor ou capital a segurar; - no âmbito dos seguros facultativos regidos por normas imperativas de lei especial, como é o caso dos seguros que confiram coberturas relativas a danos próprios de veículos automóveis, regulados pelo Decreto-Lei n.º 214/97, de 16.08, cabe ao tomador do seguro fornecer ao segurador os dados que permitam a determinação do valor ou capital seguro, tendo em conta o regime estabelecido”.
Relativamente a seguros de danos – cfr. artigo 123.º da LCS – o artigo 128.º da LCS estabelece enuncia o “princípio indemnizatório” nestes termos: “A prestação devida pelo segurador está limitada ao dano decorrente do sinistro até ao montante do capital seguro”.
Trata-se da regra matriz neste tipo de seguros.
Contudo, o princípio em questão não terá aplicação em determinados casos.
Um destes casos, “admitindo como solução de base a prestação do segurador superior ao valor do bem seguro (pois que se trata de objectos, concretamente veículos automóveis) – é o previsto no art. 3.º do DL 214/97, de 16 Ago. (regime da maior transparência em matéria de sobresseguro nos contratos facultativos do Ramo Automóvel), como sanção por incumprimento de dever legal pelo segurador” (assim, Pedro Romano Martinez e outros; Lei do Contrato de Seguro – Anotada; Almedina, 2009, pp. 364-365).
Conforme se lê no preâmbulo do mencionado D.L. n.º 214/97, de 16 de agosto, “uma das cláusulas contratuais gerais, comum à generalidade das seguradoras operando no território nacional, que maior reparo tem merecido é a que se refere às situações de sobresseguro, em que a aplicação menos clara de certas regras de carácter técnico, desacompanhadas da necessária informação e explicação, conduz a situações inesperadas e, por vezes, verdadeiramente injustas para os segurados no momento da liquidação das indemnizações em caso de sinistro automóvel. É o caso da manutenção do valor seguro, e correspondente reflexo no prémio devido, por falta de iniciativa do segurado no sentido da respectiva actualização, quando é certo que a indemnização a suportar pela seguradora em caso de sinistro tem em conta a desvalorização comercial entretanto sofrida pelo veículo. Nesta conformidade, e de forma a garantir uma efectiva protecção e defesa dos consumidores subscritores de contratos de seguro automóvel facultativo, entendeu-se ser necessário regular a matéria de forma a assegurar uma maior transparência do clausulado das apólices de seguro em causa e instituir a regra da desvalorização automática do valor seguro, com a consequente redução proporcional da parte do prémio, correspondente à eventualidade de perda total, que seja calculada com base nesse valor. O sistema introduzido garante, assim, a indemnização pelo valor seguro em caso de perda total. As consequências previstas para o incumprimento deste regime legal não colidem com o princípio do indemnizatório, que mantém plena aplicabilidade nos casos de normalidade contratual (…)”.
Os critérios de desvalorização são operados administrativamente (cfr. Norma do Instituto de Seguros de Portugal n.º 14/97-R, de 09-10-1997).
E, por outro lado, a regra do artigo 128.º da LCS é de consideração supletiva, podendo ser afastada por convenção contrária das partes, acordando qual o valor do interesse seguro atendível para o cálculo da indemnização, muito embora esse valor não deva ser “manifestamente infundado” (cfr. artigo 131.º da LCS).
As partes podem acordar, nomeadamente, na fixação de um valor de reconstrução ou de substituição do bem ou em não considerar a depreciação do valor do interesse seguro em função da vetustez ou do uso do bem (cfr. n.º 2 do artigo 131.º da LCS).
Os mencionados acordos não prejudicam a aplicação do regime da alteração do risco previsto nos artigos 91º a 94º (n.º 3 do artigo 131.º da LCS).
Por seu turno, estabelece o n.º 1 do artigo 132.º da LCS que “se o capital seguro exceder o valor do interesse seguro é aplicável o disposto no artigo 128.º, podendo as partes pedir a redução do contrato”.
Ou seja: “O seguro de responsabilidade civil automóvel por danos próprios é, como o próprio nome indica, um seguro de danos, sendo-lhe aplicável o regime jurídico do contrato de seguro (LCS), estabelecido pelo Decreto-Lei nº 72/2008, de 16.04. A questão do sobresseguro e a consagração do principio do indemnizatório, que vinha sendo objecto de expressa regulação no art. 435.º do CCom, é actualmente regulada pelo DL n.º 72/2008, de 16-04, o qual no seu art. 132.º diz que “se o capital seguro exceder o valor do interesse seguro é aplicável o disposto no artigo 128.º, podendo as partes pedir a redução do contrato” sendo precisamente este art. 128.º que mantém, na legislação nacional relativa ao contrato de seguro, a consagração do princípio do indemnizatório, referindo que “a prestação devida pelo segurador está limitada ao dano decorrente do sinistro até ao montante do capital seguro”” (assim, o Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães de 16-02-2017, Processo 183/15.5T8CBT.G1, rel. FERNANDA VENTURA).
O artigo 128.º da LCS contém o princípio indemnizatório que tem, fundamentalmente, o seguinte alcance: o seguro de danos visa, apenas e no máximo, suprimir o dano efetivo, sofrido pelo segurado. Ele não deve ir mais além, proporcionando um lucro ao mesmo segurado. Nos termos desta norma, a prestação devida pelo segurador fica limitada ao dano decorrente do sinistro, até ao montante do capital seguro. Temos dois limites, valendo o mais baixo: O do valor do dano; o do valor do capital seguro. “De acordo com esse princípio, nem o valor do capital seguro pode ser superior ao valor do interesse seguro, nem o valor da prestação a cargo do segurador pode ser superior ao valor do interesse lesado” (assim, o Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães de 08-06-2017, Processo 7333/15.0T8GMR.G1, rel. JOÃO DIOGO RODRIGUES).
Ora, neste contexto, como bem se assinalou no Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa de 24-05-2018 (Processo 2098/16.0T8SXL.L1-2, rel. JORGE LEAL), “o capital seguro não corresponde ao valor a pagar em caso de sinistro, mas ao valor até ao qual a seguradora se responsabiliza em caso de sinistro”.
Ou seja: O valor do capital seguro corresponderá ao valor máximo – ressalvados os casos em que ocorra, porventura, incumprimento ou cumprimento tardio da prestação convencionada (sobre o ponto vd. Pedro Romano Martinez; ob. Cit., p. 201) a cargo do segurador – de responsabilidade do segurador, mas, a sua prestação não corresponde, necessariamente, a tal montante.
Verificando-se o caso do artigo 132.º da LCS, as partes podem pedir “a redução do contrato”. “A redução tem o sentido de invalidação do contrato em quanto exceda o valor do interesse seguro, com a manutenção da restante parte do contrato (292º, do Código Civil)” –cfr. Menezes Cordeiro; Direito dos Seguros, 2ª edição, pp. 803-806.
Ora, verifica-se uma situação de sobresseguro “sempre que ab initio ou no decurso do contrato o objecto seguro tenha um valor inferior ao valor declarado ou seja um valor inferior àquele pelo qual se encontra seguro” (assim, o Acórdão do STJ de 24-04-2012, Processo n.º 32/10.0T2AVR.C1.S1, rel. MÁRIO MENDES).
Em ação na qual seja peticionada indemnização por danos sofridos em consequência de furto de veículo, invocando-se a existência de contrato de seguro que abranja tal cobertura, incumbe ao autor provar o alegado desaparecimento do veículo em consequência de furto, por se tratar de facto constitutivo do direito à indemnização que reclama (assim, entre outros, o Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa de 22-11-2012, Processo 118/11.4TVLSB.L1-6, rel. VÍTOR AMARAL; o Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa de 22-11-2018, Processo 18262/17.2T8LSB.L1-2, rel. PEDRO MARTINS; e o Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães de 16-05-2019, Processo 3164/17.0T8VNF.G1, rel. PAULO REIS).
Contudo, nessa situação, o ónus de prova de que o veículo tem um valor inferior ao valor declarado pelo tomador do seguro caberá à demandada seguradora, enquanto facto impeditivo do autor ao recebimento do valor acordado (cfr. Acórdãos do Tribunal da Relação de Lisboa de 18-04-2013 - Processo 2212/09.2TBACB.L1-2 - e de 22-11-2018 -Processo 18262/17.2T8LSB.L1-2 – ambos relatados por PEDRO MARTINS). “Se a seguradora não prova que o valor real do veículo (com extras) à data do sinistro é inferior ao valor pelo qual ele (com extras) está segurado, não se põe a questão do sobresseguro e do princípio indemnizatório (arts. 128 e 132 da LCS)” (assim, o Acórdão do Tribunal da Relação do Porto de 21-01-2016, Processo n.º 1618/14.0TBVFR.P1, rel. PEDRO MARTINS).
Importa, neste ponto, delimitar claramente as situações de aplicação da norma do artigo 131.º da LCS, face às que resultam da consideração do regime do sobresseguro constantes do n.º 1 do artigo 132.º da mesma lei.
Com mais precisão, cumpre dilucidar a questão de saber se, indicando o tomador do seguro, inicialmente, o valor do veículo, se a não oposição ou a não pronúncia da seguradora sobre o mesmo, pode consubstanciar o acordo de fixação de valor de reconstrução ou de substituição do bem (“como novo”), a que alude o n.º 2 do artigo 131.º da LCS, afastando a aplicação do regime do sobresseguro?
