MENORES
MEDIDAS TUTELARES
FINALIDADE
ADEQUAÇÃO
Sumário

I – O modelo de justiça penal para os menores de idade compreendida entre os 12 e os 16 anos dá lugar à aplicação de uma medida tutelar e tem como escopo a educação para o direito.
II – A intervenção tutelar não tem, por isso, um cariz retroactivo, mas sim prospectivo ou de educação, tendo como intuito ser uma lei responsabilizadora, que não punitiva, pretendendo levar os jovens a interiorizar a ideia de que a sociedade não permite comportamentos que violem os seus valores.
III – Assim sendo, o critério de aplicação da medida tutelar educativa é sempre o interesse do jovem, visando a correcção da sua personalidade, manifestada no momento da decisão, e a concreta gravidade do facto ilícito praticado.
IV – A medida cautelar de guarda em centro educativo não é equiparável à prisão preventiva, podendo até ser aplicável em regime semiaberto.
V – O regime previsto na medida de realização de tarefas a favor da comunidade não é equiparável à prestação de trabalho a favor da comunidade prevista no Código Penal, diploma que não tem aplicação, nem por remissão, em sede tutelar educativa, pelo que aqui não é necessária a aceitação do condenado.
VI – Na aplicação das medidas tutelares deverá ter-se em conta o princípio da adequação e suficiência da medida.

Texto Integral

Processo nº 441/19.0Y3MTS.P1

Acordam em conferência na Primeira Secção Criminal do Tribunal da Relação do Porto:

I - Relatório
No âmbito do processo tutelar educativo com o número acima referido que correu termos no Tribunal Judicial da Comarca do Porto – Juízo de Família e Menores C…, Juiz 3, foi aplicada a favor do menor, B… a medida tutelar de prestação de tarefas a favor da comunidade, pelo período de 35 horas, em moldes a definir pela DGRSP.
Inconformado com a decisão, dela recorreu o menor nos termos constantes da motivação de folhas 119 a 134, extraindo da respetiva motivação as seguintes conclusões: (transcrição)
«CONCLUSÕES:
1. A decisão final proferida nos autos peca, ostensivamente, numa tríplice vertente:
2. Desde logo na errónea apreciação da prova, dado o Tribunal ter assente a sua convicção em critérios de convencimento aplicáveis imputáveis penais (maiores de 16 anos), esquecendo-se totalmente que se está na presença de uma criança de 14 anos à data dos factos (e com 15 no julgamento);
3. Igualmente existe uma manifesta Inconstitucionalidade na aplicação do artº. 12º da LTE, ao se determinar tal medida de realização de tarefas a favor da comunidade sem qualquer aceitação ou consentimento de tal por parte do menor (na pessoa de seus pais) o que ofende de uma forma categórica o artº. 25º nº1 da C. R. Portuguesa, o artº. 5º da Carta dos Direitos Fundamentais da União Europeia, o artº. 3º da Declaração Universal dos Direitos Humanos, violando-se ainda o artº. 58º do C. Penal, ex vi artº. 496º do C.P. Penal, ex vi artº. 128 da LTE;
4. Por fim existe uma manifesta desproporcionalidade de na aplicação da sanção em si (“35 horas, pouco acime do limite médio”), face ao ilícito penal em causa à total ausência de danos patrimoniais ou pessoais, ao retratamento do Arguido do seu erro perante o Ofendido na P.S.P. e à declaração de aceitação do perdão por parte da vítima.
5. A tudo acresce o facto da decisão esquecer factos relevantes para a convicção do tribunal, referidos por todos os intervenientes, os quais são determinantes para a prova do real erro em que estava o Menor, nos termos do Art. 16º nº 2 do C. Penal, erro esse que deverá ser dado como provado e consequentemente relevado para os devidos efeitos legais.
6. Conforme referimos a decisão em crise, com todo o devido respeito por melhor opinião, peca ostensivamente por tratar da presente situação como se de um crime praticado por um maior de 16 anos se tratasse e, como tal, susceptível de plena responsabilidade e imputabilidade penal, esquecendo de forma ostensiva que o “crime” foi praticado por uma criança de 14 anos.
7. A “maioridade penal” de 16 anos é explicada por Figueiredo Dias porque os agentes que não atingiram, ainda, em virtude da idade, a sua maturidade psíquica e espiritual é “da mesma índole daquele que dá base à inimputabilidade em função de anomalia psíquica: tal como uma certa sanidade mental é condição de apreciação da personalidade e da atitude em que ela se exprime, também o é um certo grau de maturidade.” Figueiredo Dias, Jorge de, Direito Penal, Parte Geral, Tomo I, 2ª Edição, Coimbra Editora, 2012, p.594.
8. De facto, a nível pedopsicológico, a nível de crescimento infantil/juvenil a nível de formação da estrutura da criança/jovem, a nível da plena capacidade volitiva, com consciência própria e formação da mesma sem influência exógenas e externas, a medicina (quase por unanimidade) indica a idade mínima de 16 anos como a idade onde o Jovem começa a conseguir agir com consciência própria e formação da sua vontade de forma endógena e com o mínimo de influências externas possíveis, tendo assim uma consciência bastante dos seus actos.
9. Ora “in casu” a sentença, pura e simplesmente esqueceu-se de que estava a tratar de uma criança de 14 anos que praticou, num ambiente de grupo com mais dois colegas maiores criminalmente, um acto punível por norma penal, e tratou toda a envolvência da situação como se um adulto fosse, sem que o Julgador se conseguisse colocar numa posição em que estava a jugar uma criança de 14 anos no que toca a entender os seus motivos, razões e limitações emocionais, exigindo- lhe uma percepção do mundo que só a idade, a formação da personalidade, a razoabilidade e a experiencia conferem e que é impossível ter aos 14 anos.
10. Utilizando o Tribunal desadequadamente critérios de avaliação de personalidade, de conduta, de espírito e personalidade aplicáveis a penalmente adultos e nunca a uma criança de 14 anos, como é o caso do menor dos autos, o que toldou de forma ostensiva o seu raciocínio e inquinou a decisão proferida, não só na real avaliação dos factos e do depoimento do menor, como na medida de sanção proposta.
11. Atente-se que os fundamentos apresentados na decisão final estão muito bem em sede de processo criminal, quando o Julgador faz alusão ao “homem médio”.
12. Porém, estamos a falar de um jovem, duma criança de 14 anos quando os factos se passaram, acabado de sair da Infância e a entrar nos primeiros anos de adolescência.
13. Não se pode de todo, exigir a um menino de catorze anos a capacidade emocional, a apreciação, o raciocínio e a exigência de um adulto de dezoito anos ou até de um jovem, de dezasseis. Se assim fosse não havia razões para existir uma Lei Tutelar, tudo seguiria a norma do processo penal
14. Num crescimento, na adolescência dois anos, dos 14 aos 16, são uma imensidão e equivalem da duas décadas dos 30 ao 50 anos a nível de conhecimentos, emoções, experiências, alterações e transfigurações físicas e psíquicas e, consequentemente, a nível de responsabilidade e imputabilidade.
15. Ora o Tribunal ignorou tudo isso e tratou o depoimento do Menor na óptica de homem médio e não do Homem médio que se coloca na posição de uma criança de catorze anos.
16. Ao fazer isso, indevidamente negligenciou o seu depoimento verdadeiro, não reconhecendo uma situação que se na idade adulta não configura qualquer situação de erro, aos catorze anos é um exemplo acabado do mesmo.
17. E é aqui que relevam pormenores de todo o processo que foram afinal, excluídos dos factos provados e que não o deveriam ter sido.
18. Desde logo um essencial que, além de ser facto público e notório, e como tal não carecer de prova, todos os intervenientes disseram e que não consta de forma clara da decisão e nem sequer é referido na sua fundamentação: O dito entroncamento referido a 5 dos factos provados é, literal e realmente, a cinco metros da porta da esquadra de PSP de C….
19. Vejam-se sem necessidade de mais o depoimento gravado no suporte de documentação áudio da diligência de audiência: do Menor B…, minuto 2:02m a 2:04m
Exmo. Sr. Juiz: “Sempre foi no Parque …, em C…?”
Menor B…: “Sim, à beira da Polícia.”
Idem minuto 10:30 a 11:03 do depoimento do menor B…
Exmo. Sr. Juiz: “Foi em 16 de fevereiro à tarde, C…. Foi aqui perto não foi?
Menor B…: Foi aqui ao lado.
Exmo. Sr. Juiz: Naquela altura neste cruzamento, neste entroncamento com estas ruas… o D… estava sozinho (disse B… o Sr. Juiz por manifesto lapso) mas aqui no meio da cidade não é? Aqui no meio da cidade. À volta havia dezenas, centenas, milhares de pessoas, há uma esquadra, a esquadra fica a quanto metros daquele sitio?
Menor B…: Cinco metros.
Exmo. Sr. Juiz: A esquadra? Fica a cinco metros?… A esquadra fica a cinco metros…
Menor B…: mesmo ao lado…
Exmo. Sr. Juiz:
… mesmo ao lado … quer dizer uma esquadra a cinco metros…”
20. Ora este facto, de extrema relevância, e que causou surpresa ao próprio julgador, ainda que por este inexplicavelmente desprezado, revela a total boa-fé do menor B… e o seu convencimento de que a bicicleta era do G…, dado concluir-se o contrário face a uma criança de catorze anos, ofende os mais elementares princípios da interpretação da prova pois tem de se assumir que ninguém comete um roubo de forma consenciente, literalmente, á porta de uma esquadra.
