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ACÇÃO EXECUTIVA
JUNÇÃO DE DOCUMENTO
HIPOTECA
VENDA
ABUSO DE DIREITO
Sumário
I) Não deve ser admitida a junção, em sede de recurso, de documento relativamente ao qual a sua potencial utilidade à causa já ocorria antes da prolação da decisão recorrida, não derivando a utilidade do documento diretamente da decisão recorrida em si mesma. II) A hipoteca confere ao credor o direito de ser pago pelo valor de certas coisas imóveis, ou equiparadas, pertencentes ao devedor ou a terceiro com preferência sobre os demais credores que não gozem de privilégio especial ou de prioridade de registo. Mesmo que seja alienado o bem objeto da hipoteca, esta subsiste, a não ser que exista motivo para a sua expurgação ou outra circunstância que determine a sua extinção. III) A ação executiva visa em última instância, a reparação do direito violado, o que pressupõe que existe um dever de prestar e que este foi incumprido, originando a violação de um direito, visando-se que o exequente possa obter um resultado idêntico àquele que obteria com a realização da própria prestação. IV) A pretensão do exequente, uma instituição bancária, no sentido de prosseguir a execução depois de ter adquirido na mesma o imóvel hipotecado, cuja venda não cobriu a dívida exequenda, com o fim de obter a satisfação do remanescente do crédito exequendo, não configura exercício abusivo de um direito, pois, não se demonstrou que o valor pelo qual o exequente adquiriu o imóvel, em 2011, fosse patentemente desconforme com o valor de mercado que o imóvel então teria. O ónus de demonstração de que tal sucedeu caberia aos recorrentes, enquanto facto fundamentador e constitutivo da respetiva invocação (cfr. artigo 342.º, n.º 1, do CC).
Texto Integral
Acordam na 2.ª Secção do Tribunal da Relação de Lisboa:
1. Relatório:
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Nos autos de execução comum, com o n.º 1425/07.6TCSNT, onde prosseguem como exequente, o NOVO BANCO, S.A. e, como executados, CM… e SC…, foi designado para o dia 23-02-2010, pelas 09.30 h., a abertura de propostas em carta fechada que fossem entregues até às 14.00 h. do dia 22-02-2010, pelos interessados à compra do imóvel correspondente à fração autónoma, designada pela letra “M”, ….º andar, letra A, com a arrecadação n.º 10, na esteira e parqueamento com o n.º 10 na … menos 2, do prédio urbano sito nos limites da Rinchoa, designado pelo Lote …, freguesia de Rio de Mouro, Concelho de Sintra, descrito na 2.ª Conservatória do Registo Predial de Sintra sob o n.º …, inscrito na respectiva matriz predial sob o artigo …, pelo valor base de € 157.142,86 e esclarecendo-se que o bem penhorado seria adjudicado a quem melhor preço oferecesse acima de 70% do valor base do bem a vender, ou seja, € 110.000,00.
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Em 23-02-2010 foi lavrado auto de abertura de propostas em carta fechada, relativamente ao imóvel acima identificado, verificando-se que não foi apresentada qualquer proposta, tendo sido determinada a notificação de exequente e executados para no prazo de 10 dias virem dizer se se opõem a que seja nomeado encarregado da venda por negociação particular, o solicitador de execução CB…, nos termos e para os efeitos do disposto no n.º 2 do artigo 905.º do CPC, com a cominação de, nada dizendo, ficar o mesmo investido no cargo e proceder às diligências necessárias à venda.
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Por requerimento de 24-05-2011, o exequente veio dar conta nos autos de execução de que, no dia 18-05-2011, no Cartório Notarial da Notária AP…, se realizou escritura pública de compra e venda do imóvel, pelo valor de € 84.200,00, na sequência da adjudicação do mesmo ao exequente, adquirindo este o imóvel, ficando inscrita no registo predial tal aquisição, pela Ap. 47 de 2011-05-20.
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Em 21-01-2019, foi proferido pelo Tribunal recorrido despacho do seguinte teor: “Vem a Executada SC… requerer a extinção da presente execução por pagamento. Para tanto refere, desde logo, não aceitar o valor reclamado pelo Exequente, concretamente no que respeita aos juros remuneratórios relativos ao período posterior à resolução do contrato de mútuo. Por outro lado, sustenta a Executada que, para cálculo do valor pago ao Exequente, deve ser considerado, quanto ao bem penhorado e que a este foi adjudicado, o valor efectivo (e que refere ter sido por este reconhecido) de tal bem, e não o valor pelo qual o mesmo foi adjudicado. Ora, no que respeita à primeira das questões suscitadas, e em face do que é invocado, reconduz-se a mesma à eventual inexigibilidade de parte da quantia exequenda, a qual constitui um dos fundamentos possíveis para oposição mediante embargos de executado (cfr. art. 729º, al. e), do CPC), não cabendo assim o seu conhecimento nesta sede e na fase em que os autos se encontram. Quanto ao valor do imóvel a considerar para efeito do cálculo do montante pago da quantia exequenda, importa considerar que, figurando a adjudicação como uma das formas de pagamento no âmbito da execução (art. 795º/1 e art. 799º, do CPC) não pode deixar de ter-se tal pagamento por efectuado pelo valor pelo qual tal adjudicação tenha sido efectuada, não relevando para tanto eventual valor diverso que uma das partes entenda dever ser o valor efectivo do bem em causa. Com efeito, as diligências tendentes à fixação do valor de venda do bem e os critérios para aceitação das propostas de adjudicação e/ou venda do mesmo visam, precisamente, que o mesmo se aproxime o mais possível do valor real do bem penhorado (cfr. designadamente o que se dispõe no art. 812º/1, n.º 3, a) e b) e n.º 5 do CPC), sendo assim nessa fase – anterior à venda ou adjudicação – que cabe diligenciar-se para que estas ocorram por valor, dentro do possível (ou seja, em termos que não as inviabilizem, por falta de obtenção de quaisquer propostas) correspondente ao valor efectivo do bem. Assim, tendo ocorrido uma das formas de pagamento previstas no art. 795º/1, este deve ter-se por efectuado pelo valor da mesma (adjudicação), o qual, na sua fixação, foi já obtido, nos termos legais, de forma a corresponder o mais proximamente possível ao real valor do bem adjudicado. Nestes termos, e pelos motivos acima expostos, indefere-se o requerido pela Executada. Notifique”.
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Não se conformando com esta decisão, dela apelam os executados formulando na alegação que apresentaram, as seguintes conclusões: “1 - É simples a questão objecto do presente recurso e radica em saber se a adjudicação do bem imóvel dos executados ao credor hipotecado, pelo valor da proposta de adjudicação, sendo esta de valor inferior àquele que anteriormente determinara para o bem representa ou não uma situação de abuso do direito. 2- São relevantes para a boa apreciação do presente recurso os seguintes factos vertidos nos autos: -a exequente e os executados celebraram um contrato de mútuo hipotecário; -a exequente avaliou o imóvel em valor não inferior a 157.142,86€, razão pela qual o considerou idóneo a garantir o valor mutuado; -a exequente reclama a quantia exequenda inicial de 100.785,60€, acrescida dos juros peticionados; -a adjudicação foi pedida e concretizada pelo valor de 84.200,00€; -o valor de avaliação atribuído pela exequente nos presentes autos foi de 110.000,00€ (70% do valor base de venda), conforme melhor consta do edital para abertura de propostas; 3- A exequente avaliou o imóvel em 110.000,00€ e recebeu-o, em adjudicação, pelo valor de 84.200,00€. 4- Ora, o valor a considerar para efeitos de compensação creditícia não pode deixar de ser o montante de 110.000,006 sob pena de clamorosa situação de abuso do direito e, como tal, o crédito exequendo fica extinto por compensação. 5- A decisão recorrida legitimou uma situação de abuso de direito na modalidade de desequilíbrio no exercício de direito porquanto, sendo a exequente titular de um direito de crédito, formal e aparentemente exigível por incumprimento contratual, a sua executoriedade e reconhecimento judicial desencadearia resultados totalmente alheios ao que o sistema poderia admitir, em consequência do seu normal e regular exercício. 6-O artigo 334.º do Código Civil determina que é ilegítimo o exercício de um direito, quando o titular exceda manifestamente os limites impostos pela boa fé, pelos bons costumes ou pelo fim social ou económico desse direito. 7 - Está em causa o credor hipotecário fazer-se prevalecer da diferença remanescente entre a quantia exequenda e o valor da adjudicação do bem dado em hipoteca em virtude da proposta de adjudicação ser inferior ao que valor que considerou na sua avaliação para efeitos de concessão de crédito hipotecário e até, num segundo momento, na avaliação para efeitos de venda em processo executivo. 8-O princípio da materialidade subjacente reclama a sua intervenção sob pena de se recair numa situação de abuso do direito. 9 - Assim, o despacho recorrido violou o disposto no art. 334,°do Código Civil, razão pela qual deve ser revogado e substituído por um outro que reconheça a compensação do valor da adjudicação ao credor hipotecário pelo valor da sua avaliação feita para ponderação da hipoteca como garantia”.