Neste ponto, considerou-se no Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 18-06-2015 (Processo 184/12.5TBVFR.P1.S1, rel. ABRANTES GERALDES) que, “no seguro de danos próprios, a indicação pelo tomador de seguro de um valor superior ao valor do bem segurado traduz uma situação de sobresseguro que é resolvida através da aplicação dos arts. 128º e 132º do Regime Jurídico do Contrato de Seguro aprovado pelo Dec. Lei nº 72/08. O sobresseguro não exonera a seguradora de responsabilidade, a qual responde em função do princípio indemnizatório até ao valor do dano determinado em função do valor do bem segurado”.
Por outro lado, tem-se exigido que o acordo a que alude o n.º 2 do artigo 131.º da LCS seja prévio ao momento de condicionamento da obrigação de indemnização (vd. Sobre uma situação de indicação prévia de valor estimado para dano independente do valor do bem, a situação descrita no Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 08-06-2017, Processo 7087/15.0T8STB.E1.S1, rel. ABRANTES GERALDES), sendo que, caso ocorra variação sensível do valor do bem ou do interesse estimado na vigência do contrato de seguro, o meio próprio para refletir tal alteração no seguro, será o da aplicação do regime de alteração do risco (cfr. artigos 91.º e ss. da LCS).
Por outro lado, tem de existir um acordo expresso no sentido de que o valor do capital seguro corresponda, de facto, ao valor de indemnização ou de substituição do bem.
É que, conforme se decidiu no Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa de 06-04-2017 (Processo 1422/14.5TJLSB.L1-2, rel. MARIA TERESA ALBUQUERQUE): “As regras relativas à declaração inicial de risco encontram-se no RGCS, resultando, antes de mais, do genericamente disposto seu art 49º/2. A declaração de risco é a comunicação unilateral de todos os factos e circunstâncias que caracterizam o risco que pretende segurar-se reconduzindo-se a uma declaração de ciência e não a uma declaração de vontade. O concreto valor pelo qual o veículo foi adquirido não constitui informação significativa para a apreciação do risco pelo segurador, por isso não sendo relevante para o valor a segurar. O que importa é o valor comercial do veículo à data da realização do seguro e este determina-se pelo valor corrente de aquisição para veículos com as mesmas características e uso no mercado em que opere a seguradora”.
No mesmo sentido e de forma mais incisiva, considerou-se no Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa de 18-04-2013 (Processo 2212/09.2TBACB.L1-2, rel. PEDRO MARTINS) que, para que haja um acordo sobre o valor do bem seguro, “não basta a aceitação da proposta do tomador pela seguradora”.
Assim, na falta de estipulação nos termos do artigo 131.º da LCS, verificando-se situação de sobresseguro, por força do disposto nos artigos 128º e 132º da LCS, a indemnização deve ser fixada no montante correspondente ao valor do bem na data do sinistro, se inferior ao valor seguro (isto é, será sempre o valor inferior) (neste sentido, o Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 19-09-2019, Processo 181/16.1T8HRT.L1.S2, rel. PEDRO DE LIMA GONÇALVES).
Em suma: Pode concluir-se que, na falta de estipulação nos termos do artigo 131.º da LCS, importará apreciar se o valor do capital seguro, corresponde ao valor do bem. Se tal suceder, o valor indemnizatório, ou seja, o valor da prestação da seguradora estará encontrado. Contudo, no caso de não haver tal correspondência, a prestação da seguradora corresponderá ao valor apurado, como valor em risco.
De facto, o valor seguro não se confunde com o valor em risco. “O primeiro corresponde ao valor do capital seguro contratado entre as partes e, como tal, ao limite até ao qual a seguradora se obriga a indemnizar o seu segurado em caso de verificação do risco (acidente, furto, roubo, incêndio, etc.) e o segundo ao valor do objecto seguro à data do sinistro e, como tal, ao valor que a seguradora se obriga, em concreto, a pagar ao seu segurado (descontado de eventuais franquias e, eventualmente, valor do salvado) em caso de verificação do risco, que está, aliás em consonância com o princípio indemnizatório consagrado nos artigos 128.º e 130.º do RJCS” (assim, o Acórdão do Tribunal da Relação do Porto de 27-04-2015, Processo 249/14.9TJPRT.P1, rel. MANUEL DOMINGOS FERNANDES).
Assim, salvo acordo em contrário, o valor da indemnização a pagar pelo segurador ao segurado (seguro de danos sobre coisas) corresponderá ao valor do bem e não ao valor que o tomador do seguro tenha declarado.
É que, “o valor dos bens a segurar resulta, salvo acordo em contrário, de mera declaração unilateral do tomador do seguro, não integrando qualquer cláusula contratual vinculativa para o segurador. Embora o tomador do seguro deva declarar com exatidão todas as circunstâncias que interessem ao julgamento a fazer pelo segurador quanto à aceitação ou não aceitação do risco, não existe um dever geral de verificação dessa exatidão por parte do segurador. É ao segurado, e não ao segurador, que cabe a prova da ocorrência do sinistro e do valor das coisas à data do sinistro” (assim, o Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 09-01-2018, Processo 1714/16.9T8LSB.L1.S1, rel. JOSÉ RAINHO). Neste circunstancialismo, e na falta de diverso acordo, expresso, das partes, deve-se atender, pois, ao valor venal (de mercado) da viatura à data da ocorrência do sinistro (cfr., neste sentido, o Acórdão do Tribunal da Relação de Évora de 08-03-2018, Processo 1382/14.2TBLLE.E1, rel. MARIA DOMINGAS SIMÕES).
O fundamento para assim acontecer tem por referência “o principio segundo o qual o dever de indemnizar visa colocar o lesado na posição que teria se não fosse o dano, significando isto que o quantum indemnizatório deve corresponder ao prejuízo efectivamente sofrido – principio geral contido no art. 562.º CC –, não podendo nunca constituir um meio de proporcionar um injustificado enriquecimento do lesado, ter um carácter especulativo ou, muito menos, constituir um modo fraudulento de enriquecimento patrimonial” (assim, o Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 24-04-2012, Processo 32/10.0T2AVR.C1.S1, rel. MÁRIO MENDES).
Ora, depois deste excurso e revertendo ao caso concreto, relembremos os principais factos apurados na decisão recorrida:
-O veículo de marca BMW, modelo Série 5- Touring Diesel, de matrícula …-RA-…, propriedade do autor, foi adquirido em 10-12-2015, com cerca de 156,761 Km, tendo sido entregue ao A. em 17-12-2015, de acordo com a factura do stand Hugo-Automobile GmbH (cfr. als. a), t) e ff) dos factos provados);
- O autor pagou pela sua aquisição o valor de € 13.500,00 (valor que declarou perante a Autoridade Tributária) e, posteriormente, o veículo terá entrado em Portugal pela fronteira de Vilar Formoso, em 16-01-2016, vindo a ser inspecionado em 23-02-2016, com a matrícula de origem D861A, com vista à matrícula do veículo em Portugal, tendo o resultado sido aprovado (cfr. als. gg), hh), ii) e ll) dos factos provados);
- O veiculo é do ano de 2011, tendo tido a primeira matricula em Portugal aquando da aquisição pelo A., em Março de 2016 e o seu custo global para o autor ascendeu a € 19.559,86 (cfr. als. l) e jj) dos factos provados);
- Na sequência da importação do veículo, em 05-03-2016, o A. celebra com a R. um contrato seguro de responsabilidade civil automóvel com coberturas de danos próprios, aqui se incluindo a cobertura de Furto ou Roubo com um capital seguro de € 40.695,53, tendo o autor segurado o veículo com um capital de € 34.695,53 e declarado extras no valor de € 6.000,00 (nestes incluiu umas jantes em liga leve e um tecto panorâmico que indicou com um valor de € 4.000,00) (cfr. alíneas mm), nn), oo) e oo) dos factos provados);
- No dia 18-02-2017 o Autor foi assistir a um jogo de futebol do Sporting Clube de Portugal no Estádio José de Alvalade, tendo estacionado o veiculo na Rua António Couto, a 500 metros do referido estádio e, no final do jogo, saiu do estádio e, dirigindo-se ao local onde deixara o seu veiculo, constatou que o mesmo já lá não se encontrava (cfr. als. c), d) e e) dos factos provados);
- Foi participado à R. um furto como tendo ocorrido no dia 18-02-2017, entre as 19h15m e as 22h30m, aproximadamente e recebida a participação, a R. procedeu a diversas diligências de averiguação (cfr. al. s) dos factos provados);
- Declarou o A. perante a R. que o veículo foi por si adquirido no final de 2015, na Alemanha, por € 35.000,00, pagos em dinheiro e que o veículo foi adquirido “essencialmente com objectivo de venda, mas na chegada a Portugal decidi ficar com o veículo para uso familiar” (cfr. al. u) dos factos provados);
- O referido veículo encontrava-se, à data dos factos, segurado junto da Ré, ao abrigo da apólice nº …, a qual se encontrava válida e em vigor e cobria, entre outros, os danos próprios e, designadamente, os riscos de furto ou roubo, bem como, a responsabilidade civil de tal veículo, no âmbito do seguro automóvel obrigatório, com início em 05-03-2016, tendo o autor procedido, dentro do prazo, ao pagamento do aviso referente à segunda semestralidade do prémio de seguro, que lhe foi remetido pela Ré, no valor de € 628,29, tendo em consequência a Ré procedido à emissão da carta verde, vindo, posteriormente, tal apólice a ser anulada, passando o veículo a estar seguro em nome de NP… desde 22-02-2017 (cfr. als. b), p), q), r) e ee) dos factos provados);
- O autor, que trabalha há vários anos no sector automóvel, tendo perfeita noção do valor de mercado dos veículos, é sócio gerente de uma empresa de automóveis (cfr. als. x) e v) dos factos provados);
- Foram lidos, entre outros, erros no sistema de incandescência do veículo seguro, detectado coletor de admissão/canais de admissão carbonizados e diversos registos na memória de falhas no grupo de instrumentos e, ainda, que a última actualização dia ocorreu a 19-02-2017 pelas 19h03m, sendo que, nessa data, o veículo tinha 190.838km, mais 37.529km que os constantes à data da aquisição (cfr. als. qq) e rr) dos factos provados); e
- O valor venal do veículo em causa seria de cerca de € 25.000,00 (cfr. al. dd) dos factos provados).
