Decisão IMPROCEDENTE A APELAÇÃO INTERPOSTA DO SANEADOR (EXCEPÇÃO DA CADUCIDADE); PROCEDENTE A APELAÇÃO INTERPOSTA DA SENTENÇA (ILEGITIMIDADE PASSIVA, POR PRETERIÇÃO DE LITISCONSÓRCIO NECESSÁRIO)
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IMPUGNAÇÃO PAULIANA
TRANSMISSÕES POSTERIORES
CADUCIDADE
LEGITIMIDADE PASSIVA
Sumário
I- Quando são objecto de impugnação atos de transmissão subsequentes, a contagem do prazo de caducidade inicia-se na data da primeira alienação efectuada pelo devedor porque é neste momento que se verifica a lesão da garantia patrimonial. II- Se a regra para os meios de defesa em geral é a da concentração na contestação, a lei estabelece exceções, designadamente quanto a meios de defesa que podem ser deduzidos após a apresentação da contestação conforme resulta de forma inequívoca do n.º 2 do artigo 573º. III- Uma das excepções é o núcleo de casos integrado pelos meios de defesa de que o tribunal pode conhecer oficiosamente em que a lei admite a sua dedução após a contestação, não obstante na sua invocação o réu não possa alegar factos novos. IV- Estando em causa a exceção de ilegitimidade passiva, exceção dilatória que o juiz pode conhecer oficiosamente, as partes podem invocá-la depois da contestação. V- Na acção de impugnação pauliana, a relação controvertida envolve três sujeitos: o credor, o devedor alienante e o terceiro adquirente e, no caso de transmissões posteriores, envolve ainda os subadquirentes, sendo necessária a intervenção de todos sob pena de se verificar a ilegitimidade passiva por preterição de litisconsórcio necessário.
Texto Integral
ACORDAM NO TRIBUNAL DA RELAÇÃO DE GUIMARÃES
I. Relatório
X – SOCIEDADE UNIPESSOAL, LD.ª intentou contra R. M. e M. M. a presente acção declarativa comum, formulando os seguintes pedidos:
a) ser reconhecido e assegurado à Autora o direito pessoal de restituição do prédio que identifica, na medida do seu interesse, como se o referido bem ora vendido aos aqui Réus nunca tivesse saído do património dos seus primitivos proprietários, face à ineficácia relativa de tal aquisição em relação à Autora;
b) ser reconhecido à Autora o direito de executar o referido bem, na exacta medida do necessário para a satisfação do seu crédito – no valor de €71.308,84, a título de capital, acrescido dos juros de mora vencidos, no montante actual de €38.873,98, e vincendos até eventual pagamento – sem a concorrência de qualquer outro eventual credor.
Alega, para tanto e em síntese que detém um crédito sobre os pais do Réu no valor de €71.308,84, acrescido de juros contados desde 2001, o qual foi já reconhecido por sentença proferida em 08/04/2019 e transitada em julgado em 21/05/2019, a qual também declarou nulo o negócio de transmissão do prédio urbano descrito na Conservatória do Registo Predial ... sob o n.º ..., e inscrito na matriz predial urbana da actual União das freguesias de ..., ... e ... sob o artigo ....
Que os ali transmissários alienaram o prédio em questão aos ora Réus (antes do registo dessa acção) e que, quanto a este concreto negócio, não foi requerida nem proferida decisão.
A Autora pretende ver reconhecida quanto a este negócio a impugnação pauliana.
Citados, os Réus vieram invocar a exceção da caducidade considerando a data em que foi celebrado o primeiro negócio (já declarado nulo no âmbito daquele identificado processo) e pugnaram pela improcedência do pedido, alegando que a impugnação pauliana não pode versar sobre um negócio viciado (o negócio que conduziu à transmissão do bem para o património de quem figurou como transmitente no negócio ora impugnado foi declarado nulo).
A Autora respondeu, sublinhando que o prazo de caducidade a considerar tem por referência o negócio impugnado e não um outro que o precedeu, mais pugnando pelo prosseguimento dos autos, na medida em que a invalidade do negócio que conduziu à transmissão impugnada não obsta ao mérito da sua pretensão.
Em 06/11/2019 foi dispensada a realização da audiência prévia e foi proferido despacho saneador, que julgou improcedente a excepção de caducidade nos seguintes termos: “Não se verifica a excepção de caducidade invocada pelos réus, já que o negócio impugnado nestes autos foi celebrado em 17 de Novembro de 2016, tendo a acção sido intentada em 18.07.2019, não tendo, por conseguinte, passado os cinco anos a que alude o art. 618º do CC.”
Foi ainda proferido despacho a identificar o objeto do litígio e a enunciar os temas da prova e designada data para realização do julgamento.