21. Facto que deve ser explicitamente dado como provado na decisão, pois revela o erro sobre os pressupostos de facto em que estava o menor, nos seguintes termos: “5) Quando o D… se encontrava sozinho no entroncamento formado pela Rua …. e Rua …, em C…, a cinco metros da porta da esquadra da P.S.P. aí existente, o B… juntamente com os referidos indivíduos cercaram, novamente o aludido menor e, em tom ameaçador, ordenou-lhe que saísse da bicicleta, sendo que, o B…, em tom intimidatório, encostou a mão no ombro do menor ofendido.”
22. Por outro lado esteve mal a Decisão ao escrever-se, sem mais, (facto nº 6 dos factos provados) “tendo aqueles, de imediato, posto em fuga”.
23. E não é correcto este verbo, pois tal faz-nos a pensar que os menores saíram a correr, em fuga precipitada, ou afim, do local.
24. Rigorosamente nada disso aconteceu.
25. O que se passou, e foi referido nos autos por todos, é que, uma vez com a bicicleta, o Menor e os seus dois colegas pegaram na mesma à mão e foram-se, simplesmente, embora, sem correrem, sem se precipitarem fosse de que forma fosse, sem encetarem qualquer tipo de fuga, pois de nada fugiam.
26. Aliás a existência de fuga do local nem foi questionada directamente por ninguém na audiência pelo que é ilegítimo, por inexistência de suporte de prova dar-se como provado tal facto.
27. Vejam-se os seguintes depoimentos:
Ofendido D… minuto 6:46 a 7:00 do seu depoimento:
Exmo. Sr. Juiz: “E depois o que é que tu fizeste, qual foi o teu comportamento?”
Ofendido D…: “Eles saíram… começaram a ir embora com a bicicleta e eu fui ter com os meus amigos.”
Exmo. Sr. Juiz: “E eles afastaram-se?”
D…: “Sim.”
Depoimento da Testemunha E…, minuto 2:7 a 2:10
Exmo. Sr Juiz: “E eles, pergunto eu, afastaram-se com a bicicleta?” (02:07)
Testemunha E…: “Sim.”
Exmo. Sr Juiz: “Afastaram-se com a bicicleta…”
E o depoimento da Testemunha F…, minuto 1:28 a 1:39:
Testemunha F…: “ (…) Enquanto o B… e os amigos dele atravessaram a passadeira e meteram-se com o D1…, rodearam o D1… na parede à beira da esquadra e tiraram-lhe a bicicleta e foram-se embora.”
Idem minuto 1:50 a 1:56 do seu depoimento:
Testemunha F…: “Vi eles a rodearem o D1… e foram-se embora para aí cinco segundos depois…”
28. Resulta claro que nenhuma fuga existiu, simplesmente “se foram embora com a bicicleta”.
29. Esta calma total, esta absoluta serenidade, pelo menos da parte do B… demonstra, cabalmente, o erro em que estava e o quão plenamente convencido estava de que a bicicleta era mesmo do G….
30. Pois concluir o contrário, como se conclui na decisão, desafia a logica e as regras naturais com que se deve interpretar uma tal conduta de um miúdo de catorze anos, dado ser do todo inverosímil e pouco coerente que este fosse praticar um roubo a frente da porta de uma esquadra e após ter praticado o mesmo “simplesmente se fosse embora” sem qualquer pressa, correria, medo, receio ou atitude suspeita.
31. É assim inaceitável dizer o Tribunal que não se acredita no Menor, quando este reitera o erro em que caiu, sem relevar a sua idade e exigindo aos catorze anos comportamentos, convicções, experiência de vida e capacidade emocional de um adulto.
32. O simples local onde se passaram as coisas, à porta da PSP de C…, indicia uma coisa: que os sujeitos que praticaram ao actos só podiam estar convencidos da benignidade da sua conduta pois ninguém rouba (não é furto é roubo) às portas da polícia, salvo um imputável mental, que não tem noção do mundo que o rodeia.
33. O que é confirmado pela forma como tudo ocorreu: à luz do dia, numa rua cheia de pessoas (factos da natureza e públicos e notórios referenciados inclusive pelo Sr. Juiz na sua instancia, logo sem carecer de prova) e com os ditos agentes, a se afastarem do local com a bicicleta pela mão e sem pressa, correria ou a indiciarem qualquer fuga.
34. E tudo daquele modo aconteceu, porque, da parte do B… nenhuma consciência de crime tinha pois estava convencido que a bicicleta era do seu colega e havia sido legitimamente recuperada.
35. E estas conclusões derivam do conhecimento do Homem Médio que conhece e entende o comportamento infantojuvenil, que sabe como as crianças se comportam em grupo e o quão influenciáveis podem e ser, e são, e o quão permeáveis podem ser, e são.
36. E foi o que aconteceu. Soubesse o B… que a bicicleta não era do G…, jamais compactuaria em a roubar, em conjunto com os demais jovens, muito menos em frente á policia.
37. Nestes termos a prova foi mal interpretada pelo Tribunal e o convencimento do Julgador não tem sustentabilidade nos normais parâmetros de aplicação de prova em Processo Tutelar.
38. Pelo que deve ser aletrado o facto 6) dos factos provados, dado como não provados os pontos 7 e 8 dos factos provados, devendo os mesmos serem substituídos pelos factos 18, 19, 20 e 21 dos factos não provados, os quais devem ser dados como provados, concretamente:
“6) O D…, assustado e com receio que lhe fizessem mal, entregou-lhes a bicicleta, tendo aqueles ido embora do local com a bicicleta pela mão.”
7) O B… em momento algum agiu conscientemente de que ia roubar um veiculo de terceiro.
8) O B… estava legítima e plenamente convencido de que iria recuperar uma bicicleta que era do G….
9) Soubera o B… que a bicicleta não era do G… mas sim do D…, estivesse o B… consciente de tal realidade, jamais teria agido da forma supra descrita jamais teria participado ou pactuado com tal atitude de ir roubar a bicicleta.
10) O B… agiu porque convencido de que a bicicleta não era do D… mas do G…, agindo na consciência de que não estava a roubar nada a ninguém, pelo contrário, que a estava a recuperar para um amigo.”
39. Este conjunto de factos provados deverá conduzir à absolvição total do Menor no presente Processo Tutelar por ostensivo erro sobre o estado das coisas nos termos do Art. 16º nº 2 do C. penal, encontrando-se excluída a culpa do agente, o que impede a punibilidade da sua conduta.
40. Sem se retirar uma vírgula do supra exposto, sempre se dirá que a aplicação da medida tutelar de tarefas a favor da comunidade sem o consentimento do Menor (via seus pais) é absolutamente ilegal por ostensiva violação do artº. 25º da C.R. Portuguesa, pois caso contrário está a se tutelar um trabalho infantil forçado.
41. De facto devido á sua idade (15 anos neste momento) não só o Menor não pode legalmente trabalhar (Art. Art. 68º nº 2 C. Trabalho) como não lhe podem impor tarefas (eufemismo legal da Lei Tutelar) em benefício e terceiros (instituições publicas ou privadas ainda que sem fins lucrativos) sem o seu consentimento e autorização sob pena de estar a se violar a sua integridade física e moral.
42. In casu, e numa aplicação analógica não vedada por Lei (Art. 1 nº 3 do C. Penal), a prestação de tarefas a favor da comunidade, em reforço de razão pela menoridade e inclusive crescimento físico do menor, deve reconduzirmos aos pressupostos de aplicação do Trabalho a Favor da Comunidade previsto no Art. 58º do C. P., e da exigência de aceitação do condenado (idem nº5 )
43. Ora o aplicar-se a medida tutelar de tarefa a favor da comunidade sem o consentimento do menor (via seus pais) é o mesmo que se impor um trabalho forçado. E não se argumento o contrário, como é uma medida que visa a protecção e ressocialização do menor, ou afim.
44. O Menor vai estar a prestar tarefas em benefício de uma instituição. Se tal não depender do seu consentimento temos uma realidade de trabalho forçado. Tão só.
45. E não interessa se eufemisticamente se chama de tarefas e não de trabalho, pois essas tarefas irão subtrair trabalhadores, no sem computo, em beneficio de uma entidade terceira.
46. Ora o Tribunal deveria ter-se assegurado de que o Menor aceitaria tais tarefas, o que não o fez, nem o Menor aceita.
47. Ao não o ter feito a aplicação da medida em causa é ilegal, por manifesta ofensa à dignidade do Menor, à sua integridade física e moral, tutelas pelo artº. 25º nº 1 da C.R. Portuguesa, de natural aplicação directa, o que torna ilegal e inconstitucional a decisão proferida.
48. Violando ainda as seguintes normas de aplicação directa no nosso ordenamento jurídico: Artº. 5º da Carta dos Direitos Fundamentais da União Europeia, artº. 3º da Declaração Universal dos Direitos Humanos, artº. 58º do C. Penal, ex vi artº. 496º do C.P. Penal, ex vi artº. 128 da LTE.