Tendo em conta as considerações supra expendidas a respeito do valor do capital seguro e do valor do bem, e tendo em conta a contra-alegação do autor, antes de prosseguir no conhecimento do recurso, apreciemos a questão suscitada em torno da ampliação do objeto do recurso, relativamente à matéria de facto.
* B) Da ampliação do objeto do recurso pelo autor:
* I) Impugnação da matéria de facto:
Conforme se disse, o autor vem ampliar o objeto do recurso, relativamente à decisão da matéria de facto constante da al. dd) dos factos provados, que impugna e que considera “desconforme e contrária aos elementos probatórios recolhidos nos autos e deles constantes, não vislumbrando o Recorrido em que se baseou o douto Tribunal recorrido para considerar provado o facto”.
No caso sub judice, a prova produzida em audiência foi gravada, pelo que, cumpre apreciar se deve este Tribunal ad quem proceder à reapreciação da matéria de facto impugnada e constante de tais meios de prova.
* 2) Questão prévia – Da não reapreciação da prova gravada, por incumprimento, pela apelante, do disposto no artigo 640.º do CPC.
Cumpre decidir se a matéria de facto dada como assente na al. dd) dos factos provados, deverá considerar-se como não provada.
Consta da referida alínea que “o valor venal do veiculo em causa seria de cerca de Euros 25.000,00”.
O autor impugnou a conclusão alcançada pelo Tribunal recorrido, tendo alegado o seguinte: “Na verdade, não obstante da análise cuidada dos documentos juntos aos autos e da prova testemunhal produzida em sede de audiência de julgamento resultar claramente a confirmação dos factos alegados pelo Recorrido na sua Petição Inicial – factos esses que na sua generalidade o Tribunal a quo considerou como provados - não vislumbra o Recorrido em que se baseou o douto Tribunal recorrido para considerar provado o facto vertido sob o ponto dd) da Matéria de Facto dada como provada. Ou seja, analisados os depoimentos das testemunhas que prestaram depoimento em sede de audiência de julgamento e bem assim a documentação junta aos autos, não se encontra o mínimo resquício de prova de que o valor venal do veículo era de €25.000,00, conforme alegado pela Recorrente na sua Contestação (designadamente no artigo 18º da mesma) e declarado provado pelo Tribunal a quo. Todavia, a Recorrente não fez, nos autos, qualquer prova dessa sua alegação, muito pelo contrário. Senão vejamos. Contrariamente ao alegado pela Recorrente, o valor do objecto seguro, aceite aliás pela Recorrente, era, à data da aquisição, perfeitamente consentâneo com o valor de mercado do veiculo em causa, atendendo ao modelo e às características do mesmo - BMW Série 5 – Touring Diesel com caixa de velocidades automática, 2993 de cilindrada, 160 Kw e Pack M), características, aliás, substancialmente diferentes das características dos veículos que a Recorrente menciona no Doc. 10 junto com a contestação (que ou são carros com menos potência ou são carros com quase o dobro dos quilómetros ou com muito menos extras ou com caixa de velocidades manual), características que necessariamente impactam no valor respectivo. Já para não mencionar o facto de os referidos preços, constantes do Doc. 10 junto com a contestação, serem preços de aquisição dos veículos na Alemanha (ou seja, não contemplando os custos de transporte, inspecção e legalização em Portugal, designadamente de impostos), preços sem IVA e preços praticados mais de dois anos após a aquisição do veiculo pelo Recorrido no referido país, sendo óbvio e de conhecimento generalizado que em dois anos um veiculo perde, naturalmente, parte significativa do seu valor comercial. Na Alemanha não será diferente… E manifesto de que o valor do veículo considerado para efeitos de seguro era consentâneo com o valor de mercado é o facto de mais de dois anos depois, veículos com características aparentemente similares estarem à venda por €25.750,00, conforme aliás decorre do Doc. 11 junto pela Recorrente com a contestação, E diz-se aparentemente similares porquanto mesmo o veiculo que a Recorrente utiliza para alegadamente demonstrar a sua tese – o veiculo alegadamente constante do Doc. 11 junto com a sua contestação, que corresponde, segundo a Recorrente, a um veiculo que foi segurado pelo Recorrido com a matricula …-QS-… – é um veiculo com características diferentes do veiculo em discussão nos presentes autos, até porque tem cilindrada inferior (1995, conforme consta do documento junto pela Recorrente, por contraposição aos 2993 de cilindrada da viatura em apreciação nos autos), não tem caixa de velocidades automática, não tem tecto panorâmico, enfim, é um veiculo bastante inferior em termos de valor…. Aliás, mais de 2 anos após a aquisição do veículo pelo Recorrido, designadamente em Fevereiro de 2018, veículos idênticos estavam à venda por aproximadamente €30.000,00, sem terem os extras que o veiculo em causa tinha (cfr. por todos, Doc. 1 junto com o requerimento apresentado pelo Autor aqui Recorrido em 19.02.2018, refª Citius 17978431)…. De igual modo, do depoimento das testemunhas inquiridas nos autos não é possível inferir o referido valor de €25.000,00 como sendo o valor venal do veículo, porquanto nenhuma testemunha se pronuncia especificadamente e de forma sustentada sobre um valor em concreto, limitando-se os peritos averiguadores arrolados pela Recorrente a afirmar que o valor do veiculo estava inflacionado por comparação com a Eutotax. Dos autos consta apenas uma avaliação Eurotax, integrante do processo de legalização do veículo em Portugal, nos termos da qual, em 26.02.2016: - o preço do veiculo em novo era de €70.663,00, preço exactamente correspondente ao valor considerado pela Recorrida no contrato de seguro (cfr. Doc. 2 junto com a PI); - o valor de cotação de venda corrigida do veiculo, para efeitos de calculo Eurotax, seria de €26.874,00, sendo que este valor considerava apenas o equipamento de serie devidamente descrito no documento (do qual não constam os items que foram segurados como extras, ou seja, o tecto panorâmico e as jantes em liga leve pack M, distintas das jantes de liga leve 17 que constituem equipamento de série). Tal equivale a dizer não só que a Recorrida teve acesso ao preço do veiculo em novo e o aceitou, fazendo-o constar da apólice, como também que não é crível que não tivesse tido acesso à cotação de venda corrigida Eurotax e à informação de que se tratava de um veiculo importado (o que se conclui quase automaticamente pela contraposição do ano do veiculo e da matricula). E tendo tido esse acesso, como teve ou estava ao seu alcance ter, não foi o facto de o valor de cotação Eurotax do veículo ser de €26.874,00 que a impediu de celebrar o contrato de seguro pelos valores que celebrou, exactamente por que a Recorrida sabe que a tabela Eurotax é uma mera tabela de referência no mercado de veículos usados, nem sempre correspondendo aos valores de mercado dos veículos, que dependem de múltiplos outros factores, como são os extras, o facto de se tratar de um veiculo mais ou menos comum no mercado, a conjuntura económica, a mera lei da oferta e da procura, enfim, uma multiplicidade de factores. Ou seja, pese embora o valor Eurotax seja inferior ao valor segurado, o mesmo é superior aos €25.000,00 que o tribunal a quo considerou como provado ser o valor venal do veículo e não considera os extras cujo valor foi também segurado. E, diga-se uma vez mais, o valor Eurotax é um valor meramente indicativo, de média de referência, que nem sempre (ou quase nunca) tem correspondência com o valor real dos veículos, facto que a Recorrente bem sabe e aceitou no caso concreto, ao celebrar, como celebrou, contrato de seguro pelos valores segurados mesmo tendo conhecimento deste valor Eurotax. Isto porque o valor real de um veículo é aquele que o Autor teria que pagar para conseguir comprar um igual, com as mesmas características, os mesmos quilómetros, o mesmo estado e o mesmo equipamento, em Portugal, independentemente do valor Eurotax, independentemente do valor pelo qual efectivamente o adquiriu. Em resumo, o valor pelo qual o veículo foi segurado foi dado à seguradora pelo mediador de seguros utilizado pela mesma para a celebração do contrato – parte por isso da organização de meios de que a Recorrente se serve para o exercício da sua actividade, pelo que o risco da actuação dele sempre deveria ser arcado pela seguradora. E o valor considerado corresponderá a uma forma de cálculo que acha o valor do veículo com base em todas as suas características e em todo o seu equipamento, pelo que corresponde ao valor real do veículo e não a um valor sobreavaliado, independentemente do valor resultante da tabela indicativa Eurotax e do qual a Recorrente teve também conhecimento, como não podia deixar de ter. E a prova de que o valor real do veículo não coincidia com o valor pelo qual ele foi segurado cabe à seguradora, como facto impeditivo do direito do Autor aqui Recorrido ao recebimento do valor acordado (art. 342/1 e 2 do CC), não tendo a seguradora logrado fazer prova, por qualquer forma, de que o valor real do veiculo, à data da contratação do seguro, era de €25.000,00. Pelo contrario, a análise cuidada dos documentos juntos aos autos e da prova testemunhal produzida em sede de audiência de julgamento vêm tão-só confirmar que a Recorrente não fez por qualquer forma prova do valor venal do veiculo e, designadamente, de que tal valor era de €25.000,00, pelo que o Tribunal Recorrido deveria ter decidido de outra forma no que concerne ao concreto ponto da matéria de facto, julgando-o como não provado. Não colhe, pois, a argumentação e fundamentação jurídica alegada pela Recorrente, desde logo porquanto a mesma se baseia num concreto ponto da matéria de facto que tendo sido considerado provado pelo Tribunal a quo não o foi efetivamente”. E, na sequência, o apelado produziu as conclusões já supra transcritas (designadamente, 19.ª a 32.ª).