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O exequente contra-alegou pugnando pela improcedência do recurso, tendo invocado, em suma:
- Que após a escritura de compra e venda outorgada em 18-05-2011 a execução prosseguiu os seus ulteriores termos para cobrança do remanescente da dívida, que ficou reduzida, à data da venda/adjudicação ao Novo Banco, 18/05/2011, a €54.767,13, tudo conforme melhor discriminado no requerimento apresentado pelo exequente, em 09/12/2011;
-Que decorridos mais de 6 anos sobre a venda/adjudicação da fracção ao Novo Banco, vieram os executados, através de requerimento que apresentaram, em 29/03/2017, requerer ao Tribunal " a quo” “se digne ordenar a imediata extinção da instância em virtude do pagamento ( adjudicação do bem imóvel) efectuado”, alegando que “a exequente adjudicatário do bem recebeu por €84.200,00 um bem que tem valor superior , designadamente, o valor de 110.000,00€, valor que que foi atribuído com a concordância do exequente, justamente, como valor base de venda (70% da avaliação em 157.142,86€), o que, no dizer dos mesmos, constitui uma clamorosa situação de abuso de direito;
- Que por requerimento datado de 10/04/2017, opôs-se o Novo Banco, à extinção da execução, porquanto é manifesto que a dívida não ficou paga com a adjudicação do imóvel, concluindo, requerendo o prosseguimento dos autos, para pagamento do remanescente da dívida;
- Que o Tribunal “a quo’' proferiu em 05/02/2018, despacho ordenando ao Sr. Agente de Execução, que comunique aos autos o valor que apurou quanto ao remanescente ainda em dívida, bem como o cálculo efetuado, o que foi cumprido pelo Sr. Agente de Execução que apresentou a nota discriminativa, do valor em dívida à data de 18/05/2011, tendo apurado que o valor da mesma, ascendia a €48.789,63;
- Que notificados os executados da conta apresentada pelo Sr. Agente de Execução, vieram os mesmos reiterar a posição anteriormente assumida, requerendo a extinção da execução, por considerar que o valor do bem adjudicado é superior à dívida;
- Que por requerimento apresentado em 07/12/2018, veio o Novo Banco responder, requerendo o indeferimento da pretensão dos executados, porquanto os executados tiveram oportunidade, no âmbito do processo de se pronunciar sobre o valor da venda, sendo que, não o tendo feito, está tal questão ultrapassada, tendo a venda por negociação particular, ao Novo Banco, sido expressamente autorizada, por douto despacho proferido em 30/03/2011, dado que, não foram apresentadas melhores propostas, quer na fase de abertura de propostas em carta fechada, quer na fase da negociação particular, sendo, assim, manifesto que inexiste o ‘'flagrante abuso de direito ” a que alude os executados;
- Que por despacho proferido em 21/01/2019, o Tribunal “a quo” indeferiu a pretensão dos executados, porquanto, "figurando a adjudicação como uma das formas de pagamento no âmbito da execução ( art.° 795°/l e art.° 799° do CPC) , não pode deixar de ter-se tal pagamento por efetuado pelo valor pelo qual tal adjudicação tenha sido efetuada, não relevando para tanto eventual valor diverso que uma das partes entenda dever ser o valor efetivo do bem em causa;
- Que os executados começam por selecionar a factualidade que consideram relevante, cabendo, aqui, esclarecer que não corresponde à verdade que: a exequente avaliou o imóvel em valor não inferior a 157.142,86€, razão pela qual o considerou idóneo a garantir o valor mutuado; o valor da adjudicação atribuído pela exequente nos presentes autos foi de 110.000,006 (70% do valor base da venda), conforme melhor consta do edital da abertura de propostas;
- Que os executados alegam que o exequente avaliou o imóvel por valor não inferior a €157.142,86 ( 70% = €110.000,00) o que é falso, dado que, o que o exequente fez, foi indicar ao Sr. Agente de Execução, para valor mínimo de venda, um valor que lhe permitisse fazer-se pagar do produto da venda do imóvel, tendo em conta que o valor da quantia exequenda ascendia a € 100.785,60, em 27/07/2007, data da entrada em juízo do requerimento executivo, pois se o imóvel fosse vendido por €110.000,00, o exequente poderia ver a dívida praticamente saldada, se o mesmo fosse vendido num prazo que era expectável, de um ano;
- Que o ofício do Sr. Agente de Execução datado de 03/10/2008, diz o seguinte: “CM…, Solicitador de Execução no processo supra referido, vem expor e requerer a V.Ex“. o seguinte: 1- Foram as partes notificadas para se pronunciarem quan to ao valor e modalidade da venda do bem imóvel penhorado (doc.l,doc.2,doc.3,doc.4,doc.5). 2- Do Ilustre Mandatário do exequente recebeu-se a proposta que aqui se junta(doc.6). 3- Embora devidamente notificados (doc.7,doc.8,doc.9,doc,10), nunca se recebeu qualquer proposta dos executados. 4- A decisão do Solicitador de Execução é a seguinte: O bem imóvel penhorado será vendido mediante proposta em carta fechada, sendo o valor base do imóvel a vender o seguinte: 157.142,86 euros. 5- Da decisão do SE foram as partes notificadas conforme cópias das notas de notificação e cópias dos registos que aqui se juntam (doc.ll, doc.12, doc.13, doc.14, doc.15, doc.16, doc.17, doc.18, doc.19, doc.20). Nestes termos, requer-se a V.Ex“. que se digne designar dia e hora para a abertura de propostas em carta fechada, nos termos do disposto na Ia parte do 890" do CPC. ”;
- Que o Sr. Agente de Execução juntou àquele Ofício, um fax que lhe foi remetido pelo exequente, em 10/09/2008 (Doc. 6 ali indicado pelo Sr. Agente de Execução) e onde é possível ler: “Senhor Solicitador, 1. Recebemos o s/oficio datado de 29/07/2008, o qual agradecemos. 2. Em resposta ao mesmo, somos a informá-lo sobre a modalidade e valor base da venda do imóvel, penhorado nos presentes autos: >Fracção autónoma , designada pela letra “M”, correspondente ao …" andar letra A destinado à habitação, com arrecadação nº 10, na esteira e parqueamento com o nº 10 na … -2, do prédio urbano situados nos limites da Rinchoa, designado pelo lote …, freguesia de Rio de Mouro, concelho de Sintra, descrito na 2a CRP de Sintra, sob o nº …, da referida freguesia , e inscrito na respectiva matriz predial urbana , sob o art.º …º - a qual deverá ser vendida por meio de propostas em cartas fechada , pelo valor base de 157.142,86 (70% desse valor = €110.000.00) , nos termos, designadamente, dos artigos 886-A/l e 889/1 e 2 do C.P.C. Melhores cumprimentos.”;
- Que naquela comunicação, em lado nenhum se diz que aquele valor é resultante de avaliação efetuada pelo exequente;
- Que por ser essencial para o que aqui se discute, junta o exequente, aqui Recorrido, uma avaliação mandada efetuar pelo exequente, por perito credenciado, com visita ao local realizada, no dia 29/08/2008, onde se constata que o valor comercial adoptado é de €90.000.00 (Doc. 1 que junta);
- Que basta atentar no requerimento executivo, e escritura de Compra e Venda, Mútuo com Hipoteca e Fiança, para constatar, que os executados compraram o imóvel para aquisição de habitação própria e permanente, em 07/02/2002, por €85.419.13, imóvel esse adquirido pelos mutuários, no estado de novo;
- Que no ano de 2008 e seguintes, o imobiliário, atravessou uma grave crise, da qual só agora, decorridos cerca de 10 anos, está a recuperar e uma coisa é certa: Nunca o imóvel foi avaliado pelo exequente, por €157.142,86, porque, infelizmente, nunca atingiu tal valor, pelo que, os Apelantes construíram o seu raciocínio sobre factos que não correspondem à verdade, são falsos, e consequentemente, não existe abuso de direito.