Os Réus, notificados do despacho saneador proferido, e não se conformando com a decidida improcedência da exceção de caducidade, vieram recorrer concluindo as suas alegações da seguinte forma:
“III.- Conclusões:
i.- O presente recurso tem por objeto a decisão do tribunal «a quo» que julga não verificada a exceção de caducidade invocada pelos réus/recorrentes.
ii.- Quando são também objecto de impugnação actos de transmissão subsequentes, é na data da primeira alienação, efectuada pelo devedor, que se inicia a contagem do prazo de caducidade, porque é nesse momento que se verifica a lesão da garantia patrimonial;
iii.- Estando à autora arredada a possibilidade de impugnação (pauliana) direta do ato celebrado entre os réus e J. C., por não se afigurar, atentos os factos aduzidos, como credora deste (cfr., artigo 610.º, do código civil), evidente é que a procedência da impugnação contra esta transmissão posterior depende absolutamente de se manter ainda na sua esfera jurídica a suscetibilidade de impugnação da primeira transmissão – i.e., a transmissão do bem/direito efetuada pelos seus devedores a J. C. -, nomeadamente, de o direito à impugnação deste ato lesivo da sua garantia patrimonial não ter caducado por decurso do tempo (cfr., artigo 618.º, do Código civil).
iv.- A interpretação artigo 618.º do código civil tal qual propõe o tribunal «a quo» conduziria a situações verdadeiramente iníquas e bizarras.
v.- Considerando que o ato lesivo da garantia patrimonial da autora ocorreu, conforme afirma a própria, no dia 11 de abril de 2012, e tendo o direito à impugnação sido exercido no dia 18 de julho de 2019, evidente é que este direito prescreveu, tal qual oportunamente invocado.
vi.- Do texto do artigo 616.º do código civil conclui-se, sem hesitação, que os efeitos previstos no artigo 616.º, do código civil, somente poderão ser possíveis relativamente aos subadquirentes – os aqui recorrentes – se estes ficarem obrigados à restituição, em consequência da procedência da impugnação contra a transmissão posterior (cfr., artigo 613.º, do código civil), apresentando-se esta como pressuposto necessário dos efeitos previstos na norma, de tal maneira que faltando aquela não são possíveis estes.
vii.- Não tendo procedido a impugnação, ou inexistindo tal procedência, contra o ato lesivo da garantia patrimonial da autora, ou suas transmissões posteriores, os efeitos e direitos previstos no artigo 616.º do código civil são evidentemente inexistentes na esfera jurídica da autora.
viii.- A suscetibilidade de procedência de uma tal impugnação encontra-se definitivamente arrumada, por força do caso julgado decorrente da decisão, entretanto transitada em julgado, proferida no âmbito do processo 6946/16.7T8GMR, que correu termos pelo juízo central cível de Guimarães, juiz 2, do Tribunal Judicial da Comarca de Braga (cfr., documento junto com a petição sob o número 3), nos termos da qual foi julgado improcedente o pedido, formulado pela aqui autora, de impugnação (pauliana) da primeira transmissão (cfr., documento junto com a contestação sob o número 1).
ix.- Para que a impugnação vingasse contra a transmissão posterior – i.e., o ato pelo qual o bem foi vendido aos aqui réus - seria necessário que, relativamente à primeira transmissão, se verificassem os requisitos da impugnabilidade referidos nos artigos 610.º e 612.º (cfr., artigo 613.º, n.º 1, al. a), do código civil), designadamente, 1) a prática ou celebração de um ou mais atos que envolvam diminuição da garantia patrimonial do crédito e que não sejam de natureza pessoal, 2) ser o crédito anterior ao ato, o sendo posterior, ter sido o ato realizado dolosamente com o fim de impedir a satisfação do direito do futuro credor, 3) resultar do ato a impossibilidade, para o credor, de obter a satisfação integral do seu crédito, ou o agravamento dessa impossibilidade e 4) que o devedor e o terceiro agissem de má-fé (tendo sido o ato oneroso).
x.- Ora, relativamente ao primeiro requisito – i.e., a prática ou celebração de um ou mais atos que envolvam diminuição da garantia patrimonial do crédito e que não sejam de natureza pessoal – evidente é que o mesmo, considerados os factos alegados pela autora, não se verifica - ou é suscetível de se verificar -, na medida em que a primeira transmissão declarada nula por simulação e, por isso, anulados os efeitos do ato que, a subsistir, envolvia – mas não envolve já, por ter sido declarado nulo - a diminuição da garantia patrimonial do crédito: «(…) se os bens, cuja alienação tinha sido impugnada regressarem ao património do devedor em consequência do reconhecimento voluntário ou judicial (noutro processo) da nulidade do negócio de alienação, cessa o direito de impugnação, por ter sido restabelecida a garantia patrimonial» - JOÃO CURA MARIANO, in IMPUGNAÇÃO PAULIANA, 2.ª edição revista e atualizada, páginas 128 e 129, Almedina. No mesmo sentido, Maria de Fátima Ribeiro, in “Comentário ao CC- Direito das Obrigações – Das obrigações em geral”, UCP, pág.721.