Dispõe o artigo 640.º do CPC que: “1 - Quando seja impugnada a decisão sobre a matéria de facto, deve o recorrente obrigatoriamente especificar, sob pena de rejeição: a) Os concretos pontos de facto que considera incorretamente julgados; b) Os concretos meios probatórios, constantes do processo ou de registo ou gravação nele realizada, que impunham decisão sobre os pontos da matéria de facto impugnados diversa da recorrida; c) A decisão que, no seu entender, deve ser proferida sobre as questões de facto impugnadas. 2 - No caso previsto na alínea b) do número anterior, observa-se o seguinte: a) Quando os meios probatórios invocados como fundamento do erro na apreciação das provas tenham sido gravados, incumbe ao recorrente, sob pena de imediata rejeição do recurso na respetiva parte, indicar com exatidão as passagens da gravação em que se funda o seu recurso, sem prejuízo de poder proceder à transcrição dos excertos que considere relevantes; b) Independentemente dos poderes de investigação oficiosa do tribunal, incumbe ao recorrido designar os meios de prova que infirmem as conclusões do recorrente e, se os depoimentos tiverem sido gravados, indicar com exatidão as passagens da gravação em que se funda e proceder, querendo, à transcrição dos excertos que considere importantes. 3 - O disposto nos n.ºs 1 e 2 é aplicável ao caso de o recorrido pretender alargar o âmbito do recurso, nos termos do n.º 2 do artigo 636.º”.
No que toca à especificação dos meios probatórios, “quando os meios probatórios invocados tenham sido gravados, incumbe ao recorrente, sob pena de imediata rejeição do recurso na respetiva parte, indicar com exatidão as passagens da gravação em que se funda o seu recurso, sem prejuízo de poder proceder à transcrição dos excertos que considere relevantes” (artigo 640º, nº 2, al. a) do Código de Processo Civil).
Quanto ao cumprimento deste ónus impugnatório, o mesmo deve, tendencialmente, fazer-se nos seguintes moldes: “(…) enquanto a especificação dos concretos pontos de facto deve constar das conclusões recursórias, já não se afigura que a especificação dos meios de prova nem, muito menos, a indicação das passagens das gravações devam constar da síntese conclusiva, bastando que figurem no corpo das alegações, posto que estas não têm por função delimitar o objeto do recurso nessa parte, constituindo antes elementos de apoio à argumentação probatória” (assim, o Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 19-02-2015, Processo 299/05.6TBMGD.P2.S1, relator TOMÉ GOMES).
Assim, aos concretos pontos de facto, concretos meios probatórios e à decisão deve o recorrente aludir na motivação do recurso (de forma mais desenvolvida), sintetizando-os nas conclusões.
As exigências legais referidas têm uma dupla função: Delimitar o âmbito do recurso e tornar efectivo o exercício do contraditório pela parte contrária (pois só na medida em que se sabe especificamente o que se impugna, e qual a lógica de raciocínio expendido na valoração/conjugação deste ou daquele meio de prova, é que se habilita a contraparte a poder contrariá-lo).
O recorrentedeverá apresentar “um discurso argumentativo onde, em primeiro lugar, alinhe as provas, identificando-as, ou seja, localizando-as no processo e tratando-se de depoimentos a respectiva passagem e, em segundo lugar, produza uma análise crítica relativa a essas provas, mostrando minimamente por que razão se “impunha” a formação de uma convicção no sentido pretendido” (assim, o Acórdão do Tribunal da Relação do Porto de 17-03-2014, Processo nº 3785/11.5TBVFR.P1, relator ALBERTO RUÇO).
Os aspectos de ordem formal devem ser modelados em função dos princípios da proporcionalidade e da razoabilidade (cfr. o Acórdão do STJ de 28-04-2014, P.º nº 1006/12.2TBPRD.P1.S1, relator ABRANTES GERALDES).
Não cumprindo o recorrente os ónus do artigo 640º, n.º 1 do C.P.C., dever-se-á rejeitar o seu recurso sobre a matéria de facto, uma vez que a lei não admite aqui despacho de aperfeiçoamento, ao contrário do que sucede quanto ao recurso em matéria de direito, face ao disposto no art. 639º, nº 3 do C.P.C. (cfr. Ac. do Tribunal da Relação de Guimarães de 19-06-2014, P.º n.º 1458/10.5TBEPS.G1, relator MANUEL BARGADO).
A cominação da rejeição do recurso, prevista para a falta das especificações quanto à matéria das alíneas a), b), e c) do n.º 1, ao contrário do que acontece quanto à matéria do n.º 2 do art. 640.º do CPC (a propósito da «exatidão das passagens da gravação em que se funda o seu recurso»), não funciona automaticamente, devendo o Tribunal, se se patentear a falta de indicação das passagens exactas da gravação, a convidar o recorrente a suprir a falta de especificação daqueles elementos ou a sua deficiente indicação (cfr. Ac. do STJ de 26-05-2015, P.º n.º 1426/08.7CSNT.L1.S1, relator HÉLDER ROQUE).
Dever-se-á usar de maior rigor na apreciação da observância do ónus previsto no n.º 1 do art. 640.º (de delimitação do objecto do recuso e de fundamentação concludente do mesmo), face ao ónus do n.º 2 (destinado a possibilitar um acesso mais ou menos facilitado pela Relação aos meios de prova gravados relevantes, que tem oscilado em exigência ao longo do tempo, indo desde a transcrição obrigatória dos depoimentos até uma mera indicação e localização exacta das passagens da gravação relevantes) (neste sentido, Ac. do STJ de 29-10-2015, P.º n.º 233/09.4TBVNG.G1.S1, relator LOPES DO REGO);
O ónus atinente à indicação exacta das passagens relevantes dos depoimentos gravados deve ser interpretado em termos funcionalmente adequados e em conformidade com o princípio da proporcionalidade, pelo que a falta de indicção, com exactidão, só será idónea a fundamentar a rejeição liminar se dificultar, de forma substancial e relevante, o exercício do contraditório, ou o exame pelo tribunal, sob pena de ser uma solução excessivamente formal, rigorosa e sem justificação razoável (cfr. Acs. do STJ, de 26-05-2015, P.º nº 1426/08.7CSNT.L1.S1, relator HÉLDER ROQUE, de 22-09-2015, P-º nº 29/12.6TBFAF.G1.S1, relator PINTO DE ALMEIDA, de 29-10-2015, P.º n.º 233/09.4TBVNG.G1.S1, relator LOPES DO REGO e de 19-01-2016, P.º nº 3316/10.4TBLRA-C1-S1, relator SEBASTIÃO PÓVOAS).
A apresentação de transcrições globais dos depoimentos das testemunhas não satisfaz a exigência determinada pela al. a) do n.º 2 do art. 640.º do CPC (neste sentido, Ac. do STJ de 19-02-2015, P.º nº 405/09.1TMCBR.C1.S1, relatora MARIA DOS PRAZERES BELEZA), o mesmo sucedendo com o recorrente que procede a uma referência genérica aos depoimentos das testemunhas considerados relevantes pelo tribunal para a prova de quesitos, sem única alusão às passagens dos depoimentos de onde é depreendida a insuficiência dos mesmos para formar a convicção do juiz (cfr. Ac. do STJ de 28-05-2015, P.º n.º 460/11.4TVLSB.L1.S1, relator GRANJA DA FONSECA).
Nas conclusões do recurso devem ser identificados com precisão os pontos de facto que são objecto de impugnação, bastando que os demais requisitos constem de forma explícita da motivação (neste sentido, Acs. do STJ de 19-02-2015, P.º nº 299/05.6TBMGD.P2.S1, relator TOMÉ GOMES, de 01-10-2015, P.º nº 824/11.3TTLRS.L1.S1, relatora ANA LUÍSA GERALDES, de 11-02-2016, P.º nº 157/12-8TVGMR.G1.S1, relator MÁRIO BELO MORGADO).