49. Por fim, e por imperativo dever de patrocínio e sem retirar nada ao supra escrito, merece reparo também a sanção aplicada ao menor.
50. Desde início do processo, desde a fase do inquérito nunca se conseguiu compreender a violência do sansão proposta face ao comportamento do menor desde a prática dos factos e ao conteúdo do seu relatório social de fls 48 a 51 que recomenda a medida de Reparação do Ofendido o que já havia sido espontaneamente feito pelo Menor.
51. Em concreto face aos factos dados como provados na decisão em crise e academicamente aceitando-os (sem nada se retirar do supra exposto) temos o seguinte “pedaço de vida”:
a) Uma bicicleta foi roubada por um grupo de amigos a um miúdo menor;
b) Esse roubo não teve qualquer violência física sobre pessoas ou coisas;
c) Minutos depois a bicicleta foi recuperada;
d) Os intervenientes pediram desculpa;
e) As desculpas foram aceites;
f) Os processos-crime dos maiores de 16 anos foram arquivados;
g) O processo tutelar do rapaz de 14 anos continua;
h) Nunca mais nada se passou.
52. Esta é a factualidade real, crua e directa que, não obstante tudo e o relatório social dos autos, merece a uma medida tutelar de Tarefas a Favor da Comunidade “ um pouco acima do limite médio…”
53. A sanção aplicada merece um duplo reparo: Não só a sua escolha é por demais violenta face ao que se passou, as consequências do facto e a conduta posterior do Menor, como jamais poderá ser aplicada face a recusa do menor nesse sentido.
54. A conduta do menor, reprovável que seja, deveria ser alvo da medida que é proposta no relatório social dos autos, porém, atendendo ao facto que o menor espontaneamente já a ter cumprido, deveria o tribunal, ordenar o arquivamento dos autos, por ventura com uma admoestação pública ou renovação em pleno Tribunal da reparação ao Ofendido D….
55. Sendo que, claramente nenhuma outra sanção tutelar lhe pode ser aplicável face aos pressupostos leais previstos no Art 4º e 6º e 7º da LTE.
56. Violou assim a decisão em crise os Arts. 4º, 6º 7º e 12 da LTE.
Termos em que e nos mais de direito deve o presente recurso ser tido como provado e procedente e, por via de tal, ser revogada a decisão em crise e proferida outra que absolva o Menor e determine o arquivamento do processo nos termos legais, ou caso assim não se entender determine, face a factualidade dos autos, a admoestação do menor e eventual reparação ao Ofendido, nos termos que vierem a ser tido por adequados, assim se fazendo…JUSTIÇA!».
*
Admitido o recurso, o Magistrado do Ministério Público junto do tribunal recorrido respondeu ao mesmo nos moldes insertos a folhas 142 a 150 que aqui se reproduzem, concluindo pela improcedência do recurso.
Nesta Relação, o Exmo. Procurador-Geral Adjunto emitiu douto parecer, que consta a folhas 458 e 459, o qual finaliza pela parcial procedência do recurso.
Cumprido o preceituado no artigo 417º, nº 2, do Código de Processo Penal nada foi acrescentado no processo.
Colhidos os vistos legais foram os autos submetidos a conferência.
***
II – Fundamentação
Constitui jurisprudência pacífica dos tribunais superiores que o âmbito do recurso se afere e se delimita pelas conclusões formuladas na motivação apresentada (artigo 412º nº 1, in fine, do Código de Processo Penal, aplicável ex vi artigo 128º da Lei Tutelar Educativa), sem prejuízo das que importe conhecer, oficiosamente por obstativas da apreciação do seu mérito.
Das conclusões do recurso extrai-se serem as seguintes as questões suscitadas pelo recorrente:
-Erro na apreciação da prova;
-inconstitucionalidade da medida aplicada;
- escolha da medida aplicada.
Cumpre apreciar e decidir:
Vejamos, antes de mais, o teor decisão recorrida: (transcrição parcial)
«(…)
2.1 Matéria de facto provada
1) No dia 16 de Fevereiro de 2019, cerca das 16,15 horas, no Parque …, em C…, o ofendido D…, na altura com 12 anos de idade, estava a brincar e a andar de bicicleta juntamente com amigos.
2) De imediato, de forma brusca e inesperada e sem que nada o fizesse prever, o B…, juntamente com dois indivíduos de nomes G… e H…, já maiores de 16 anos, rodearam o D… e questionaram-no se a bicicleta era roubada.
3) O ofendido respondeu-lhes que não era furtada, que era sua por lhe ter sido dada, tendo, na altura, o G… dito que lhe tinham furtado uma bicicleta idêntica no ano de 2015.
4) Em seguida, um deles pediu ao D… para dar uma volta na bicicleta, ao que aquele acedeu e, após lha devolver, solicitou ainda se podia tirar uma fotografia ao que aquele igualmente acedeu, após o que o D… e os amigos se retiraram daquele local.
5) Quando o D… se encontrava sozinho no entroncamento formado pela Rua … e a Rua …, em C…, o B… juntamente com os referidos indivíduos, cercaram novamente o aludido menor e, em tom ameaçador, ordenou-lhe que saísse da bicicleta, sendo que, o B…, em tom intimidatório, encostou a mão no ombro do menor ofendido.
6) O D…, assustado e com receio que lhe fizessem mal, designadamente, que o agredissem, entregou-lhe a referida bicicleta, tendo aqueles, de imediato, posto em fuga.
7) O B… agiu deliberada livre e conscientemente, de acordo com a percepção e discernimento próprios da respectiva idade, com o propósito, que concretizou, de se apoderar da referida bicicleta, fazendo-a coisa sua, bem sabendo que lhe não pertencia e agia contra a vontade e sem o consentimento do seu dono, não hesitando, para tanto, em intimidar o D…, utilizando para o efeito a superioridade numérica e ameaça de força física, fazendo-o recear pela sua integridade física e, desse modo, aceder aos seus propósitos, pondo- o nessa medida na impossibilidade de resistir.
8) O B… tinha perfeito conhecimento do carácter reprovável da sua conduta e que a mesma era proibida e punida por lei.
9) Tal bicicleta, cujo valor ascende a 300€, veio a ser encontrada na posse do suspeito G… no mesmo dia, tendo sido recuperada pela PSP e entregue ao legal representante do menor ofendido.
10) O B… pediu desculpas ao D… na esquadra da PSP
11) Consta do relatório social de fls. 48/51 que “o B… integra o agregado familiar constituído, para além do próprio, pelo progenitor, 52 anos, pela progenitora, 49 anos, pela avó paterna, 74 anos, doméstica e pela irmã germana, 19 anos, estudante.
O referido agregado reside numa zona urbana conotada com alguns problemas de marginalidade e/ou exclusão social.
Alguns dos conhecidos do jovem praticam delitos ou revelam atitudes antissociais.
Relativamente à factualidade subjacente ao presente inquérito tutelar educativo, o jovem assume a mesma e demonstra arrependimento pelos seus atos.
Adotou um discurso de acordo com o socialmente espectável, exibindo adequado juízo crítico, conseguindo identificar claramente vítimas e danos.”
12) O B… frequenta o 9.º ano de escolaridade no Colégio I…, tendo sido um aluno assíduo e pontual, bem-disposto, participou progressivamente com mais empenho nas actividades do colégio que envolveram a comunidade escolar, demonstrando uma atitude muito boa.
13) O pai e a mãe do B… mostram-se preocupados e presentes no percurso escolar do B…, procurando saber com frequência informações acerca do filho.
14) O B… não tem registados outros delitos e medidas tutelares.»
«2.2 Matéria de facto não provada
15) O D… afirmou que a bicicleta tinha sido oferta de uma tia, que a tinha comprado nova na casa comercial “J…”.
16) O D… estava na companhia de três amigos.
17) O D… teve receio pela sua vida.
18) O B… em momento algum agiu conscientemente de que iria roubar um veículo de terceiro.
19) O B… estava legítima e plenamente convencido de que iria recuperar uma bicicleta que era do G….
20) Soubera o B… que a bicicleta não era do G… mas sim do D…, estivesse o B… consciente de tal realidade, e jamais teria agido da forma acima descrita, jamais teria participado ou pactuado com tal atitude de ir roubar a bicicleta.
21) O B… agiu porque convencido de que a bicicleta não era do D… mas sim do G…, agindo na consciência de que não estava a roubar nada a ninguém, pelo contrário, que a estava a recuperar para um amigo.
2.3 Motivação da decisão de facto
O Tribunal fundou a sua convicção na análise crítica do conjunto da prova produzida e examinada em audiência de acordo com as regras da experiência comum e a sua livre convicção.
O B… confirmou a maior parte dos factos, se bem que nem sempre admitindo a forma como se terão passado. Assim, em concreto, do que mais releva, aludiu à presente situação, o facto de estar na companhia de outros dois colegas, as respectivas idades, o local e data, assim como o primeiro momento em que pedem ao D… para darem uma volta na bicicleta, dizendo que teria sido furtada ao G…, assim como o segundo momento, já no cruzamento das Rua … e a Rua …, quando o D… estava sozinho, não tendo a certeza se lhe pôs a mão no ombro, mas admitindo que lhe disse para sair da bicicleta, e se bem que negando que o tivesse dito em tom ameaçador, disse-o de forma a tirar-lhe a bicicleta, nessa sequência tendo o D… ficado com medo, tudo conforme o próprio B… admitiu, bicicleta que acabou por levar consigo, deixando o D… apeado e sem esta.
