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CONTRATO DE ARRENDAMENTO
FALTA DE PAGAMENTO DA RENDA
ABUSO DO DIREITO
FIANÇA
APLICAÇÃO DA LEI NO TEMPO
Sumário
I) O locatário incorre em mora sempre que não cumpra pontualmente a obrigação de pagar a renda, pelo montante total, no dia do vencimento e no lugar de pagamento. II) A falta de pagamento de rendas enquanto fundamento de resolução do contrato passou a estar delineada no regime do NRAU de 2006 com um requisito adicional: a mora tinha de durar há mais de três meses. Com o NRAU de 2012, passa a ser de dois meses. Nessas situações, a mora é suficiente como fundamento de despejo, considerando-se inexigível a manutenção do arrendamento, a não ser que ocorra abuso do direito do senhorio. III) O abuso do direito é de conhecimento oficioso pelo Tribunal. IV) Nos termos do artigo 1041.º, n.ºs. 5 e 6 do CC, na redação dada pela Lei n.º 13/2019, de 12 de fevereiro – vigorando desde 13-02-2019 -, caso exista fiança e o arrendatário não cesse a mora, o senhorio deve, nos 90 dias seguintes, notificar o fiador da mora e das quantias em dívida, apenas podendo exigir do fiador a satisfação dos seus direitos de crédito depois de efetuar a mencionada notificação. V) No caso em apreço, a exigibilidade do cumprimento das obrigações a cargo do fiador do arrendatário não dependia de qualquer notificação do senhorio ao fiador, estando plenamente constituída tal situação jurídica à data de entrada em vigor da referida Lei n.º 13/2019. VI) A mora não purgada do locatário, enquanto elemento constitutivo da responsabilização do fiador, constituía assim uma condição da ação, ou seja, elemento necessário para a procedência da pretensão deduzida, que se deveria verificar à data da instauração da pretensão, ainda que só em sede de decisão final se viesse a apurar se estava ou não verificado. VII) Aos factos constitutivos da pretensão da autora, fundada na mora do locatário e no não cumprimento da obrigação a cargo do fiador, é aplicável a lei em vigor à data em que tais factos ocorrem, ou seja, no caso, inteiramente sob a égide da lei antiga, aí se consolidando. VIII) Os n.ºs 5 e 6 do artigo 1041.º do CC, na redação da Lei n.º 13/2019, de 12 de fevereiro, não visam factos e efeitos totalmente passados, aditando condições antes não previstas para a exigibilidade da prestação do fiador. Tais normativos estabelecem novas condições para a exigibilidade de tal prestação, mas, tão só, para as relações jurídicas que nasçam na sua vigência e para as que subsistiam à data da sua entrada em vigor, mas, nas quais, ainda não se tivesse constituído a situação de mora do locatário. Nas demais, como a dos presentes autos, é aplicável a lei antiga.
Texto Integral
Acordam na 2.ª Secção do Tribunal da Relação de Lisboa:
1. Relatório:
COLUNA E ARCO-CONSTRUÇÃO CIVIL, LDA. Identificada nos autos, instaurou a presente acção declarativa, para efectivação de despejo contra PROPRIMEL, S.A. e FM…, também identificados nos autos, pedindo a declaração da cessação do contrato de arrendamento por resolução com fundamento no art. 1083º, nº 3 e 4 do Código Civil, sendo os réus condenados a entregar-lhe o locado, devoluto, bem como, condenados solidariamente a pagarem-lhe a quantia total de € 10.000,00, correspondentes às rendas vencidas e não pagas, acrescida da importância de 194,90€ a título de juros de mora já vencidos, bem como nas rendas vincendas até efectiva entrega do locado, acrescida dos respectivos juros.
Alegou, em suma:
- Que é dona e legítima possuidora da fração autónoma designada pela letra B, destinada à habitação, do prédio urbano, constituído em regime de propriedade horizontal, sito no largo …, condomínio …, Janes, freguesia de Alcabideche, Concelho de Cascais, que, em 02-10-2012, deu de arrendamento à ré PROPRIMEL, SA. constituindo-se o réu FM… fiador, avocando, assim, todas as obrigações emergentes do referido contrato, que foi celebrado com prazo certo, pelo período de 5 anos, com início a 02-10-2012;
- Que autora e a ré convencionaram renda mensal no valor de 2.000,00€, a pagar por cheque bancário, até ao primeiro dia útil do mês imediatamente anterior àquele a que disser respeito;
- Que foi convencionado que, no 1º, 2º e 3º anos do contrato, a renda ajustada não seria objeto de atualização, que no 4.º ano seria de 2.200,00€ mensais e no 5.º ano, passava para € 2.400,00 mensais;
- Que a partir do 6º ano, a renda seria atualizável anualmente de acordo com o coeficiente legal imposto por lei;
- Que o arrendamento foi celebrado com opção de compra, não tendo a Ré, enquanto arrendatária, exercido esta faculdade dentro do prazo convencionado contratualmente;
- Que o senhorio assegurou à arrendatária o gozo do locado;
- Que a ré não cumpriu com as obrigações emergentes do contrato e deixou de pagar a renda ajustada e deixou de cumprir com o prazo estipulado para pagamento, passando, a partir de dezembro de 2016, a pagar a renda mensal entre os dias 19 e 20 e não procedeu ao pagamento da renda atualizada;
- Que em outubro de 2016, a renda foi actualizada para a quantia mensal de 2.400,00€, não tendo a Ré procedido ao pagamento em conformidade;
- Que no período de outubro de 2015 a setembro de 2016, a Ré deveria ter pago, a título de rendas, a importância total de 26.400,00€, tendo pago apenas 24.000,00€, quedando-se em divida com a importância de 2.400,00€;
- Que no período entre outubro de 2016 e setembro de 2017, a Ré teria que proceder ao pagamento da quantia total de 28.800,00€ e só pagou 24.000,00€, ficando em divida a importância de 4.800,00€;
- Que em novembro de 2017, a Ré começou a fazer pagamentos mensais no valor de 2.200,00€, que mantem até à presente data;
- Que desde outubro de 2017 até à presente data, a Ré apenas pagou 26.000,00€, quando deveria ter liquidado a título de rendas a importância de 28.800,00€, ficando em divida e importância de 2.800,00€;
- Que os pagamentos realizados pela Ré foram imputados às rendas mais antigas em divida e assim em setembro de 2015, a Ré para pagamento da renda de outubro, depositou 2.000,00€, quando deveria ter liquidado a importância de 2.200,00€, permanecendo em divida o valor de 200,00€;
- Que aquando do pagamento ocorrido em outubro de 2015, a Autora imputou a importância de 200,00€ para pagamento do montante em divida do mês anterior, quedando em divida por conta da renda de novembro a quantia de 400,00€ e assim sucedeu nos meses que sobrevieram, pelo que, à presente data, encontram-se em divida as rendas relativas aos meses de maio(parcialmente), junho, julho, agosto e setembro de 2018, cujo montante ascende a 10.000,00€;
- Que a ré não procedeu ao pagamento das rendas no dia do seu vencimento, nem nos oito dias seguintes a contar da data do começo da mora, relativamente a cada uma das indicadas rendas, nem o fez posteriormente; e
- Que, encontrando-se em falta o pagamento de mais de três rendas, tornou-se inexigível à Autora a manutenção do contrato de arrendamento, assistindo-lhe, nessa medida, o direito à sua resolução, nos termos do estatuído no art. 1083º, nº3, do Código Civil, bem como, é inexigível ao senhorio a manutenção do contrato de arrendamento o caso de o arrendatário se constituir em mora superior a oito dias, no pagamento da renda, por mais de quatro vezes, seguidas ou interpoladas, num período de 12 meses (vide nº 4 do art. 1083º do CC), tendo a autora direito à resolução do contrato de arrendamento, faculdade que pretende exercer através da presente ação judicial e, consequentemente tem o direito a receber as rendas vencidas e não pagas no valor de 10.000,00€, acrescidas de juros vencidos de 194,90€ e uma vez que o 2º Réu assumiu, solidariamente, com a arrendatária, 1ª Ré, o fiel cumprimento de todas as obrigações emergentes do contrato de arrendamento, é solidariamente responsável pelas rendas vencidas e vincendas e respetivos juros.
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Os réus contestaram, pugnando pela improcedência do pedido, considerando que não houve incumprimento contratual da sua parte, invocando, aliás, que a autora e os réus acordaram em não actuar as cláusulas de actualização de renda, devendo a acção ser julgada improcedente e os RR. absolvidos do pedido, declarando-se nula a fiança, por indeterminação, e devendo, em qualquer caso, considerar-se que o 2º. R. nada afiançou.
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Foi proferido despacho saneador e, após, teve lugar a audiência de discussão e julgamento, na qual a autora requereu a condenação dos réus como litigantes de má fé, tendo estes se pronunciado sobre tal pedido, em sede de alegações.
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Em 11-11-2019 foi proferida sentença que, na parcial procedência da ação, concluiu “1) Declarar a resolução do contrato de arrendamento celebrado entre a Autora COLUNA E ARCO-CONSTRUÇAO CIVIL, LDA e os RR PROPRIMEL, S.A e FM… e a sua cessação com fundamento no art.º 1083º, nº 3 do Código Civil; 2) Condenar os Réus PROPRIMEL, S.A e FM… a entregar o locado à A. totalmente devoluto de pessoas e bens e em bom estado de conservação, no prazo de 30 dias; 3) Condenar os RR. PROPRIMEL, S.A e FM… a pagar à A. a quantia total de 9.800,00€ (nove mil e oitocentos euros), correspondente aos montantes não pagos decorrentes das actualizações da renda previstas no contrato já vencidas desde Outubro de 2015 até Setembro de 2018, acrescida dos montantes não pagos decorrentes da actualização da renda para o valor de €2400,00 desde Outubro de 2018 até à data da entrega do locado, acrescidas de juros de mora desde 15/12/2017 relativamente aos montantes que se venceram em momento anterior, e a partir daí a contar da data do vencimento das rendas decorrente do acordo mencionado no facto provado 77, até integral e efectivo pagamento à taxa de juros legal. 4) Absolvo os RR do pedido de condenação como litigantes de má fé”.
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Não se conformando com esta decisão, dela apelam os réus PROPIMEL, S.A. e FM…, pugnando pela manutenção do arrendamento- revogando-se a sentença recorrida no que toca à resolução do contrato de arrendamento - e pela absolvição do 2º apelante, do que se decidiu ser devido pela 1.ª apelante a partir de Maio de 2019, formulando na alegação que apresentaram, as seguintes conclusões: “A) O actual fundamento básico que legítima a resolução do arrendamento é o incumprimento por uma das partes que, pela sua gravidade e consequências, torne inexigível, para a outra parte, a manutenção do contrato – artº. 1083º. – nº. 2 CC. B) É certo que a própria lei considera existir tal inexigibilidade no caso de mora igual ou superior a três meses no pagamento da renda ou, por mais de quatro meses, no atraso de tal pagamento no período de um ano – nº. 2 e 4 do mesmo artigo. C) Mas, dada a gravidade pessoal, familiar e social da expulsão de uma família da casa em que habita, o disposto naqueles segmentos da lei tem de ser sabiamente interpretado, sob pena de, assim não sendo, se chegar a resultados desumanos e, dada a finalidade da lei, ilegais. D) O comando estrito dos nºs. 3 e 4 do citado artigo aplica-se aos casos de falta/recusa de pagamento da renda. E) Para os casos de erro do arrendatário (quanto a valor, local e tempo de pagamento), deverá, caso a caso, atender-se ao critério dos nºs. 1 e 2 do mesmo artigo. F) No caso dos autos, estando em causa a actualização de uma renda mensal de € 2.000,00, sempre paga, o incumprimento da parte restante apenas com a douta decisão recorrida ficou esclarecida, aceitando os apelantes o que, nesse aspecto, decidido ficou. G) É, pois, inaceitável concluir que a apelada foi tão afectada pelo incumprimento que é para si, objectivamente, intolerável manter o arrendamento. H) Age a apelada com abuso de direito, nos termos do artº. 334º. CC, ao aproveitar o diferendo surgido, e só agora resolvido, para obter o despejo do locado. I) O 2º. apelante deixou de ser responsável, como fiador, pelo pagamento da parte da renda que não tem sido paga a partir de Maio de 2019, nos termos do artº. 1041º., nºs. 5 e 6 CC, em vigor desde 13/02/2019 (lei nº. 13/2019, de 12/02), dado que não lhe foi comunicada tal falta. J) Violou a douta sentença o disposto nos preceitos antes referidos (artº. 1083º., nº. 1, 2, 3 e 4, 334º. e 1041º. nºs. 5 e 6, todos do Código Civil)”.
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A autora COLUNA E ARCO-CONSTRUÇAO CIVIL, LDA. apresentou contra-alegações pugnando pela improcedência do recurso, tendo concluído que: “1) A Douta Sentença não merecer qualquer reparo ou censura, sempre se dirá que a invocada questão “social e familiar de expulsão de uma família da sua habitação” não se coloca, porque o 2º réu não tem no locado a sua habitação, pois como o mesmo afirmou em julgamento, reside e trabalha em Cabo Verde. 2) A Douta Decisão recorrida não enferma dos vícios apontados pelo recorrente, pelo que se deve manter na íntegra, julgando-se assim o recurso improcedente. 3) O recurso a que se responde, mais não é que a única forma que os recorrentes encontraram de se manterem a ocupar o locado, em manifesto incumprimento das obrigações assumidas contratualmente. 4) Os Réus durante a pendência dos presentes autos e mesmo após a prolação da sentença recorrida persistem no pagamento de um valor a título de renda, fora dos prazos contratuais para pagamento e num valor inferior ao acordado contratualmente. 5) Em face dos elementos de prova devidamente valorados em sede de julgamento e dos documentos juntos, entendeu o Tribunal- e bem em nosso entender- que os Réus incumpriam com o contrato de arrendamento, deixando de pagar a renda nos valores acordados e decorrentes do contrato de arrendamento. E isso mesmo decorre dos factos dados como assentes, os quais os Recorrentes aceitam como válidos, uma vez que não impugnam a decisão sobre a matéria de facto. 6) Os recorrentes aceitam a decisão sobre os factos provados e não provados 7) Os Recorrentes aceitaram que o tribunal considerasse como não provado o facto de, aquando da celebração do contrato de arrendamento, tivesse a autora aceite que o 2º réu não garantisse qualquer obrigação locatícia da 1ª ré. 8) Provou-se que a 1ª Ré não procedeu ao pagamento integral das rendas devidas. 9) Como resulta dos factos considerados como assentes, entre as partes foi assinado um contrato de arrendamento, em outubro de 2012, no qual se estipulava que, em outubro de 2015, a renda seria atualizada para o montante de 2.200,00€ e que em outubro de 2016 o valor de renda seria atualizado para os valores de 2.400,00€. 10) Como resulta provado, a 1ª ré não procedeu ao pagamento da renda devida a partir de outubro de 2015. 11) ficou como provado que a 1ª ré tem a sua sede no locado dado de arrendamento e o 2º Réu também habita o imóvel, quando vem a Portugal. 12) Os pagamentos não correspondentes com as rendas convencionadas, causavam rendas não integralmente pagas, o que acarretava que os pagamentos recebidos fossem imputados às rendas mais antigas em divida. E consequentemente, à data da propositura da ação, os réus tinham em divida as rendas de maio, junho, julho, agosto e setembro de 2018. 13) Com efeito, em face da falta de pagamento das prestações mensais por prazo superior a 3 meses, a autora socorreu-se dos meios legais para a resolução do contrato, nos termos do art. 1084º, nº 1, com referência ao art. 1083º, nº 3, do CC. 14) O não pagamento integral do valor da renda equivale ao seu não pagamento, ficando a mesma e todas as outras que, entretanto, se vencerem também em atraso, e, portanto, em dívida, constituindo-se o arrendatário em mora. 15) Enquanto essa situação não for regularizada, e os rendas não forem pagas integralmente, acrescidas da indemnização, correspondente a 50% sobre o seu valor integral, todas as rendas que se forem vencendo, ainda que pagas integralmente, estão também elas em dívida e pela sua totalidade. 16) O senhorio pode optar por recusar as rendas que o inquilino não pagou integralmente, bem como as posteriores já pagas pelo seu valor total, enquanto a situação não for regularizada, ou optar por rececioná-las, sem que perca o direito a resolver o contrato ou àquela indemnização. Esta é a interpretação que resulta do cotejo do disposto no artº 1041º, nºs 1, 3 e 4 do C.C. 17) os recorrentes não procederam a qualquer depósito liberatório e inclusive, na presente data, persistem no pagamento de uma renda desatualizada. 18) Está legitimada, desde logo, o direito da autora em recorrer à ação judicial para, com base na falta de pagamento da renda, lograr obter a resolução do contrato de arrendamento. 19) Está afastada a imputação de abuso de direito que agora é invocado pelos recorrentes. 20) A autora cumpriu cabalmente com o contrato celebrado com os réus. E apenas reagiu judicialmente em face do incumprimento das obrigações do arrendatário. A autora agiu dentro dos ditames da boa fé, na legitima convicção de um direito que lhe assistia em face da falta de pagamento de rendas pro parte da arrendatária. 21) O 2º Réu, na qualidade de fiador, assumiu solidariamente o cumprimento das obrigações emergentes do contrato de arrendamento. Pelo que responde solidariamente com a 1ª Ré pelo pagamento das rendas que estão em divida, acrescidas dos respetivos juros, uma vez que não correu qualquer cláusula de exclusão”.