Note-se, todavia, que atenta a função do tribunal de recurso, este só deverá alterar a decisão sobre a matéria de facto se concluir que as provas produzidas apontam em sentido diverso ao apurado pelo tribunal recorrido. Ou seja: “I. Mantendo-se em vigor, em sede de Recurso, os princípios da imediação, da oralidade, da concentração e da livre apreciação da prova e guiando-se o julgamento humano por padrões de probabilidade e nunca de certeza absoluta, o uso, pelo Tribunal da Relação, dos poderes de alteração da decisão da 1ª instância sobre a matéria de facto só deve ser efectuado quando seja possível, com a necessária segurança, concluir pela existência de erro de apreciação relativamente a concretos pontos de facto impugnados. II: Assim, a alteração da matéria de facto só deve ser efectuada pelo Tribunal da Relação, quando este Tribunal, depois de proceder à audição efectiva da prova gravada, conclua, com a necessária segurança, no sentido de que os depoimentos prestados em audiência final, conjugados com a restante prova produzida, apontam em direcção diversa, e delimitaram uma conclusão diferente daquela que vingou na primeira Instância” (assim, o Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães de 14-06-2017, Processo 6095/15T8BRG.G1, relator PEDRO DAMIÃO E CUNHA).
A insuficiência da fundamentação probatória do recorrente não releva como requisito formal do ónus de impugnação, mas, quando muito, como parâmetro da reapreciação da decisão de facto, na valoração das provas, exigindo maior ou menor grau de fundamentação, por parte do tribunal de recurso, consoante a densidade ou consistência daquela fundamentação (neste sentido, Ac. do STJ de 19-02-2015, P.º nº 299/05.6TBMGD.P2.S1, relator TOMÉ GOMES).
Contudo, “não há lugar à reapreciação da matéria de facto quando o facto concreto objecto da impugnação for insusceptível de, face às circunstância próprias do caso em apreciação, ter relevância jurídica para a solução da causa ou mérito do recurso, sob pena de se levar a cabo uma actividade processual que se sabe, de antemão, ser inconsequente” (assim, o Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra de 15-09-2015, Processo 6871/14.6T8CBR.C1, relator MOREIRA DO CARMO), sob pena de se praticar um acto inútil proibido por lei (cfr. artigo 130.º do CPC).
Estas as linhas gerais em que se baliza a reapreciação da matéria de facto na Relação.
Para além disso, e especificamente sobre a reapreciação probatória, importa referir que, como se referiu no Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães de 02-11-2017 (Processo n.º 501/12.8TBCBC.G1, relatora MARIA JOÃO MATOS): “O recorrente que pretenda contrariar a apreciação crítica da prova feita pelo Tribunal a quo terá de apresentar razões objectivas para contrariar a prevalência dada a um meio de prova sobre outro de sinal oposto, ou o maior crédito dado a um depoimento sobre outro contrário, não sendo suficiente para o efeito a mera transcrição de excertos de alguns dos depoimentos prestados, já antes ouvidos pelo julgador sindicado e ponderados na sua decisão recorrida (art. 640º do C.P.C.)”.
Do mesmo modo, se entendeu no Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães de 26-04-2018 (processo 1716/15.2T8BGC.G1, relatora MARIA DA PURIFICAÇÃO CARVALHO) escrevendo-se o seguinte: “1. O art.º 640.º do C.P.C. enumera os ónus que ficam a cargo do recorrente que pretenda impugnar a decisão da matéria de facto, sendo que a cominação para a inobservância do que aí se impõe é a rejeição do recurso quanto à parte afectada. 2. Ao impor tal artigo um ónus especial de alegação quando se pretenda impugnar a matéria de facto, com fundamento na reapreciação da prova gravada, o legislador pretendeu evitar que o impugnante se limite a atacar, de forma genérica e global, a decisão de facto, pedindo simplesmente a reapreciação de toda a prova produzida em primeira instância. 3. Ao cumprimento do ónus da indicação dos concretos meios probatórios não bastará somente identificar os intervenientes, efectuar uma apreciação do que possam ter dito ou impugnar de forma meramente genérica os factos em causa, devendo antes precisar-se, em primeiro lugar, detalhadamente cada um dos pontos da matéria de facto constante da decisão proferida colocados em crise, indicando-se depois, relativamente a cada um deles, as passagens concretas e determinadas dos depoimentos em que se funda a impugnação que impõem decisão diversa (e não que meramente a possibilitariam) e procurando-se localizar, ao menos de forma aproximada, o início e termo de tais passagens por referência aos suportes técnicos, conforme o preceituado no referido n.º4. 4. Se o recorrente não cumpre tais deveres, não é exigível ao Tribunal que aprecia o recurso que se lhe substitua e tudo reexamine, quando o que lhe é pedido é que sindique concretos erros de julgamento da peça recorrida que lhe sejam devidamente apontados com referência à prova e respectivos suportes”.
Refira-se, no mesmo sentido, o Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães de 28-06-2018 (Processo 123/11.0TBCBT.G1, Relator JORGE TEIXEIRA) concluindo que: “Tendo o recurso por objecto a reapreciação da matéria de facto, deve o recorrente, para além de delimitar com toda a precisão os concretos pontos da decisão que pretende questionar, motivá-lo através da indicação das passagens da gravação que reproduzam os meios de prova que, no seu entendimento, determinam decisão dissemelhante da que foi proferida pelo tribunal “a quo”. Nestas situações, não podendo o Tribunal da Relação retirar as consequências que a impugnação da matéria de facto, deve entender-se que essa omissão impõe a rejeição da impugnação do pertinente recurso, por não cumprimento dos ónus estabelecidos no art. 640º do CPC e consequente inviabilização do cumprimento do princípio do contraditório por parte do recorrido, quando a esses pontos da matéria de facto não concretizados”.
Conforme se referiu no Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra de 12-09-2012 (processo 245/09.8 GBACB.C1, relator BRÍZIDA MARTINS): “O recorrente que queira impugnar a matéria de facto tem que (…) indicar, dos pontos de facto, os que considera incorretamente julgados – o que só se satisfaz com a indicação individualizada dos factos que constam da decisão, sendo inapta ao preenchimento do ónus a indicação genérica de todos os factos relativos a determinada ocorrência”.
Sobre a indicação concreta de meios de prova que se pretendem utilizar, o Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 05-09-2018 (Processo 15787/15.8T8PRT.P1.S2, rel. GONÇALVES ROCHA) decidiu que: “A alínea b), do nº 1, do art. 640º do CPC, ao exigir que o recorrente especifique os concretos meios probatórios, constantes do processo ou de registo ou gravação nele realizada, que impunham decisão diversa sobre os pontos da matéria de facto impugnados, exige que esta concretização seja feita relativamente a cada um daqueles factos e com indicação dos respectivos meios de prova, documental e/ou testemunhal e das passagens de cada um dos depoimentos”.
E, conforme se concluiu no Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 19-02-2015 (Processo 405/09.1TMCBR.C1.S1, rel. MARIA DOS PRAZERES PIZARRO BELEZA), não observa o ónus legalmente exigido, “o recorrente que identifica os pontos de facto que considera mal julgados, mas se limita a indicar os depoimentos prestados e a listar documentos, sem fazer a indispensável referência àqueles pontos de facto, especificando os concretos meios de prova que impunham que cada um desses pontos fosse julgado provado ou não provado”.
Revertendo ao caso dos autos e considerando as alegações do apelado verifica-se que o mesmo indicou qual o concreto ponto de facto a impugnar, bem como, o sentido em que o faz – considerando que a matéria de facto em questão dada como provada, deverá ser julgada não provada – mas, contudo, não se divisam indicados nas alegações os concretos meios probatórios que impunham diversa decisão.
Como se viu, o autor limitou-se a considerar que “os depoimentos das testemunhas” e “a documentação” junta aos autos não permitem a conclusão alcançada pelo Tribunal recorrido, aludindo, também genericamente, aos “peritos averiguadores arrolados pela Recorrente”.
Ora, se concretiza os documentos que, em seu entender implicam diverso julgamento, certo é que, no que concerne aos depoimentos, não individualiza nenhum deles, nem sequer pela indicação do nome da testemunha que prestou depoimento.
A singela indicação realizada pelo autor não satisfaz, clamorosamente, a “concretização” de meios de prova exigida pela al. b) do n.º 1 do artigo 640.º do CPC.
Importa sublinhar que, o autor, embora recorrido na apelação, veio ampliar o objeto do recurso e, nesta medida, afigura-se que deveria observar os ónus de impugnação constantes do mencionado artigo 640.º do CPC, com as devidas adaptações, a isso não obviando a norma do artigo 636.º do CPC, que, aliás, alude singelamente à impugnação de concretos pontos de facto (inculcando que a mesma se fará, ainda que, nos termos desta norma, ao abrigo dos termos gerais de impugnação de facto).
Alinhando por esta conclusão, decidiram:
- O Supremo Tribunal de Justiça, no seu acórdão de 26-05-2015 (Processo 2689/08.3TBLRA.C1.S1, rel. GARCIA CALEJO) que: “Nos termos do art. 636.º, n.º 2, do [CPC], prevenindo a hipótese de procedência das questões suscitadas pelos recorrentes, os recorridos podem impugnar a decisão proferida sobre a matéria de facto dada como assente. Neste caso, à impugnação da matéria de facto é-lhe aplicável as regras atinentes à impugnação da matéria pelo recorrente, donde resulta que a matéria de facto impugnada pelos recorridos, só poderá ser apreciada pela Relação se os mesmos cumprirem as determinações ínsitas no art. 640.º, n.º 1”; e
- O Tribunal da Relação de Évora, no seu Acórdão de 26-10-2017 (Processo 1891/15.6T8FAR.E1, rel. MÁRIO COELHO) que: “Caso o recorrido pretenda ampliar o âmbito do recurso, impugnando a matéria de facto e suscitando a reapreciação da prova gravada, tem o ónus de especificar os meios de prova cuja reapreciação possa determinar a modificação da decisão da matéria de facto”.