Estas declarações acabam por ser confirmadas pela demais prova produzida, em concreto pelas declarações do D…, que confirmou o episódio, designadamente que o B… e outros dois amigos dele foram ter consigo, perguntaram-lhe quem era a bicicleta, respondeu que era dele e a seguir, quando já estava a sair do parque onde se encontrava, estando sozinho por os seus próprios amigos estarem mais afastados (nunca o D… dizendo que eram três), foi novamente abordado por aquelas três pessoas, tendo o B… lhe tocado no ombro, como que empurrando, e dizendo-lhe para sair da bicicleta, o que fez por ter ficado com medo que lhe fizessem mal (nunca dizendo o D… ou dando a entender que receou pela sua vida, nem isso resultando da acção praticada pelo B…), nesta medida ficando sem resistência, por tudo sendo constrangido a entregar a dita bicicleta, que o B… levou consigo.
Uma nota para referir que o D… já não se recordava com precisão do primeiro momento referido no requerimento do Ministério Público, quando entrega a bicicleta para darem uma volta nela, hesitando se terá acontecido ou não, o que foi aliás comum com outros depoimentos prestados, designadamente os de E… e F…, acabando G… por negar que isso tivesse sucedido.
Não obstante, acaba o Tribunal por o dar por provado porque o B… o referiu sem aparentar dúvida.
Não se fez prova clara que o D… tivesse dito, quando foi abordado, que a bicicleta tinha sido oferta de uma tia, que a tinha comprado nova na casa comercial “J…”, embora tenha ficado claramente demonstrado, por toda a prova produzida sobre tal assunto ter sido nesse sentido, que o D… disse que a bicicleta era sua e que não tinha sido furtada.
Do mesmo modo, não se fez prova que o D… estivesse com três amigos, não o tendo este referido, tendo o Tribunal apurado, ainda assim, que estava com dois (E… e F…).
Para dar por provado o valor da bicicleta, o Tribunal vale-se do auto de notícia, que o menciona expressamente. Note-se que o auto de notícia é um documento autêntico, nos termos do artigo 363.º, 2, do Código Civil, e por isso fará prova dos factos materiais dele constantes nos termos do artigo 169.º, do CPP (neste sentido, cf. Germano Marques da Silva, in Curso de Processo Penal III, p. 56). Assim, nos termos do artigo 169.º, do Código de Processo Penal, no que concerne ao valor probatório dos documentos autênticos e autenticados, consideram-se provados os factos materiais constantes de documento autêntico ou autenticado enquanto a autenticidade do documento ou a veracidade do seu conteúdo não forem fundadamente postas em causa.
Porém, a possibilidade do auto de notícia ser valorado como meio de prova tem como limite “as perceções da entidade documentadora” (artigo 371.º, 1 do Código Civil), ou, repetindo a frase do Acórdão do Tribunal Constitucional n.º 38/86, “estas comprovações valem exclusivamente em relação aos puros factos presenciados pela autoridade”. Compreende-se bem a razão deste regime. A entidade que elabora o auto de notícia não é o julgador. Para se habilitar a elaborá-lo, o autuante pode fazer uma investigação que o leva a formular juízos sobre a existência ou inexistência de factos relevantes para a infração. Esses factos não são fruto de “percepções da entidade documentadora”, cujo termo remete para um conhecimento direto e imediato do facto através de um dos sentidos do ser humano, mais vulgarmente a visão ou a audição. O conteúdo do auto não pode valer como meio de prova relativamente aos factos que não tenham sido presenciados pela entidade que o elaborou (assim o Ac. do Tribunal da Relação de Guimarães de 25/05/2013, proferido no processo n.º 2319/11.6TBFAF.G1).
Neste caso, consta de tal auto que o pai do ofendido referiu que o valor da bicicleta ascendia a 300€, sendo nesta parte que tal documento é valorado, pelo que não existe qualquer obstáculo à sua valoração face às considerações acima tecidas quanto à natureza deste documento, certo sempre que não se está perante prova proibida.
O Tribunal considerou os demais documentos juntos aos autos, entre os quais o certificado de medidas tutelares educativas de fls. 17, o relatório social de fls. 48/51, a declaração do pai do D… de fls. 77 e a informação escolar de fls. 78.
De notar que o segundo documento é completado com as declarações do B… sobre a matéria referente à sua situação familiar e escolar, concretamente quanto ao facto do seu pai estar hoje sem trabalhar, daí que não se tenha referido especificamente conforme consta daquele documento que ambos os progenitores estão laboralmente activos, assim como quanto ao ano escolar que actualmente frequenta (o 9.º e não o 8.º), resultando igualmente esse facto do documento de fls. 77.
No mais. Não acreditou o Tribunal que o B… estivesse convencido que a bicicleta fosse do G… e que agiu na convicção de que não a estava a roubar, prejudicando o D…, mas sim a devolvê-la ao G…, seu legítimo proprietário, sendo na invocação deste erro sobre as circunstancias de facto que se baseia a defesa do B….
Não que o B… não o tenha afirmado, no que foi corroborado pelo depoimento da testemunha G…, simplesmente o Tribunal não acreditou que a história que contaram fosse verdadeira.
Vejamos. O sentido do reportado é que viram o D… a andar na bicicleta que havia sido furtada uns anos antes ao G… e, convencido disso, o B… decidiu tirar a bicicleta ao D… e entregá-la ao G….
Todavia, acabou por se apurar, concretamente do depoimento do próprio B…, que o G… não é sequer seu amigo, mas antes seu colega, resultando de forma evidente da forma como o B… o contou que não existe uma relação de grande proximidade, de partilha ou de confiança entre os dois, o que parece manifestamente incompatível com a acção que o B… decidiu assumir, de o próprio abordar o D…, de o intimidar e de fazer com que saísse da bicicleta, levando-a dali.
Esta será a primeira perplexidade. Não sendo a bicicleta furtada do B…, mas sim do G…, não parece normal e coerente, para um adulto e também para um jovem, que assuma esta espécie de acção directa não o seu proprietário, o G…, a pessoa que teria sido desapossada do bem e que ali se encontrava, mas um terceiro, o B…, que nenhuma relação especial tem o G…, senão ser seu colega.
A este propósito o Tribunal perguntou ao B… se quando andava pela rua e assistia a uma qualquer disputa a propósito de qualquer assunto entre duas pessoas se intervinha e tomava posição, tendo o B… referido que não o fazia e ficando o Tribunal com a ideia que até achara a pergunta estranha e com pouco propósito.
Note-se que em momento algum da audiência de julgamento o B… demonstrou ter alguma dificuldade de enquadramento ou para se situar entre padrões de normalidade e de comportamentos adequados face a valores vigentes na comunidade e dos quais se pode considerar o que é certo ou errado e legal ou proibido, isto à luz do que será uma visão comum que ilumina tanto adultos como aqueles que ainda não o são mas que têm discernimento suficiente para o entender.
Assim também o tendo o B…, o que, aliás, já resultava do relatório social elaborado, porquanto ali se refere expressamente que exibe um adequado juízo crítico, conseguindo identificar claramente vítimas e danos.
Acresce que o D…, quando abordado, havia afirmado que a bicicleta era sua (o que se acabou por confirmar), razão pela qual, no máximo, o B… assistiu a duas versões contraditórias, uma do G… que disse que a bicicleta era dele por ter sido furtada anos antes (o B… referiu que o G… lhe disse que a bicicleta tinha sido furtada em 2015) e outra do D… que referiu que a bicicleta era sua.
Explicou o B… que se convenceu que o D… não dizia a verdade, porque se atrapalhou quando tentou explicar porque é que a bicicleta era sua, designadamente quem a tinha oferecido e onde a tinham comprado, mas esta explicação também não convence minimamente.
Em primeiro lugar porque o D… tem 12 anos de idade, sendo natural que naquele panorama, em que é abordado por três rapazes mais velhos, que lhe perguntam se a bicicleta é dele, que referem que será de um deles por ter tido uma igual que havia sido furtada, que se atrapalhe nessa explicação (que em bom rigor, nem teria de dar), cenário esse que não passaria despercebido ao B….
E tanto é assim que afirmando o G…, que tem actualmente 17 anos de idade, na audiência de julgamento que tinha tido uma bicicleta que lhe havia sido furtada, o Tribunal fez um conjunto de perguntas rápidas, do género de quem a comprou, onde foi comprada, quanto custou, em que dia foi comprada, semelhantes, pelo que se percebeu, às perguntas que o B… e o G… poderão ter feito ao D…, e foi nítida a atrapalhação do G… para responder.
Seja como for, mesmo que as respostas do D… tenham sido hesitantes, isso nunca conduziria ou justificaria que o B… se convencesse de forma legítima e plena que a bicicleta era do G….
Valerá a pena aqui acentuar que, conforme mais uma vez o B… explicou, nunca o G… lhe tinha falado da bicicleta que tinha e que lhe foi furtada anos antes, apenas o tendo feito pela primeira vez naquela altura concreta quando veem o D… a circular na bicicleta no parque, nem nunca o B… andou na bicicleta que tinha sido furtada ao G…, concluindo-se que nunca tinha ouvido falar do assunto, nem tampouco conhecia a dita bicicleta.