* 2. Questões a decidir:
Sendo o objecto do recurso balizado pelas conclusões do apelante, nos termos preceituados pelos artigos 635º, nº 4, e 639º, nº 1, do CPC - sem prejuízo das questões de que o tribunal deva conhecer oficiosamente e apenas estando adstrito a conhecer das questões suscitadas que sejam relevantes para conhecimento do objeto do recurso - , as questões a decidir, em termos lógicos, são as de saber: A) Se a decisão recorrida violou o disposto no artigo 1083.º do CC? B) Se a decisão recorrida violou o disposto no artigo 334.º do CC? C) Se a decisão recorrida violou o disposto no artigo 1041.º, n.ºs. 5 e 6, do CC?
* 3. Enquadramento de facto:
* A SENTENÇA RECORRIDA CONSIDEROU COMO PROVADA A SEGUINTE FACTUALIDADE:
A) Com relevância para a decisão da causa, resultaram provados os seguintes factos:
1. A Autora é proprietário e legitima possuidora da fracção autónoma designada pela letra B, destinada à habitação, do prédio urbano, constituído em regime de propriedade horizontal, sito no largo …, condomínio …, Janes, freguesia de Alcabideche, Concelho de Cascais, descrito na Conservatória do Registo Predial de Cascais sob o nº … e inscrito na matriz predial urbana sob o artigo …, da referida freguesia, com alvará de utilização nº … emitido pela Câmara Municipal de Cascais (Cf. Doc. nº1 e 2 juntos com a PI).
2. Em 02 de Outubro de 2012, a Autora, (enquanto primeira outorgante) deu de arrendamento à Ré PROPRIMEL, SA., (enquanto segunda outorgante) a fração autónoma designada pela letra B, destinada à habitação, do prédio urbano, constituído em regime de propriedade horizontal, sito no largo …, condomínio …, Janes, freguesia de Alcabideche, Concelho de Cascais, descrito na Conservatória do Registo Predial de Cascais sob o nº … e inscrito na matriz predial urbana sob o artigo …, da referida freguesia, com alvará de utilização nº … emitido pela Câmara Municipal de Cascais, conforme resulta do contrato (Cf. Dc. Nº3, juntos com a PI).
3. O aludido contrato de arrendamento foi celebrado com prazo certo, pelo período de 5 (cinco) anos, com início a 02/10/2012 e final no dia 31 de Julho de 2017 (Clausula segunda ponto 1-).
4. Consta da clausula primeira que “O locado destina-se a ser utilizado pela segunda outorgante para habitação própria, não podendo esta dar-lhe outro uso, nem subloca-lo, em todo ou em parte, onerosa ou gratuitamente, sem prévia autorização por escrito da primeira Outorgante”.
5. O locado destinou-se a ser a sede da empresa R. e a ser a residência própria do 2º R., colaborador da sociedade R. e seu agregado familiar.
6. O contrato de arrendamento foi celebrado com opção de compra, opção essa que poderia ser activada a partir do terceiro ano de arrendamento (Clausula segunda ponto 1-).
7. Foi acordado na Clausula segunda ponto 2 que “Se a opção de compra for exercida ao fim do terceiro ano de arrendamento o valor do imóvel será de €460.000,00 (…) ou se for ao fim do quinto ano de arrendamento o valor do imóvel será de €450.000,00(…)”.
8. A Ré, enquanto arrendatária, não exerceu a opção de compra dentro do prazo convencionado contratualmente.
9. A senhorio, aqui A., assegurou à arrendatária, ora 1.ª R., e seu colaborador, ora 2.º R., o gozo do locado.
10. Consta da Clausula Quinta que “A segunda Outorgante expressamente declara que tem perfeito conhecimento do bom estado de conservação em que o locado se encontra, considerando que o mesmo satisfaz todas as suas necessidades habitacionais e não carece de qualquer tipo de obras”.
11. Consta da clausula décima primeira que o Réu FM… enquanto terceiro outorgante “assume solidariamente com a segunda outorgante a obrigação do fiel cumprimento de todas as clausulas deste contrato, seus aditamentos e suas renovações até à efectiva restituição do local livre e devoluto, de ónus e encargos e nas condições estipuladas, e bem assim declaram que a fiança que acabam de prestar subsistirá ainda que haja alterações”.
12. A Autora e a Ré convencionaram uma renda mensal no valor de 2.000,00€ (dois mil euros), cujo pagamento, deveria ser feito por cheque bancário, até ao primeiro dia útil do mês imediatamente anterior àquele a que disser respeito (vide nº1 da Cláusula Terceira do contrato de arrendamento).
13. As partes convencionaram que no primeiro, segundo e terceiro ano (2/10/2012 a 2/10/2013; 2/10/2013 a 2/10/2014; 2/10/2014 a 2/10/2015) a renda ajustada não seria objeto de atualização(clausula terceira ponto 3-).
14. No quarto ano de arrendamento (2/10/2015 a 2/10/2016) a renda mensal passava para 2.200,00€ (dois mil e duzentos euros) -(vide cláusula terceira nº3 do contrato de arrendamento).
15. E no quinto ano de arrendamento (2/10/2016 a 2/10/2017) a renda mensal passava para 2.400,00€ (dois mil e quatrocentos euros)-(vide cláusula terceira nº4 do contrato de arrendamento).
16. A partir do 6º ano, a renda seria atualizável anualmente de acordo com o coeficiente legal imposto por lei (cláusula quarta do contrato de arrendamento).
17. Em 10/08/2015 a R. procedeu ao pagamento à A. do montante de €1.500,00, retendo €500, para pagamento da renda relativa a Julho de 2015.
18. Em 14/09/2015 a R. procedeu ao pagamento à A. do montante de €1.500,00, retendo €500, para pagamento da renda relativa a Agosto de 2015.
19. Em 19/10/2015 foi depositado na conta de depósito à Ordem n.º … da A. o cheque que a R. emitiu do montante de €1.500,00, (retendo a R. €500), para pagamento da renda relativa a Setembro de 2015 tendo a A. emitido o correspondente recibo datado de 16/10/2015.
20. Em 17/11/2015 foi depositado na conta de depósito à Ordem n.º … da A. o cheque que a R. emitiu do montante de €1.500,00, (retendo €500), para pagamento da renda relativa a Outubro de 2015.
21. Em 18/12/2015 foi depositado a conta de depósito à Ordem n.º … da A. o cheque que a R. emitiu do montante de €1.500,00, (retendo €500), para pagamento da renda relativa a Novembro de 2015.
22. Em 15/01/2016 a R. procedeu ao pagamento por transferência bancária, realizada por FF…, para a conta de depósito à Ordem n.º … da A. do montante de €1.500,00, (retendo €500), para pagamento da renda relativa a Dezembro de 2015, tendo sido emitido o correspondente recibo pela A. em 20/01/2016.
23. Em data não apurada de 02/2016 a R. procedeu ao pagamento à A. do montante de €1.500,00, retendo €500, para pagamento da renda relativa a Fevereiro de 2016.
24. Em 17/03/2016 a R. procedeu ao pagamento por transferência bancária, realizada por FF…, para a conta de depósito à Ordem n.º … da A. do montante de €1.500,00, (retendo €500), para pagamento da renda relativa a Fevereiro de 2016.
25. Em 18/04/2016 foi depositado na conta de depósito à Ordem n.º … da A. o montante de €1.700,00.
26. Em 19/05/2016 foi depositado pela R. na conta de depósito à Ordem n.º … da A. o montante de montante de €1.500,00, (retendo €500), para pagamento da renda relativa a Abril de 2016.
27. Em 20/06/2016 foi depositado na conta de depósito à Ordem n.º … da A. o cheque que a R. emitiu do montante de €1.500,00, (retendo €500), para pagamento da renda relativa a Maio de 2016.
28. Em 21/07/2016 a R. procedeu ao pagamento por transferência bancária, realizada por FF…, para a conta de depósito à Ordem n.º … da A. do montante de €1.500,00, (retendo €500), para pagamento da renda relativa a Junho de 2016, tendo sido emitido o recibo pela A.
29. Em 15/08/2016 a R. procedeu ao pagamento por transferência bancária, realizada por FF…, para a conta de depósito à Ordem n.º … da A. do montante de €1.500,00, (retendo €500), para pagamento da renda relativa a Julho de 2016, tendo sido emitido o correspondente recibo.
30. Em 19/09/2016 foi depositado pela R. na conta de depósito à Ordem n.º … da A. o montante de €1.500,00, retendo €500, para pagamento da renda relativa a Agosto de 2016, tendo sido emitido o correspondente recibo.
31. Em 19/10/2016 foi depositado pela R. na conta de depósito à Ordem n.º … da A. o montante de €1.500,00, (retendo €500), para pagamento da renda relativa a Setembro de 2016.
32. Em 21/11/2016 a R. procedeu ao pagamento por transferência bancária, realizada por MP…, para a conta de depósito à Ordem n.º … da A. do montante de €1.500,00, retendo €500, para pagamento da renda relativa a Outubro de 2016.
33. Em 19/12/2016 foi depositado o pela R. o montante de €1.500,00, na conta de depósito à Ordem n.º … da A., retendo €500, para pagamento da renda relativa a Novembro de 2016.
34. Em 17/03/2017 foi efectuado pela R. um depósito na conta de depósito à Ordem n.º … da A. do montante de €1.500,00, retendo €500, para pagamento da renda relativa a Fevereiro de 2017.
35. Em 19/04/2017 foi efectuada transferência bancária para a conta de depósito à Ordem n.º … da A. do montante de €1.500,00, retendo €500, para pagamento da renda relativa a Março de 2017.
36. Em 18/05/2018 foi efectuado pela R. um depósito na conta de depósito à Ordem n.º … da A. do montante de €1.500,00, retendo €500, para pagamento da renda relativa a Abril de 2017.
37. Em 18/06/2017 foi efectuada transferência bancária para a conta de depósito à Ordem n.º … da A. do montante de €1.500,00, retendo €500, para pagamento da renda relativa a Maio de 2017.
38. Em 18/07/2017 foi depositado na conta de depósito à Ordem n.º … da A. o cheque que a R. emitiu do montante de €1.500,00, retendo €500, para pagamento da renda relativa a Junho de 2017.
39. Em 17/08/2017 foi depositado na conta de depósito à Ordem n.º … da A. o cheque que a R. emitiu do montante de €1.500,00, retendo €500, para pagamento da renda relativa a Julho de 2017.
40. Em 15/09/2017 foi depositado na conta de depósito à Ordem n.º … da A. o cheque que a R. emitiu do montante de €1.500,00, retendo €500, para pagamento da renda relativa a Agosto de 2017.
41. Em 18/10/2017 foi depositado na conta de depósito à Ordem n.º … da A. o cheque que a R. emitiu do montante de €1.500,00 retendo €500, para pagamento da renda relativa a Setembro de 2017.
42. Em 16/11/2017 foi depositado na conta de depósito à Ordem n.º … da A. o cheque que a R. emitiu no montante de €1.650,00, retendo €550, para pagamento da renda relativa a Outubro de 2017.
43. Em 15/12/2017 foi depositado na conta de depósito à Ordem n.º … da A. o cheque que a R. emitiu do montante de €1.650,00, retendo €550, para pagamento da renda relativa a Novembro de 2017.
44. Em 16/01/2018 foi depositado na conta de depósito à Ordem n.º … da A. o cheque que a R. emitiu do montante de €1.650,00, retendo €550, para pagamento da renda relativa a Dezembro de 2017.
45. Em 16/02/2018 foi depositado na conta de depósito à Ordem n.º … da A. o cheque que a R. emitiu do montante de €1.650,00, retendo €550, para pagamento da renda relativa a Janeiro de 2018.
46. Em 19/03/2018 foi depositado na conta de depósito à Ordem n.º … da A. o cheque que a R. emitiu do montante de €1.650,00, retendo €550, para pagamento da renda relativa a Fevereiro de 2018.
47. Em 16/04/2018 foi depositado na conta de depósito à Ordem n.º … da A. o montante de €1.650,00, retendo €550, para pagamento da renda relativa a Março de 2018.
48. Em 16/05/2018 foi depositado na conta de depósito à Ordem n.º … da A. o cheque que a R. emitiu do montante de €1.650,00, retendo €550, para pagamento da renda relativa a Abril de 2018.
49. Em 18/06/2018 foi efectuada transferência bancária para a conta de depósito à Ordem n.º … da A. do montante de €1.650,00, retendo €550, para pagamento da renda relativa a Maio de 2018.
50. Em 19/07/2019 foi efectuado pela R. depósito na conta de depósito à Ordem n.º … da A. do montante de €1.650,00, retendo €550, para pagamento da renda relativa a Junho de 2018.
51. Em 16/08/2018 foi depositado na conta de depósito à Ordem n.º … da A. o cheque que a R. emitiu do montante de €1.650,00, retendo €550, para pagamento da renda relativa a Julho de 2018.
52. Em 17/09/2018 foi efectuada transferência bancária pela R. para na conta de depósito à Ordem n.º … da A. do montante de €1.650,00, retendo €550, para pagamento da renda relativa a Agosto de 2018.
53. Em 19/10/2018 foi efectuada transferência bancária pela R. para na conta de depósito à Ordem n.º … da A. do montante de €1.650,00, retendo €550, para pagamento da renda relativa a Setembro de 2018.
54. Em 19/11/2018 foi efectuada transferência bancária pela R. para na conta de depósito à Ordem n.º … da A. do montante de €1.650,00, retendo €550, para pagamento da renda relativa a Outubro de 2018.
55. Em 18/12/2018 foi efectuada transferência bancária pela R. para na conta de depósito à Ordem n.º … da A. do montante de €1.650,00, retendo €550, para pagamento da renda relativa a Novembro de 2018.
56. Em 18/01/2019 foi depositado na conta de depósito à Ordem n.º … da A. o cheque que a R. emitiu do montante de €1.650,00, retendo €550, para pagamento da renda relativa a Dezembro de 2018.
57. Em 19/02/2019 foi depositado na conta de depósito à Ordem n.º … da A. do montante em numerário de €1.650,00, retendo €550, para pagamento da renda relativa a Janeiro de 2019.
58. Em 19/03/2019 foi efectuada transferência bancária pela R. para na conta de depósito à Ordem n.º … da A. do montante de €1.650,00, retendo €550, para pagamento da renda relativa a Fevereiro de 2019.
59. Em 22/04/2019 foi depositado na conta de depósito à Ordem n.º … da A. o cheque que a R. emitiu do montante de €1.650,00, retendo €550, para pagamento da renda relativa a Março de 2019.
60. Em 20/05/2019 foi efectuada transferência bancária pela R. para na conta de depósito à Ordem n.º … da A. do montante de €1.650,00, retendo €550, para pagamento da renda relativa a Abril de 2019.
61. Em 19/06/2019 foi depositado na conta de depósito à Ordem n.º … da A. pela R. o montante de €1.650,00, retendo €550, para pagamento da renda relativa a Maio de 2019.
62. Em 19/07/2019 foi depositado na conta de depósito à Ordem n.º … da A. o cheque que a R. emitiu do montante de €1.650,00, retendo €550, para pagamento da renda relativa a Junho de 2019.
63. Entre Outubro de 2015 e Outubro de 2017 a R. pagou à A. a renda mensal de 1500,00, retendo a quantia de €500 a título de imposto.
64. No período de outubro de 2015 a setembro de 2016, considerando o acordado no contrato, a Ré deveria ter pago, a título de rendas incluindo o imposto, a importância total de 26.400,00€ (vinte e seis mil e quatrocentos euros) e apenas pagou a quantia de 24.000,00€.
65. No período entre outubro de 2016 e setembro de 2017, considerando o acordado no contrato, a Ré teria que proceder ao pagamento da quantia total de 28.800,00€ e só pagou 24.000,00€.
66. Em novembro de 2017, a Ré começou a fazer pagamentos mensais no valor de 1.650,00€, retendo a quantia de €550,00 relativa a imposto, pagamentos que mantem até à presente data, os quais têm vindo a ser realizados pela R. para a conta de depósito à Ordem n.º … da A..
67. Desde outubro de 2017 até setembro de 2018, a Ré apenas pagou 26.200,00€, quando deveria ter liquidado a título de rendas a importância de 28.800,00€, ficando em divida a importância de 2.600,00€ (na PI consta erro de calculo).
68. A A. aceitou os pagamentos mencionados nos pontos 19 a 41, recebendo as rendas nos montantes pagos, desconsiderando as actualizações, previstas no contrato e mencionadas em 13 a 15, não as exigindo aos RR. durante esse período, na expectativa de que a R. iria exercer a opção de compra até à final do prazo previsto no contrato, isto é até 02/11/2017.
69. Durante esse tempo a A. não escreveu aos RR. a pedir-lhe o pagamento de qualquer montante decorrente das actualizações previstas no contrato.
70. Como a R. não exerceu essa opção de compra até à altura referida em 68., a A. passou, a exigir que a R. cumprisse o contrato, pagando as quantias decorrentes das actualizações previstas no contrato.
71. A Autora, por intermédio da sua mandataria, em 09 de novembro de 2017, enviou as cartas juntas como Doc. Nº4, 5, 6 e 7.
72. As comunicações referidas no número anterior foram devolvidas, conforme decorre dos documentos juntos como Doc. Nº8 e 9, sendo que em relação à comunicação junta como doc. 6 a mesma foi recebida e assinado o A/R, porém acabou por ser devolvida com a menção “desconheço o destinatário da carta nesta morada assinado por engani sem ser aberta”.
73. Em 10 de dezembro de 2017, a mandataria da Autora, enviou novas comunicações, desta feita em registo simples, cuja copias estão juntas como Doc. Nº10, 11, 12 e 13.