Assim, conclui-se que, não se mostra cumprido o ónus exigido pela mencionada alínea b) do n.º 1 do artigo 640.º do CPC, se o impugnante não identifica, nem individualiza, por qualquer modo, o concreto depoimento ou testemunho gravado, que pretende utilizar em sede de impugnação, nomeadamente, por referência ao nome da pessoa que o prestou, não se afigurando que cumpra tal ónus, a mera alusão, genérica, a uma categoria ou tipo de meios de prova produzidos.
De facto, nem na alegação, nem nas conclusões que produziu, o autor identificou que depoimento induz à conclusão que identifica: A de que a matéria constante da al. dd) dos factos provados, deveria ter sido dada como não provada.
Concluindo-se, como se viu, que nas alegações devem ser identificados os concretos meios de prova que implicariam diverso resultado probatório, o que implica a tomada de uma posição clara e inteligível sobre o teor do concreto meio de prova que induz tal resultado, verifica-se que, no caso em apreço, tal posição não foi tomada pelo autor.
A situação verificada conduzirá, pois, à não reapreciação da prova gravada e objecto de ampliação do recurso.
* 3) Da alteração da matéria de facto constante da alínea dd) dos factos provados (“o valor venal do veiculo em causa seria de cerca de € 25.000,00”) com fundamento na prova documental produzida.
Ainda assim, vejamos se a “documentação” a que alude o autor – e que se encontra nos autos – permite a formação de uma convicção diversa da alcançada pelo Tribunal recorrido.
De facto, de acordo com o preceituado no artigo 662.º, n.º 1 do CPC, “a Relação deve alterar a decisão proferida sobre a matéria de facto, se os factos tidos como assentes, a prova produzida ou um documento superveniente impuserem decisão diversa”.
Contudo, tem sido diverso o entendimento acerca da intensidade e do alcance do poder de reapreciação da matéria de facto atribuído aos Tribunais da Relação.
O princípio que rege a apreciação da prova é o da livre valoração.
Sempre que a prova não tenha um valor legal ou tarifado, a prova é apreciada segundo a prudente convicção do Juiz (art.º 607.º, n.º 5, CPC).
Isto significa que o Juiz tem de formar uma convicção subjectiva sobre a verdade ou a plausibilidade do facto provado. Ou seja: O julgador tem de adquirir um estado psíquico de convicção sobre essa verdade ou plausibilidade, baseado numa convicção objectiva, isto é, num conjunto de razões que permite afirmar que um facto é verdadeiro ou é plausível (cfr. Miguel Teixeira de Sousa; ‘‘Prova, poderes da Relação e convicção: a lição da epistemologia’’ - Ac. do STJ de 24/09/2013, Proc.1965/04, in Cadernos de Direito Privado N.º 44, Outubro/Dezembro, 2013, p. 33).
Ao contrário do que sucedia no âmbito do precedentemente vigente artigo 712.º do CPC, o actual artigo 662.º do CPC evidencia que, sem prejuízo da correcção, mesmo a título oficioso, de determinadas patologias que afectam a decisão de facto e sem postergar o ónus de impugnação da decisão de facto que recai sobre o recorrente, quando esteja em causa a impugnação de determinados factos cuja prova tenha sido sustentada em meios de prova submetidos à livre apreciação do julgador, a Relação deve alterar a decisão de facto sempre que, no seu juízo autónomo, submetido às mesmas regras de direito probatório material que são aplicáveis em 1ª instância, os elementos de prova que se mostrem acessíveis imponham uma solução diversa da antes acolhida.
Ora, quando esteja em questão convicção do julgador fundada no princípio da livre apreciação da prova, a mesma “só pode ser modificada pelo Tribunal de recurso quando fundamentada em provas ilegais ou proibidas ou contra a força probatória plena de certos meios de prova, ou então, quando afronte, de forma manifesta, as regras da experiência comum” (assim, o Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães de 30-03-2017, Processo 122/15.3T8VRM.G1, rel. JORGE TEIXEIRA).
Vejamos:
Relativamente à prova documental produzida, o autor invoca:
- Que o seu veículo tem “características (…) substancialmente diferentes das características dos veículos que a Recorrente menciona no Doc. 10 junto com a contestação (que ou são carros com menos potência ou são carros com quase o dobro dos quilómetros ou com muito menos extras ou com caixa de velocidades manual), características que necessariamente impactam no valor respectivo”;
- Que os “preços, constantes do Doc. 10 junto com a contestação, serem preços de aquisição dos veículos na Alemanha (ou seja, não contemplando os custos de transporte, inspecção e legalização em Portugal, designadamente de impostos), preços sem IVA e preços praticados mais de dois anos após a aquisição do veiculo pelo Recorrido no referido país, sendo óbvio e de conhecimento generalizado que em dois anos um veiculo perde, naturalmente, parte significativa do seu valor comercial. Na Alemanha não será diferente…”;
- Que “conforme aliás decorre do Doc. 11 junto pela Recorrente com a contestação”, o “valor do veículo considerado para efeitos de seguro era consentâneo com o valor de mercado”, pois, “mais de dois anos depois, veículos com características aparentemente similares estarem à venda por €25.750,00”, sendo o veículo com a matrícula …-QS-…, um veículo com “características diferentes do veiculo em discussão nos presentes autos, até porque tem cilindrada inferior (1995, conforme consta do documento junto pela Recorrente, por contraposição aos 2993 de cilindrada da viatura em apreciação nos autos), não tem caixa de velocidades automática, não tem tecto panorâmico, enfim, é um veiculo bastante inferior em termos de valor”;
- Que “mais de 2 anos após a aquisição do veículo pelo Recorrido, designadamente em Fevereiro de 2018, veículos idênticos estavam à venda por aproximadamente €30.000,00, sem terem os extras que o veiculo em causa tinha (cfr. por todos, Doc. 1 junto com o requerimento apresentado pelo Autor aqui Recorrido em 19.02.2018, refª Citius 17978431)”; - Que nos termos da “avaliação Eurotax, integrante do processo de legalização do veículo em Portugal (…) em 26.02.2016 o preço do veiculo em novo era de €70.663,00, preço exactamente correspondente ao valor considerado pela Recorrida no contrato de seguro (cfr. Doc. 2 junto com a PI); o valor de cotação de venda corrigida do veiculo, para efeitos de calculo Eurotax, seria de €26.874,00, sendo que este valor considerava apenas o equipamento de serie devidamente descrito no documento (do qual não constam os items que foram segurados como extras, ou seja, o tecto panorâmico e as jantes em liga leve pack M, distintas das jantes de liga leve 17 que constituem equipamento de série)”.
Neste ponto, importa recordar que o julgador do Tribunal a quo indicou como fonte da sua convicção probatória o seguinte: “A convicção do Tribunal assentou primordialmente na análise cuidada e distanciada de toda a prova documental junta aos autos a fls. 7v e seguintes, fls. 35 v e seguintes, fls. 48 e seguintes, fls. 63 e seguintes, fls. 84 e seguintes, fls. 110 v,fls. 119 e seguintes, fls. 150 e seguintes, fls. 165, fls. 167. Estão documentada todas as diligências realizadas pelo A. no que diz respeito ao indicado furtoqueixa na PSP,Inquerito no DIAP-seu arquivamento, declarações do A. para a seguradora, as carta enviadas pela seguradora a declinar a responsabilidade, a 1ª e depois a 2ª após carta subscrita pela ilustre Mandatária do A. (…). Está nos autos todo o processo relativo à regularização da viatura em Portugal, à DAV (Declaração Aduaneira de Veículo) do veículo de matrícula …-RA-…e ainda da sua entrada em Portugal vinda da Alemanha, bem como documentação relativa à venda (…)”.
Ou seja: Considerou o Tribunal recorrido os documentos mencionados pelo autor.
Afigura-se que as questões suscitadas pelo autor não poderá ser atendidas, nesta sede, sob pena de implicarem uma apreciação “ex novo” da valia do veículo.
Conforme se afirmou no Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 07-07-2016 (Processo 156/12.0TTCSC.L1.S1, rel. GONÇALVES ROCHA), “não é lícito invocar nos recursos questões que não tenham sido objecto de apreciação na decisão recorrida, pois os recursos são meros meios de impugnação das decisões judiciais pelos quais se visa a sua reapreciação e consequente alteração e/ou revogação”.