A somar a isto, quando o Tribunal perguntou se a bicicleta que havia sido furtada tinha algum sinal distintivo, uma cor, um autocolante, qualquer coisa que permitisse fazer realçá-la das restantes e identificá-la, o G… não foi capaz de o concretizar em julgamento, nem o B… mencionou que o G… o tivesse feito na altura.
Por outro lado, este avistamento da bicicleta aconteceu num local público, num parque, estando outras pessoas no local, pelo que a reacção natural, de um adulto e de um jovem com discernimento, face ao afirmado pelo G… e às hesitações do D… seria a de recorrer à ajuda de um terceiro, de um adulto ou particularmente da autoridade policial, sabendo-se que ali perto existe uma esquadra da polícia, do que o B…, aliás, mostrou ser bem sabedor.
E esta acção desenvolveu-se em dois momentos, num primeiro em que o D… é abordado e lhe perguntam se a bicicleta é sua, nessa altura nada acontecendo senão o pedido para dar uma volta na mesma e sua devolução ao D… e num segundo momento em que o D… é novamente abordado e desta vez o B… intimida-o a sair da bicicleta, levando-a dali.
Não se percebe assim a razão pela qual o B… não decide agir naquele primeiro momento em que esteve com o D… e, em conjunto com os seus amigos, lhe perguntam se a bicicleta é sua, tanto mais que o alegado, mas não demonstrado, convencimento errado se teria dado logo ali, pois foi nesse primeiro encontro que o D… respondeu com hesitação às perguntas sobre a proveniência da bicicleta
Ora, o B… não só não o fez, como fez coisa bem diferente. Abordou o D… uma segunda vez e intimidou-o, fazendo com que saísse da bicicleta quando se encontrava noutro local que não o parque, ainda que nas suas proximidades, e numa altura em que o D… se encontrava sozinho, não estando ao lado de nenhum dos seus amigos que momentos antes andavam consigo de bicicleta pelo parque.
O erro, o convencimento errado de uma circunstância de facto não escolhe a altura para se manifestar, sendo ainda menos convincente que tenha surgido naquele segundo momento, na medida em que algum tempo passou, ainda que possa ter sido pouco, que permitiria ao B… melhor meditar nas incongruências acima mencionadas.
Antes pelo contrário, a escolha deste momento, o enquadramento em que teve lugar é demonstrativo de uma atitude consciente por parte do B… de querer tirar a bicicleta ao D…, não porque estivesse convencido que pertencia ao G… mas porque seria a forma mais simples de o fazer e sem possíveis obstáculos para o evitar, uma vez que o D… estava sozinho.»
«3. Enquadramento jurídico-penal
Nos termos do artigo 210.º, 1, do Código Penal, comete o crime de roubo quem, com ilegítima intenção de apropriação para si ou para outra pessoa, subtrair, ou constranger a que lhe seja entregue, coisa móvel alheia, por meio de violência contra uma pessoa, de ameaça com perigo iminente para a vida ou para a integridade física ou pondo-a na impossibilidade de resistir.
O que está em causa na citada previsão punitiva é uma pluralidade de bens jurídicos, em que a tutela do direito de propriedade constitui o elemento aglutinador, mas em que está igualmente em causa a tutela da liberdade, da integridade física, como da própria vida, tratando-se, por isso, de um crime complexo ou, como refere F. Muñoz Conde, de um delito integrado por várias acções que, por sua vez, tanto podem constituir vários delitos, independentes e que logo se castigam em separado, conforme as regras do concurso de crimes, como podem ser absorvidos na própria penalidade do roubo, pela sua inerência ao mesmo e a sua escassa gravidade autónoma (Derecho Penal - Parte Especial, 1996, p. 338).
Do que se tem como provado, resulta que o jovem se logrou apropriar de uma bicicleta, fazendo-o por forma intimidatória, perante uma pessoa mais nova, com 12 anos de idade, colocando a mão no seu ombro e determinando que saísse dessa bicicleta, tendo esta actuação se revelado eficaz em relação ao ofendido, porquanto constituiu meio para obter a subtracção, uma vez que o D… face a esta ameaça com perigo iminente para a integridade física, ficou assustado e com medo e entregou a sua bicicleta.
Embora no caso não tenha existido violência física, a subtracção da bicicleta contra a vontade do D…, que anteriormente havia dito que era sua, foi conseguida através da utilização de uma implícita ameaça contra a integridade física.
Ficou ainda demonstrado que o B… actuou de forma deliberada, livre e consciente e com o propósito de através da ameaça se apoderar da bicicleta, pelo que se encontram igualmente preenchidos os elementos subjectivos do crime.
Uma nota final para referir que a alegação do erro sobre as circunstâncias do facto, previsto no artigo 16.º, do Código Penal, não logrou a adesão da prova e o convencimento do Tribunal, razão pela qual não irá aqui o Tribunal tecer especiais considerações sobre tal instituto.
4. Da medida tutelar a aplicar
Feita a qualificação jurídica dos factos dados como assentes cumpre agora retirar as devidas consequências, começando por apontar que o crime de roubo, na forma consumada, é punido com pena de prisão de um a oito anos, conforme o artigo 210.º, 1, do Código. Penal.
Por seu turno, nos termos do artigo 4.º, da Lei Tutelar Educativa (LTE), são medidas tutelares:
a) A admoestação;
b) A privação do direito de conduzir ciclomotores ou de obter permissão para conduzir ciclomotores;
c) A reparação ao ofendido;
d) A realização de prestações económicas ou de tarefas a favor da comunidade;
e) A imposição de regras de conduta;
f) A imposição de obrigações;
g) A frequência de programas formativos;
h) O acompanhamento educativo;
i) O internamento em centro educativo.
2 - Considera-se medida institucional a prevista na alínea i) do número anterior e não institucionais as restantes.
Por seu turno, e nos termos do n.º3 do mesmo preceito, a medida de internamento em centro educativo aplica-se segundo um dos seguintes regimes de execução: regime aberto; regime semiaberto e regime fechado.
Encontramos os critérios para aplicação das medidas tutelares no artigo 6.º, da LTE. Assim, nos termos do n.º1, na escolha da medida tutelar aplicável o tribunal dá preferência, de entre as que se mostrem adequadas e suficientes, à medida que represente menor intervenção na autonomia de decisão e de condução de vida do menor e que seja susceptível de obter a sua maior adesão e a adesão de seus pais, representante legal ou pessoa que tenha a sua guarda de facto.
Por sua vez, nos termos do n.º 2 do citado preceito, o disposto no número 1) é correspondentemente aplicável à fixação da modalidade ou do regime de execução de medida tutelar.
A escolha da medida tutelar aplicável é orientada pelo interesse do menor (n.º 3) e quando o menor for considerado autor da prática de uma pluralidade de factos qualificados como crime o tribunal aplica uma ou várias medidas tutelares, de acordo com a concreta necessidade de educação do menor para o direito (n.º 4).
Estabelece, por seu turno, o n.º 7 do mesmo diploma que a medida tutelar deve ser proporcionada à gravidade do facto e à necessidade de educação do menor para o direito manifestada na prática do facto e subsistente no momento da decisão.
Resulta do artigo 12.º, da LTE, que:
“1 - A medida de prestações económicas ou de realização de tarefas a favor da comunidade consiste em o menor entregar uma determinada quantia ou exercer atividade em benefício de entidade, pública ou privada, de fim não lucrativo.
2 - A atividade exercida tem a duração máxima de sessenta horas, não podendo exceder três meses.
3 - A realização de tarefas a favor da comunidade pode ser executada em fins de semana ou dias feriados.
4 - É correspondentemente aplicável o disposto nos n.os 3 e 4 do artigo 11.º”.
Vejamos.
Os factos provados revelam uma actuação grave por parte do B…, uma ilicitude acentuada e uma culpa ao nível do dolo directo, relevando em todo este episódio o desvalor da acção que o B… praticou, dirigida com ameaça à integridade física contra o D…, que é mais novo, numa altura em que se encontrava sozinho, estando o B… na companhia de outros dois amigos, acabando o desvalor de resultado por ser de intensidade inferior, dado que bastou um tom intimidatório e a colocação da mão no ombro do D… para este sair da bicicleta, tendo esta sido ainda recuperada nesse mesmo dia.
Acresce uma assunção de responsabilidades dúbia, por um lado dizendo-se arrependido e pedindo desculpas ao D… na esquadra da PSP, mas por outro alegando que não sabia que estava a praticar um crime, antes estaria a devolver a bicicleta ao seu legítimo dono.
Será ainda de atender que o B… está socialmente inserido, vive na companhia dos seus pais, irmã e outros familiares, estuda e mostra-se adaptado à escola, pese embora já ter reprovado por uma vez, e não tem antecedentes tutelares.
Em face do exposto, concorda-se com a necessidade de aplicação de uma medida tutelar, julgando mesmo que, se assim não fosse, o B… poderia desvalorizar o episódio praticado ao ponto de o levar a não interiorizar verdadeiramente que o seu comportamento foi incorrecto, o que poderia contribuir para a ocorrência de outros comportamentos semelhantes. Por outro lado, paralelamente a estas exigências de prevenção especial, subsistem exigências de prevenção geral, no sentido de afirmar contrafacticamente a norma violada, designadamente junto do D…, do E…, do F… e do G…, que em audiência depuseram como testemunhas, para que sintam presente e se reconheçam na validade das normas e numa convivência sã em comunidade.