74. As comunicações foram recebidas pelos RR. (Cf. Doc. Nº14 e 15).
75. O 2º. R. exerce a sua actividade de empresário turístico na Ilha do Sal em Cabo Verde, sendo que a representante legal da R. vive com o 2.º R. em união de facto, tendo também em loja na Ilha do sal em Cabo Verde, os quais deslocam-se a Portugal com frequência ao longo do ano, e quando o fazem ficam alojados no imóvel em causa nos autos.
76. O AL… e o 2º. R. até pelo menos o final do ano de 2016 mantiveram relações muito amigáveis.
77. AL…, representante legal da A. autorizou os RR. a pagar a renda a partir de, pelo menos, Agosto de 2015, até ao dia 20 de cada mês.
* A SENTENÇA RECORRIDA CONSIDEROU COMO NÃO PROVADA A SEGUINTE FACTUALIDADE:
Não se provou que:
a) nunca foi intenção das partes que o 2º. R. garantisse qualquer obrigação locatícia da 1ª. R. dado que esta nada tinha a ver com o arrendamento e nunca teve a fruição do locado, nem quis tê-la, nem quis a A. que a tivesse.
b) Entre 2012 (início do arrendamento) e 2015 (ano da primeira alteração da renda) tornou-se cada vez mais difícil para os RR. fazer face aos compromissos antes assumidos, dado o arrastamento da retracção económica subsequente à crise de 2008.
c) No decurso daquelas conversas, quando se aproximou o mês de Setembro de 2015, o 2º. R. disse ao AL… que não se justificava o previsto aumento da renda, propondo-lhe e pedindo-lhe que a renda se mantivesse nos € 2.000,00 mensais.
d) O AL… aceitou, prontamente, o pedido do 2º. R.
e) Assim ficando sem efeito as cláusulas relativas à actualização da renda a partir de 2015.
f) Esta conversa e este acordo tiveram lugar no estabelecimento comercial do 2º. R., em Cascais (stand automóvel ‘Auda’).
g) Face à confiança existente entre o R. e o AL… não se pensou, sequer, em reduzir a escrito tal acordo.
h) Só no fim de 2017, com a referida valorização imobiliária, a A. voltou a querer o contrato inicial cumprido.
i) Quando o AL… e o 2º. R. acordaram em pôr de lado as previstas actualizações extraordinárias de 2015 e 2016, entenderam os RR. que só ficariam de pé as actualizações normais, exigíveis pela senhoria, face à inflação.
j) Foi para evitarem conflitos com a senhoria, que os RR passaram a transferir, desta vez sem qualquer conversa com o AL…, a quantia mensal de € 2.200,00.
k) Pensaram os RR. que assim respondiam à condescendência anterior do AL…, deste modo compensando os seus compreensíveis interesses.
l) Mas nunca os RR. assumiram que tal comportamento significasse a aceitação das actuais exigências do AL….
* 4. Enquadramento de Direito:
* A) Se a decisão recorrida violou o disposto no artigo 1083.º do CC?
Começam os recorrentes por impugnar a decisão recorrida, referindo que “o presente recurso visa obter de V. Exas. uma análise um pouco mais aprofundada da aplicação em certos casos concretos, como o dos autos, do disposto no artº. 1083º. do Código Civil, bem como apreciar a situação do 2º. Apelante, como fiador, face ao disposto da recente entrada em vigor da lei 13/2019, de 12/02”.
Para tanto, alegaram, designadamente, o seguinte: “2. Segundo a lei anterior (artº. 64º. do DL 321- B/90, de 15/10), o senhorio só podia resolver o contrato nos casos aí previstos, o primeiro dos quais era a falta de pagamento da renda, no tempo e lugar próprios. Actualmente, qualquer das partes pode resolver o contrato por incumprimento da parte contrária (artº. 1083 nº. 1 CC). Mas acrescenta o nº. 2 desse artigo, esse incumprimento tem de ter gravidade e consequências tais que torne inexigível, para a parte cumpridora, a manutenção do contrato. Até aqui, evidente seria a impossibilidade, para a apelada, de resolverem o contrato: uma simples divergência sobre o quantitativo da renda, equivalente a cerca de 10% do valor por ambas as partes aceite, que o recurso ao tribunal já clarificou, nunca tornaria, por si só, a manutenção do contrato inexigível para o senhorio. De resto, num caso como o dos autos, o normal seria que qualquer das partes pedisse ao tribunal a fixação da renda devida, face aos invocados acertos posteriores introduzidos na renda por senhoria e inquilina e não o aproveitamento dessa divergência para se pedir a resolução do arrendamento. Só que o nº. 3 desse artº. 1083º. CC diz mais que a própria lei considera ser inexigível ao senhorio a manutenção do arrendamento em caso de mora igual ou superior a três meses no pagamento da renda. E a douta sentença aplicou tal segmento do artigo com régua e esquadro e sem mais contemplações: não provado inequivocamente o novo acordo quanto ao valor da renda e sendo pago, mês a mês, um valor que não era o contratado, a consequência é, sem quaisquer outras considerações, resolver o contrato e despejar a família do equivocado. O que os apelantes defendem é que, pelo contrário, a lei deverá ser interpretada e aplicada tendo em atenção as circunstâncias de cada caso concreto, de modo a que a solução, cumprindo o sentido e a finalidade da lei, não seja sentida como simplesmente mecânica ou computorizada, com exclusão do elemento humano. Como, por exemplo, não considerar justa e louvável a decisão que, face ao pedido de retirada de um portão que impedia a serventia de um caminho por terreno alheio, pondo de lado o julgamento estrito do pedido, condenou o autor do impedimento, não à requerida remoção do portão, mas antes à entrega ao A. de uma chave do mesmo, para poder entrar e sair quando lhe conviesse (Ac. Rel. Coimbra, 30/04/2019, in. Col. de Jurisprudência, 2019, II, pág. 329)? No caso dos autos também poderemos perguntar: o que a lei, verdadeiramente, pretende é defender o direito do senhorio ao recebimento da renda que contratou, ou dar-lhe o direito potestativo e absoluto de despejar quem se enganou no valor a pagar ou está (mal) convencido ou que está a pagar o que deve? 3. A lei diz, simplesmente, que é grave e torna inexigível, para o senhorio, a manutenção de um inquilino que esteja em mora no pagamento da renda por três meses, pelo menos. É evidente que a situação normal considerada pela lei é a da falta de pagamento da renda, por recusa ou por qualquer outro motivo não enquadrável em caso de força maior. Mas há casos em que o pagamento de renda não é recusado, antes é oferecido (sendo aceite ou não), mas em que se verificou lapso do arrendatário (como é frequente a seguir às pequenas actualizações ordinárias e anuais ou quanto às actualizações extraordinárias previstas no contrato e de que o arrendatário se esquece, não sendo avisado pelo senhorio para o efeito). Há também os casos em que o senhorio e inquilino divergem a certa altura sobre qualquer aspecto de pagamento da renda (valor, tempo de pagamento, lugar do pagamento, divisa utilizável) e que só a intervenção do tribunal torna líquidas e claras as obrigações das partes. Semelhante a esta há as situações em que o arrendatário recusa o pagamento porque, sendo o contrato sinalagmático, não estão a ser cumpridas pelo senhorio as suas obrigações legais ou contratuais. Se o arrendatário se obriga, no contrato, a actualizar a renda para o dobro quando for disponibilizada a parte do prédio destinada a garagem, se o senhorio considera, a certa altura, que tal obrigação está cumprida, aumentando, em consequência a renda, e se o arrendatário alega que a referida garagem não permite a entrada de um carro de normais dimensões, pelo que não paga a nova renda, dirimida a questão a favor do senhorio, com aceitação (resignada) pelo inquilino, justificar-se-á atender o pedido de despejo da habitação? De longe, a situação mais frequente proposta aos tribunais é a de haver, pura e simplesmente, falta de pagamento de renda e é a essa que, no pensamento do legislador, os nºs. 3 e 4 do artº. 1083º. CC se referem. Tal conclusão é reforçada pelo facto de, nesses preceitos (nºs. 3 e 4), se falar em mora igual ou superior a três meses e mora por mais de oito dias por mais de quatro vezes num ano, nada referindo quanto aos casos em que haja divergências entre senhorio e inquilino que se reflitam no valor da renda ou na própria obrigação de a pagar. Situação que tem merecido decisões fora do automatismo que aqui se põe em causa, é a dos inquilinos que, por razão que não chega a ser relevante, pagam a renda com uma pequena falta, entendendo-se, genericamente que essa discrepância não justifica a resolução do contrato, até porque a intenção do senhorio não é a de receber a pequena parcela em falta, mas sim livrar-se do inquilino. No entanto, se entendermos a “mora” referida na lei com rigor, teriam os tribunais de ser implacáveis também em tais situações. Entendem, pois, os apelantes que o campo de aplicação dos nºs. 3 e 4 do artº. 1083º. CC, face ao que consta dos nº. 1 e 2 (corpo do preceito), se deverá limitar aos casos claros de falta de pagamento de renda, em que ao senhorio não pode exigir-se que permita a manutenção de tal situação. Fora desta previsão estarão os casos, a considerar em concreto face às circunstâncias, em que há divergência sobre valor, lugar ou tempo do contratado, dado que só a partir da clarificação judicial se poderá pôr a eventual questão do incumprimento voluntário. No caso dos autos, está em causa uma parcela correspondente a menos de 10 % do valor da renda. A situação normal, havendo boa fé, seria a de, nunca tendo havido recusa do pagamento, a apelada ter pedido, judicialmente, a condenação dos apelantes a pagar-lhe as actualizações controvertidas, só pensando na hipótese do despejo se os apelados não obedecessem ao decidido. E, como se vê dos autos, os apelantes sempre pagaram, mês a mês, a renda que entendiam ser devida, embora a senhoria fosse passando os recibos como, também, entendia dever passá-los (…)”.
Importa referir, liminarmente, que não é colocada em questão a matéria de facto apurada no Tribunal recorrido, pelo que, a apreciação do presente recurso – restrito à apreciação das questões de direito suscitadas pelos impugnantes, tem por referência e base a referida matéria de facto.
Ora, conforme resulta dos factos provados, foi celebrado entre as partes um contrato de arrendamento de prédio urbano destinado a habitação.
Nele figuram como senhorio a autora e como arrendatário a 1.ª ré, sendo que, o 2º réu, outorgou em tal contrato na qualidade de fiador.
Trata-se de matéria assente e não controvertida.
Mais se apurou que o contrato foi celebrado por 5 anos, com início em 02-10-2012 e final no dia 31 de Julho de 2017, tendo sido assegurado pela autora o gozo do locado.
Foi convencionada a renda mensal inicial de 2.000,00€ (dois mil euros), cujo pagamento, deveria ser feito por cheque bancário, até ao primeiro dia útil do mês imediatamente anterior àquele a que disser respeito (vide nº1 da Cláusula Terceira do contrato de arrendamento). Esta renda não seria actualizada nos primeiros três anos de contrato (até 02-10-2015) (cfr. clausula terceira ponto 3-). No quarto ano de arrendamento (2/10/2015 a 2/10/2016) a renda mensal passava para 2.200,00€ (dois mil e duzentos euros) e no quinto ano de arrendamento (2/10/2016 a 2/10/2017) passava para 2.400,00€ (dois mil e quatrocentos euros)-(vide cláusula terceira nºs. 3 e 4 do contrato de arrendamento).
Relativamente a valores pagos pela ré, verificou-se provado o seguinte:
- Em 10/08/2015 a R. procedeu ao pagamento à A. do montante de €1.500,00, retendo €500, para pagamento da renda relativa a Julho de 2015;
- Em 14/09/2015 a R. procedeu ao pagamento à A. do montante de €1.500,00, retendo €500, para pagamento da renda relativa a Agosto de 2015;
- Em 19/10/2015 foi depositado na conta de depósito à Ordem n.º … da A. o cheque que a R. emitiu do montante de €1.500,00, (retendo a R. €500), para pagamento da renda relativa a Setembro de 2015 tendo a A. emitido o correspondente recibo datado de 16/10/2015;
- Em 17/11/2015 foi depositado na conta de depósito à Ordem n.º … da A. o cheque que a R. emitiu do montante de €1.500,00, (retendo €500), para pagamento da renda relativa a Outubro de 2015;
- Em 18/12/2015 foi depositado a conta de depósito à Ordem n.º …. da A. o cheque que a R. emitiu do montante de €1.500,00, (retendo €500), para pagamento da renda relativa a Novembro de 2015;
- Em 15/01/2016 a R. procedeu ao pagamento por transferência bancária, realizada por FF…, para a conta de depósito à Ordem n.º … da A. do montante de €1.500,00, (retendo €500), para pagamento da renda relativa a Dezembro de 2015, tendo sido emitido o correspondente recibo pela A. em 20/01/2016;
- Em data não apurada de 02/2016 a R. procedeu ao pagamento à A. do montante de €1.500,00, retendo €500, para pagamento da renda relativa a Fevereiro de 2016;
- Em 17/03/2016 a R. procedeu ao pagamento por transferência bancária, realizada por FF…, para a conta de depósito à Ordem n.º … da A. do montante de €1.500,00, (retendo €500), para pagamento da renda relativa a Fevereiro de 2016;
-Em 18/04/2016 foi depositado na conta de depósito à Ordem n.º … da A. o montante de €1.700,00;
- Em 19/05/2016 foi depositado pela R. na conta de depósito à Ordem n.º … da A. o montante de montante de €1.500,00, (retendo €500), para pagamento da renda relativa a Abril de 2016;
- Em 20/06/2016 foi depositado na conta de depósito à Ordem n.º … da A. o cheque que a R. emitiu do montante de €1.500,00, (retendo €500), para pagamento da renda relativa a Maio de 2016;
- Em 21/07/2016 a R. procedeu ao pagamento por transferência bancária, realizada por FF…, para a conta de depósito à Ordem n.º … da A. do montante de €1.500,00, (retendo €500), para pagamento da renda relativa a Junho de 2016, tendo sido emitido o recibo pela A;
- Em 15/08/2016 a R. procedeu ao pagamento por transferência bancária, realizada por FF…, para a conta de depósito à Ordem n.º … da A. do montante de €1.500,00, (retendo €500), para pagamento da renda relativa a Julho de 2016, tendo sido emitido o correspondente recibo;
- Em 19/09/2016 foi depositado pela R. na conta de depósito à Ordem n.º … da A. o montante de €1.500,00, retendo €500, para pagamento da renda relativa a Agosto de 2016, tendo sido emitido o correspondente recibo;
- Em 19/10/2016 foi depositado pela R. na conta de depósito à Ordem n.º … da A. o montante de €1.500,00, (retendo €500), para pagamento da renda relativa a Setembro de 2016;
- Em 21/11/2016 a R. procedeu ao pagamento por transferência bancária, realizada por MP…, para a conta de depósito à Ordem n.º … da A. do montante de €1.500,00, retendo €500, para pagamento da renda relativa a Outubro de 2016;
- Em 19/12/2016 foi depositado o pela R. o montante de €1.500,00, na conta de depósito à Ordem n.º … da A., retendo €500, para pagamento da renda relativa a Novembro de 2016;
- Em 17/03/2017 foi efectuado pela R. um depósito na conta de depósito à Ordem n.º … da A. do montante de €1.500,00, retendo €500, para pagamento da renda relativa a Fevereiro de 2017;
- Em 19/04/2017 foi efectuada transferência bancária para a conta de depósito à Ordem n.º … da A. do montante de €1.500,00, retendo €500, para pagamento da renda relativa a Março de 2017;
- Em 18/05/2018 foi efectuado pela R. um depósito na conta de depósito à Ordem n.º … da A. do montante de €1.500,00, retendo €500, para pagamento da renda relativa a Abril de 2017;
- Em 18/06/2017 foi efectuada transferência bancária para a conta de depósito à Ordem n.º … da A. do montante de €1.500,00, retendo €500, para pagamento da renda relativa a Maio de 2017;
- Em 18/07/2017 foi depositado na conta de depósito à Ordem n.º … da A. o cheque que a R. emitiu do montante de €1.500,00, retendo €500, para pagamento da renda relativa a Junho de 2017;
- Em 17/08/2017 foi depositado na conta de depósito à Ordem n.º … da A. o cheque que a R. emitiu do montante de €1.500,00, retendo €500, para pagamento da renda relativa a Julho de 2017;
- Em 15/09/2017 foi depositado na conta de depósito à Ordem n.º … da A. o cheque que a R. emitiu do montante de €1.500,00, retendo €500, para pagamento da renda relativa a Agosto de 2017;
- Em 18/10/2017 foi depositado na conta de depósito à Ordem n.º … da A. o cheque que a R. emitiu do montante de €1.500,00 retendo €500, para pagamento da renda relativa a Setembro de 2017;
- Em 16/11/2017 foi depositado na conta de depósito à Ordem n.º … da A. o cheque que a R. emitiu no montante de €1.650,00, retendo €550, para pagamento da renda relativa a Outubro de 2017;
-Em 15/12/2017 foi depositado na conta de depósito à Ordem n.º … da A. o cheque que a R. emitiu do montante de €1.650,00, retendo €550, para pagamento da renda relativa a Novembro de 2017;
- Em 16/01/2018 foi depositado na conta de depósito à Ordem n.º … da A. o cheque que a R. emitiu do montante de €1.650,00, retendo €550, para pagamento da renda relativa a Dezembro de 2017;
- Em 16/02/2018 foi depositado na conta de depósito à Ordem n.º … da A. o cheque que a R. emitiu do montante de €1.650,00, retendo €550, para pagamento da renda relativa a Janeiro de 2018;
- Em 19/03/2018 foi depositado na conta de depósito à Ordem n.º … da A. o cheque que a R. emitiu do montante de €1.650,00, retendo €550, para pagamento da renda relativa a Fevereiro de 2018;
- Em 16/04/2018 foi depositado na conta de depósito à Ordem n.º … da A. o montante de €1.650,00, retendo €550, para pagamento da renda relativa a Março de 2018;
- Em 16/05/2018 foi depositado na conta de depósito à Ordem n.º … da A. o cheque que a R. emitiu do montante de €1.650,00, retendo €550, para pagamento da renda relativa a Abril de 2018;
- Em 18/06/2018 foi efectuada transferência bancária para a conta de depósito à Ordem n.º … da A. do montante de €1.650,00, retendo €550, para pagamento da renda relativa a Maio de 2018;
- Em 19/07/2019 foi efectuado pela R. depósito na conta de depósito à Ordem n.º … da A. do montante de €1.650,00, retendo €550, para pagamento da renda relativa a Junho de 2018;
-Em 16/08/2018 foi depositado na conta de depósito à Ordem n.º … da A. o cheque que a R. emitiu do montante de €1.650,00, retendo €550, para pagamento da renda relativa a Julho de 2018;
- Em 17/09/2018 foi efectuada transferência bancária pela R. para na conta de depósito à Ordem n.º … da A. do montante de €1.650,00, retendo €550, para pagamento da renda relativa a Agosto de 2018;
- Em 19/10/2018 foi efectuada transferência bancária pela R. para na conta de depósito à Ordem n.º … da A. do montante de €1.650,00, retendo €550, para pagamento da renda relativa a Setembro de 2018.