- Que as partes são livres, na indicação do valor e modalidade da venda ao Sr. Agente de Execução e o facto de o exequente, indicar, um valor mínimo para venda do imóvel superior ao valor real do mesmo, poderia ser uma mais valia para os próprios executados, que poderiam, caso existissem ofertas, ver reduzida a dívida em virtude da obtenção dum produto da venda mais elevado e a única proposta que foi apresentada, para além da proposta do exequente, foi de um terceiro, no valor de €26.500,00;
- Que não existiu, qualquer aproveitamento, por parte do exequente Novo Banco, tendo o imóvel sido vendido/adjudicado ao exequente, pelo valor de €84.200,00, praticamente pelo mesmo valor pelo qual foi adquirido pelos executados, e financiado pelo Novo Banco, em 2002, por €85.419,13; e
- Que não se compreende que os executados que nunca antes reagiram, designadamente, quando foram notificados do valor da proposta/adjudicação do Novo Banco, decorridos cerca de 6 anos, “lançando mão” de factos que sabem não corresponderem à verdade, resolvam suscitar, a questão do abuso de direito.
* 2. Questões a decidir:
Sendo o objecto do recurso balizado pelas conclusões do apelante, nos termos preceituados pelos artigos 635º, nº 4, e 639º, nº 1, do CPC - sem prejuízo das questões de que o tribunal deva conhecer oficiosamente e apenas estando adstrito a conhecer das questões suscitadas que sejam relevantes para conhecimento do objeto do recurso - , a questão a decidir, em termos lógicos, é a de saber: A) Questão prévia - Admissibilidade da junção de documento pelo apelado. B) Se a decisão recorrida violou o disposto no artigo 334.º do CC, ao não reconhecer que a adjudicação do bem imóvel ao credor hipotecário, pelo valor da proposta de adjudicação, de valor inferior àquele que anteriormente determinara para o bem, não extingue a execução?
* 3. Enquadramento de facto:
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São elementos factuais relevantes para a apreciação do recurso os elementos processuais constantes do relatório.
* 4. Enquadramento de Direito:
* A) Questão prévia - Admissibilidade da junção de documento pelo apelado:
Com as suas contra-alegações de recurso, o apelado junta 1 documento referindo que tal sucede, “por ser essencial para o que aqui se discute, junta o exequente, aqui Recorrido, uma avaliação mandada efetuar pelo exequente, por perito credenciado, com visita ao local realizada, no dia 29/08/2008, onde se constata que o valor comercial adoptado é de €90.000.00”.
Nos termos do artigo 651º, nº1, do Código de Processo Civil, “as partes apenas podem juntar documentos às alegações nas situações excecionais a que se refere o artigo 425º ou no caso de a junção se ter tornado necessária em virtude do julgamento proferido na 1ª instância”.
E o artigo 425.º do Código de Processo Civil dispõe que: “Depois do encerramento da discussão só são admitidos, no caso de recurso, os documentos cuja apresentação não tenha sido possível até àquele momento”.
No que tange à impossibilidade de apresentação anterior, referem LEBRE DE FREITAS et al (Código de Processo Civil Anotado, 2º Vol., Coimbra Editora, 2001, p. 426) que: “Constituem exemplos de impossibilidade de apresentação o de o documento se encontrar em poder de terceiro, que só posteriormente o disponibiliza, de a certidão de documento arquivado em notário ou outra repartição pública, atempadamente requerida, só posteriormente ser emitida [superveniência objetiva] ou de a parte só posteriormente ter conhecimento da existência do documento [superveniência subjetiva]. Nos dois primeiros casos, será necessário que se tenham esgotado anteriormente os meios dos arts. 531 a 537 [atuais Artigos 432º a 437º do Código de Processo Civil].» RUI PINTO, Notas ao Código de Processo Civil, Coimbra Editora, 2014, p. 265, afirma que: «Os documentos apresentados referem-se a factos já trazidos ao processo, nos articulados normais ou nos articulados supervenientes (cf. artigos 588º e ss.). Portanto, a regra é a de que os documentos supervenientes não trazem ao processo factos supervenientes”.
Quanto à necessidade da junção em virtude do julgamento da primeira instância (artigo 651º, n.º 1, do CPC), “a lei não abrange a hipótese de a parte se afirmar surpreendida com o desfecho da ação (ter perdido, quando esperava obter ganho de causa) e pretender, com tal fundamento, juntar à alegação documento que já poderia e deveria ter apresentado em primeira instância. O legislador quis manifestamente cingir-se aos casos em que, pela fundamentação da sentença ou pelo objeto da condenação, se tornou necessário provar factos com cuja relevância a parte não podia razoavelmente contar antes de a decisão ser proferida” (cfr. ANTUNES VARELA et al, Manual de Processo Civil, 2ª Ed., pp. 533-534). “Podem ainda ser apresentados documentos quando a sua junção apenas se tenha revelado necessária por virtude do julgamento proferido, máxime quando este se revele de todo surpreendente relativamente ao que seria expectável em face dos elementos já constantes do processo. / A jurisprudência anterior sobre esta matéria não hesita em recusar a junção de documentos para provar factos que já antes da sentença a parte sabia estarem sujeitos a prova, não podendo servir de pretexto a mera surpresa quanto ao resultado” (assim, ABRANTES GERALDES, Recursos no Novo Código de Processo Civil, 2013, pp. 184-185).
Assim, “(…) a junção de documentos às alegações da apelação só poderá ter lugar se a decisão da 1ª instância criar pela 1ª vez a necessidade de junção de determinado documento, quer quando se baseie em meio probatório não oferecido pelas partes, quer quando se funde em regra de direito com cuja aplicação ou interpretação as partes não contavam” (cfr. Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 26-09-2012, P.º n.º 174/08, relator GONÇALVES ROCHA).
Na permissão normativa incluem-se as situações que - pela fundamentação da sentença ou pelo objeto da condenação - tornaram necessário provar determinados factos, cuja relevância a parte não podia, razoavelmente, ter em consideração antes da decisão ter sido proferida.
Contudo, o regime do artigo 651º, nº 1, do CPC não abrange a hipótese da parte pretender juntar à alegação documento que já poderia e deveria ter apresentado em 1ª instância.
Assim, não é admissível a junção, com a alegação de recurso, de um documento potencialmente útil à causa ab initio e não apenas após a prolação da sentença. Ou seja: Não é admissível a junção de documentos para provar factos que já antes da decisão a parte sabia estarem sujeitos a prova, não podendo servir de pretexto a mera surpresa quanto ao resultado.
Por outro lado, uma vez que a junção de documentos tem em vista a prova de factos que hajam sido alegados, a possibilidade de junção de documentos, em sede de recurso, não poderá ter como objetivo ou finalidade a prova de factos que não hajam sido alegados.
No caso em apreço, atenta a própria alegação produzida pelo apelado verifica-se que o documento cuja junção é pretendida se destinaria a comprovar o valor do imóvel, de acordo com avaliação do exequente, com referência à data da mencionada “avaliação” (atinente a 2008).
Atento o objeto da lide, a potencial utilidade à causa deste documento já ocorria antes da prolação da decisão recorrida, não derivando a utilidade do documento diretamente da decisão recorrida em si mesma.
A junção de documento no momento em que ocorreu mostra-se, pois, contrária ao disposto nos mencionados artigos 425.º e 651.º do CPC, não devendo ser admitida.
De acordo com o exposto, não se admite a junção de documento requerida pelo apelado.
* B) Se a decisão recorrida violou o disposto no artigo 334.º do CC, ao não reconhecer que a adjudicação do bem imóvel ao credor hipotecário, pelo valor da proposta de adjudicação, de valor inferior àquele que anteriormente determinara para o bem, não extingue a execução?
A questão central trazida a esta apelação é a de saber se a decisão recorrida, que não reconheceu que a adjudicação do bem imóvel ao credor hipotecário pelo valor da proposta de adjudicação de valor inferior àquele que anteriormente determinara para o bem, não extingue a execução.
A crise económica mundial de 2008, fruto do sobreendividamento das famílias, do desemprego e da deterioração das condições de trabalho, incidiu, em particular, no mercado imobiliário, com decréscimo acentuado das transacções imobiliárias e encarecimento das condições de concessão de crédito, tendo aumentado os processos judiciais executivos, neles sendo executada a hipoteca garantia principal do crédito hipotecário. “A relação adelgaçante entre a aquisição de habitação própria e o endividamento das famílias está devidamente diagnosticado e comprovado. Consequentemente, era inevitável o incumprimento dos seus créditos à habitação e a sua posterior penhora e venda. A perda de habitação por parte de tais famílias torna-se um drama social, atual e de difícil resolução” (assim, Cláudia Júlia Martins Coelho; A Dação em Cumprimento como Forma de Extinção da Dívida Contraída com Base num Contrato de Crédito à Habitação; Universidade Nova de Lisboa, 2018, p. 6).