Perante toda esta conjuntura, julga-se que a medida tutelar proposta de prestação de tarefas a favor da comunidade é realmente a mais adequada, e é aplicada no interesse do próprio B… pelo seu conteúdo específico, esperando que o sensibilize para a acção incorrecta que cometeu, reforce o seu processo de educação para o direito e contribua para a prevenção de futuros comportamentos socialmente desajustados e desviantes, fixando-a o Tribunal em 35 horas, pouco acima do limite médio, por se tratar da reacção a um facto ilícito típico que prevê uma moldura penal com limite mínimo de 1 ano e máximo de 8.»
*
O recorrente impugna a matéria de facto dada como provada e como não provada alegando que o tribunal errou ao dar como provados os factos insertos nos pontos 6 (parcialmente), 7 e 8 da factualidade provada a qual entende se não terem provado e, como não provados os factos constantes nos pontos 18,19, 20 e 21 dos factos não provados, que, ao invés, entende terem-se provado. Invoca, pois, erro de julgamento.
Dispõe o artigo 412.º, n.º 3, do Código de Processo Penal, (aplicável “ex vi” artigo 128º da Lei Tutelar Educativa):
“Quando impugne a decisão proferida sobre matéria de facto, o recorrente deve especificar:
a) Os concretos pontos de facto que considera incorretamente julgados;
b) As concretas provas que impõem decisão diversa da recorrida;
c) As provas que devem ser renovadas.”
Acrescentando o n.º 4 do mesmo artigo:
“Quando as provas tenham sido gravadas, as especificações previstas nas alíneas b) e c) do número anterior fazem-se por referência ao consignado na ata, nos termos do disposto no n.º 2 do artigo 364.º, devendo o recorrente indicar concretamente as passagens em que se funda a impugnação”.
Estas precisas exigências legais advêm da circunstância de ser insindicável a credibilidade que as provas produzidas e examinadas em audiência mereceram ao tribunal, relativamente ao que assume particular relevo os princípios da imediação e a oralidade, concatenados com a credibilidade que o julgador, na sua íntima e cuidada ponderação, decidiu atribuir a cada uma delas, bem como as ilações e as conclusões que retirou a partir dos meios probatórios com base nas regras da lógica, da experiência e nas razões de ciência.
A reapreciação da prova na 2ª instância limita-se a controlar o processo de formação da convicção expressa da 1ª instância e da aplicação do princípio da livre apreciação da prova, tomando sempre como ponto de referência a motivação/fundamentação da decisão, sendo que no recurso de impugnação da matéria de facto o tribunal ad quem não vai à procura de nova convicção, mas apenas inteirar-se sobre se a convicção expressa pelo tribunal recorrido na fundamentação tem suporte adequado da prova produzida e constante da gravação da prova, por si só ou conjugada com as regras da experiência e demais prova existente nos autos (pericial, documental, etc,).
É que, quanto à reapreciação da prova, como se encontra expendido no Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 12 de junho de 2008, processo nº 07P4375, disponível in www.dgsi.pt «(…) a Relação não fará um segundo/novo julgamento, pois o duplo grau de jurisdição em matéria de facto não visa a repetição do julgamento em 2.ª instância; a actividade da Relação cingir-se-á a uma intervenção cirúrgica, no sentido de restrita à indagação, ponto por ponto, da existência ou não dos concretos erros de julgamento de facto apontados pelo recorrente, procedendo à sua correcção se for caso disso, e apenas na medida do que resultar do filtro da documentação;- a juzante impor-se-á um último limite, que tem a ver com o facto de a reapreciação só poder determinar alteração à matéria de facto se se concluir que os elementos de prova impõem uma decisão diversa e não apenas permitem uma outra decisão.».
Daí que, ao contrário do que por vezes se confunde, o recurso não tem por finalidade um “novo julgamento” da matéria de facto, assumindo-se antes como um “remédio” jurídico.
Como tem vindo a ser evidenciado «(…) o recurso é um remédio para os erros, não um novo julgamento» (conferência parlamentar sobre a revisão do Código de Processo Penal, in Assembleia da República, Código de Processo Penal, vol. II, tomo II, Lisboa 1999, pág. 65); «(…)o recurso em matéria de facto não se destina a um novo julgamento, constituindo apenas um remédio para os vícios do julgamento em primeira instância” (Forum Justitiae, Maio/1999); «Recorde-se que o recurso ordinário no nosso Código é estruturado como um remédio jurídico, visa corrigir a eventual ilegalidade cometida pelo tribunal a quo. O tribunal ad quem não procede a um novo julgamento, verifica apenas da legalidade da decisão recorrida, tendo em conta todos os elementos de que se serviu o tribunal que proferiu a decisão recorrida. Daí que também a renovação da prova só seja admitida em situações excepcionais e, sobretudo, o recorrente tenha que indicar expressamente os vícios da decisão recorrida.» (Registo da prova em Processo Penal. Tribunal Coletivo e Recurso, in Estudos em homenagem a Cunha Rodrigues, vol. I, Coimbra, 2001).
No caso vertente, o recorrente procedeu à indicação dos pontos da matéria de facto provada e não provada que entende dever resultar, respetivamente, não provada e provada.
E, reapreciada a prova nos termos indicados e sendo exato corresponder à realidade o teor das declarações e depoimentos prestados pelo menor e testemunhas que transcreve, o que verdadeiramente o recorrente coloca em causa é a convicção que o Tribunal a quo entendeu dar aos elementos de prova ao seu dispor e se mostra devidamente fundamentada, fazendo a sua própria análise crítica da prova, manifestando uma posição diversa daquela a que o tribunal a quo chegou.
Contudo, o tribunal a quo bem esclarece, de forma extremamente cuidadosa - que nos escusamos de repetir -, perante uma análise crítica e circunstanciada, porque parte da versão relatada pelo jovem B… (precisamente aquela que pretende fazer valer em sede de recurso) não logrou o convencimento do tribunal quanto à sua veracidade.
De realçar que o tribunal a quo alicerçou, ainda, a sua convicção nos demais elementos probatórios a que teve acesso (testemunhais e documentais) e, perante a concatenação de todos esses elementos probatórios, conjugados com as regras da experiência e do normal acontecer, sustentado pela imediação e oralidade, valorou as provas do modo como o fez.
O recorrente, invocando erro de julgamento, o que pretende é colocar em causa, contrapondo o seu entendimento da prova, a apreciação que dela foi feita pelo tribunal recorrido.
Mas, neste conspecto, cumpre recordar o preceituado no artigo 127º do Código de Processo Penal (aplicável ex vi artigo 128º da Lei Tutelar Educativa) “a prova é apreciada segundo as regras da experiência e a livre convicção da entidade competente”.
Este princípio, chamado da livre apreciação da prova, tem na fase de julgamento o momento por excelência para ser atuado; é ali que o julgador, de modo direto, oral e imediato, toma contacto com todos os elementos de prova existentes no processo, os analisa livremente e, a partir deles, forma a sua convicção sobre o modo como os factos trazidos ao seu conhecimento ocorreram e quem foram os seus autores.
Consabidamente esta apreciação da prova não se confunde com a mera impressão subjetiva criada no espírito do julgador, antes decorrerá da conclusão lógica que retirará de tudo o que ouviu e analisou.
A propósito do artigo 127º refere-se no acórdão de 9 de novembro de 1995 do Tribunal Constitucional (Citado no Acórdão do mesmo Tribunal nº 197/97, publicado no DR., IIª Série de 29 de dezembro de 1998) que «o juiz pressuposto pelo legislador é o juiz responsável, capaz de pôr o melhor da sua inteligência e conhecimento das realidades da vida na apreciação do material probatório que lhe é fornecido».
Incumbe ao julgador procurar a verdade material, impondo-se-lhe que aprecie conjugada e conjuntamente toda a prova que lhe é apresentada, segundo critérios de normalidade, à luz da experiência comum e segundo a lógica do homem (ou, no caso, do jovem) médio. Impõe-se-lhe igualmente que de modo claro, ainda que sucinto, fundamente a sua convicção, permitindo a todos os intervenientes processuais e à comunidade em geral, compreenderem as razões pelas quais a decisão que proferiu foi aquela e não outra, para que demonstre, em suma, que a decisão não foi fruto de mero arbítrio.
Como se salienta no acórdão proferido pelo Tribunal da Relação de Guimarães de 20 de março de 2017 processo nº 44/14.5TACTRZ.G1, «(…)ao apreciar-se o processo de formação da convicção do julgador, importa ter presente que entre nós vigora o princípio da livre apreciação da prova, consagrado no art. 127º, segundo o qual “salvo quando a lei dispuser diferentemente, a prova é apreciada segundo as regras da experiência e a livre convicção da entidade competente”.
Tal não significa que a atividade de valoração da prova seja arbitrária, pois está vinculada à busca da verdade, sendo limitada pelas regras da experiência comum e por algumas restrições legais.