-Em 19/11/2018 foi efectuada transferência bancária pela R. para na conta de depósito à Ordem n.º … da A. do montante de €1.650,00, retendo €550, para pagamento da renda relativa a Outubro de 2018.
-Em 18/12/2018 foi efectuada transferência bancária pela R. para na conta de depósito à Ordem n.º … da A. do montante de €1.650,00, retendo €550, para pagamento da renda relativa a Novembro de 2018.
-Em 18/01/2019 foi depositado na conta de depósito à Ordem n.º … da A. o cheque que a R. emitiu do montante de €1.650,00, retendo €550, para pagamento da renda relativa a Dezembro de 2018;
-Em 19/02/2019 foi depositado na conta de depósito à Ordem n.º … da A. do montante em numerário de €1.650,00, retendo €550, para pagamento da renda relativa a Janeiro de 2019;
-Em 19/03/2019 foi efectuada transferência bancária pela R. para na conta de depósito à Ordem n.º … da A. do montante de €1.650,00, retendo €550, para pagamento da renda relativa a Fevereiro de 2019;
-Em 22/04/2019 foi depositado na conta de depósito à Ordem n.º … da A. o cheque que a R. emitiu do montante de €1.650,00, retendo €550, para pagamento da renda relativa a Março de 2019;
-Em 20/05/2019 foi efectuada transferência bancária pela R. para na conta de depósito à Ordem n.º … da A. do montante de €1.650,00, retendo €550, para pagamento da renda relativa a Abril de 2019;
- Em 19/06/2019 foi depositado na conta de depósito à Ordem n.º … da A. pela R. o montante de €1.650,00, retendo €550, para pagamento da renda relativa a Maio de 2019;
- Em 19/07/2019 foi depositado na conta de depósito à Ordem n.º … da A. o cheque que a R. emitiu do montante de €1.650,00, retendo €550, para pagamento da renda relativa a Junho de 2019;
-Entre Outubro de 2015 e Outubro de 2017 a R. pagou à A. a renda mensal de 1500,00, retendo a quantia de €500 a título de imposto;
- No período de outubro de 2015 a setembro de 2016, considerando o acordado no contrato, a Ré deveria ter pago, a título de rendas incluindo o imposto, a importância total de 26.400,00€ e apenas pagou a quantia de 24.000,00€;
- No período entre outubro de 2016 e setembro de 2017, considerando o acordado no contrato, a Ré teria que proceder ao pagamento da quantia total de 28.800,00€ e só pagou 24.000,00€;
- Em novembro de 2017, a Ré começou a fazer pagamentos mensais no valor de 1.650,00€, retendo a quantia de €550,00 relativa a imposto, pagamentos que mantem até à presente data, os quais têm vindo a ser realizados pela R. para a conta de depósito à Ordem n.º … da A.;
- Desde outubro de 2017 até setembro de 2018, a Ré apenas pagou 26.200,00€, quando deveria ter liquidado a título de rendas a importância de 28.800,00€, ficando em divida a importância de 2.600,00€ (na PI consta erro de calculo);
- A A. aceitou os pagamentos mencionados, recebendo as rendas nos montantes pagos, desconsiderando as actualizações, previstas no contrato, não as exigindo aos RR. durante esse período, na expectativa de que a R. iria exercer a opção de compra até à final do prazo previsto no contrato, isto é até 02/11/2017;
- Durante esse tempo a A. não escreveu aos RR. a pedir-lhe o pagamento de qualquer montante decorrente das actualizações previstas no contrato;
- Como a R. não exerceu essa opção de compra até à altura referida (02-11-2017), a A. passou, a exigir que a R. cumprisse o contrato, pagando as quantias decorrentes das actualizações previstas no contrato;
- A Autora, por intermédio da sua mandataria, em 09 de novembro de 2017, enviou as cartas juntas como Doc. Nº4, 5, 6 e 7, que foram devolvidas, sendo que em relação à comunicação junta como doc. 6 a mesma foi recebida e assinado o A/R, porém acabou por ser devolvida com a menção “desconheço o destinatário da carta nesta morada assinado por engani sem ser aberta”;
- Em 10 de dezembro de 2017, a mandataria da Autora, enviou novas comunicações, desta feita em registo simples, cuja copias estão juntas como Doc. Nº10, 11, 12 e 13, as quais foram recebidas pelos RR. (Cf. Doc. Nº14 e 15);
- O 2º. R. exerce a sua actividade de empresário turístico na Ilha do Sal em Cabo Verde, sendo que a representante legal da R. vive com o 2.º R. em união de facto, tendo também em loja na Ilha do sal em Cabo Verde, os quais deslocam-se a Portugal com frequência ao longo do ano, e quando o fazem ficam alojados no imóvel em causa nos autos; e
- AL…, representante legal da A. autorizou os RR. a pagar a renda a partir de, pelo menos, Agosto de 2015, até ao dia 20 de cada mês.
Vejamos:
Na decisão recorrida lê-se, a respeito, o seguinte: “Como resulta da factualidade provada, entre as partes foi celebrado um contrato de arrendamento em outubro de 2012. A A, outorgou o contrato como senhoria, a 1.ª R. como arrendatária e o segundo R. como fiador. Ainda que o 2.ºR. fiador habite o locado, o certo é que o mesmo constitui igualmente sede da R., sendo, por isso arrendatária, tendo assim que ver com arrendamento e tendo a fruição do locado, ao contrário do afirmado pelos RR na contestação. A causa de pedir nos presentes autos funda-se no não pagamento da renda no montante e no prazo convencionados no contrato e que atentos os valores em dívida legitimam a A. a requerer a resolução do contrato com o consequente despejo, além do pagamento das quantias em dívida a título de renda. Alega a A. que em outubro de 2016, a renda foi actualizada para a quantia mensal de 2.400,00€ (dois mil e quatrocentos euros), não tendo a Ré procedido ao pagamento em conformidade, mantendo-se a pagar, fora do prazo estipulado, a renda mensal de 2.000,00€, o que fez entre outubro de 2015 e novembro de 2017. Assim, no que respeita ao período de outubro de 2015 a setembro de 2016, a Ré deveria ter pago, a título de rendas, a importância total de 26.400,00€ (vinte e seis mil e quatrocentos euros). E apenas pagou a quantia de 24.000,00€, quedando-se em divida com a importância de 2.400,00€ (dois mil e quatrocentos euros). Por seu turno, no período entre outubro de 2016 e setembro de 2017, a Ré teria que proceder ao pagamento da quantia total de 28.800,00€ e só pagou 24.000,00€, ficando em divida a importância de 4.800,00€ (quatro mil e oitocentos euros). Em novembro de 2017, a Ré começou a fazer pagamentos mensais no valor de 2.200,00€, pagamentos que mantem até à presente data. E isto quando bem sabia, que a renda devida era no valor de 2.400,00€, fruto da atualização ocorrida em outubro de 2016 e constante do contrato de arrendamento. Desde outubro de 2017 até à presente data, a Ré apenas pagou 26.000,00€, quando deveria ter liquidado a título de rendas a importância de 28.800,00€, ficando em divida e importância de 2.800,00€. Em face dos pagamentos não correspondentes com as rendas convencionadas, o que sucessivamente originava rendas não integralmente pagas, os pagamentos realizados pela Ré foram imputados às rendas mais antigas em divida. Pelo que, à presente data, encontram-se em divida as rendas relativas aos meses de maio(parcialmente), junho, julho, agosto e setembro de 2018, cujo montante ascende a 10.000,00€ (dez mil euros). A Ré não procedeu ao pagamento das rendas no dia do seu vencimento, nem nos oito dias seguintes a contar da data do começo da mora, relativamente a cada uma das indicadas rendas, nem o fez posteriormente. Deste modo alega que, encontrando-se em falta o pagamento de mais de três rendas, tornou-se inexigível à Autora a manutenção do contrato de arrendamento, assistindo-lhe, nessa medida, o direito à sua resolução, nos termos do estatuído no art. 1083º, nº3, do Código Civil. Bem como, é inexigível ao senhorio a manutenção do contrato de arrendamento o caso de o arrendatário se constituir em mora superior a oito dias, no pagamento da renda, por mais de quatro vezes, seguidas ou interpoladas, num período de 12 meses (vide nº 4 do art. 1083º do CC). Em contrapartida vêm os RR invocar que não procederam ao pagamento dos montantes decorrentes das actualizações previstas no contrato porque assim foi acordado oralmente com o representante legal da A. quando se aproximou o mês de setembro de 2015, no stand “Auda” do 2.º R., ficando sem efeito as cláusulas relativas à actualização da renda a partir de 2015, ficando apenas de pé as actualizações normais, e que o pagamento tem ocorrido em data diferente da constante do contrato porque assim o pediu a A.. Vejamos: O contrato de arrendamento é uma espécie de contrato de locação que o art.º 1022.º do Código Civil (CC) define como «o contrato pelo qual uma das partes se obriga a proporcionar à outra o gozo temporário de uma coisa, mediante retribuição». Precisamente, nos termos do art.º 1023.º do CC, a locação diz-se arrendamento sempre que o objecto do contrato seja coisa imóvel. Assim, de acordo com o estabelecido no art.º 1022º do CC, são elementos caracterizadores, essenciais do contrato de arrendamento enquanto espécie de contrato de locação: a) A obrigação de uma das partes proporcionar ou conceder à outra o gozo de uma coisa imóvel, b) Que esse gozo seja temporário, c) Que a cedência do gozo tenha como contrapartida uma retribuição. Encontramo-nos perante um contrato bilateral ou sinalagmático, na medida em que às obrigações do locador de entregar ao locatário a coisa locada e de lhe assegurar o gozo desta para os fins a que a mesma se destina (art.º 1031.º do CC), corresponde a obrigação do locatário de pagar a renda (art.º 1038.º, al. a) do CC). As obrigações em causa, constituindo um vínculo jurídico pelo qual as partes ficam adstritas, entre si, à realização de uma prestação (art.º 397.º do CC), estão sujeitas à liberdade contratual, podendo as partes fixar livremente, dentro dos limites da lei, o seu conteúdo (art.ºs 398.º, n.º 1 e 405.º, n.º 1 do CC). No caso do contrato de arrendamento, as prestações caracterizam-se como duradouras, uma vez que a sua “execução se prolonga no tempo, em virtude de terem por conteúdo ou um comportamento prolongado no tempo ou uma repetição sucessiva de prestações isoladas por um período de tempo.” – Menezes Leitão, in Direito das Obrigações, Vol. I, 6ª Ed., Almedina, 2007, pág. 135. Relativamente ao locador, a sua prestação caracteriza-se, ainda, como uma prestação duradoura continuada, na medida em que a sua execução não sofre interrupção – a disponibilidade do locado é ininterrupta. Já no que concerne ao locatário, a respectiva prestação tem-se como duradoura periódica, na medida em que a mesma é sucessivamente repetida em certos períodos de tempo. Por sua vez, determina o art.º 1083.º, n.º 1 do CC, que o senhorio pode resolver o contrato de arrendamento com fundamento no incumprimento das obrigações do arrendatário. A resolução traduz-se na destruição da relação contratual validamente constituída, operada por um dos contraentes, com base num facto posterior à celebração do contrato, sendo equiparada, na falta de disposição especial, quanto aos seus efeitos, à nulidade ou anulabilidade do negócio jurídico - art.º 433.º do CC, não abrangendo a resolução, no caso do arrendamento, as prestações já efectuadas, pois sendo o arrendamento um contrato de execução continuada, é-lhe aplicável o disposto no art.º 434.º, n.º2, do CC, o qual prescreve que, neste tipo de contratos, a resolução não abrange as prestações já realizadas, salvo se entre estas e a causa de resolução existir um vínculo que legitime a resolução de todas elas. No entanto, não é todo e qualquer incumprimento das obrigações do arrendatário que fundamenta a resolução, exigindo-se que esse incumprimento, pela sua gravidade ou consequências, torne inexigível ao senhorio a manutenção do arrendamento – primeira parte do art.º 1083º, n.º2, do citado diploma. Sendo que, nos termos do art.º 1083.º, n.º 3 do CC, «é inexigível ao senhorio a manutenção do arrendamento em caso de mora igual ou superior a dois meses no pagamento da renda». E nos termos do n.º4 “É ainda inexigível ao senhorio a manutenção do arrendamento no caso de o arrendatário se constituir em mora superior oito dias, por mais de quatro vezes seguidas ou interpoladas, num período de 12 meses, com referência a cada contrato, não sendo aplicável o disposto nos n.ºs 3 e 4 do artigo seguinte.” Ainda nos termos do art.º 1084.º, n.º 2 do CC, «a resolução pelo senhorio quando fundada em causa prevista nos n.ºs 3 e 4 do artigo anterior bem como a resolução pelo arrendatário operam por comunicação à contraparte onde fundamentadamente se invoque a obrigação incumprida». O não pagamento da renda ou dos encargos constitui uma infracção grave praticada pelo arrendatário, que põe em causa o nexo sinalagmático que caracteriza o contrato de arrendamento, podendo o senhorio resolver o contrato. Com o Novo Regime de Arrendamento Urbano (Lei nº 6/2006, de 27 de Fevereiro e da Lei 31/2012 de 14-08) a resolução do contrato quando esteja em causa a falta de pagamento de rendas, tanto pode ser feita judicial, como pode operar extrajudicialmente, por comunicação à contraparte (artigos 1047º e 1084º, nº1, do Código Civil), devendo esta obedecer aos requisitos do artigo 9º, nº 7 do NRAU. Caso o senhorio intente acção declarativa, com vista à resolução do contrato, determina o artigo 1084º, nº3, do Código Civil que: “ o direito à resolução do contrato por falta de pagamento da renda ou aluguer caduca logo que o locatário, até à contestação da acção declarativa (...) pague ou deposite as somas devidas e a indemnização no artigo 1041º”. Nos termos do artigo 1081º, nº1 a cessação do contrato tem por efeito tornar imediatamente exigível, salvo se outro for o momento legalmente fixado ou acordado pelas partes, a desocupação do local e a sua entrega. No caso específico do pagamento das rendas, a resolução ficará sem efeito se o arrendatário pagar até ao termo do prazo previsto para a contestação da acção declarativa ou para oposição à execução, acrescido de uma indemnização no valor de 50% desse valor. Se a questão estiver a correr em tribunal, o arrendatário só poderá usar esta faculdade de pagamento uma única vez, tanto para rendas como para encargos e despesas. No caso dos autos é certo que os RR não procederam ao pagamento da renda nos montantes decorrentes das actualizações previstas no contrato e nas datas previstas no mesmo. Porém, no que respeita aos montantes que deveriam ter pago até Outubro de 2017, tal como o representante legal da A. afirmou, não exigiu o pagamento dos montantes em falta na expectativa de aquisição do imóvel pelos RR., o que não veio a ocorrer. Por isso, veio a exigir pagamento dos montantes em falta, após essa data. Todavia, não se provou que a A. tivesse abdicado desses montantes, apenas não os exigiria se fosse adquirido o imóvel pela R., o que não veio a ocorrer. Ademais, não se provou qualquer acordo entre as partes no sentido de que as actualizações ficariam definitivamente sem efeito. Destarte, não foi levado a escrito qualquer acordo nesse sentido, sendo certo que o contrato de arrendamento está sujeito à forma escrita (art.º 1069.º, do CC) e para estipulações relativas ao montante de renda as razões da exigência especial de forma são-lhe aplicáveis (art.º 221.º, n.º2, do CC). De todo o modo, sempre teria que improceder a pretensão dos RR. por falta de prova do acordo oral entre as partes de que as actualizações previstas no contrato ficariam sem efeito, sendo apenas devidas as actualizações legais. Ora, segundo o disposto na al. a) do art. 1038.º do Código Civil, é obrigação do arrendatário pagar a renda, pelo que ao actuar da forma descrita a Ré não procedeu ao cumprimento pontual da principal obrigação a que se comprometeram ao celebrar o contrato de arrendamento, nos termos do n.º 1 do art. 406.º do Código Civil, tendo, consequentemente, entrada em mora relativamente a todas as rendas supra referidas a partir da data do seu vencimento (art. 804.º/2 e 805.º/2, al. a), ambos do Código Civil). Quanto ao facto das rendas terem vindo a ser pagas fora da data acordada para esse pagamento, como decorre dos factos provados, nisso consentiu o representante legal da A., pelo que nenhumas consequências decorrentes desses atrasos poderão advir para os RR., sendo certo até que os pagamentos fora da data prevista no contrato já vinham ocorrendo em data anterior à alegada pela A. na PI (dezembro de 2016), como decorre do facto provado 77 e das datas em que as rendas foram pagas mencionadas nos factos provados 17 a 32, não tendo sido objecto de reclamação da A. Porém, basta para a procedência da pretensão da A. o não pagamento das rendas nos montantes acordados, o que ocorreu desde a data em que estava prevista a atualização no contrato. Tendo presente os montantes em dívida em causa, os mesmos são superiores ao correspondente a duas rendas em dívida, pelo que não podemos deixar de considerar que deve proceder a resolução do contrato. Constituindo a resolução uma causa de cessação do contrato de arrendamento, de acordo com o disposto no art. 1079.º do Código Civil, tem como consequência natural a constituição na esfera do arrendatário da obrigação de desocupação e entrega do imóvel arrendado, nos termos do disposto no n.º 1 do art. 1081.º e no art. 1087.º, ambos do Código Civil”
Ora, nenhuma das considerações expendidas na decisão recorrida merece qualquer censura.