Nesse contexto, “são frequentes os casos em que o valor obtido pelo credor no processo executivo, realizada que seja a venda do bem hipotecado, é insuficiente para a satisfação integral das responsabilidades dos aí executados e, por isso, é também frequente o prosseguimento desses processos — mesmo após ter tido lugar a venda do bem hipotecado — para a satisfação integral do crédito” (assim, Carla Câmara; “A aquisição da propriedade do bem hipotecado pelo credor e a questão da satisfação (integral ou parcial) do crédito”, in Estudos em homenagem ao Prof. Doutor José Lebre de Freitas, 1° vol., Coimbra Editora, 2013, p. 649).
Na presença deste contexto social e tardando soluções legislativas, veio a ser proferida uma decisão controversa pelo Tribunal Judicial de Portalegre em 04-01-2012 (disponível em: https://www.inverbis.pt/2012/ficheiros/doc/tribunalportalegre_creditohipotecario.pdf).
Tratou-se de processo de inventário em que foi promovida a venda judicial do imóvel hipotecado a favor de uma instituição de crédito proveniente de uma dívida de um crédito à habitação. O tribunal decidiu que a instituição de crédito atuou abusivamente ao adquirir em venda judicial um imóvel por preço inferior àquele que originalmente atribui ao mesmo, invocando posteriormente que a dívida que se mantinha incluía o valor em falta entre o total da dívida e o preço pago pelo imóvel aquando a venda judicial. O produto da venda foi insuficiente para pagar essa mesma dívida, tendo, assim, ficado um valor remanescente. Apesar da pretensão do banco mutuante, que peticionou uma dívida no valor de 129,521,52€, foi decidido que a mutuária apenas tinha uma dívida no valor de 12,021,52€, resultante da subtração de 117,500,00€ (valor patrimonial do bem adjudicado), ao passivo de 129,521,52€. O imóvel, nessa venda judicial, foi adjudicado ao credor hipotecário por 70% do valor patrimonial, que foi fixado como valor base, tendo sido a proposta do banco (credor) a única oferecida aquando a abertura de propostas em carta fechada que se realizou. “Da referida sentença não é claro se o valor base atribuído ao imóvel foi o valor patrimonial tributário do imóvel, não existindo qualquer alusão na dita sentença, se, no caso concreto, foi ou não realizada uma avaliação do imóvel através do tribunal ou de que forma foi fixado esse valor. Na douta decisão, refere-se que “foi determinada a venda do imóvel com atribuição de um valor patrimonial de € 117 500,00 (cento e dezassete mil e quinhentos euros), admitindo-se propostas correspondentes a 70% desse valor”. Posteriormente, afirma-se ainda que o credor “não reclamou nem impugnou dos termos consignados no despacho determinativo da modalidade de venda”. Supomos, portanto, que não foi realizada qualquer avaliação pericial com vista à determinação do valor de mercado. Assumindo que foram observadas todas as formalidades legais preparatórias da venda judicial, designadamente a notificação às partes para se pronunciarem quanto à modalidade da venda, o valor base não poderia ser outro que não o valor patrimonial tributário ou o valor de mercado se fosse realizada a avaliação para o efeito, de acordo com o artigo 812.º n.º 3 do CPC” (assim, Cláudia Júlia Martins Coelho; A Dação em Cumprimento como Forma de Extinção da Dívida Contraída com Base num Contrato de Crédito à Habitação; Universidade Nova de Lisboa, 2018, p. 7).
De todo o modo, afirma-se claramente na decisão proferida pelo Tribunal Judicial de Portalegre que o débito não se mostra, pura e simplesmente extinto. Com efeito: «Reconhecendo-se que o credor não tem qualquer direito sobre os bens do devedor, parece claro que tem que se reconhecer-lhe um direito subjectivo à prestação, uma vez que o devedor está vinculado ao seu cumprimento, sendo que a existência de um direito apenas depende do seu reconhecimento por uma norma, independentemente de ser garantido por uma sanção e muito menos por uma sanção com plena eficácia (GOMES DA SILVA, citado em MENEZES LEITÃO, Direito das Obrigações, Volume I, 3.a Edição, Almedina, pág. 91 e 92, após análise crítica das teorias realista, personalista e mistas da obrigação.). O objecto desta decisão envolve somente o modo de exercício do direito de crédito pelo credor Banco ..., S.A. após a adjudicação em processo de inventário, pelo que não nos cabe sindicar a fonte da dívida e a adstrição dos inventariados ao seu cumprimento. O que vale por dizer que não vemos razão atendível para que a adjudicação do bem acarrete a extinção da obrigação por completo. Mais se diga que o passivo compreende o incumprimento do contrato de mútuo oneroso no valor de 3.550,00E, o qual, apesar de garantido com hipoteca sobre o bem imóvel, não partilha da subsunção jurídica que ora se explanou quanto ao desequilíbrio no exercício do direito de crédito face ao contrato de mútuo oneroso pela quantia de 117.500,00€. Assim, considerando o valor patrimonial do bem adjudicado nos autos — 117.500,00E; o valor da adjudicação — 82.250,00E; a posição do adquirente enquanto credor hipotecário de empréstimo con¬cedido aos inventariados no valor de 117.500,00E e o valor do passivo aprovado antes da adjudicação —129.521,52€, considerando que não há divergência quanto ao incumprimento mútuo com hipoteca no montante de 3.550,00€ (três mil e quinhentos e cinquenta euros); entendemos que deve ser reconhecida a dívida dos inventariados, E... e R..., ao Banco ..., S.A. no valor de 12.021,52€ (doze mil e vinte e um euros e cinquenta e dois cêntimos), resultante da subtracção de 117.500,00E — valor patrimonial do bem adjudicado, ao passivo anteriormente aprovado de 129.521,52€.”
Em face de tudo o referido, concluiu-se na aludida decisão em reconhecer a existência de uma dívida vencida, solidária e remanescente a favor do Banco credor.
A referida sentença mereceu acesa crítica por vários sectores da doutrina.
Por exemplo, Isabel Menéres Campos em anotação a essa decisão (“O Justiceiro: o estranho caso do Juiz Legislador”, em Ipso Jure, Conselho Distrital do Porto da Ordem dos Advogados, n.º 36 (Maio de 2012), disponível em http://www.oa.pt/upl/%7B7ac1970a-8c65-4b95-8f80-147394b82313%7D.pdf) concluiu que “o julgador não é legislador. E de acordo com o princípio da separação de poderes, só lhe é permitido criar normas ad hoc para preenchimento de lacunas legais, devendo fazê-lo dentro do espírito do sistema. Este entendimento do tribunal não tem qualquer assento legal, sendo a decisão em comentário uma decisão contra legem”. E noutro artigo viria mesmo a salientar que “a decisão suscita-nos as maiores perplexidades pela insegurança legal e pelo abalo da confiança nas institiuções e no Direito que pode acarretar” (“Comentário à (muito falada) sentença do Tribunal Judicial de Portalegre de 4 de Janeiro de 2012”, in CDP n.º 38 (Abril/Junho 2012), pp. 3-13).
Entretanto foram publicadas as Leis n.°s. 57/2012, 58/2012, 59/2012 e 60/2012, de 9 de Novembro e os Decretos-Leis n.°s. 226/2012, de 18 de Outubro e 227/2012, de 25 de Outubro (e ainda, complementarmente, os Avisos do Banco de Portugal n.°s. 16/2012 e 17/2012, publicados no DR, II Série, n.° 243, de 17-12-2012), que visaram implementar medidas de protecção dos mutuários de crédito à habitação, mas, de todo o modo, aplicáveis de forma extraordinária e transitória e sujeitas à verificação de exigentes requisitos legais (que não resolvem a generalidade das situações de sobreendividamento das famílias que contrariam empréstimo para a aquisição de habitação) e, outras, que embora de aplicação geral, tiveram um impacto prático diminuto (v.g. utilização dos valores aplicados em PPR/E no pagamento de prestações de crédito à aquisição de habitação própria e permanente ou a fixação do valor a anunciar para a venda na percentagem de 85% do valor base dos bens), como também, o D.L. n.º 74-A/2017, de 23 de junho, não eliminando a aludida situação de sobreendividamento.