Concedendo esse princípio uma margem de discricionariedade na formação do seu juízo de valoração, o julgador deverá ser capaz de o fundamentar de modo lógico e racional.
A livre apreciação da prova (ou do livre convencimento motivado) não se pode confundir com a íntima convicção do juiz, assente numa apreciação arbitrária dos meios de prova, impondo-lhe a lei que extraia deles um convencimento lógico e motivado, avaliando-os com sentido de responsabilidade e bom senso.
Mais se exige que o julgador indique os fundamentos que foram decisivos para a formação da sua convicção, ou seja, os meios concretos de prova e as razões ou motivos pelos quais relevaram ou obtiveram credibilidade no seu espírito. Não basta indicar o concreto meio de prova gerador do convencimento, urgindo expressar a razão pela qual, apoiando-se nas regras de experiência comum, o julgador adquiriu, de forma não temerária, a convicção sobre a realidade de um determinado facto.».
Esta imposição decorre da lei, concretamente do preceituado no nº 2 do artigo 374º do Código de Processo Penal (aplicável ex vi artigo 128º da Lei Tutelar Educativa), que estatui como requisito da sentença, que esta se encontre devidamente fundamentada.
Aí se exige que o julgador elenque as provas a que atendeu, os motivos pelos quais credibilizou umas e desconsiderou outras e demonstre o percurso intelectual percorrido a partir delas até à decisão proferida.
Este dever de fundamentação da decisão é também uma garantia para quem pretenda recorrer, possibilitando ao tribunal de recurso, que conhece de facto e de direito, aperceber-se dos pontos que eventualmente tenham sido incorretamente julgados, se existe prova que sustente a decisão recorrida ou se, ao invés, perante a prova existente, se impõe decisão diversa da que foi proferida, ainda se existe prova que deva ser renovada, tudo como consta do número 3 do artigo 412º do Código de Processo Penal.
A este tribunal de recurso não cabe substituir-se ao julgador na convicção que este formou da prova que perante si se produziu e que analisou, apenas lhe é permitido certificar-se se a conclusão a que chegou não se mostra irrazoável por ilógica, por as provas produzidas e examinadas em julgamento não consentirem a decisão proferida, impondo antes decisão diversa.
Como assim, na apreciação da prova o tribunal é livre de formar a sua convicção (exceção feita à prova vinculada) a significar que a prova deve ser analisada através da formulação de juízos assentes no bom senso e experiên­cia de vida, temperados pela capacidade crítica, o distanciamento e a ponderação adquiri­dos na experiência quotidiana do julgar.
E em sede de apreciação, a prova testemunhal é objeto dum tratamento cognitivo mediante operações de cotejo com os restantes meios de prova podendo a mesma, tal como a prova indiciária, ser objeto de deduções ou de induções baseadas na correção do raciocínio.
No respeito destes princípios, o tribunal de recurso só poderá censurar a decisão do julgador, fundamentada na sua livre convicção e assente na imediação e na oralidade, se se evidenciar que decidiu contra o arguido não obstante terem subsistido (ou deverem ter subsistido) dúvidas razoáveis e insanáveis no seu espírito, ou se a solução por que optou, de entre as várias possíveis, é ilógica e inadmissível face às regras da experiência comum. No caso vertente, manifestamente assim não ocorre.
Com efeito, da motivação efetuada ressalta, ao longo de mais de seis páginas, a profunda escalpelização no percurso trilhado na formação da convicção do Meritíssimo Juiz a quo, concretamente indicando os meios de prova em que se estribou, mas, também, explicando cuidadosamente as razões pelas quais credibilizou, ou não, a prova que perante si foi produzida, fazendo apelo, inclusive, à prova indiciária e regras da lógica e da experiência que nos escusamos ora de repetir. Sublinharemos, apenas, a dificuldade em entendermos o argumento aduzido pelo recorrente de os factos ocorrem a escassos metros de uma esquadra policial e, daí concluir de modo enfático, pela evidência do errado convencimento que não estaria a praticar facto ilícito. Pois não seria precisamente o inverso? Ou seja, um jovem constatando que alguém, que não o proprietário da bicicleta se fazia transportar na mesma e encontrando-se tão perto de uma esquadra policial, o normal não seria exortar o seu amigo que o acompanhava e que referiu estar desapossado do objeto em causa, em procurar auxílio junto dos respetivos agentes para a sua restituição ao legítimo dono? Não seria esta a atitude normal de um jovem da idade do B…?
Pretende também o recorrente que não se provou terem os menores encetado fuga após desapossarem o menor D…, mas antes, “foram embora com a bicicleta”. Não detetamos qualquer divergência entre as duas formas de expressão. Após concretizados os factos, os jovens foram-se embora na posse da bicicleta, utilizando o meio necessário para o êxito da sua conduta. Não careceram de recorrer a corrida, limitando-se a sair do local com aparente normalidade, pois que nenhuma ação verificaram existir por parte do ofendido D… (apenas com 12 anos de idade e amedrontado), ou de quem quer que fosse, que colocasse em causa os seus propósitos de apropriação. Aliás, como se disse já, todas as circunstâncias que ocorreram na prática dos factos foram devida e minuciosamente explicitadas na decisão recorrida.
Em conclusão: os poderes para alteração da matéria de facto conferidos ao tribunal de recurso constituem apenas um remédio a utilizar nos casos em que os elementos constantes dos autos apontam inequivocamente para uma resposta diferente da que foi dada pela 1ª instância. E já não naqueles em que o tribunal recorrido, beneficiando da oralidade e da imediação, firmou a sua convicção sem que se evidencie no juízo alcançado algum atropelo das regras da lógica, da ciência e da experiência comum, porque nestes últimos a resposta dada pela 1.ª instância tem suporte na regra estabelecida no artigo 127.º do Código Processo Penal e, por isso, está a coberto de qualquer censura e deve manter-se.
Termos em que improcede a pretendida impugnação da matéria de facto.
Invoca, ainda, o recorrente que a aplicação da medida de tarefas a favor da comunidade sem o seu consentimento ou aceitação, na pessoa dos seus pais, é inconstitucional por violadora do artigo 25º da Constituição da República Portuguesa, bem assim como do artigo 5º da Carta dos Direitos Fundamentais da União Europeia e o artigo 3º da Declaração Universal dos Direitos do Homem.
Fundamenta a sua argumentação no paralelismo com as normas do direito penal, designadamente com o artigo 58º do Código Penal, onde se encontra prevista a pena substitutiva de prestação de tarefas a favor da comunidade.
Começaremos por esclarecer que o modelo de justiça penal para os menores de idade compreendida entre os 12 e os 16 anos dá lugar à aplicação de uma medida tutelar (artigo 1º da Lei Tutelar Educativa) e tem como escopo a “educação para o direito” como decorre, aliás, do artigo 2.º do mesmo diploma legal onde se consagra que “as medidas tutelares educativas visam a educação do menor para o direito e a sua inserção, de forma digna e responsável, na vida em comunidade”.
Nos termos do preceito citado, a intervenção tutelar educativa não tem um cariz retrospetivo mas sim prospetivo, ou seja, de educação.
Tendo como intuito ser uma lei responsabilizadora sem ser uma lei punitiva pretende, desta forma, levar os jovens a interiorizar a ideia de que a sociedade não permite comportamentos que violem os seus valores.
Como bem salientam Leonor Furtado e Paulo Guerra in “O Novo Direito dos Menores”, do Centro de Estudos Judiciários «as finalidades da lei tutelar educativa fundam-se na responsabilização do menor enquanto actor social, sendo certo que toda a intervenção tutelar obedece ao princípio da intervenção mínima». Significa isto que o critério de aplicação da medida tutelar educativa é sempre o interesse do jovem visando a correção da sua personalidade, manifestada no momento da decisão, e a concreta gravidade do facto ilícito praticado. O modelo adotado baseia-se, pois, em dois elementos essenciais: a assunção da responsabilidade do menor e a vertente educativa.
Anabela Rodrigues e António Duarte Fonseca in “Comentário da Lei Tutelar Educativa”, Coimbra Editora, 2003, pág. 22, expressam «A partir daqui, o processo perfilha uma orientação em que a formalidade e o consenso se combinam, na procura de uma eficácia permanente ligada a três noções: a dignidade do menor, a de tempo processual e a da interdecorrência entre exigências de educação e necessidade de proteção».
A intervenção tutelar educativa não é, assim, encarada como punição do mal causado, antes surge como intervenção responsabilizadora do jovem, ordenada ao seu superior interesse. Apesar da prática de um facto qualificado pela lei penal como crime, a intervenção estatal não é imperativa em sede tutelar educativa. Tudo dependerá da avaliação das necessidades educativas do jovem no momento da decisão, podendo concluir-se que a rutura com os valores comunitários é, ainda assim, socialmente tolerável.
É óbvio que a intervenção educativa, embora sem possibilidade de aplicação de uma sanção tão gravosa como a prisão, também pode conduzir a situações que contendam com direitos, liberdades e garantias e, por isso, haja também necessidade neste ordenamento de salvaguardar o conteúdo essencial dos princípios consagrados na Constituição.