xii.- Anote-se que tendo sido o ato declarado nulo, não poderá o mesmo ser sujeito à pauliana, uma vez que a procedência desta pressupõe a validade do ato impugnado.
xiii.- Tal entendimento é, segundo se crê, pacífico: «(…) o acto sujeito à impugnação pauliana não tem vício genético algum, sendo totalmente válido, pelo que mantém a sua pujança jurídica em tudo quanto exceda a medida do interesse do credor (…)», PEDRO ROMANO MARTINEZ e PEDRO FUZETA DA PONTE, in GARANTIAS DE CUMPRIMENTO, 4.ª edição, página 20, Almedina; «(…) é possível a impugnação de atos que sofram de vícios que afectem a sua validade, ignorando, no entanto, o fenómeno da impugnação essa deficiência» (JOÃO CURA MARIANO, ob. cit., nota 146, página 91); «(…) o acto impugnado tal como não sofre necessariamente de um vício genético, também não é um acto ilícito pelo facto de prejudicar os interesses do credor (…) perante um acto perfeitamente válido, lícito e eficaz entre as partes que o outorgaram, mas que lesa a expectativa jurídica dos credores (…) de poderem vir a obter a satisfação dos seus créditos (…) foi resolvida pelo legislador pela prevalência dos interesses dos credores (…) através da possibilidade destes poderem neutralizar - apenas - o efeito secundário dos atos impugnados que se traduzam na diminuição do património garante dos seus créditos, através de uma ineficácia duplamente parcial (idem, páginas 93 e 94).
xiv.- Concluindo: não pode ser impugnado um ato que não foi mantido na ordem jurídica, em razão da declaração de nulidade dos seus efeitos, certo que a procedência da impugnação pauliana somente é possível perante um ato válido. Na verdade, só assim se justifica que os efeitos da impugnação aproveitem apenas o credor que a tenha requerido (cfr., artigo 616.º, n.º 4, do código civil).
xv.- Ao decidir como decidiu, considerando não verificada a caducidade do direito à impugnação, violou o tribunal a quo, entre outros, o disposto no artigo 618.º do código civil.”
Pugnam os Recorrentes pela revogação da decisão recorrida e sua substituição por outra que julgue verificada a caducidade do direito de impugnação da Autora.
Não foram apresentadas contra-alegações.
Por requerimento apresentado em 09/01/2010 os Réus vieram invocar a ilegitimidade passiva e requerer a sua absolvição da instância.
Foi proferido despacho pelo tribunal a quo em 27/01/2020 determinando o desentranhamento do requerimento.
Veio a efectivar-se a audiência de discussão e julgamento (iniciada em 15/01/2020) com a prolação de sentença nos seguintes termos, no que concerne à parte dispositiva: “Pelo exposto, vai a presente acção julgada procedente e, em consequência, reconhece-se à autora "X – Sociedade Unipessoal, Ld.ª" o direito de executar o prédio urbano descrito na Conservatória do Registo Predial ... sob o n.º ..., e inscrito na matriz predial urbana da actual União das freguesias de ..., ... e ... sob o art. ..., na medida do necessário para a satisfação do seu crédito, nos termos reconhecidos pela sentença identificada no artigo 5) dos factos provados. Custas pelos réus – nº 2 do art. 527º do CPC.”
Inconformados, voltaram a apelar os Réus, concluindo as suas alegações da seguinte forma:
“IV. Conclusões
i.- O presente recurso tem por objeto:
a) a decisão de julgar processualmente inadmissível o ato com a referência eletrónica 9606151 e a (consequente) decisão de desentranhamento do mesmo; e/ou
b) a decisão de não conhecer a exceção (dilatória) de ilegitimidade dos réus; e
c) a decisão de julgar procedente a ação e, em consequência, de reconhecer à autora "X – Sociedade Unipessoal, Ld.ª" o direito de executar o prédio urbano descrito na Conservatória do Registo Predial ... sob o n.º ..., e inscrito na matriz predial urbana da actual União das freguesias de ..., ... e ... sob o art. ..., na medida do necessário para a satisfação do seu crédito, nos termos reconhecidos pela sentença identificada no artigo 5) dos factos provados;
ii.- Os recorrentes entendem as decisões ilegais;
iii.-podem obviamente ser deduzidas, depois da contestação, as exceções que o tribunal deva conhecer oficiosamente (Cfr., artigo 573.º, n.º 2, do Código de Processo Civil), destacando-se, de entre os casos possíveis, a ilegitimidade de alguma das partes (Cfr., artigos 576.º, n.ºs 1 e 2; e 577.º, al. e), idem).