Com efeito, dispõe o mencionado artigo 1083.º do CC (na redação em vigor à data dos factos, dada pela Lei n.º 43/2017, de 14 de Junho) que: “1 - Qualquer das partes pode resolver o contrato, nos termos gerais de direito, com base em incumprimento pela outra parte. 2 - É fundamento de resolução o incumprimento que, pela sua gravidade ou consequências, torne inexigível à outra parte a manutenção do arrendamento, designadamente quanto à resolução pelo senhorio: a) A violação de regras de higiene, de sossego, de boa vizinhança ou de normas constantes do regulamento do condomínio; b) A utilização do prédio contrária à lei, aos bons costumes ou à ordem pública; c) O uso do prédio para fim diverso daquele a que se destina, ainda que a alteração do uso não implique maior desgaste ou desvalorização para o prédio; d) O não uso do locado por mais de um ano, salvo nos casos previstos no n.º 2 do artigo 1072.º; e) A cessão, total ou parcial, temporária ou permanente e onerosa ou gratuita, do gozo do prédio, quando ilícita, inválida ou ineficaz perante o senhorio. 3 - É inexigível ao senhorio a manutenção do arrendamento em caso de mora igual ou superior a três meses no pagamento da renda, encargos ou despesas que corram por conta do arrendatário ou de oposição por este à realização de obra ordenada por autoridade pública, sem prejuízo do disposto nos n.os 3 a 5 do artigo seguinte. 4 - É ainda inexigível ao senhorio a manutenção do arrendamento no caso de o arrendatário se constituir em mora superior a oito dias, no pagamento da renda, por mais de quatro vezes, seguidas ou interpoladas, num período de 12 meses, com referência a cada contrato, não sendo aplicável o disposto nos n.os 3 e 4 do artigo seguinte. 5 - É fundamento de resolução pelo arrendatário, designadamente, a não realização pelo senhorio de obras que a este caibam, quando tal omissão comprometa a habitabilidade do locado e, em geral, a aptidão deste para o uso previsto no contrato”.
Com a publicação do RAU, em 2006, passou a prever-se uma enumeração não taxativa das causas de resolução do arrendamento, sendo que, “para além das causas expressamente enumeradas nas alíneas do n.º 2 deste artigo, pode constituir fundamento de resolução, qualquer outra situação de incumprimento contratual do arrendatário que seja grave ou que, embora não sendo, tenha consequências negativas para o locado ou para o locador, e que por isso torne inexigível ao senhorio a manutenção do contrato de arrendamento” (assim, Soares Machado e Regine Santos Pereira; Arrendamento Urbano (NRAU); 3.ª ed., Petrony, 2014, p. 142).
O incumprimento do arrendatário reportar-se-á não apenas às obrigações estatuídas no artigo 1038.º do CC, mas também a quaisquer obrigações estabelecidas pelas partes o contrato.
A lei considera inexigível ao senhorio a manutenção do arrendamento em caso de mora no pagamento da renda (ou de encargos ou despesas que corram por conta do arrendatário ou de oposição por este à realização de obra ordenada por autoridade pública), igual ou superior a três meses, sem de o arrendatário purgar a mora nos termos dos n.ºs 3 a 5 do artigo 1084.º do CC.
Para além disso, considera-se ainda inexigível ao senhorio a manutenção do arrendamento no caso de o arrendatário se constituir em mora superior a oito dias, no pagamento da renda, por mais de 4 vezes, seguidas ou interpoladas, num período de 12 meses, com referência a cada contrato (sendo que, neste caso não terá lugar a possibilidade de purgação da mora, nos termos dos n.ºs. 3 e 4 do artigo 1084.º do CC).
O locatário incorre em mora sempre que não cumpra pontualmente a obrigação de pagar a renda, pelo montante total, no dia do vencimento e no lugar de pagamento. “O pagamento parcial equivale, para todos os efeitos, ao incumprimento da obrigação de pagar a renda” (assim, Soares Machado e Regine Santos Pereira; Arrendamento Urbano (NRAU); 3.ª ed., Petrony, 2014, p. 145).
Importa ainda evidenciar que, “a falta de pagamento de rendas enquanto fundamento de resolução do contrato passou a estar delineada no regime do NRAU de 2006 com um requisito adicional: a mora tinha de durar há mais de três meses. Com o NRAU de 2012, passa a ser de dois meses. Deve sublinhar-se, no entanto, que não é forçoso que haja duas (ou mais) rendas em falta. Não é isso que a lei impõe, mas sim que haja mora há mais de dois meses: assim, pode haver apenas uma renda em falta, mas o que é necessário para que a resolução seja possível é que essa falta, de uma ou mais rendas, se verifique há mais de dois meses a contar da data de vencimento da que se tenha vencido há mais tempo” (cfr. Soares Machado e Regine Santos Pereira; Arrendamento Urbano (NRAU); 3.ª ed., Petrony, 2014, p. 147).
Ora, no caso dos autos, os réus não pagaram a renda nos montantes decorrentes das actualizações previstas no contrato e nas datas previstas no mesmo, não se tendo apurado qualquer acordo no sentido de que as mesmas ficariam sem efeito.
Não purgaram a mora como o poderiam ter feito, pelo que, a manutenção da situação de não pagamento, pelo tempo em que ocorreu, superior ao tempo previsto no n.º 3, do artigo 1083.º do CC, determina a inexigibilidade da manutenção do arrendamento e, nesta medida, constitui legítima causa de resolução do arrendamento.
Os recorrentes consideram, todavia, que a situação não é de tal modo grave que justifique a resolução.
Ora, certo é que, como se disse, a não realização integral do valor da renda devida equivale a uma situação de incumprimento integral da obrigação de pagamento da renda.
Diga-se que, da circunstância de nenhuma das partes ter promovido – previamente à pretensão de resolução do contrato – a apreciação da questão atinente a eventual divergência (invocada pelos recorrentes) sobre a exigibilidade ou não da actualização da renda, não decorre, como é claro, qualquer consequência, dado que, precisamente, não teve lugar tal pretensão.
Por outro lado, conforme se entendeu no Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa de 24-04-2019 (Processo 1901/18.5YLPRT.L1-2, rel. GABRIELA CUNHA RODRIGUES), a que se adere, “a mora é suficiente como fundamento de despejo, considerando-se inexigível a manutenção do arrendamento sem necessidade de uma autónoma ponderação sobre a sua gravidade ou as suas consequências, a não ser em situações‑limite submetidas ao controlo do abuso do direito”.
No caso, não se vislumbra que, da determinação de inexigibilidade de manutenção da relação jurídica de arrendamento, em razão do não pagamento das rendas devidas pelos réus, decorra que a lei aplicável é interpretada de forma “mecânica ou computorizada”.
Na realidade, não pode olvidar-se que, “o contrato de arrendamento é um contrato oneroso: sobre o locatário recai a obrigação, traduzida em prestações periódicas, de pagar a renda, como contrapartida pela entrega e pelo gozo da coisa locada que o locador lhe deve assegurar. Sendo de prazo certo a obrigação do pagamento da renda, incumbe ao locatário proceder ao seu pagamento no respectivo prazo de vencimento; o não pagamento da renda no prazo de vencimento fá-lo incorrer em mora, independentemente de interpelação. A resolução do contrato de arrendamento depende do preenchimento dos requisitos previstos no n.º 2 do artigo 1083.º do Código Civil, sendo fundamento de resolução o incumprimento que, pela sua gravidade ou consequências, torne inexigível à outra parte a manutenção do arrendamento. A verificação de uma situação de inadimplência enquadrável no n.º 3 do referido normativo basta para, por si só, tornar inexigível para o locador a manutenção do arrendamento: ocorre mora relevante para efeitos de resolução do contrato de arrendamento por parte do locador se o locatário retardar o pagamento de uma renda, ou de parte dela, mantendo-se o atraso por três ou mais meses” (assim, o Acórdão do Tribunal da Relação do Porto de 22-05-2019, Processo 2913/17.1T8MTS.P1, rel. JUDITE PIRES).
Não se afigura que, de facto, o Direito tutele a pretensão dos réus, no sentido de que ocorreu situação de “força maior” relativamente ao cumprimento da obrigação.
Se os réus tinham dúvidas fundadas sobre o valor da renda devida, sempre poderiam ter colocado tal questão em apreciação no âmbito da acção judicial que, com tal objecto, apresentassem e, até lá, porventura, sempre poderiam proceder à entrega condicional – precisamente sujeita à apreciação do Tribunal – dos valores da renda, por exemplo, mediante a utilização do mecanismo da consignação em depósito (cfr. artigos 841.º e ss. do CC e artigos 916.º e ss. do CPC).
Por outro lado, não evidenciam os autos a ocorrência de algum “lapso do arrendatário” na satisfação do valor da renda, sendo que, pelo contrário, o que foi invocado pelos réus foi que ocorreu um acordo no sentido de não serem devidas as actualização de renda contratualmente estipuladas, sucedendo, todavia, que não lograram provar uma tal alegação.
Do mesmo modo, não dão conta os factos provados que tenha ocorrido alguma das outras situações invocadas pelos réus (“casos em que o senhorio e inquilino divergem a certa altura sobre qualquer aspecto de pagamento da renda” e “situações em que o arrendatário recusa o pagamento”).
Assim, não se vislumbra que a decisão recorrida tenha, de algum modo, violado o disposto no citado artigo 1083.º do CC, improcedendo o alegado pelos recorrentes a este respeito.
* B) Se a decisão recorrida violou o disposto no artigo 334.º do CC?
Invocam ainda os apelantes que: “4. O exame dos autos mostra, à evidência, que tudo correu bem entre as partes enquanto não surgiu um facto que estragou esse bom convívio. Até aí, os apelados, convencidos de que assim tinham acordado com o gerente da apelada, pagaram a renda inicial, face à crise que, repentinamente, caiu sobre os países e as suas economias e arrasou bancos, impérios financeiros e, por arrastamento, os médios e pequenos empresários. A apelada nada mencionou, nada reclamou, nada disse. Quando a amizade estremeceu, como se refere na fundamentação da decisão da matéria de facto por causa do assédio do gerente da apelada à empregada de confiança da apelante, a apelada (ou seja, o seu gerente) não gostou de ser criticado, aborreceu-se e passou a exigir o cumprimento do contrato escrito, negando qualquer acordo posterior. Segundo o Sr. A… (o dito gerente) disse expressamente e consta do seu depoimento, reproduzido na douta sentença, “ficou chateado” e actuou em conformidade. O que nos leva à questão, de conhecimento oficioso, do abuso de direito. De facto, o disposto nas disposições citadas só se entende na medida em que defende o interesse do senhorio a receber a contrapartida da cedência do uso da sua propriedade. Mas, nem o direito de propriedade foge completamente ao campo do interesse público, nem, sobretudo, serve para exercer retaliações, para desalojar pessoas ou famílias com fundamentos que só o tribunal pôde decidir se eram verídicos ou, em geral, para obter benefícios desligados de qualquer interesse objectivo (a apelada, se despejar os apelantes, irá arrendar a fracção a outros interessados, não tendo, sequer, informado os apelantes sobre a renda que pretenderia e que não será muito diferente da que já recebe) (…). Ora, nos termos do artº. 334º. CC, “é ilegítimo o exercício de um direito quando o titular exceda, manifestamente, os limites impostos pela boa fé, pelos bons costumes e pelo fim social ou económico desse direito. E é abusivo que a apelada aproveite uma questão controversa, respeitante a menos de 10% do valor da renda, para exigir o despejo da casa da morada de família do 2º. Apelante, sem que se veja qual o interesse pessoal ou social de tal despejo, até porque os apelantes passarão a pagar a totalidade da renda pretendida pela apelada, uma vez que, nessa parte, obtiveram ganho de causa, reconhecendo os apelantes que a situação ficou, definitivamente, esclarecida. Esclarecido o valor da renda que os apelantes vão ter de pagar, relativamente ao passado e ao futuro, não se vê onde estará, para a apelada, a inexigibilidade da manutenção da relação contratual existente, sendo contrário à boa fé, aos bons costumes e ao fim particular, económico e social do direito da senhoria conceder-lhe o poder de despejar a inquilina apenas por “ter-se chateado” o gerente da senhoria. 5. Os apelantes estavam, desde o início, advertidos para o facto de, fosse qual fosse o resultado do processo, a apelada poder, em 2022, decidir não renovar o contrato, pelo que o eventual êxito da contestação poderia sempre ser de curta duração. Mas os apelantes tinham e mantêm a esperança de que, com o andar dos tempos, o desejo de vingança do gerente da apelada esmoreça e que, atendendo ao interesse objectivo que tem na manutenção do rendimento, sem interrupções, comissões de intermediários e mais incómodos, se decida a renovar o arrendamento, com os acertos que, na altura, o mercado aconselhar”.
Concluiram que: “H) Age a apelada com abuso de direito, nos termos do artº. 334º. CC, ao aproveitar o diferendo surgido, e só agora resolvido, para obter o despejo do locado”.
Será assim?
Preliminarmente importa apreciar, antes de mais, se é admissível a invocação de tal questão pela recorrente, nesta sede de recurso.
É que, conforme resulta da conjugação do disposto no artigo 663.º, n.º 2, do CPC, com o previsto no artigo 608.º, n.º 2, do mesmo Código, no presente recurso, este Tribunal conhece de todas as questões suscitadas, excetuadas aquelas cuja decisão esteja prejudicada pela solução dada a outras.
Por outro lado, atenta a sua função no âmbito do conhecimento dos recursos e sob pena de conhecer, em primeira linha, de questões antes não suscitadas no Tribunal de 1.ª instância, ao Tribunal de recurso apenas cumpre conhecer das questões suscitadas e daquelas que, não o tendo sido, sejam de conhecimento oficioso.
O tribunal de recurso não pode ser chamado a pronunciar-se sobre matéria que não foi alegada pelas partes na instância recorrida ou sobre pedidos que não hajam sido formulados.
Os recursos são meios de impugnação de decisões judiciais – e não meios de julgamento de julgamento de questões novas (cfr., entre outros, o acórdão do STJ de 14-05-93, in CJSTJ, 93, II, p. 62 e o acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa de 02-11-95, in CJ, 95, V, p. 98).
Assim, ressalvada a possibilidade de apreciação, em qualquer grau de recurso, da matéria de conhecimento oficioso (cfr. Ac. STJ de 23-03-96, in CJ, 96, II, p. 86), encontra-se excluída a possibilidade de alegação de factos novos na instância de recurso. “A função do recurso ordinário é, no nosso direito, a reapreciação da decisão recorrida e não um novo julgamento da causa, pelo que o tribunal ad quem não pode ser chamado a pronunciar-se sobre matéria que não foi alegada pelas partes na instância recorrida ou sobre pedidos que não hajam sido formulados” (assim, o Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra de 06-11-2012, Processo 169487/08.3YIPRT-A.C1, relator HENRIQUE ANTUNES).
É que, de facto, “os recursos são meios de modificar decisões e não de criar decisões sobre matéria nova, não submetida ao exame do tribunal de que se recorre, visando, assim, um reestudo das questões já vistas e resolvidas pelo tribunal recorrido e não a pronúncia sobre questões novas” (assim, o Acórdão do Tribunal da Relação do Porto de 29-04-2019, Processo 10776/15.5T8PRT.P1, rel. MANUEL DOMINGOS FERNANDES).
Contudo, a questão em apreço, atinente à invocação de abuso de direito pela autora no exercício da pretensão de resolução do contrato, constitui matéria de que o Tribunal deve oficiosamente conhecer, o que tem sido uniformemente entendido pela jurisprudência. “O abuso do direito é de conhecimento oficioso, pelo que deve ser objecto de apreciação e decisão, ainda que não invocado” (cfr. Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 11-12-2012, Processo 116/07.2TBMCN.P1.S1, rel. FERNANDES DO VALE).
Em semelhante sentido, entre outros, vd. o Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 04-04-2002 (Processo 02B749, rel. ARAÚJO DE BARROS) e o Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 12-07-2018 (Processo 2069/14.1T8PRT.P1.S1, rel. ROSA RIBEIRO COELHO).
No Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães de 28-02-2019 (Processo 248015/09.2YIPRT.G1, rel. PURIFICAÇÃO CARVALHO) entendeu-se, porém, que: “A apreciação e decisão quanto à existência de abuso do direito não depende de expressa invocação pelas partes, por se tratar de questão de direito (art. 664.º, 1.ª parte do CPC) e de matéria de interesse e ordem pública, sendo, pois, permitido o seu conhecimento oficioso. Todavia, a pronúncia oficiosa sobre tal matéria pressupõe que ao tribunal se deparem factos que manifestamente apontem para a verificação de um ilegítimo exercício do direito acionado, ou seja, não tendo a questão do abuso do direito sido suscitada pelas partes, apenas se imporá ponderar quando a matéria de facto revele a necessidade de convocar os limites impostos pela boa fé, pelos bons costumes ou pelo fim económico ou social, em ordem a determinar se o titular do direito o vem exercer, excedendo manifestamente tais limites, em clamorosa ofensa do sentimento jurídico socialmente dominante”.
Vejamos, pois, se ocorreu o exercício abusivo de direito pela autora.
Dispõe o artigo 334º do CC que: “É ilegítimo o exercício de um direito, quando o titular exceda manifestamente os limites impostos pela boa-fé, pelos bons costumes ou pelo fim social ou económico desse direito.”
Comentando o referido preceito legal refere Almeida Costa (Direito das Obrigações; 5ª Ed., 1991, p. 65) o seguinte: “Como se verifica, o nosso legislador aceitou a concepção objectiva do abuso de direito. Não é preciso que o agente tenha consciência da contrariedade do seu acto à boa fé, aos bons costumes ou ao fim social ou económico do direito exercido. Basta que na realidade esse acto se mostre contrário. Exige-se, todavia, um abuso nítido: o titular do direito deve ter excedido manifestamente esses limites impostos ao seu exercício. A lei refere-se ao exercício de direitos - o caso paradigmático de actuação do instituto. A sua letra, portanto, não abrange imediatamente quaisquer hipóteses de inércia ou omissão de exercício que possam também considerar-se abusivas. Mas parece que isso não deve constituir obstáculo insuperável, contanto que se encontrem soluções do segundo tipo clamorosamente ofensivas da boa fé, dos bons costumes ou do fim social e económico do direito (...)”.
Menezes Cordeiro (Da Boa-Fé no Direito Civil, 1997, pp. 717-718) sustenta que o artigo 334º do CC é o resultado codificado de uma série de regulações típicas de comportamentos abusivos, apreciados pela doutrina germânica.
Abordando de forma detalhada e completa o instituto do abuso de direito o mesmo Autor (no Tratado de Direito Civil Português; Vol. I, Almedina, Coimbra, 1999, pp. 199 a 213) enuncia seis tipos característicos em que se pode manifestar o «abuso de direito», a saber:
- A “exceptio doli” (que permitia no Direito Romano deter uma posição jurídica do adversário, num caso, invocando o defendente a prática, pelo autor, de dolo no momento da formação da situação jurídica levada a juízo e, noutro, contrapondo o defendente o incurso do autor em dolo no próprio momento da discussão da causa);
- O “venire contra factum proprium” (ablação do brocardo latino “venire contra factum proprium nulli concidetur”, significando, que a ninguém é permitido agir contra o seu próprio acto, expressando a reprovação social e moral que recai sobre aquele que assume comportamentos contraditórios);
- As “inalegabilidades formais” (consistente na alegação, em contradição com a boa fé, de nulidade derivada da inobservância da forma prescrita por lei para certos negócios);--
- A “supressio” (posição jurídica que não tendo sido exercida durante certo tempo, não mais o pode ser, pois, tal exercício atenta contra a boa fé) e a surrectio (caso em que uma pessoa vê surgir na sua esfera jurídica, por força da boa fé, uma possibilidade que, de outro modo, não lhe assistiria);
- O “tu quoque” (expressão que visa cobrir os casos em que aquele que viole uma norma jurídica não pode tirar partida do violação exigindo, a outrem, o acatamento das consequências daí resultantes); e
- O “desequilíbrio no exercício” (ou seja, aquelas situações em que ocorre desiquilíbrio no exercício de várias posições jurídicas, nos diversos casos em que tal desiquilíbrio se pode manifestar: exercício danoso inútil; dolo agit qui petita quod statim redditurus est; e a desproporcionalidade).
O abuso do direito pressupõe a existência do direito (direito subjectivo ou mero poder legal), embora o titular se exceda no exercício dos seus poderes. A nota típica do abuso do direito reside, por conseguinte, na utilização do poder contido na estrutura do direito para a prossecução de um interesse que exorbita do fim próprio do direito ou do contexto onde ele deve ser exercido (cfr. Castanheira Neves, Questão de Facto, Questão de Direito, I-513 e sgs.; Cunha de Sá, Abuso do Direito, Lisboa, 1973-451 e sgs.; A. Varela, Abuso do Direito, Rio de Janeiro, 1982 e Código Civil Anotado, vol. I, 3ª ed., anot. ao art. 334 CC; e Galvão Telles, Direito das Obrigações, 3ª ed., p. 6).
O abuso do direito exige a alegação e prova de circunstâncias excepcionais relativas ao seu exercício, cujo ónus cabe ao demandado (arts. 334.º e 342.º CC).
O abuso de direito tem todas as consequências de um acto ilegítimo: Pode dar lugar à obrigação de indemnizar, à nulidade nos termos gerais do art. 294.º do C.C., à legitimidade de oposição, ao alongamento de um prazo de prescrição ou de caducidade (cfr. Vaz Serra, in Revista de Legislação e Jurisprudência, ano 107.º, p. 25).
Antunes Varela sublinha que a condenação por abuso de direito “aponta de modo inequívoco para as situações concretas em que é clamorosa, sensível, evidente a divergência entre o resultado de aplicação do direito subjectivo, de carga essencialmente formal, e alguns valores impostos pela ordem jurídica para a generalidade dos direitos ou, pelo menos, de direitos de certo tipo”, acrescentando que, a solução do art. 334º do Código Civil só aponta para os casos de contradição manifesta (in R.L.J., Ano 128º, pág. 241).
Por seu turno, Castanheira Neves configura o abuso de direito como um limite normativamente imanente ou interno dos direitos subjectivos, pelo que no comportamento abusivo são os próprios limites normativos-jurídicos do direito particular que são ultrapassados (Questão-de-facto-questão-de-direito, pág. 526, nota 46).
Segundo Coutinho de Abreu, “há abuso de direito quando um comportamento, aparentando ser exercício de um direito, se traduz na não realização dos interesses pessoais de que esse direito é instrumento e na negação de interesses sensíveis de outrem” (Do Abuso de Direito, Almedina, Coimbra, 1999, p. 43).
Para Baptista Machado, o juiz tem de decidir primeiro a questão de saber se o direito invocado existe ou não e só no caso de concluir pela sua existência (não o caso inverso) lhe é lícito apreciar o exercício abusivo do mesmo direito (in Parecer publicado na C. J., Ano IX, Tomo 2, p. 17).
No caso, a imputação do abuso de direito pelos apelantes faz-se relativamente à exigência resolutiva quando, no entender dos apelantes, se encontra incumprido o pagamento de renda correspondente a “menos de 10% do valor da renda”, aproveitando a autora a “existência de diferendo sobre o valor da renda”, para exigir o despejo da casa da morada de família do 2º. Apelante, “sem que se veja qual o interesse pessoal ou social de tal despejo, até porque os apelantes passarão a pagar a totalidade da renda pretendida pela apelada, uma vez que, nessa parte, obtiveram ganho de causa, reconhecendo os apelantes que a situação ficou, definitivamente, esclarecida”.
Alguma doutrina rejeita a possibilidade de consideração de uma conduta abusiva relativamente a direitos potestativos, como é o caso do exercício do direito de resolução contratual (cfr. sobre o tema, Coutinho de Abreu, ob. Cit., pp. 71 a 73).
Todavia, em construções doutrinárias mais recentes, tem-se admitido a possibilidade de fazer intervir o instituto do abuso de direito, não apenas na fase pré-contratual ou de execução contratual, mas também, na fase «patológica» do contrato. Tem-se invocado, nesta última perspectiva, que “extinguir um contrato é um direito reconhecido pelo ordenamento jurídico, expressa e implicitamente, mas utilizar-se de uma prerrogativa legal com o escopo de atingir objectivos egoísticos e ilícitos, simplesmente prejudicar a contraparte, obrigá-la a praticar determinadas condutas que, sob os prismas da eticidade, moralidade e da justiça contratual, não são legítimos; ou mesmo o escopo de causar prejuízo à coletividade, evidencia o desvio havido em um direito reconhecido pela ordem jurídica, tornando-o irregular, abusivo e, portanto, ilícito” (cfr. Renata Cristina Obici; Relativização do Direito Potestativo Extintivo à Luz da Teoria do Abuso do Direito; Curitiba, Centro Universtiário de Curitiba, Brasil, 2008, p. 137, tese também disponível no endereço http://tede.unicuritiba.edu.br/dissertacoes/RenataCristinaObici.pdf).
Importa, contudo, referir que, ao contrário do invocado pelos recorrentes, não se vê que da condenação dos réus no pagamento das rendas em falta decorra que se torne inútil, de algum modo, a pretensão de despejo da arrendatária do locado.
Uma e outra consequências da resolução são cumuláveis entre si, nos termos legalmente previstos, sem que se possa considerar que, recebendo o senhorio o pagamento das rendas em falta - e pelas quais fundamentou a pretensão de despejo -, perdeu interesse ou não tem já pertinência, a pretensão de efectivação do despejo.
No âmbito de uma relação de arrendamento urbano e, especificamente sobre a pretensão de despejo com base na falta de pagamento de rendas, já se entendeu que o exercício da correspondente demanda pode, em certas circunstâncias, configurar abuso de direito.
Assim sucedeu, por exemplo, nas situações dos seguintes arestos:
- Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 21-11-2019 (Processo 1668/17.4T8PVZ.P1.S1, rel. BERNARDO DOMINGOS), considerando-se que: “O disposto no nº2 do art.º 802º do CC, constitui um afloramento do principio geral do direito de que no cumprimento da obrigação, assim como no exercício do direito correspondente, devem as partes proceder de boa fé e por isso não pode deixar de ser aplicável ao contrato de arrendamento. Sendo o incumprimento parcial, objectivamente de escassa relevância para o credor, não lhe asiste o direito de resolver o contrato com tal fundamento. Num quadro em que o inadimplemento parcial por parte do arrendatário é de montante e importância reduzida, sendo que os valores anuais da renda ultrapassam os €77.000,00 (setenta e sete mil euros), exigir a resolução do contrato de arrendamento nestas condições, excede manifestamente os ditames da boa fé e bem assim os do fim social e económico do direito, por ser manifesta a desproporção entre o exercício do direito da A. a ver resolvido o contrato de arrendamento e decretado o despejo e a quantia em dívida por parte do arrendatário. Nestas circunstâncias o exercício do direito à resolução do contrato é abusivo e consequentemente ilegítimo”;
- Acórdão do Tribunal da Relação do Porto de 10-11-2009 (Processo 456/08.3TBPFR.P1, rel. HENRIQUE ANTUNES) considerando que: “A exigência da gravidade do incumprimento, como pressuposto geral do direito de resolução do contrato, não é compatível com o fundamento de resolução do contrato de arrendamento representado pela mora no pagamento da renda, com duração superior a três meses, dado que esse fundamento constitui uma causa de inexigibilidade, ex-lege, de manutenção daquele contrato; Deve, todavia, deter-se o direito do senhorio de resolver aquele contrato, se o valor do depósito das rendas em dívida e da indemnização for inferior em apenas € 15.00 ao devido, com fundamento no abuso do direito, por desequilíbrio no exercício”.
Noutros casos, concluiu-se no sentido da inexistência de conduta abusiva do senhorio. É o caso, por exemplo, do Acórdão do Tribunal da Relação do Porto de 19-12-2012 (Processo 3351/10.2TBGDM.P1, rel. ARISTIDES RODRIGUES DE ALMEIDA): “O senhorio que pede a resolução do contrato de arrendamento e o despejo do arrendado não actua em abuso de direito, apesar de o valor das rendas em dívida que servem de fundamento à resolução ser inferior a € 15,00, quando se demonstra que o não pagamento da renda se prolonga desde há vários anos e que a inquilina não paga nenhum valor a título de renda apesar de usufruir da totalidade do arrendado e não se demonstra que a inquilina não possua condições sequer para pagar uma renda tão baixa e que ao longo do tempo o senhorio não insistiu pelo pagamento que ora reclama”.
Ora, no caso, o valor mensal que não foi pago, somando o total de rendas em falta de - € 9.800,00€ (nove mil e oitocentos euros), correspondente aos montantes não pagos decorrentes das actualizações da renda previstas no contrato já vencidas desde Outubro de 2015 até Setembro de 2018, acrescida dos montantes não pagos decorrentes da actualização da renda para o valor de €2400,00 desde Outubro de 2018 – não pode considerar-se de escassa importância.
Trata-se de um valor, quer em termos absolutos, quer tendo por referencial a economia do contrato dos autos e o valor mensal da renda devida (mesmo na proporção referenciada pelos apelantes – de 10%) que não é desprezível ou insignificante, apresentando relevo suficiente que justifica o exercício de uma pretensão resolutiva.
A autora ao demandar não atuou, pois, em abuso de direito, exercendo antes o respectivo direito dentro dos limites admissíveis.
Não se mostra, pois, violado o disposto no artigo 334.º do CC, perante o decidido pelo Tribunal recorrido.
* C) Se a decisão recorrida violou o disposto no artigo 1041.º, n.ºs. 5 e 6, do CC?
Finalmente, alegaram os apelantes ainda o seguinte: “6. No decurso do processo, foi publicada e entrou em vigor a lei nº. 13/2019, de 12/02, que alterou o regime da fiança no seio do contrato de arrendamento. Assim, a partir de 13/02/2019, o 2º. apelante deixou de ser responsável pelo pagamento das rendas (aqui, da parcela não paga, em face do diferendo existente) a partir de Maio de 2019, já que não foi, formalmente, notificado das quantias em dívida (nºs. 5 e 6 do artº. 1041º. CC). É certo que o 2º. apelante reside no locado, em comunhão de facto com a administradora da arrendatária, mas o certo é que, por exigência da senhoria (que queria um fiador, qualidade que a 1ª. apelante não poderia assegurar, face ao princípio da especialidade e ao seu objecto social), a arrendatária é a sociedade, não tendo tido o 2º. apelante conhecimento oficial de qual o montante, mesmo controvertido, da dívida reclamada”.
Concluem os apelantes que: “I) O 2º. apelante deixou de ser responsável, como fiador, pelo pagamento da parte da renda que não tem sido paga a partir de Maio de 2019, nos termos do artº. 1041º., nºs. 5 e 6 CC, em vigor desde 13/02/2019 (lei nº. 13/2019, de 12/02), dado que não lhe foi comunicada tal falta”.
Vejamos:
A Lei n.º 13/2019, de 12 de fevereiro, que aprovou “medidas destinadas a corrigir situações de desequilíbrio entre arrendatários e senhorios, a reforçar a segurança e a estabilidade do arrendamento urbano e a proteger arrendatários em situação de especial fragilidade” veio introduzir alterações ao Novo Regime do Arrendamento Urbano (NRAU), (aprovado pela Lei n.º 6/2006, de 27 de fevereiro, alterada pelas Leis n.os 31/2012, de 14 de agosto, 79/2014, de 19 de dezembro, 42/2017, de 14 de junho, e 43/2017, de 14 de junho), ao regime jurídico das obras em prédios arrendados (aprovado pelo Decreto-Lei n.º 157/2006, de 8 de agosto, alterado pelo Decreto-Lei n.º 306/2009, de 23 de outubro, pela Lei n.º 30/2012, de 14 de agosto, e pelas Leis n.os 79/2014, de 19 de dezembro, 42/2017, de 14 de junho, e 43/2017, de 14 de junho), ao Decreto-Lei n.º 156/2015, de 10 de agosto (que estabeleceu o regime do subsídio de renda a atribuir aos arrendatários com contratos de arrendamento para habitação celebrados antes de 18 de novembro de 1990 e que se encontrem em processo de atualização de renda), ao Decreto-Lei n.º 74-A/2017, de 23 de junho, que aprova o regime dos contratos de crédito relativos a imóveis destinados à habitação (alterado pela Lei n.º 32/2018, de 18 de julho) e, bem assim, ao Código Civil, alterando, quanto a este último, a redação dos artigos 1041.º, 1069.º, 1074.º, 1083.º, 1095.º, 1096.º, 1097.º, 1098.º, 1101.º, 1103.º, 1104.º e 1110.º e aditando os novos artigos 1067.º-A e 1110.º-A.
De acordo com a alteração deste diploma, a redação dos n.ºs. 5 e 6 do mencionado artigo 1041.º do CC é a seguinte: “Artigo 1041.º (Mora do locatário) (…) 5 - Caso exista fiança e o arrendatário não faça cessar a mora nos termos do n.º 2, o senhorio deve, nos 90 dias seguintes, notificar o fiador da mora e das quantias em dívida. 6 - O senhorio apenas pode exigir do fiador a satisfação dos seus direitos de crédito após efetuar a notificação prevista no número anterior (…)”.
Cumpre, desde logo, apurar se é aplicável ao caso dos autos esta redação do preceito.