Contudo, há que sublinhar, desde logo, que os critérios de escolha da medida a aplicar (artigo 6º da Lei Tutelar Educativa), fundam-se no interesse do menor, no princípio da intervenção mínima e na procura da adesão. Ou seja, o sistema tutelar educativo, em virtude dos princípios que o enformam, particularmente os da necessidade e da atualidade, assume uma especificidade que implica uma autonomia fundamental em relação à ordem jurídica penal. É certo que recorre a alguns elementos da ordem jurídico-penal, porém, o âmbito e o sentido do recurso a esses elementos não podem conflituar como os valores, princípios e fins próprios do sistema tutelar educativo, descaraterizando-o e comprometendo-o.
O direito tutelar educativo não constitui, pois, um sucedâneo do direito penal, sendo primacialmente ordenado ao interesse do menor, fundado no seu direito à realização de condições que lhe permitam desenvolver a sua personalidade de forma socialmente responsável. Toda a intervenção tutelar educativa está necessariamente orientada nesse sentido e daí que as normas processuais tenham de o refletir e respeitar.
De tudo decorre que a posição de um menor face ao processo tutelar educativo não é a mesma que a do arguido em relação ao processo penal. O estatuto dos jovens previsto no artigo 45.º da Lei Tutelar Educativa é substancialmente distinto do estatuto do arguido.
Ademais, o processo tutelar educativo tem normas processuais próprias, apenas lhe sendo aplicável o Código Processo Penal a título subsidiário, por remissão efetuada pelo artigo 128.º, cujo nº 1, que estatui: “Aplica-se subsidiariamente às disposições deste título o Código de Processo Penal.”. Ora, o título aludido no artigo 128.º, é o Título IV que tem por epígrafe “Do processo tutelar”, o qual se inicia com o artigo o 41.º e termina precisamente com aquele artigo 128.º.
Por outro lado, o próprio regime de revisão das medidas tutelares (podendo ser mantidas, modificadas no seu regime de execução, substituídas, aumentadas ou reduzidas na sua duração ou mesmo extintas, em função da sua adequação à evolução das necessidades educativas do jovem - artigos 136º a 139º da Lei Tutelar Educativa) é incompatível com o regime de execução das penas.
A todo o tempo, a personalidade do menor pode dar sinais de transformação, pelo que importa responder adequadamente às suas necessidades educativas em mutação, dominadas pela ideia de que o tempo de um jovem não é igual ao de um adulto, havendo, pois, que adequar a medida a uma personalidade em evolução, através de uma avaliação contínua.
A tudo acresce que a medida cautelar de guarda em centro educativo não é comparável à prisão preventiva, podendo até ser aplicável em regime semiaberto. Aliás, o Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça n.º 3/2009, de 8 de Outubro de 2008 (Processo n.º 2030/07) veio prescrever, com força obrigatória geral, que «não há lugar, em processo tutelar educativo, ao desconto do tempo de permanência do menor em centro educativo, quando, sujeito a tal medida cautelar, vem, posteriormente, a ser-lhe aplicada a medida tutelar de internamento». Todos estes argumentos confluem no sentido das especificidades do processo tutelar educativa face ao processo penal.
Cumpre ainda sublinhar que a Lei Tutelar Educativa apenas remete, a título subsidiário, para as normas processuais penais inexistindo qualquer remissão para a aplicação subsidiária do Código Penal.
De tudo o que se vem dizendo para concluir carecer razão ao recorrente quando pretende equiparar o regime previsto na medida de realização de tarefas a favor da comunidade prevista na alínea d) do artigo 4º da Lei Tutelar Educativa com a pena prevista no artigo 58º do Código Penal, a qual requer, para sua aplicação, a aceitação do condenado.
Com efeito, o artigo 4º da Lei Tutelar Educativa citado elenca as medidas tutelares aplicáveis que são as seguintes: a) A admoestação; b) A privação do direito de conduzir ciclomotores ou de obter permissão para conduzir ciclomotores; c) A reparação ao ofendido; d) A realização de prestações económicas ou de tarefas a favor da comunidade; e) A imposição de regras de conduta; f) A imposição de obrigações; g) A frequência de programas formativos; h) O acompanhamento educativo; e, i) O internamento em centro educativo.
Verifica-se, pois, que para além das expendidas diferentes finalidades ínsitas a cada um dos regimes, também se constata que a pena de prestação de trabalho a favor da comunidade prevista no Código Penal se trata de uma pena de substituição, enquanto a medida tutelar educativa de realização de tarefas a favor da comunidade é uma medida aplicada a título principal.
Tal facto apresenta evidente relevância pois se o condenado não consentir na substituição da pena principal pela pena de substituição de prestação de trabalho a favor da comunidade, tem de cumprir a pena principal. Ao invés, a consequência pelo não cumprimento da medida tutelar de realização de tarefas a favor da comunidade, será a da sua revisão (artigo 136º da Lei Tutelar Educativa), podendo então ocorrer a sua modificação ou substituição nos termos elencados no artigo 138º daquele diploma legal.
Ademais, como ressalta do artigo 12º da Lei Tutelar Educativa que regula a medida de realização de tarefas a favor da comunidade, a mesma refere-se ao exercício pelo menor de atividade em benefício de entidade, pública ou privada, de fim não lucrativo (nº 1); a sua duração máxima é de sessenta horas, não podendo exceder três meses (nº 2); pode ser executada em fins de semana ou dias feriados (nº 3); e não pode ocupar mais de dois dias por semana e três horas por dia e respeita o período de repouso do menor, devendo salvaguardar um dia de descanso semanal e ter em conta a frequência da escolaridade, bem como outras atividades que o tribunal considere importantes para a formação do menor (nº 4 do artigo 11º para o qual remete o nº 4).
Não se vislumbra, pois, que a aplicação da medida de tarefas a favor da comunidade nos termos aplicados na decisão recorrida seja violadora de qualquer preceito constitucional, designadamente, o artigo 25.º invocado pelo recorrente. Como igualmente consideramos não violar as normas de direito internacional aludidas, como sejam, o artigo 5º da Carta dos Direitos Fundamentais da União Europeia e artigo 3º da Declaração Universal dos Direitos Humanos.
Destarte, para concluir, pela improcedência desta questão recursiva.
Finalmente, insurge-se o recorrente quanto à medida tutelar aplicada, a qual considera desadequada e desproporcional reputando como suficiente para a concreta conduta do jovem que resultou provada a medida de admoestação e/ou eventual reparação ao ofendido, segundo percecionamos, mediante renovação de pedido de desculpas.
Vejamos se quanto a esta pretensão assiste razão ao recorrente.
O artigo 4º da Lei Tutelar Educativa consagra o princípio da tipicidade ou taxatividade das medidas tutelares educativas passíveis de aplicação, enquanto corolário de legalidade. Ou seja, só podem ser aplicadas as medidas previstas neste preceito legal.
Do elenco das medidas tutelares educativas ao dispor do julgador aludidas no citado normativo deve o tribunal, em obediência aos critérios constantes do artigo 6º do mesmo compêndio legal, dar preferência àquela que represente menor intervenção na autonomia de decisão e de condução de vida do menor e que seja suscetível de obter a sua maior adesão e a adesão de seus pais, representante legal ou pessoa que tenha a sua guarda de facto, sem olvidar que essa escolha é sempre orientada pelo interesse do menor.
Consagra-se, assim, o princípio da adequação e suficiência da medida, dando-se preferência àquela que realize de forma adequada e suficiente a finalidade subjacente à sua aplicação, isto é, a socialização do menor.
No caso em análise, não existem dúvidas da prática pelo jovem B… de factos tipificados na lei penal como crime. E, face à gravidade dos factos praticados e à dúbia assunção pelo jovem B… da responsabilidade dos seus atos, consideramos verificar-se necessária a intervenção tutelar com a consequente aplicação de uma medida.
A questão que se coloca é se a finalidade subjacente a esta intervenção, ou seja, à socialização do menor B…, se bastará com outra medida mais leve como propugnado pelo recorrente, designadamente, a medida tutelar de admoestação ou de reparação ao ofendido.
Afigura-se-nos ser afirmativa a resposta à questão colocada.
De facto, não pode olvidar-se o contexto muito particular do cometimento dos factos que resultaram provados, bem assim como a boa inserção familiar e escolar do jovem B… e que o relatório social espelha. Por outro lado, tratou-se de um ato isolado na sua vida, do qual não resultou prejuízo para o ofendido e a quem pediu desculpas.
Cremos, por tudo isso, na esteira do entendimento do Exmº Procurador-Geral Adjunto, que a medida tutelar de admoestação prevista na alínea a) do nº 1 do artigo 4º da Lei Tutelar Educativa se mostra suficiente para a salvaguarda do interesse do menor e a sua educação para o direito.
Procede, pois, o recurso quanto a esta questão.
***
III - Decisão
Acordam em conferência na Primeira Secção Criminal do Tribunal da Relação do Porto em julgar parcialmente procedente o recurso interposto por B… e, em consequência, aplicam a favor do identificado menor a medida tutelar de admoestação.
Oportunamente, deverá o tribunal a quo proceder à execução da medida ora aplicada, nos termos do disposto no artigo 140º da Lei Tutelar Educativa.

Sem custas.

Porto, 29 de abril de 2020
(elaborado pela relatora e revisto por ambos os subscritores – artigo 94 nº2 do Código Processo Penal)
Maria Ermelinda Carneiro
Raúl Esteves