Ora, tendo em conta o material probatório ao dispor do Tribunal recorrido e considerado o teor de todos os aludidos documentos, em face do que deles resulta é possível concluir o seguinte:
- No doc. N.º 10 junto com a contestação (com referências em língua alemã) e por contraponto ao “livrete” do veículo do autor, junto como primeiro documento com a petição inicial, existem, de facto, relacionados diversos veículos, do mesmo ano de fabrico do do autor, mas com diferente quilometragem, diverso consumo de CO2, não estando ai contabilizados, nos valores indicados, os custos de importação do veículo para Portugal (muito embora isso não se reflicta, claro está, no valor venal do veículo, ou pelo menos, será condição semelhante para todos os veículos que, tal como o do autor, sejam importados da Alemanha), sendo que, como o autor evidencia, o próprio documento em questão será de produção temporalmente ulterior à da aquisição do veículo do autor;
- No doc. N.º 11 junto com a contestação (em português) – com a mesma observação quanto à data em que o mesmo terá sido produzido, ulterior à aquisição pelo autor do veículo dos autos – assinala-se que um veículo com 190.000 km é colocado à venda por €25.750,00;
- O veículo de matrícula …-QS-… é um veículo de marca diversa do do autor, não sendo possível comparação com aquele em termos de valor;
- Que no documento n.º 1 junto com o requerimento do autor, em 19-02-2018, os preços aí assinalados para 8 veículos, da marca do do autor, com o modelo 525 (uns “touring” outros “berlina”) variam entre, um mínimo de € 24.000 e um máximo de € 31.800, mas que, contudo, não resulta de tal documento nem o ano de fabrico, nem outras características que permitam diferenciar a variação de preços assinalada; e
- Que nos termos da “avaliação Eurotax”, integrante do processo de legalização do veículo em Portugal – cfr. ofício da Autoridade Tributária junto aos autos em 25-05-2018 - em 26-02-2016 o preço do veículo em novo era de € 70.663,00 e com o valor de “cotação de venda corrigida” de € 26.874,00.
Importa não esquecer que “o uso, pela Relação, dos poderes de alteração da decisão da 1ª Instância sobre a matéria de facto só deve ser usado quando seja possível, com a necessária segurança, concluir pela existência de erro de apreciação relativamente a concretos pontos de facto impugnados (…) (prevalecendo, em caso contrário, os princípios da imediação, da oralidade, da concentração e da livre apreciação da prova)” (assim, o Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães de 02-11-2017, Processo 501/12.8TBCBC.G1, rel. MARIA JOÃO MATOS).
Ora, considerando estes elementos de prova, verifica-se que a referenciação do valor venal a “cerca de € 25.000,00”, não compartilha de uma rigorosa apreciação de todos os aludidos documentos.
Neste conspecto, afigura-se que o elemento mais consistente e probatoriamente mais credível - em termos de, dele se inferir maior precisão, maior aproximação às características do veículo, maior atinência ao momento temporal em que ocorreu o sinistro - para a determinação do valor venal do veículo do autor - e também aquele que provém de fonte mais isenta (no sentido de “distanciamento” para com as partes dos autos) - será o que resulta da mencionada avaliação “Eurotax”, realizada em 26-02-2016 (sendo certo que, também não se apurou da realização de qualquer “desvalorização” ulterior do veículo até à data em que o sinistro teve lugar).
Afigura-se, pois, que os elementos de prova carreados para os autos permitem, com o possível rigor - e com maior fidedignidade do que o apurado em sede de julgamento pelo Tribunal recorrido (que, apesar destes elementos, assinalou sem justificação um valor aproximado) - , determinar, com referência a tal elemento documental, o valor venal do veículo do autor.
A redação da mencionada alínea dd) dos factos provados deverá, pois, ser alterada em conformidade.
Nestes termos, conclui-se que a alínea dd) dos factos provados deverá ser alterada para a seguinte: “O valor venal do veículo em causa era de € 26.874,00”.
* NA DECORRÊNCIA DA ALTERAÇÃO DA MATÉRIA DE FACTO OPERADA PELO CONHECIMENTO DO RECURSO, A MATÉRIA PROVADA A CONSIDERAR É A SEGUINTE:
a) O Autor é proprietário do veículo automóvel de marca BMW, modelo Série 5- Touring Diesel, de matrícula …-RA-…;
b) O referido veículo encontrava-se, à data dos factos, segurado junto da Ré, ao abrigo da apólice nº …, a qual cobre, entre outros, os danos próprios e, designadamente, os riscos de furto ou roubo;
c) No dia 18-02-2017 o Autor foi, assistir a um jogo de futebol do Sporting Clube de Portugal no Estádio José de Alvalade, contra o Rio Ave Futebol Clube, tendo sido acompanhado por um amigo;
d) Nessa data, o Autor estacionou o seu veiculo na Rua António Couto, a 500 metros do referido estádio;
e) No final do jogo, o Autor saiu do estádio e, dirigindo-se ao local onde deixara o seu veiculo acima identificado estacionado, constatou que o mesmo já lá não se encontrava;
f) Supondo que o veiculo havia sido rebocado, o Autor dirigiu-se à 19ª Esquadra, Policia de Segurança Pública, em Telheiras tendo no local e pelos agentes presentes sido efectuadas diligências junto dos parques de depósito de veículos e enviada mensagem de telemóvel para o 3838, correspondente ao serviço SOS Reboques, sendo que em ambos os casos a resposta foi negativa;
g) Nesta sequência, e tudo indicando assim que o veiculo havia sido não rebocado mas furtado, o Autor foi então encaminhado para o departamento competente dentro da esquadra e apresentou participação criminal referente ao furto do veiculo e dos bens que se encontravam no seu interior, a saber uma cadeirinha de criança, a carta verde do seguro, o dispositivo de via verde e as chaves de acesso à sua habitação;
h) No dia 20 de Fevereiro -2ªf- o Autor contactou a sua mediadora de seguros - BM2 – Mediação de Seguros, Unipessoal Lda., com escritório no Centro Comercial Flamingos, Loja 50, 2660-329 Santo António dos Cavaleiros, por forma a participar a ocorrência à seguradora, ora Ré, o que esta fez;
i) Decorrido cerca de um mês, o Autor foi notificado do arquivamento do processo crime referente ao furto do veiculo;
j) Em finais de Março de 2017 a perita averiguadora ao serviço da Ré foi ao encontro do Autor, pediu-lhe a chave do veiculo (que este lhe entregou) e solicitou ao Autor esclarecimentos diversos;
l) O veiculo é do ano de 2011, tendo tido a primeira matricula em Portugal aquando da aquisição pelo A., em Março de 2016;
m) o A. mandou fazer uma chave num concessionário da Alemanha em virtude da viatura só ter uma chave na altura da compra;
n) Por carta datada de 26-04-2017 a Ré informou que não iria proceder à regularização dos danos decorrentes do sinistro alegando para o efeito que “de acordo com os elementos disponíveis informamos que no âmbito das diligências levadas a cabo pelos nossos serviços técnicos, foi-nos possível apurar a existência de vários elementos que nos levaram a concluir que o acidente em causa não se tratou de um evento súbito e fortuito”
o) Em 13-09-2017 o A. endereçou carta à R.;
p) O Autor procedeu, dentro do prazo, ao pagamento do aviso referente à segunda semestralidade do prémio de seguro, que lhe foi remetido pela Ré, no valor de € 628,29, tendo em consequência a Ré procedido à emissão da carta verde.
q) No âmbito do seguro automóvel obrigatório o Autor transferiu para a Ré a respectiva responsabilidade civil do veiculo de matricula …-RA-…, através da apólice …, com inicio em 05-03-2016, que da listagem de coberturas da apólice contratadas fazia parte, entre outras, a cobertura de furto ou roubo;
r) À data dos factos a apólice encontrava-se válida e em vigor;
s) Foi participado à R. um furto como tendo ocorrido no dia 18-02-2017, entre as 19h15m e as 22h30m, aproximadamente e recebida a participação, a R. procedeu a diversas diligências de averiguação;
t) O veículo é um BMW série 5 adquirido em 2015 com cerca de 156.761km ;
u) Declarou o A. perante a R. que o veículo foi por si adquirido no final de 2015, na Alemanha, por € 35.000,00, pagos em dinheiro e que o veículo foi adquirido “essencialmente com objectivo de venda, mas na chegada a Portugal decidi ficar com o veículo para uso familiar”.
v) Há diversos anos que o A. trabalha no sector automóvel, tendo perfeita noção do valor de mercado dos veículos;
x) É sócio gerente da empresa PSNG Automóveis, Lda. com o NIPC 513939652, a qual foi constituída em 08-04-2016, data coincidente com o registo de propriedade do veículo seguro;
z) Foi também sócio da Sociedade denominada Stand 14, Lda., com o NIPC 507672887;
aa) Exerceu em 2005, funções de vendedor na empresa JVC Automóveis
bb) E foi trabalhador da empresa PowerBox, em 2007, no âmbito de seguro de garagista;
cc) Na sua actividade profissional, o A. adquire também frequentemente veículos importados, tendo efectuado, por exemplo, mais recentemente, seguro dos seguintes veículos importados:
-Peugeot de matrícula …-RU-…; (ii) BMW série 1, de matrícula …-RM-…;
- Peugeot de matrícula …-RU-… e
-BMW 525, de matrícula …-QS-…,
dd) O valor venal do veículo em causa era de € 26.874,00;
ee) A apólice foi posteriormente anulada passando o veículo a estar seguro em nome de NP… desde 22-02-2017;
ff) O veículo em causa foi adquirido em 10-12-2015, tendo sido entregue ao A. em 17-12-2015, de acordo com a factura do stand Hugo-Automobile GmbH
gg) Pagando o A. pela sua aquisição o valor de € 13.500,00;
hh) Posteriormente, o veículo terá entrado em Portugal pela fronteira de Vilar Formoso, em 16-01-2016
ii) O veículo foi inspecionado em 23-02-2016 com a matrícula de origem D861A, com vista à matrícula do veículo em Portugal, tendo o resultado sido aprovado;
jj) O custo global do veículo para o A. ascendeu a € 19.559,86;
ll) O A. declarou perante a Autoridade Tributária que adquiriu o veículo pelos € 13.500,00;
mm) Na sequência da importação do veículo, em 05-03-2016, o A. celebra com a R. um contrato seguro de responsabilidade civil automóvel com coberturas de danos próprios;
nn) Aqui se incluindo a cobertura de Furto ou Roubo com um capital seguro de € 40.695,53
oo) O A. segurou o veículo com um capital de € 34.695,53 e declarou extras no valor de € 6.000,00;
oo) Nos extras o A. incluiu umas jantes em liga leve e um tecto panorâmico que indicou com um valor de € 4.000,00;
pp) A R. procedeu à leitura da chave da viatura entregue pelo A. que se confirmou pertencer ao veículo seguro, através da correspondência com o n.º do chassis (…);
qq) Foram lidos, entre outros, erros no sistema de incandescência do veículo seguro, detectado coletor de admissão/canais de admissão carbonizados e diversos registos na memória de falhas no grupo de instrumentos e, ainda, que a última actualização dia ocorreu a 19-02-2017 pelas 19h03m;
rr) Nessa data o veículo tinha 190.838km, mais 37.529km que os constantes à data da aquisição;
* NA DECORRÊNCIA DA ALTERAÇÃO DA MATÉRIA DE FACTO OPERADA PELO CONHECIMENTO DO RECURSO, A MATÉRIA NÃO PROVADA A CONSIDERAR É A SEGUINTE:
*
Da Pi:
E que a passagem na portagem de Carcavelos consta do extracto da Via Verde .