A referida Lei n.º 13/2019 entrou em vigor no dia seguinte ao da sua publicação, ou seja, no dia 13 de Fevereiro de 2019, contendo uma disposição transitória (art.º 14.º) do seguinte teor: “1 - O disposto no n.º 7 do artigo 1041.º do Código Civil, aprovado pelo Decreto-Lei n.º 47344/66, de 25 de novembro, com a redação dada pela presente lei, é aplicável a dívidas constituídas anteriormente à data de entrada em vigor da presente lei. 2 - O disposto no n.º 2 do artigo 1069.º do Código Civil, com as alterações introduzidas pela presente lei, aplica-se igualmente a arrendamentos existentes à data de entrada em vigor da mesma. 3 - Nos contratos de arrendamento habitacionais de duração limitada previstos no n.º 1 do artigo 26.º do NRAU, aprovado pela Lei n.º 6/2006, de 27 de fevereiro, cujo arrendatário, à data de entrada em vigor da presente lei, resida há mais de 20 anos no locado e tenha idade igual ou superior a 65 anos ou grau comprovado de deficiência igual ou superior a 60 %, o senhorio apenas pode opor-se à renovação ou proceder à denúncia do contrato com o fundamento previsto na alínea b) do artigo 1101.º do Código Civil, aprovado pelo Decreto-Lei n.º 47344/66, de 25 de novembro, com a redação dada pela presente lei, havendo lugar à atualização ordinária da renda, nos termos gerais. 4 - A redação conferida pela presente lei ao n.º 10 do artigo 36.º do NRAU, só produz efeitos no dia seguinte à data da cessação da vigência da Lei n.º 30/2018, de 16 de julho, que estabelece o regime extraordinário e transitório para proteção de pessoas idosas ou com deficiência que sejam arrendatárias e residam no mesmo locado há mais de 15 anos. 5 - As comunicações do senhorio de oposição à renovação do contrato de arrendamento enviadas durante a vigência da Lei n.º 30/2018, de 14 de junho, aos arrendatários por ela abrangidos, que não tenham como fundamento o previsto na alínea a) do artigo 1101.º do Código Civil, com a redação dada pela presente lei, não produzem quaisquer efeitos.”.
Como refere Baptista Machado (Introdução ao Direito e ao Discurso Legitimador, Almedina, Coimbra, 1983, pp. 229-231), “os problemas de sucessão de leis no tempo suscitados pela entrada em vigor de uma LN [lei nova] podem, pelo menos em parte, ser diretamente resolvidos por esta mesma lei, mediante disposições adrede formuladas, chamadas “disposições transitórias” (…). Estas disposições transitórias podem ter carácter formal ou material. Dizem-se de direito transitório formal aquelas disposições que se limitam a determinar qual das leis, a LA [lei antiga] ou a LN, é aplicável a determinadas situações. São de direito transitório material aquelas que estabelecem uma regulamentação própria, não coincidente nem com a LA nem com a LN, para certas situações que se encontram na fronteira entre as duas leis”.
No caso, considerando o âmbito da referida disposição de direito transitório constante da Lei n.º 13/2019, verifica-se que, inexistindo regulação sobre os termos da aplicação da alteração operada ao mencionado artigo 1041.º do Código Civil, o problema da sucessão das leis no tempo (artigo 1041.º do CC, na redação anterior à Lei n.º 13/2019 – Lei Antiga – e artigo 1041.º do CC, na redação dada pela referida Lei n.º 13/2019 – Lei Nova) deve ser resolvido com recurso às normas gerais de direito.
Na falta de direito transitório, rege o artigo 12.º do Código Civil, que consagra um princípio geral de Direito, nos seguintes termos: “Artigo 12.º (Aplicação das leis no tempo. Princípio geral) 1. A lei só dispõe para o futuro; ainda que lhe seja atribuída eficácia retroactiva, presume-se que ficam ressalvados os efeitos já produzidos pelos factos que a lei se destina a regular. 2. Quando a lei dispõe sobre as condições de validade substancial ou formal de quaisquer factos ou sobre os seus efeitos, entende-se, em caso de dúvida, que só visa os factos novos; mas, quando dispuser directamente sobre o conteúdo de certas relações jurídicas, abstraindo dos factos que lhes deram origem, entender-se-á que a lei abrange as próprias relações já constituídas, que subsistam à data da sua entrada em vigor.”
No n.º 1 do artigo 12.º do CC consagra-se o princípio geral da não retroactividade da lei, no sentido de que as leis só se aplicam para o futuro.
Para além disso, as leis novas, mesmo que se apliquem para o passado - conferindo-se-lhes eficácia retroactiva – nesse caso, presume-se que ficam ressalvados os efeitos jurídicos já produzidos.
Decorre da mencionada regra que a lei nova é de aplicação imediata a que lhe anda associado um outro princípio: o da não retroactividade.
Na segunda parte do n.º 1, alude-se a uma retroactividade mitigada, traduzida apenas na sua aplicação aos efeitos pendentes e não aos efeitos extintos ou esgotados na vigência da lei antiga e por maioria de razão, com ressalva dos próprios factos.
A norma em apreço convoca, desde logo, a apreensão de conceitos, cuja clarificação se mostra essencial.
Os problemas relativos à aplicação da lei no tempo decorrem da sucessão de leis para regular uma mesma realidade. De molde a facilitar a clareza nesta matéria, impõe-se uma distinção entre duas possíveis referências da LN. a) A LN pode referir-se a factos jurídicos, isto é, a realidades que ocorreram num determinado momento e num determinado lugar. Nestes factos jurídicos, há ainda que distinguir duas modalidades: “(i) os factos instantâneos, ou seja, os factos de verificação instantânea; por exemplo: a celebração de um negócio jurídico, a conduta que provoca o fogo, a morte de uma pessoa; (ii) os factos duradouros (ou situações de facto), isto é, os factos que perduram no tempo; por exemplo: o tempo necessário para a aquisição da propriedade por usucapião (cfr. arts. 1294.°, 1295.°, n.° 1,1298.° e 1299.° do CC), os prazos de prescrição (cfr., v. g., arts. 309.° e 310.° do CC), a doença prolongada que justifica a aposentação do funcionário” (assim, Miguel Teixeira de Sousa; “Aplicação da lei no tempo”, in Cadernos de Direito Privado, n.º 18, Abril/Junho 2006, p. 3). b) A LN também pode referir-se a efeitos jurídicos. Nestes efeitos, importa igualmente considerar duas modalidades: “(i) os efeitos instantâneos, ou seja, as consequências imediatas de factos jurídicos; por exemplo: o efeito translativo do contrato de compra e venda (cfr. art. 879.°, alínea a), do CC), os efeitos da morte); (ii) as situações jurídicas, isto é, as consequências duradouras de factos jurídicos; por exemplo: as relações patrimoniais entre os cônjuges, a situação de arrendatário ou de trabalhador, o direito de propriedade” (cfr. Miguel Teixeira de Sousa; “Aplicação da lei no tempo”, in Cadernos de Direito Privado, n.º 18, Abril/Junho 2006, pp. 3-4).
Baptista Machado (Introdução ao Direito e ao Discurso Legitimador, (13.ª reimpressão), Almedina, Coimbra, 2001, pp. 226-227) distingue 3 graus de retroactividade: 1) A retroactividade de grau máximo - Aquela em que a LN [lei nova] nem sequer respeita as situações definitivamente decididas por sentença transitada em julgado ou por qualquer outro título equivalente (sentença arbitral homologada, transacção, etc.) ou aquelas causas em que o direito de acção havia já caducado (res iudicata, vel transacta, vel praescrita);
2) A retroactividade de grau médio – Aquela que não se detém perante efeitos jurídicos já produzidos no passado, mas que não chegaram a ser objecto de uma decisão judicial, nem foram cobertos ou consolidados por um título equivalente (seria o que ocorreria se uma LN viesse reduzir a taxa legal de juro máximo e estabelecesse a sua aplicação retroactiva em termos de obrigar a restituir os próprios juros vencidos sob a LA);
3) A retroactividade normal - "Por fim, podemos referir a retroactividade normal (aquela a que se refere o n.º 1 do artigo 12.º [...], que respeita os efeitos de direito já produzidos pela SJ [situação jurídica] sob a LA. Tal a retroactividade que se verifica se a LN viesse estabelecer um prazo mínimo mais longo para os arrendamentos rurais e mandasse aplicar esse prazo aos contratos em curso no momento do seu IV [início de vigência ou entrada em vigor]; ou se a LN viesse reduzir o máximo da taxa legal de juros e se declarasse aplicável aos juros dos contratos de mútuo em curso no momento do seu IV, relativamente aos juros que se viessem a vencer de futuro.”
A propósito do disposto no nº 1 do art. 12º do CC, Antunes Varela (Revista de Legislação e Jurisprudência, 120º, p. 108) refere que: "ao escrever, em termos gerais, como princípio básico de toda a matéria, que a «a lei só dispõe para o futuro», o art. 12º do Cód. Civil quer muito prosaicamente afirmar (inspirado num simples critério de bom senso) que os particulares não podem ser profetas ou adivinhos do futuro e que não podem, consequentemente, ser penalizados por não terem previsto o direito futuro ou por não terem agido em conformidade com ele. Por isso, cada acto tem como direito aplicável a lei vigente à data da sua prática (tempus regit actum)".
O n.º 2 do artigo 12.º do CC “distingue dois tipos de leis ou de normas: aquelas que dispõem sobre os requisitos de validade (substancial ou formal) de quaisquer factos (1.ª parte) e aquelas que dispõem sobre o conteúdo de certas relações jurídicas e o modelam sem olhar aos factos que a tais situações deram origem (2.ª parte). As primeiras só se aplicam a factos novos, ao passo que as segundas se aplicam a relações jurídicas (melhor: Ss Js [situações jurídicas]) constituídas antes da LN mas subsistentes ou em curso à data do seu início de vigência” (Baptista Machado; Introdução ao Direito e ao Discurso Legitimador, (13.ª reimpressão), Almedina, Coimbra, 2001, p. 233).
Sobre este n.º 2, Galvão Telles (Introdução ao Estudo do Direito; 11.ª ed., vol. I, p. 292) refere que nele se “afirma redundantemente o princípio da irretroactividade, que vigora se o legislador não o afastar claramente, não submetendo ao seu império os factos passados nem os respectivos efeitos: o que não é mais do que o afastamento da eficácia retroactiva das leis.”
Prossegue este Autor (ob. Cit., loc. Cit.): “Sabemos que a aplicação da lei nova aos efeitos pendentes ou futuros de factos pretéritos, isto é, de factos ocorridos na vigência da lei antiga, nem sempre envolve retroactividade. A questão está em saber que efeitos são esses que, apesar de terem a sua raiz no passado, se devem considerar sujeitos ao domínio da lei nova. O artigo 12.º responde na 2.ª parte do n.º 2, tratar-se daqueles efeitos (ainda não esgotados ou extintos) que se consubstanciam em relações jurídicas que cumpre olhar em si mesmas, no seu conteúdo, com abstracção dos factos que lhes deram origem. Mas o critério legal não é concludente. Que relações são estas que devem ser encaradas em si mesmas, desligadas da sua génese. São as situações jurídicas duradouras, de execução continuada ou periódica “que se desprendem da sua fonte geradora e se vão sujeitando às mutações legislativas, estando em cada momento sob o império da disciplina legal vigente, sem que haja nisso retroactividade”.”
Pode-se “sintetizar a teoria da aplicação das leis no tempo distinguindo entre constituição e conteúdo das Ss Js. À constituição das Ss Js (requisitos de validade, substancial e formal, factos constitutivos) aplica-se a lei do momento em que essa constituição se verifica; ao conteúdo das Ss Js que subsistem à data do IV [início de vigência] da LN aplica-se imediatamente esta lei, pelo que respeita ao regime futuro deste conteúdo e seus efeitos, com ressalva das situações de origem contratual relativamente às quais poderia haver uma como que “sobrevigência” da LA.” (Baptista Machado; Introdução ao Direito e ao Discurso Legitimador, (13.ª reimpressão), Almedina, Coimbra, 2001, pp. 233-234).
Oliveira Ascensão (O Direito. Introdução e Teoria Geral - Uma Perspectiva Luso-Brasileira, 10.ª edição revista, Almedina, Coimbra, 1997, p. 489), de forma impressiva, estabelece a seguinte distinção: “1) A lei pode regular efeitos como expressão duma valoração dos factos que lhes deram origem: nesse caso aplica-se só aos novos factos. Assim, a lei que delimita a obrigação de indemnizar exprime uma valoração sobre o facto gerador de responsabilidade civil; a lei que estabelece poderes e vinculações dos que casam com menos de 18 anos exprime uma valoração sobre o casamento nessas condições. 2) Pelo contrário, pode a lei atender directamente à situação, seja qual for o facto que a tiver originado. Se a lei estabelece os poderes vinculações do proprietário, pouco lhe interessa que a propriedade tenha sido adquirida por contrato, ocupação ou usucapião: pretende abranger todas as propriedades que subsistam. Aplica-se, então, imediatamente a lei nova.”
Assim, o n.º 2 do artigo 12.º do CC estabelece a seguinte alternativa: A lei nova
a) Ou regula a validade de certos factos ou os seus efeitos (e neste caso só se aplica aos factos novos);
b) Ou define o conteúdo, os efeitos de certa relação jurídica independentemente dos factos que a essa relação deram origem (hipótese em que é de aplicação imediata, quer dizer, aplica-se, de futuro, às relações jurídicas constituídas e subsistentes à data da sua entrada em vigor).
Por seu turno, o artigo 13.º do CC rege sobre a lei interpretativa, determinando que a mesma se integra na lei que visa interpretar, ficando salvaguardados os efeitos já produzidos pelo cumprimento de obrigação, de sentença passada em julgado, transação ainda que não homologada ou actos de natureza análoga.