O princípio geral em matéria de garantia geral das obrigações é o de que, “pelo cumprimento da obrigação respondem todos os bens do devedor susceptíveis de penhora, sem prejuízo dos regimes especialmente estabelecidos em consequência da separação de patrimónios” (cfr. art. 601.º do CC). “Em principio, a responsabilidade patrimonial do devedor é ilimitada. O cumprimento das obrigações é garantido por todos os bens (...) penhoráveis existentes no património do devedor aquando da execução” (assim, Nuno Manuel Pinto Oliveira; Princípios de Direito dos Contratos; Coimbra Editora, 2011, p. 92).
Nos termos do artigo 602.° do Código Civil prevê-se a possibilidade — de rara verificação — de as partes poderem, em matéria na sua disponibilidade, por convenção entre elas, limitarem a responsabilidade do devedor a alguns dos seus bens no caso de a obrigação não ser voluntariamente cumprida.
Em tema do cumprimento das obrigações, estatui o artigo 762.°, n.° 1, do Código Civil que “o devedor cumpre a obrigação quando realiza a prestação a que está vinculado”.
Nessa medida, como resulta do artigo 406.º, n.º 1, do CC, os contratos devem ser cumpridos em precisa conformidade com o estipulado, de harmonia com o denominado princípio da pontualidade (“vale dizer, em todos os pontos e nos termos devidos, com as prestações a deverem ser realizadas integralmente e não por partes, excepto se outro for o regime convencionado ou imposto por lei ou pelos usos (art. 763.°, n.° 1), e o devedor a não poder desonerar-se mediante prestação diversa da devida — aliud pro alio, dação em cumprimento, salvo se o credor der o seu consentimento (art. 837.°) — nem exigir a redução da prestação invocando a sua "dificultas preastandi" para realizar apenas o "id quod facere postest"” (assim, João Calvão da Silva; "Não cumprimento das obrigações"; in Comemorações dos 35 Anos do Código Civil e dos 25 Anos da Reforma de 1977, vol. III, Coimbra Editora, 2007, p. 483).
Não sendo a obrigação voluntariamente cumprida, tem o credor o direito irrenunciável ex ante (cfr. artigo 809.° do Código Civil) de exigir judicialmente o seu cumprimento e de executar o património do devedor (cfr. artigo 817.° do mesmo Código).
O património do devedor é, assim, a garantia geral das obrigações, pelo que o credor sabe, de antemão, que em caso de incumprimento, só conseguirá a satisfação do seu crédito — na falta de constituição de outras garantias, ditas especiais — mediante coerção — segundo os termos e trâmites legalmente preestabelecidos na lei — através do património do seu devedor.
Importa ter presente que a problemática do crédito à habitação prende-se com as garantias desse crédito. Toda a atividade bancária envolve riscos. Os riscos subjacentes às operações de crédito são de natureza distinta. No entanto, em contextos de crise económico-financeira, assume particular relevância o risco de insolvência do devedor/mutuário, com o consequente incumprimento das suas obrigações, das obrigações de amortização do capital mutuado e do respetivo pagamento dos juros. Para fazer face a estes riscos inesperados, as instituições de crédito exigem a prestação de garantias constituídas a seu favor, entre as quais se situa a garantia de hipoteca (que o Código Civil regula nos artigos 686.° a 732.°, abordando, sucessivamente, os seguintes pontos do seu regime jurídico: a) Disposições gerais; b) Hipotecas legais; c) Hipotecas judiciais; d) Hipotecas voluntárias; e) Redução da hipoteca; f) Transmissão dos bens hipotecados; g) Transmissão da hipoteca; e h) Extinção da hipoteca).
Para além de ser a mais empregue no âmbito dos contratos de crédito à habitação, incide, regra geral, sobre o próprio prédio ou fração a adquirir em razão da quantia mutuada (cfr. artigo 23.º n.º 1 do DL n.º 349/98 de 11 de novembro), muito embora seja admissível a constituição de hipoteca sobre outro prédio que não o adquirido, construído ou objeto das obras financiadas.
Ao afetar o imóvel adquirido com a quantia mutuada, a instituição de crédito, beneficia assim, do direito a ser paga pelo valor da coisa com preferência sobre os demais credores que não gozem de privilégio especial ou de prioridade registal, nos termos do artigo 686.º CC.
Nos termos do artigo 686.°, n.° 1, do Código Civil “a hipoteca confere ao credor o direito de ser pago pelo valor de certas coisas imóveis, ou equiparadas, pertencentes ao devedor ou a terceiro com preferência sobre os demais credores que não gozem de privilégio especial ou de prioridade de registo”.
É de sublinhar, que mesmo que seja alienado o bem objecto da hipoteca, esta subsiste, a não ser que exista motivo para a sua expurgação (cfr. artigos 721.° e 722.° do Código Civil) ou outra circunstância que determine a sua extinção (cfr. artigo 730.° do Código Civil).
Por outro lado, há que ter em consideração uma realidade social indesmentível: A constituição voluntária da garantia hipotecária a favor de instituições financeiras encontra-se geralmente ligada à contracção de um crédito destinado à aquisição de habitação própria. Daí que o legislador ordinário, tenha sentido a necessidade de regular alguns dos aspectos relacionados com tal concessão de crédito, designadamente, no citado Decreto-Lei n.° 349/98, de 11 de Novembro e em diversa legislação específica sobre a matéria. “Após o incumprimento pelo devedor/mutuário das obrigações decorrentes do contrato de crédito à habitação, o credor/o banco, poderá intentar uma ação executiva para pagamento de quantia certa, seguindo a forma de processo comum, artigo 550.º CPC. O credor pretende assim, obter o cumprimento de uma obrigação pecuniária, através da execução do património do devedor, do executado, artigo 732.º CPC. A hipoteca, como direito real de garantia, está ao encargo de um crédito que assegura, sendo um direito acessório deste. Em caso de incumprimento da obrigação garantida pela hipoteca, o credor hipotecário, através do recurso necessário à ação executiva, satisfará o seu crédito pelo produto da venda do bem com preferência sobre os outros credores, exceto se os créditos destes beneficiarem de privilégio imobiliário especial ou de direito de retenção, como acima descrito. No crédito à habitação, a execução da hipoteca dá-se através de um processo judicial, o processo executivo ordinário, também denominado de ação executiva, não sendo possível o credor apoderar-se diretamente do bem hipotecado, da habitação própria e permanente. A ação executiva visa em última instância, a reparação do direito violado. Este tipo de ações pressupõe que existe um dever de prestar e que este foi incumprido, originando a violação de um direito. Com a ação executiva visa-se que o banco, o exequente, possa obter um resultado idêntico àquele que obteria com a realização da própria prestação” (cfr., Cláudia Júlia Martins Coelho; A Dação em Cumprimento como Forma de Extinção da Dívida Contraída com Base num Contrato de Crédito à Habitação; Universidade Nova de Lisboa, 2018, p. 20).
Para a satisfação do direito exequente através da venda judicial da habitação, objeto da hipoteca, é necessário que precedentemente se tenha procedido à apreensão da mesma por via de penhora. Terminado o prazo para a reclamação de créditos, a execução prossegue com a venda dos bens penhorados para, com o seu produto se proceder ao pagamento da dívida exequenda.
A regra é o imóvel ser vendido através da modalidade de propostas em carta fechada, com o intuito de, com o preço resultante da referida venda, se proceder ao pagamento da dívida. O preço a anunciar para a venda do bem é como supra indicado igual a 85% do valor de base do mesmo, artigo 816.º n.º2 CPC (70% antes da revisão do CPC em 2013).