(O A. não juntou até ao momento das Alegações finais, da Audiência de Julgamento, qualquer extracto da Via Verde).
*
Da Contestação:
Da experiência que a R. tem, este aumento apenas tem justificação lógica quando se pretende depois vir a invocar e obter uma perda total do veículo
O A. tem um histórico significativo de viaturas seguras na R. - cerca de 33 veículos desde 2004
De todos os veículos segurados, apenas para este veículo em concreto foi subscrita a cobertura de furto ou roubo e apenas este foi furtado
Tendo o sinistro sido participado exactamente no termo da primeira anuidade do sinistro (ou seja, quando se iria vencer a segunda anuidade, implicando uma despesa adicional para o A.).
Veja-se, a título exemplificativo, os docs. 06 a 09 já juntos supra
Sendo certo que o veículo de marca BMW 525, com matrícula …-QS-…, já acima referido, é em tudo semelhante ao veículo objecto dos presentes autos, não tendo sido contratada a cobertura de furto ou roubo.
Os factos acima descritos levaram também a R. a averiguar as diversas relações que o A. mantém com outros intervenientes no sector automóvel,
Concluindo-se que o A. mantém relações muito próximas com outras entidades e pessoas que estão referenciadas na R. como sendo intervenientes em sinistros que relevam bastantes incongruências,
E cuja responsabilidade foi inclusive, em diversos casos, rejeitada pela R. por ter concluído que os sinistros participados não ocorreram conforme participado.
A ligação do A. ao ramo automóvel passa pelo Stand denominado Powerbox, como vendedor Estando em causa um Stand referenciado por sinistros que são controversos e com intervenção do respectivo sócio gerente e da sua esposa, os Senhores P… e ÂB…, que é, aliás, testemunha do A. nos presentes autos.
As relações do A. com a família B… são diversas e de há longa data conforme, por exemplo, sucede com o veículo de matrícula …-JL-…, cuja propriedade se encontrava registada em nome da esposa do tomador – AR… (cfr. doc. 17 que se protesta juntar) e passou para a esfera patrimonial de PC….
Ou com o veículo de matrícula …-…-LM: em 2004, o A. contrata seguro para este veículo, anexando comprovativo de experiência de condução e ausência de sinistralidade assinada pelo proprietário da PowerBox.
* C) Apreciação do recurso:
* 4) Se a sentença recorrida, ao indemnizar pelo valor do capital seguro, não atendendo ao custo de aquisição do veículo e ao valor venal que o mesmo teria, violou o disposto nos art.ºs 128º e 132º do Regime Jurídico do Contrato de Seguro e 562º do Código Civil?
Realizado este excurso, estamos em condições de retomar a apreciação da questão suscitada pela ré.
Conforme decorre da natureza do seguro em questão (seguro de danos) e considerando a ausência de estipulação autónoma de um valor de substituição do veículo como “novo”, a prestação da ré encontra-se limitada “ao dano decorrente do sinistro até ao montante do capital seguro”, nos termos do disposto no artigo 128.º da LCS.
Na realidade, por via da constatação de que o valor venal – ou seja, o valor correspondente ao custo de substituição - do veículo do autor corresponde ao montante de € 26.874,00, estando o seguro, no que respeita à cobertura da eventualidade de “furto” contratado pelo valor de € 40.695,53, verifica-se uma situação de sobresseguro, pois, o valor atribuído ao bem não corresponde ao seu valor real.
Não se mostra relevante, ao contrário do que resulta da decisão recorrida, para assim concluir que, a seguradora, aquando da realização do seguro, não pediu ao autor elementos adicionais para aceitar o seguro como foi feito, nomeadamente, documentos quanto aos extras declarados.
A “validação” das declarações do segurado que a ré efetuou ao firmar o seguro, com a indicação do valor de € 40.695,53 para a cobertura atinente ao furto, destinou-se apenas a explicitar “o modo de quantificação ou determinação do valor máximo pagável pelo segurador” (cfr. Pedro Romano Martinez et al; Lei do Contrato de Seguro Anotada; Almedina, 2009, p. 202), não regulando, autónoma e antecipadamente, sobre o concreto valor de cobertura do risco de furto em caso de sinistro, nem para a prestação de indemnização concreta a cargo da ré, caso aquele ocorresse.
Como se viu, na falta de estipulação nos termos do artigo 131.º da LCS tem plena aplicação, em situações de sobresseguro, a norma do artigo 132.º, n.º 1, da LCS, que determina que, nessa situação, seja considerado o disposto no artigo 128.º da LCS.
Ora, neste âmbito – ou seja, no estrito âmbito dos artigos 128.º e 132.º da LCS - o valor do capital seguro não deve ser superior ao valor do bem seguro. Mas, do mesmo modo, o valor da prestação a cargo da ré não pode ser superior ao valor do interesse lesado, devendo corresponder ao efectivo dano sofrido pelo segurado.
No caso dos autos, o valor do capital seguro – limite máximo até ao qual a ré poderá responder - não corresponde ao valor do bem seguro, sendo superior, ónus demonstrativo que a ré logrou efetuar.
Verifica-se, de facto, que o valor do interesse lesado corresponde, na falta de atendibilidade de outro critério, ao do valor venal ou de mercado do bem furtado, pelo que, será neste montante que deverá fixar-se a prestação da ré seguradora, ou seja, no mencionado montante de € 26.874,00, que corresponde ao valor do bem na data do sinistro (e, não, ao valor do bem que foi indicado pelo autor aquando da celebração do seguro).
E, de facto, o artigo 562.º do CC - tal como o mencionado artigo 128.º da LCS – determina que a reparação do dano deva ocorrer com a reconstituição da situação que existiria, se não tivesse havido o evento que obriga à reparação pela ré (a ocorrência do sinistro de furto).
Ora, fácil é concluir que, caso o furto não tivesse tido lugar, o autor não conseguiria obter valor para o veículo superior ao valor venal do mesmo, no referido montante de € 26.874,00, reconduzindo-se a este valor, o da prestação que a ré deverá satisfazer.
Contudo, para além do exposto, haverá que atender a que o autor procedeu ao pagamento de prémios de seguro com base em cobertura de valores que não ocorriam, o que dá lugar à restituição do valor dos sobreprémios pagos pelo autor, de harmonia com o previsto no n.º 2 do artigo 132.º da LCS.
Assim, tendo o autor procedido ao pagamento de valores correspondentes ao prémio devido no primeiro ano de € 1.262,23 (cfr. doc. 2 junto com a p.i.) para um valor de cobertura de € 40.695,33, verifica-se que, para um valor de € 26.874,00, o autor pagaria um valor de prémios de € 833,54.
O autor pagou em excesso a correspondente diferença (€ 1.262,23 - € 833,54), ou seja, € 428,69 que lhe deverá ser, igualmente, satisfeita pela ré.
A decisão recorrida deverá, pois, ser alterada em conformidade e, na parcial procedência da apelação, condenar-se a ré a pagar ao autor a quantia de € 27.302,69, acrescida de juros vencidos e vincendos e até integral pagamento.
*
A responsabilidade tributária incidirá sobre ambas as partes, na proporção do respectivo decaimento – cfr. artigo 527.º, n.ºs. 1 e 2, do CPC.
* 5. Decisão:
Pelos fundamentos expostos, acordam os Juízes que compõem o tribunal coletivo desta 2.ª Secção Cível, na parcial procedência da apelação, em:
a) Modificar a decisão da matéria de facto, no tocante à redação da alínea dd) dos factos provados em conformidade com o supra assinalado; e
b) Alterar a sentença recorrida, condenando a ré a pagar ao autor a quantia de € 27.302,69 (vinte e sete mil, trezentos e dois euros e sessenta e nove cêntimos), acrescida de juros vencidos e vincendos e até integral pagamento.
Custas por apelante e apelado, na proporção do decaimento havido.
Notifique e registe.
*
Lisboa, 21 de maio de 2020.
Carlos Castelo Branco
Lúcia Celeste da Fonseca Sousa
Magda Espinho Geraldes