Neste ponto, retoma-se o estudo de Miguel Teixeira de Sousa (“Aplicação da lei no tempo”, in Cadernos de Direito Privado, n.º 18, Abril/Junho 2006, pp. 7-10) que analisa, com clareza e extrema síntese, atenta a complexa dificuldade interpretativa da matéria, o regime legal: “Tendo presente o disposto nos arts. 12.º e 13.º do CC, as soluções possíveis distribuem-se da seguinte forma: a aplicação imediata da LN encontra-se prevista no art. 12.°, n.ºs 1, 1.ª parte, e 2, 2.ª parte, do CC, neste último caso quando o conteúdo da situação jurídica não for modelado pelo respectivo facto constitutivo; a sobrevigência da LA está estabelecida no art. 12.°, n.° 2,1ª parte, do CC; a retroactividade da LN encontra-se prevista nos arts. 12.°, n.° 1, 2.ª parte, e 13.°, n.° 1, do CC; a retroconexão da LN está prevista no art. 12.°, n.° 1, 1.ª parte, do CC, embora apenas de forma implícita (…). Do exposto resulta que é importante determinar se a situação jurídica tem um conteúdo que depende do seu facto constitutivo ou se esse conteúdo é independente deste facto. Neste contexto, parece útil recorrer ao título que está na base de qualquer situação jurídica, devendo, então, admitir-se duas hipóteses. Uma delas é aquela em que o título não modela a situação jurídica, ou seja, em que a situação jurídica tem sempre o mesmo conteúdo, qualquer que seja o título que a ela esteja subjacente. Por exemplo: o conteúdo do direito de propriedade é sempre o mesmo, independentemente do título da sua aquisição (que pode ser, nomeadamente, um contrato de compra e venda, um testamento ou a usucapião). Esta hipótese é a que está prevista no art. 12.°, n.° 2, 2.ª parte, do CC. A outra hipótese é aquela em que o título modela a situação jurídica, isto é, em que o conteúdo da situação jurídica varia de acordo com o respectivo título constitutivo. Por exemplo: o conteúdo, definido pelas partes, de um contrato de comodato ou de mútuo determina os correspondentes direitos e deveres. Esta hipótese é regulada pelo art. 12.°, n.° 2, 1.ª parte, do CC. (…). O referido demonstra que a melhor maneira de interpretar o art. 12.°, n.° 2, do CC é considerar que há uma alternatividade entre o que se dispõe na primeira e na segunda partes desse preceito. IV. Critérios supletivos gerais 1. Aplicação imediata da LN 1.1. Factos jurídicos O princípio da aplicação imediata da LN aos factos jurídicos encontra-se expresso no art. 12.°, n.° 1, 1.ª parte, do CC, ao estabelecer que a lei só dispõe para o futuro. Este preceito significa que a LN regula quer os factos jurídicos que ocorram após a sua vigência, quer os factos duradouros que se iniciaram na vigência da LA e que se mantenham no momento do início de vigência da LN. Por exemplo: a lei que altera a lista das doenças prolongadas que permitem que o funcionário requeira a sua aposentação é de aplicação imediata àqueles que se encontrem afectados por alguma dessas enfermidades. 1.2. Efeitos instantâneos Quando referida a efeitos jurídicos instantâneos, a aplicação imediata da LN implica que são abrangidos pela LN os efeitos que se produzam (ou que se modifiquem ou se extingam) depois do seu início de vigência. A constituição de um efeito jurídico pode decorrer da conjugação de factos que ocorreram na vigência da LA e de factos que se verificaram na vigência da LN. Por exemplo: a atribuição a alguém da qualidade de herdeiro testamentário do de cuius pode resultar da elaboração do testamento na vigência da LA e da morte do de cuius na vigência da LN. Em hipóteses como a descrita verifica-se a formação sucessiva de um efeito jurídico, o que, todavia, não impede a aplicação imediata da LN. Assim, por exemplo, aquele que tinha sido designado como herdeiro em testamento elaborado na vigência da LA, e que deixa de o poder ser por imposição da LN que vigora no momento da abertura da sucessão, perde aquela sua qualidade. 1.3. Situações jurídicas A regra da aplicação imediata da LN às situações jurídicas que se constituíram na vigência da LA e que transitam para o domínio da LN consta do art. 12.°, n.° 2, 2.a parte, do CC. Para que se verifique a aplicação imediata da LN a essas situações jurídicas, é necessário, como se estabelece naquele preceito, que a LN disponha directamente sobre o conteúdo de certas situações jurídicas, abstraindo dos factos que lhes deram origem, ou seja, abstraindo do seu título constitutivo. Nesta hipótese, o título não modela o conteúdo da situação jurídica, pelo que nada obsta à aplicação imediata da LN (…). Podem ser referidos alguns exemplos de aplicação imediata da LN que incide sobre o conteúdo de situações jurídicas, independentemente do título que lhes esteja subjacente: (i) o direito dos familiares da vítima a uma pensão vitalícia, como reparação do acidente de trabalho, surge com a morte do sinistrado, momento no qual se criou, ex lege, uma situação jurídica, de natureza duradoura, sem qualquer conexão directa com o facto que lhe deu origem; assim, é imediatamente aplicável a LN (ac. do STJ de 8/6/1994, BMJ 438, p. 440); (ii) a LN sobre o regime da responsabilidade do empreiteiro pelos defeitos da obra perante os terceiros adquirentes do prédio (cfr. art. 1225.°, n.° 1, do CC) é imediatamente aplicável a favor destes adquirentes (ac. do TRL de 30/4/1998, BMJ 476, p. 477); (iii) a LN sobre o regime da transmissão do direito ao arrendamento a quem viva em comum com o falecido arrendatário há mais de um ano (cfr. art. 1106.°, n.° 1, alínea b), do CC) é de aplicação imediata aos contratos de arrendamento subsistentes à data da sua entrada em vigor (cfr. ac. do TRC de 8/4/2003, CJ 2003/2, p. 34; ac. do STJ de 22/4/2004, CJ/STJ 2004/2, p. 45); (iv) a denúncia do contrato de arrendamento é regulada pela lei vigente ao tempo em que é operada a declaração de denúncia do contrato (ac. do TRP de 3/2/2004, C/2004/1, p. 172); (v) a qualidade de titular de direito de preferência deve ser apreciada perante a lei vigente na altura da alienação do prédio, pois que é nesse momento que se constitui o direito de preferência (ac. do TRC de 16/2/1994, BMJ434, p. 693). 2. Sobrevigência da LA 2.1. Generalidades A sobrevigência da LA está prevista no art. 12.°, n.° 2, 1.ª parte, do CC: verifica-se a sobrevigência da LA sempre que a LN se referir às condições de validade de um acto jurídico ou ao conteúdo de situações jurídicas que não possam abstrair do seu título constitutivo. 2.2. Condições de validade A sobrevigência da LA está estabelecida no art. 12.°, n.° 2, l.a parte, do CC: quando a LN dispuser sobre as condições de validade substancial ou formal de quaisquer factos, entende-se, em caso de dúvida, que só visa os factos novos. Dito de outro modo: a essas condições de validade aplica-se a LA (…). Como exemplos de sobrevigência da LA podem ser referidos os seguintes: (i) a LA admitia a celebração de um determinado negócio jurídico por forma verbal; a LN passa a exigir a forma escrita na celebração desse negócio; os negócios que foram verbalmente celebrados durante a vigência da LA permanecem válidos; (ii) a LA exigia a escritura pública como forma de celebração de um certo negócio jurídico; a LN passa a admitir a celebração desse negócio por forma verbal; os negócios que foram verbalmente celebrados durante a vigência da LA eram inválidos (cfr. art. 220.° do CC) e continuam a sê-lo depois da vigência da LN; (iii) a LA considera que um certo vício da vontade (erro, dolo, coacção moral) constitui causa de nulidade do negócio jurídico; a LN estabelece que essa mesma falta determina apenas a anulabilidade desse negócio; os negócios celebrados durante a vigência da LA permanecem nulos. 2.3. Conteúdo de situações Quando a LN disponha sobre o conteúdo de uma situação jurídica e não seja possível abstrair do respectivo facto constitutivo, não pode verificar-se a aplicação imediata da LN, pois que a hipótese não é enquadrável no disposto no art. 12.º, n.º 2, 2.ª parte, do CC; logo, há que aplicar a essa hipótese o estabelecido no art. 12.º, n.º 2, 1.ª parte, do CC, pelo que o conteúdo da situação jurídica continua a ser regulado pela LA. Dito de outra forma: quando a LN incide sobre o conteúdo de situações jurídicas, verifica-se a sobrevigência da LA se o título constitutivo dessas situações tiver um efeito modelador sobre o seu conteúdo (…). Como exemplos de sobrevigência da LA sobre o conteúdo de situações jurídicas podem ser mencionados os seguintes: os efeitos da mora no cumprimento são regulados pela lei do tempo de celebração do contrato (ac. do TRC de 28/6/1994, BMJ 438, p. 558); os efeitos do não cumprimento ou do cumprimento defeituoso do contrato são regulados pela lei vigente no momento da sua celebração (ac. do TRE de 6/7/1995, CJ 95/4, p. 257); os efeitos de uma conduta ilícita são definidos pela lei em vigor no momento da realização da conduta”.
Podem-se, pois, extrair do artigo 12.º do Código Civil, os seguintes comandos:
1) A LN aplica-se para o futuro, sem restringir a sua aplicação a factos supervenientes ou a situações jurídicas constituídas depois da sua entrada em vigor;
2) A LN substitui-se à LA, mas sem erradicar da ordem jurídica os efeitos produzidos por esta, pois revogar ou derrogar a LA não equivale a declarar a nulidade das suas normas;
3) O futuro é o tempo desde a data da entrada em vigor da LN, atendendo à perspetiva do legislador, temporalmente situado a montante da publicação, atingindo a LN também as situações que se verifiquem no momento da sua entrada em vigor;
4) Da LN não se presume a sua aplicação retroativa;
5) Contudo, nada impede, em princípio (ressalvados casos de absoluta publicação de leis retroactivas), impede a atribuição de eficácia retroativa a uma lei;
6) A lei retroativa traduz uma ficção: a de que já se aplicava no passado em lugar da lei então vigente e coeva dos factos pretéritos, não apenas à continuidade dinâmica dos efeitos, como à sua produção e à constituição ou modificação das situações jurídicas que se encontram na sua origem;
7) Uma lei retroativa, embora incida sobre factos pretéritos, preserva os efeitos produzidos (a começar pelos que são irredutíveis, v. g. caso julgado, prescrição, ato administrativo consolidado, obrigação cumprida) o que significa, mesmo sem dúvidas quanto à aplicação retroativa de uma certa lei, não poder presumir-se nunca a ultrarretroatividade;
8) Por regra, as normas atinentes à validade dos atos são apenas e só as normas pretéritas que vigoravam ao tempo da sua formação e constituição, mais ou menos exigentes do que a LN, ou seja, por princípio, não há invalidade superveniente (por desconformidade com a LN);
9) Retroatividade não significa inaplicabilidade da LN nova a situações jurídicas duradouras, cujos efeitos continuem a produzir-se no presente e, tendencialmente, no futuro, pelo que, nessas situações duradouras é a LN que passa a governar o conteúdo dessas situações jurídicas, salvo se não puderem dissociar-se de um facto originário irrepetível;
10) Nada impede a aprovação de normas transitórias materiais, as quais, não obstante por tempo determinado, dispõem para o futuro.
Especificamente sobre a vigência da Lei n.º 13/2019 refere Jessica Rodrigues Ferreira (“Análise das principais alterações introduzidas pela Lei n.º 13/2019, de 12 de fevereiro, aos regimes da denúncia e oposição à renovação dos contratos de arrendamento urbano para fins não habitacionais”, in Revista Electrónica de Direito, Fevereiro 2020, n.º 1, vol. 21, disponível no endereço https://cije.up.pt//client/files/0000000001/5-artigo-jessica-ferreira_1584.pdf) o seguinte: “Parece-nos que, regra geral, as normas imperativas previstas na Lei 13/2019 se aplicam não apenas aos contratos futuros, mas também aos contratos celebrados em data anterior à entrada em vigor da lei, nos termos da regra geral sobre aplicação da lei no tempo prevista no n.º 2 do art. 12.º, na medida em que tais normas contendem com o conteúdo de relações jurídicas abstraindo dos factos que lhes deram origem”.
Neste sentido, se pronunciaram também Rui Paulo Coutinho de Mascarenhas Ataíde e António Barroso Ramalho Rodrigues (“Denúncia e oposição à renovação do contrato de arrendamento urbano”, in Revista de Direito Civil, Lisboa, ano 4, n.º 2 (2019), p. 298) e Maria Olinda Garcia (“Alterações em matéria de Arrendamento Urbano introduzidas pela Lei n.º 12/2019 e pela Lei n.º 13/2019”, in Julgar Online, março de 2019, p. 8, disponível em: http://julgar.pt/wp-content/uploads/2019/03/20190305-JULGAR-Altera%C3%A7%C3%B5es-em-mat%C3%A9ra-de-arrendamento-Leis-12_2019-e-13_2019-Maria-Olinda-Garcia.pdf).
Contudo, como adverte Jessica Rodrigues Ferreira (loc. Cit.): “Não nos parece, porém, que as disposições supletivas da nova lei, como por exemplo a nova duração supletiva dos contratos de arrendamento para fins habitacionais e a renovação dos contratos por períodos sucessivos de igual duração ou de cinco anos se esta for inferior, se apliquem aos contratos celebrados antes de fevereiro de 2019, aos quais se continuarão a aplicar as normas supletivas vigentes aquando da sua celebração, solução esta que era, aliás, a consagrada no art. 59.º da Lei 6/2006 e a que decorre do próprio n.º 2 do art. 12.º, pois embora se trate da regulação do conteúdo da relação jurídica, estas normas não se abstraem dos factos que lhe deram origem. Na verdade, ao celebrarem o contrato, as partes nortearam os seus interesses e a arquitetaram o equilíbrio das suas relações com base na lei vigente, a qual se deve, por isso, considerar “como incorporada no contrato (lex transit in contractum) por ter sido como que tacitamente acolhida nas suas disposições pela vontade das partes”. Como refere Baptista Machado, “a intervenção do legislador que venha modificar este regime querido pelas partes afecta as previsões desta, transtorna o equilíbrio por ela arquitetado e afeta, portanto, a segurança jurídica”. Outra solução que não esta levaria a situações injustas e não previstas pelas partes. Imagine-se, por exemplo, a existência de um contrato de arrendamento não habitacional celebrado por dois anos em 1.1.2016, renovável por igual período de tempo por força da disposição supletiva anteriormente vigente, a cuja renovação o senhorio se pretendia opor no final de 2020. Se o prazo de duração supletiva de cinco anos consagrado pela nova lei se aplicasse a este contrato, nos termos do disposto no n.º 2 do art. 297.º, computar-se-ia, no prazo de cinco anos, todo o tempo decorrido desde o início da renovação, isto é, 2018 e 2019, mas o senhorio teria de aguardar até 2022 para poder opor-se à renovação, gorando assim as suas expectativas legitimamente fundadas de poder por termo ao contrato no final de 2020”.
Conforme sintetiza Baptista Machado (Introdução ao Direito e ao Discurso Legitimador, Edições Almedina, Coimbra, 1990, p. 233) “à parte isto, o n.º 2 do art. 12.º deixa entrever a possibilidade de leis que regulem o conteúdo das relações jurídicas atendendo aos factos que lhes deram origem (sem abstrair destes factos). Tal é o que acontece no domínio dos contratos, pelo menos em todos os casos em que as disposições estabelecidas pela LN tenham natureza supletiva ou interpretativa (...). À constituição de Ss Js (requisitos de validade, substancial e formal, factos constitutivos), aplica-se a lei do momento em que essa constituição se verifica; ao conteúdo da Ss Js que subsistam à data do IV da LN aplica-se imediatamente essa lei, pelo menos no que respeita ao futuro deste conteúdo e seus efeitos, com ressalva das situações de origem contratual relativamente às quais poderia haver uma como que “sobrevigência” da LA”.
Assim, a decisão sobre a aplicação/não aplicação do artigo 1041.º, n.ºs. 5 e 6, do CC, na redação dada pela mencionada Lei n.º 13/2019, à situação dos autos depende, pois fundamentalmente da qualificação dessas disposições, ou seja, da resposta à questão de saber se elas abstraem ou não dos factos constitutivos das situações jurídicas visadas nas suas hipóteses legais e ainda se a situação jurídica dos autos subsistia à data da entrada em vigor da nova lei.
Ora, a situação descrita naquelas disposições normativas é a da existência de mora do locatário, em caso de fiança, determinando o comando legal uma condição específica – a notificação do senhorio ao fiador sobre a mora e as quantias em dívida - para a exigibilidade ao fiador da satisfação dos direitos de crédito pelo credor.
Vê-se, no caso dos autos, que a situação de mora do locatário está consolidada, ou melhor, encontra-se estabilizada em face da pretensão deduzida pela autora, tal como apresentada na petição inicial.
O caso dos autos cai na regra que afasta a aplicabilidade da lei nova aos efeitos dos factos passados, ou seja, a nova redação do artigo 1041.º do CC só se aplica às situações jurídicas que, relativamente à mora do locatário, demandem a notificação do fiador, mas constituídas a partir da entrada em vigor da Lei n.º 13/2019 – 13-02-2019 - , ainda que, respeitantes a relações de arrendamento preexistentes. “Uma SJ (Situação Jurídica) deve considerar-se constituída quando se verifica o último elemento – o elemento conclusivo – do seu processo de formação, quando estão preenchidos todos os elementos que integram a hipótese legal e assim se desencadeia o evento jurídico (estatuição) – a alteração do mundo do direito (constituição, modificação ou extinção duma relação ou SJ)” (assim, o Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra de 03-12-2013, Processo 291/12.C1, rel. BARATEIRO MARTINS).
No caso, a situação jurídica a que se refere a previsão legal – constituição em mora do locatário, existindo fiança – e que é invocada pela autora na presente ação, constituiu-se, ou ficou concluída, em data anterior à dos presentes autos (tendo a petição inicial dado entrada em juízo em 17-09-2018), pois, os elementos exigidos, à época, pela hipótese legal constante da norma então vigente, encontravam-se verificados, inclusive quanto ao fiador.
A verificação ou não das condições legais para a demanda do fiador encontravam-se definidas na lei antiga, sem dependência da notificação cuja exigência foi introduzida pela Lei n.º 13/2019, pelo que, bastava para a procedência da pretensão, a ocorrência de mora do locatário (sem purgação da mora nos termos em que tal, legalmente, era possível).
A mora não purgada do locatário, enquanto elemento constitutivo da responsabilização do fiador, constituía assim uma condição da ação, ou seja, elementos necessários para a procedência da pretensão deduzida, que se deveriam verificar à data da instauração da pretensão, ainda que só em sede de decisão final se viesse a apurar se estavam ou não verificados.
Neste sentido, a nova lei – a Lei n.º 13/2019 – não é aplicável à situação dos autos, sob pena de inadmissível irretroatividade.
Não estávamos, pois, aquando do início de vigência da LN (em 13-02-2019), perante uma situação jurídica constituir ou em vias de constituição, mas sim, perante uma situação jurídica já constituída e subsistente à data da entrada em vigor da lei nova.
Os n.ºs. 5 e 6 do artigo 1041.º do CC, na redação dada pela Lei n.º 13/2019 determinam quais os factos que, para efeitos de exigibilidade pelo senhorio da prestação a cargo do fiador são relevantes, mencionando que para se produzir tal evento jurídico se mostra necessária a notificação, nos termos aí contemplados, pelo que, a tais factos é aplicável a lei vigente no tempo da sua verificação.
Aos factos constitutivos da pretensão da autora, fundada na mora do locatário e no não cumprimento da obrigação a cargo do fiador, é aplicável a lei em vigor à data em que tais factos ocorrem, ou seja, no caso, a lei antiga.
Conforme supra mencionado, segundo a “teoria do facto passado” – acolhida no art. 12.º, n.º 2, 1.ª parte, do CC – aos factos passados e aos seus efeitos não se aplica a lei nova, pelo que, ao caso dos autos, cuja situação jurídica já se encontrava consolidada antes da entrada em vigor da lei nova, é aplicável a redação do artigo 1041.º do CC, anterior à conferida pela mencionada Lei n.º 13/2019.
A Lei n.º 13/2019 não visou, de facto, incidir sobre factos e efeitos totalmente passados, aditando condições antes não previstas para a exigibilidade da prestação do fiador. Fê-lo, tão só, para as relações jurídicas que nasçam na sua vigência e, naquelas que subsistiam à data da sua entrada em vigor, mas nas quais, ainda não se tenha constituído a situação de mora do locatário. Nas demais, como a dos presentes autos, é aplicável a lei antiga.
Verifica-se, pois, que o 2º apelante não deixou de ser responsável, como fiador, pelo pagamento dos valores não satisfeitos, dado que, a exigibilidade dos mesmos não dependia da prévia comunicação do senhorio de tal falta.
Não se mostra, pois, violado na decisão recorrida o aludido artigo 1041.º do CC.
A apelação deverá, pois, em consequência, ser julgada improcedente, mantendo-se, na íntegra, a decisão recorrida.
*
A responsabilidade tributária inerente deverá ficar a cargo dos réus/recorrentes, atento o seu integral decaimento – cfr. artigo 527.º, n.ºs. 1 e 2, do CPC.
* 5. Decisão:
Em face do exposto, acordam os Juízes que compõem o colectivo desta 2.ª Secção Cível, em julgar a apelação improcedente e, em consequência, em confirmar a decisão proferida pelo Tribunal recorrido.
Custas a cargo dos réus/apelantes.
Notifique e registe.
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Lisboa, 21 de maio de 2020.
Carlos Castelo Branco
Lúcia Celeste da Fonseca Sousa
Magda Espinho Geraldes