Se for aceite uma proposta desse valor, apresentada por um qualquer terceiro, e caso esse valor seja inferior ao da quantia exequenda, o banco mutuante apenas receberá essa quantia em dinheiro, pelo que poderá prosseguir com a execução para obter a satisfação do restante. “O banco mutuário pode ainda, enquanto exequente, com garantia real, requerer a adjudicação do imóvel. Nesse caso, o requerente está sujeito ao preço mínimo estabelecido, para o caso de venda mediante proposta por carta fechada, ou seja, 85% do valor de base do bem, artigo 816.º n.º2 por remissão do artigo 802.º CPC. Mesmo neste caso, o banco pretende prosseguir com a execução, após a adjudicação do bem penhorado (por um valor insuficiente para o pagamento da quantia exequenda). Não podemos deixar de ter em linha de conta, a confiança criada pelos devedores, pela constituição da hipoteca sobre o imóvel. Não podemos perder de vista, o facto de o banco mutuante ter exigido a constituição de hipoteca sobre o bem a adquirir com a quantia mutuada. É certo, que os contratos são para ser cumpridos. E é também certa, a legitimidade de o banco prosseguir com a execução da sua garantia real, após incumprimento do devedor. Mas, já não é tão certo, legítimo e podendo até entrar por um ato abusivo do direito, a pretensão de o banco prosseguir a execução, após a venda judicial do bem, ou após a adjudicação do mesmo. Senão vejamos, o banco irá receber pelo menos 85% do valor base em que o imóvel se encontra avaliado, podendo até, em muitos casos vir a receber um valor superior. Mas partindo até do pressuposto de que a instituição bancária recebeu “apenas” 85% do valor base do imóvel, não nos podemos esquecer de todas as apelidadas mensalidades de que o devedor, já pagou com o referido empréstimo sobre a habitação. E se acrescentamos a esse valor, serviços acessórios que vêm sempre por arrasto destes contratos de crédito à habitação, seguros, entre outros. Dependendo do número de prestações já cumpridas, o banco poderá já ter recebido quantias suficientes para fazer face ao incumprimento por parte do devedor. Situação distinta será aquela em que, irresponsavelmente o devedor decide contrair um contrato de crédito à habitação e incumpre desde logo, ou melhor, nunca chega sequer a cumprir qualquer prestação do referido contrato (…)” (cfr., Cláudia Júlia Martins Coelho; A Dação em Cumprimento como Forma de Extinção da Dívida Contraída com Base num Contrato de Crédito à Habitação; Universidade Nova de Lisboa, 2018, pp. 25-26).
Coloca-se, pois, em questão a de saber se o prosseguimento da execução, depois de adjudicado o imóvel ao exequente, ainda que por valor inferior ao que o mesmo tinha sido avaliado pregressamente, constitui ou não abuso de direito do exequente?
O Tribunal da Relação de Lisboa, no acórdão de 11-10-2012 (processo n.º 1417/08.8TCSNT.L1-2, rel. PEDRO MARTINS) concluiu que: “A pretensão da exequente de prosseguir a execução depois de lhe ter sido entregue o imóvel hipotecado, que não cobriu a dívida exequenda, com o fim de obter a satisfação da parte do empréstimo não coberto, não configura, sem mais, um abuso de direito”.
Nesse processo, o imóvel foi adquirido por €89.160,12 e a hipoteca foi registada com referência ao valor máximo de € 123.834,50. Na sequência de processo executivo, o imóvel da executada foi penhorado e foi programada a venda judicial fixando-se o valor mínimo das propostas em €70.000,00. No dia da abertura das propostas em carta fechada, o imóvel foi adjudicado ao credor hipotecário, único proponente, pelo valor de €76.000,00.
Após a venda executiva, a executada requereu ao tribunal a realização de perícia para determinar o valor do imóvel. O Tribunal de 1.ª instância entendeu que a executada se devia ter oposto à execução e que o requerimento apresentado era extemporâneo, por esse motivo foi proferido despacho a indeferir a pretensão da executada.
A executada interpôs recurso desse despacho fundamentando que o bem já penhorado e vendido era suficiente para dar satisfação ao direito de crédito do credor hipotecário e invocou o abuso de Direito.
O Tribunal da Relação considerou que os argumentos da executada só seriam válidos se entre o mútuo e o momento da venda executiva não tivesse decorrido nenhum lapso de tempo, sendo que, no caso, tinham decorrido 10 anos e o imóvel desvalorizou-se, correndo o risco de desvalorização do imóvel corre por conta da executada (art. 796ºCC) pelo que não faria sentido dizer, sem mais, que pelo facto de o credor hipotecário ter adjudicado o imóvel, concluir que a executada se exonerou da dívida. Referiu ainda o Tribunal que a executada podia ter requerido, antes da venda judicial, que o imóvel fosse avaliado nos termos do então art. 886ºA n.º3 do CPC e que, como não o fez, não pode vir dizer em sede de recurso que o valor de mercado do imóvel não corresponde ao valor pelo qual o credor hipotecário o adjudicou. O Tribunal conclui dizendo que o facto de o imóvel ter sido vendido em 2001 por €89.000,00 e em 2011 por €76.000,00 não configura abuso de direito porque a diferença pode ser imputada à desvalorização.
Anotando favoravelmente o decidido, refere Luís Menezes Leitão (“O impacto da crise financeira no regime do crédito à habitação”, in Julgar, n.º 25, 2015, p. 57) que: “O Tribunal considerou, porém, a nosso ver igualmente bem, que o abuso do direito não se punha, uma vez que a dívida não resultava apenas do crédito à habitação e a diferença entre o valor de aquisição do imóvel e o valor da venda ao banco não era suficiente para que se pudesse falar em abuso de direito”.
Por seu turno, o Tribunal da Relação do Porto, no acórdão de 31-10-2013 (Processo 5074/10.3YYPRT-B.P1, rel. ARAÚJO BARROS) concluiu que: “Não é admissível a adjudicação do bem penhorado ao exequente ou ao credor reclamante com garantia por valor inferior a 70% do valor base, não podendo a mesma ocorrer na fase da venda por negociação particular. Deve ser recusada a proposta de adjudicação que o credor hipotecário reclamante formulou nessa fase, no montante de 222.852,00 €, cerca de 54% de 412.000,00 €, valor base fixado para o bem penhorado”.
O Tribunal da Relação do Porto considerou que o credor hipotecário não está em posição idêntica à de qualquer outro que no processo executivo se habilite a comprar o bem penhorado e que, por ter uma responsabilidade ao menos potencial na definição do valor base dos bens penhorados, não pode adjudicar o imóvel por valor inferior ao estipulado na lei. Mas, tendo por base a liberdade contratual do credor, o Tribunal reconhece que é difícil continuar a sustentar a mesma tese para ofertas de valor superior a 70% do valor base dos bens penhorados. O tribunal admite que a venda executiva é uma venda regulada e que o credor reclamante ou hipotecário não pode ser tratado como qualquer proponente; no entanto, não admite que se possa afirmar que há abuso de direito quando o credor faz propostas de valor superior a 70%.
No mesmo sentido, o Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa de 12-12-2013 (Processo: 23703/09.0T2SNT-B.L1-6, rel. MARIA DE DEUS CORREIA) concluiu que: “A pretensão do exequente de prosseguir a execução depois de lhe ter sido adjudicado o imóvel hipotecado, no âmbito de venda judicial por propostas em carta fechada, por preço inferior à dívida exequenda, com a finalidade de obter a satisfação do restante crédito, não configura, por si só, abuso de direito. O prosseguimento da execução nas condições descritas não configurará, em princípio, enriquecimento sem causa. A verificação de um e de outro terá de resultar sempre em função da análise das circunstâncias do caso concreto”.
Também a Relação de Évora, através do acórdão de 05-02-2014 (Processo 722/12.3TBBJA-A.E1, rel. ACÁCIO NEVES) concluiu que: “Tendo a entrega, pelos réus ao Banco autor, do imóvel adquirido com recurso ao crédito, sido efectuada através de escritura pública denominada “dação em cumprimento” na qual se declarou expressamente que tal dação apenas visava o “cumprimento parcial das responsabilidades anteriormente assumidas” e tendo os réus ali reconhecido que continuavam devedores de determinadas quantias, não constitui abuso de direito ou enriquecimento sem causa, o facto de o Banco vir exigir dos réus o pagamento de tais quantias. É para o efeito irrelevante o facto de o valor do imóvel, aceite naquela escritura, por ambas as partes, como sendo o valor do imóvel, poder ser inferior ao valor da avaliação feita aquando da concessão do crédito, na medida em que, para além de estar em causa um valor expressamente aceite pelos réus, a primeira avaliação pode ter sido feito de forma incorrecta e nada impedia que o valor do imóvel se tivesse desvalorizado entretanto, mormente pelo seu uso, sendo certo que, conforme é público e notório, mercê da crise financeira e do imobiliário, os imóveis têm vindo a ser objecto de acentuada desvalorização”.
Assinala Carla Câmara (“A aquisição da propriedade do bem hipotecado pelo credor e a questão da satisfação (integral ou parcial) do crédito”, in Estudos em homenagem ao Prof. Doutor José Lebre de Freitas, 1° vol., Coimbra Editora, 2013, p. 762-773) as seguintes considerações que se poderão — de forma prospectiva e, no geral, consensual — tecer ao nível jurídico sobre a questão: “1) A crise económica determinou grandes dificuldades económicas de cumprimento dos mutuários — em especial daqueles em pior situação económica — relativamente aos créditos antes contraídos. 2) O princípio geral do cumprimento das obrigações determina que o devedor cumpre a obrigação quando satisfaz integralmente a prestação a que se vinculou. 3) Em caso de incumprimento, o princípio geral é o da garantia do pagamento coercivo do crédito à custa da garantia geral das obrigações (património do devedor) ou das garantias especialmente constituídas para o efeito (v. g. hipoteca). 4) A desvalorização do bem hipotecado — que integra o património do devedor — por si só não determina ou condiciona o não cumprimento das obrigações assumidas pelo devedor. 5) Na contratação de um crédito bancário hipotecário há riscos assumidos reciprocamente por mutuante e mutuário, que não podem, sem mais, ser olvidados. 6) A desvalorização acentuada do bem hipotecado — fruto de inesperadas condicionantes do mercado — pode ser factor determinante no desencadear da resolução ou modificação do contrato por alteração das circunstâncias (cfr. artigo 437.° do Código Civil). 7) Em caso de não cumprimento das obrigações assumidas pelo mutuário, o mutuante tem o direito subjectivo de se ver pago do crédito concedido e dos respectivos juros remuneratórios — e outras quantias contratualmente estipuladas — acordados. 8) A dação do bem hipotecado ao credor para cumprimento, ou em função do cumprimento, pode ser equacionada como uma solução — com benefícios até ao nível fiscal — para a redução da dívida ou até para a sua extinção. 9) Contudo, a dação em cumprimento é um instituto jurídico que, para ser factor extintivo da dívida, depende do acordo do credor. 10) Na posição do mutuário haverá, porventura e de jure condendo, que distinguir as situações em que o património do devedor contém outros bens susceptíveis de garantir o pagamento do crédito hipotecário, dos casos em que o bem hipotecado constitui a residência habitual do executado e o único património susceptível de, em tese, solver a dívida, podendo e devendo existir intervenção politico-legislativa que tutele, de forma especial, as situações particulares — como a de desemprego ou de redução acentuada e inesperada de rendimentos do agregado familiar ou a de “agregados em situação económica muito difícil” — que se justificarem. 11) A institucionalização de uma dação em cumprimento obrigatória face a instituições de crédito, quanto aos créditos hipotecários, não tem cabimento no nosso direito, devendo ser rejeitada, sendo certo que uma alteração nesse sentido, não poderia afectar as relações jurídicas já existentes, rejeitando-se a aplicação retroactiva da lei que nesse sentido fosse publicada. 12) Devem ser ponderadas soluções alternativas à adopção de uma «dação em cumprimento obrigatória». 13) De jure condito cumpre assinalar que não se confunde com a dação em cumprimento, a aquisição — por venda ou adjudicação do bem — que o banco/exequente faça, em processo judicial, do imóvel objecto do crédito à habitação. 14) Uma coisa é o valor da dívida — que não depende, nem é afectado por variações do valor do bem que é sua garantia — outra o valor do imóvel hipotecado. 15) Em caso de diminuição do valor da garantia o credor pode, em regra, pedir o reforço ou a substituição da garantia de hipoteca (cfr. artigo 701.° do C.C.). 16) A reavaliação do imóvel em situação de incumprimento — extrajudicialmente — deverá ser efectuada de acordo com critérios objectivos de valor de mercado e por uma entidade independente de mutuário e mutuante. 17) A avaliação a efectuar em processo judicial deverá, igualmente, ser efectuada de forma objectiva e isenta e a ela se deverá proceder sempre previamente à colocação do imóvel em venda, com vista à obtenção do melhor valor para o seu produto. 18) Em caso de o valor do imóvel ser adjudicado ou vendido por valor superior àquele em que foi avaliado, deverá reverter para o mutuário (na falta de outros pagamentos a efectuar, por exemplo, a outros credores) o valor remanescente. 19) No caso de o valor do imóvel, objecto de reavaliação, ser inferior ao do montante da dívida hipotecária, a instituição mutuante deve ter direito, em regra, a prosseguir a execução para obter o remanescente, a não ser que tenha actuado em "abuso de direito". 20) Parece poder convocar-se a figura do "abuso de direito" — na modalidade do "venire contra factum proprium" — do exequente ao requerer o prosseguimento da execução, em processo executivo, para cobrança de remanescente, após ter adquirido a propriedade do bem hipotecado, quando se evidencia uma desconformidade entre o formal exercício de um direito processual e a materialidade subjacente do correspondente direito substantivo, designadamente quando, de forma manifesta, o valor obtido pelo credor — e que ingressa no seu património — ao adquirir o bem em processo executivo, é superior àquele pelo qual o bem foi, na realidade, alienado naquele processo em termos de satisfazer (parcial ou integralmente) a dívida exequenda e, não obstante, ainda assim, o credor pretender o prosseguimento da execução. 21) O "abuso de direito" no prosseguimento da execução, após a aquisição da habitação hipotecada — em processo judicial —evidenciar-se-á, em particular, se se considerar e apreciar, no caso concreto: - Que o exequente financiou a aquisição do bem imóvel, que avaliou previamente e que aceitou como garantia hipotecária do mútuo, considerando-o apto para solver — com a possível execução da hipoteca — o seu crédito (garantia que oportunamente avaliou, de forma prudente, e que aceitou como adequada para garantir o pagamento do seu crédito, em caso de possível execução de hipoteca ou venda, tendo em conta os aspectos duradouros do prazo do crédito, das condições normais de mercado e locais em que o imóvel se integra, o seu uso, etc.); -Que a instituição de crédito tem a obrigação legal de efectuar um acompanhamento da evolução dos valores dos bens sobre os quais tem constituída uma garantia real, efectuando as competentes provisões — designadamente, de harmonia com o previsto no Aviso n.° 3/95 do Banco de Portugal — e detectando a menos-valia correspondente, devendo proceder às condutas de ajuste de risco que considere prudentes e se durante todo o seu comportamento que precedeu a execução, não actuou os mecanismos legais correspondentes, nem tenha solicitado o reforço ou a substituição da garantia hipotecária que o imóvel constituía; — Que esteja evidenciado — ou então que esteja manifestada a clara recusa do banco em fornecer tal informação — o valor pelo qual a instituição de crédito incorporou no seu património o activo patrimonial adjudicado através da venda realizada, em desconformidade com o valor pelo qual o bem foi adjudicado em execução. 22) A apreciação do comportamento da instituição bancária não se encontra, de modo algum inviabilizada no processo executivo, mostrando-se necessária para aferir se a mesma adequou a sua conduta processual ao direito substantivo subjacente, ou se tal não sucede, de modo a que, se revele utilidade — cfr. artigo 137.° do C.P.C. — na determinação do prosseguimento do processo judicial ou, no caso contrário, se considere impedido tal prosseguimento, por ilegítimo, em face do abuso que o exercício de tal direito do exequente evidenciaria”.
Dispõe o artigo 334º do CC que: “É ilegítimo o exercício de um direito, quando o titular exceda manifestamente os limites impostos pela boa-fé, pelos bons costumes ou pelo fim social ou económico desse direito.”
Comentando o referido preceito legal refere Almeida Costa (Direito das Obrigações; 5ª Ed., 1991, p. 65) o seguinte: “Como se verifica, o nosso legislador aceitou a concepção objectiva do abuso de direito. Não é preciso que o agente tenha consciência da contrariedade do seu acto à boa fé, aos bons costumes ou ao fim social ou económico do direito exercido. Basta que na realidade esse acto se mostre contrário. Exige-se, todavia, um abuso nítido: o titular do direito deve ter excedido manifestamente esses limites impostos ao seu exercício. A lei refere-se ao exercício de direitos - o caso paradigmático de actuação do instituto. A sua letra, portanto, não abrange imediatamente quaisquer hipóteses de inércia ou omissão de exercício que possam também considerar-se abusivas. Mas parece que isso não deve constituir obstáculo insuperável, contanto que se encontrem soluções do segundo tipo clamorosamente ofensivas da boa fé, dos bons costumes ou do fim social e económico do direito (...)”.
Menezes Cordeiro (Da Boa-Fé no Direito Civil, 1997, pp. 717-718) sustenta que o artigo 334º do CC é o resultado codificado de uma série de regulações típicas de comportamentos abusivos, apreciados pela doutrina germânica.
Abordando de forma detalhada e completa o instituto do abuso de direito o mesmo Autor (no Tratado de Direito Civil Português; Vol. I, Almedina, Coimbra, 1999, pp. 199 a 213) enuncia seis tipos característicos em que se pode manifestar o «abuso de direito», a saber:
- A “exceptio doli” (que permitia no Direito Romano deter uma posição jurídica do adversário, num caso, invocando o defendente a prática, pelo autor, de dolo no momento da formação da situação jurídica levada a juízo e, noutro, contrapondo o defendente o incurso do autor em dolo no próprio momento da discussão da causa);
- O “venire contra factum proprium” (ablação do brocardo latino “venire contra factum proprium nulli concidetur”, significando, que a ninguém é permitido agir contra o seu próprio acto, expressando a reprovação social e moral que recai sobre aquele que assume comportamentos contraditórios);
- As “inalegabilidades formais” (consistente na alegação, em contradição com a boa fé, de nulidade derivada da inobservância da forma prescrita por lei para certos negócios);--
- A “supressio” (posição jurídica que não tendo sido exercida durante certo tempo, não mais o pode ser, pois, tal exercício atenta contra a boa fé) e a surrectio (caso em que uma pessoa vê surgir na sua esfera jurídica, por força da boa fé, uma possibilidade que, de outro modo, não lhe assistiria);
- O “tu quoque” (expressão que visa cobrir os casos em que aquele que viole uma norma jurídica não pode tirar partida do violação exigindo, a outrem, o acatamento das consequências daí resultantes); e
- O “desequilíbrio no exercício” (ou seja, aquelas situações em que ocorre desiquilíbrio no exercício de várias posições jurídicas, nos diversos casos em que tal desiquilíbrio se pode manifestar: exercício danoso inútil; dolo agit qui petita quod statim redditurus est; e a desproporcionalidade).
O abuso do direito pressupõe a existência do direito (direito subjectivo ou mero poder legal), embora o titular se exceda no exercício dos seus poderes. A nota típica do abuso do direito reside, por conseguinte, na utilização do poder contido na estrutura do direito para a prossecução de um interesse que exorbita do fim próprio do direito ou do contexto onde ele deve ser exercido (cfr. Castanheira Neves, Questão de Facto, Questão de Direito, I-513 e sgs.; Cunha de Sá, Abuso do Direito, Lisboa, 1973-451 e sgs.; A. Varela, Abuso do Direito, Rio de Janeiro, 1982 e Código Civil Anotado, vol. I, 3ª ed., anot. ao art. 334 CC; e Galvão Telles, Direito das Obrigações, 3ª ed., p. 6).
O abuso do direito exige a alegação e prova de circunstâncias excepcionais relativas ao seu exercício. O abuso de direito tem todas as consequências de um acto ilegítimo: Pode dar lugar à obrigação de indemnizar, à nulidade nos termos gerais do art. 294.º do C.C., à legitimidade de oposição, ao alongamento de um prazo de prescrição ou de caducidade (cfr. Vaz Serra, in Revista de Legislação e Jurisprudência, ano 107.º, p. 25).
Antunes Varela sublinha que a condenação por abuso de direito “aponta de modo inequívoco para as situações concretas em que é clamorosa, sensível, evidente a divergência entre o resultado de aplicação do direito subjectivo, de carga essencialmente formal, e alguns valores impostos pela ordem jurídica para a generalidade dos direitos ou, pelo menos, de direitos de certo tipo”, acrescentando que, a solução do art. 334º do Código Civil só aponta para os casos de contradição manifesta (in R.L.J., Ano 128º, pág. 241).
Por seu turno, Castanheira Neves configura o abuso de direito como um limite normativamente imanente ou interno dos direitos subjectivos, pelo que no comportamento abusivo são os próprios limites normativos-jurídicos do direito particular que são ultrapassados (Questão-de-facto-questão-de-direito, pág. 526, nota 46).
Segundo Coutinho de Abreu, “há abuso de direito quando um comportamento, aparentando ser exercício de um direito, se traduz na não realização dos interesses pessoais de que esse direito é instrumento e na negação de interesses sensíveis de outrem” (Do Abuso de Direito, Almedina, Coimbra, 1999, p. 43).
Para Baptista Machado, o juiz tem de decidir primeiro a questão de saber se o direito invocado existe ou não e só no caso de concluir pela sua existência (não o caso inverso) lhe é lícito apreciar o exercício abusivo do mesmo direito (in Parecer publicado na C. J., Ano IX, Tomo 2, p. 17).
Revertendo ao caso dos autos e tendo presentes as considerações supra expendidas, apreciemos, pois, se o comportamento do apelado/exequente, no prosseguimento da execução, configurou o exercício abusivo de um direito.
Como se disse, a apreciação da verificação da existência de abuso de direito só em função das características de cada caso concreto se pode efetuar.
Ora, no caso em apreço, da conduta do exequente não se pode extrair qualquer comportamento abusivo no exercício e prosseguimento da demanda.
Por um lado, não se afigura demonstrado, por qualquer forma, que o valor pelo qual o exequente adquiriu o imóvel, em 2011, seja patentemente desconforme com o valor de mercado que o imóvel então teria. O ónus de demonstração de que tal sucedeu caberia aos recorrentes, enquanto fundamentador da respetiva invocação (cfr. artigo 342.º, n.º 1, do CC) e o mesmo não foi, por qualquer modo, exercitado.
Neste ponto, a mera divergência objetiva entre o valor pelo qual o mútuo teve lugar, com referência à aquisição do imóvel, em contraponto com o valor pelo qual o exequente veio a adquirir o imóvel, por si só, nada permite concluir, sendo certo que, a função da hipoteca e a consideração do seu valor no momento da sua constituição é a de garantir o cumprimento do mútuo contratado.
Do mesmo modo, não se verifica que o apelado tenha, de algum modo, acordado com os executados no sentido de que com a entrega do imóvel, o débito dos executados se viesse a extinguir ou a limitar por qualquer modo, não se comprovando qualquer comportamento desleal, inadequado ou negligente no sentido da aferição do valor do imóvel hipotecado que, por exemplo, patenteasse para o exequente – antes da aquisição que efetuou – que o mesmo se encontrava claramente desvalorizado, sem actuação de mecanismos com vista ao reforço ou substituição da garantia hipotecária ou que tenha sido recusada pelo apelante alguma informação a este respeito.
Por outro lado, as circunstâncias em que teve lugar a aquisição pelo exequente também não relevam qualquer abusividade, pois, de facto, o exequente apenas veio a adquirir o imóvel, pelo valor que ocorreu, depois de ter sido tentada a venda do mesmo a terceiros, por propostas em carta fechada e depois de se ter dado a possibilidade aos executados de se pronunciarem sobre o valor e condições da respetiva venda, não resultando desse processo que o valor pelo qual o bem foi colocado em venda fosse claramente desvalorizado face ao seu real valor, ou subavaliado de alguma forma.
Conforme se lê na decisão recorrida, considerações que não merecem censura: “Com efeito, as diligências tendentes à fixação do valor de venda do bem e os critérios para aceitação das propostas de adjudicação e/ou venda do mesmo visam, precisamente, que o mesmo se aproxime o mais possível do valor real do bem penhorado (cfr. designadamente o que se dispõe no art. 812º/1, n.º 3, a) e b) e n.º 5 do CPC), sendo assim nessa fase – anterior à venda ou adjudicação – que cabe diligenciar-se para que estas ocorram por valor, dentro do possível (ou seja, em termos que não as inviabilizem, por falta de obtenção de quaisquer propostas) correspondente ao valor efectivo do bem. Assim, tendo ocorrido uma das formas de pagamento previstas no art. 795º/1, este deve ter-se por efectuado pelo valor da mesma (adjudicação), o qual, na sua fixação, foi já obtido, nos termos legais, de forma a corresponder o mais proximamente possível ao real valor do bem adjudicado”.
Concluindo-se que a conduta da exequente não se revelou, de qualquer modo, abusiva, a alegação em contrário produzida pelos recorrentes não se mostra fundada.
A apelação deverá, em consequência, ser julgada improcedente, mantendo-se, na íntegra, a decisão recorrida.
*
A responsabilidade tributária inerente deverá ficar a cargo dos executados/recorrentes, atento o seu integral decaimento – cfr. artigo 527.º, n.ºs. 1 e 2, do CPC – e sem prejuízo do apoio judiciário de que beneficiem.
* 5. Decisão:
Em face do exposto, acordam os Juízes que compõem o colectivo desta 2.ª Secção Cível, em julgar a apelação improcedente e, em consequência, em confirmar a decisão proferida pelo Tribunal recorrido.
Custas a cargo dos executados/apelantes, sem prejuízo do apoio judiciário de que beneficiem.
Notifique e registe.
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Lisboa, 21 de maio de 2020.
Carlos Castelo Branco
Lúcia Celeste da Fonseca Sousa
Magda Espinho Geraldes