iv.- Por conseguinte, a decisão de não admitir o ato o ato com a referência eletrónica 9606151 e a (consequente) decisão de desentranhamento do mesmo são ilegais, por violação do disposto no artigo 573.º, n.º 2, do Código de Processo Civil;
v.- A decisão de julgar procedente a ação ação e, em consequência, de reconhecer à autora "X – Sociedade Unipessoal, Ld.ª" o direito de executar o prédio urbano descrito na Conservatória do Registo Predial ... sob o n.º ..., e inscrito na matriz predial urbana da actual União das freguesias de ..., ... e ... sob o art. ..., na medida do necessário para a satisfação do seu crédito, nos termos reconhecidos pela sentença identificada no artigo 5) dos factos provados, viola o disposto nos artigos 613.º e 616.º, do código civil”.
Pugnam os Recorrentes pela revogação das decisões recorridas e sua substituição por outra que julgue procedente a exceção de ilegitimidade e a nulidade invocada.
A Autora contra-alegou pugnando pela total improcedência do recurso.
Colhidos os vistos legais, cumpre decidir.
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II. DELIMITAÇÃO DO OBJECTO DOS RECURSOS
O objecto do recurso é delimitado pelas conclusões da alegação do recorrente não podendo este tribunal conhecer de matérias nelas não incluídas, sem prejuízo das de conhecimento oficioso (artigo 639º do CPC).
As questões a decidir, tendo em conta o teor das conclusões formuladas pelos Recorrentes, são as seguintes:
A) Quanto ao recurso da decisão que julgou improcedente a exceção de caducidade:
- Saber se se verifica a caducidade do direito de impugnação;
B) Quanto ao recurso da sentença:
- Saber se é admissível a invocação da exceção de ilegitimidade pelo réu após a contestação;
- Saber se na acção de impugnação pauliana ocorre uma situação de litisconsórcio necessário passivo, relativamente ao devedor, ao terceiro adquirente e ao subadquirente, no caso de dupla alienação;
- Saber se obsta à impugnação da segunda alienação a declaração da nulidade da primeira transmissão.
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III. FUNDAMENTAÇÃO
3.1. Os factos
Factos considerados provados em Primeira Instância:
1. A autora dedica-se profissionalmente e com intuito lucrativo à criação de aves, comércio em bancas, feiras e unidades móveis de venda de aves, rações e suplementos de aves, comércio de produtos alimentares frescos e congelados.
2. O réu R. M. nasceu em - de Abril de 1986 e é filho de J. M. e de A. J..
3. Nos anos de 2008 a 2011, a autora vendeu a J. M. diversos bens alimentares, destinados a um estabelecimento comercial que este explorava, denominado “Churrasqueira …”, cujo preço ascendia, em 31.08.2011, ao valor global de € 71.308,84;
4. J. M. retirava da exploração daquele estabelecimento comercial os rendimentos necessários à subsistência do seu agregado familiar, dos quais, por isso, beneficiava também A. J., cônjuge daquele.
5. Para reconhecimento do direito de crédito referido em 3), a autora instaurou contra J. M. e A. J., entre outros, acção declarativa com processo comum, a qual correu termos sob o n.º 6946/16.7T8GMR, pelo Juiz 2 do Juízo Central Cível de Guimarães, do Tribunal Judicial da Comarca de Braga, no âmbito da qual, e por sentença proferida em 08.04.2019, transitada em julgado em 21.05.2019, J. M. e A. J. foram condenados a reconhecer e pagar à autora o valor de € 71.308,84, reportado a fornecimentos do ano de 2011, a título de capital, acrescido dos respectivos juros de mora vencidos nos cinco anos anteriores à data da citação dos réus para a acção, até efectivo e integral pagamento, à taxa de juro aplicável às operações de natureza comercial.
6. Em Setembro de 2011, J. M. e A. J. eram donos e legítimos proprietários de um prédio urbano, composto de casa de habitação de r/c, 1º andar e quintal, sito no referido Lugar de …, da então freguesia de …, actual União de Freguesias de ..., ... e ..., descrito na Conservatória do Registo Predial ... sob o n.º ..., e inscrito na matriz predial urbana da actual União das freguesias de ..., ... e ... sob o art. ..., proveniente do artigo … da extinta freguesia de ….
7. Por escritura de 11 de Abril de 2012, J. M. e A. J. declararam vender a J. C., irmão da referida A. J., que declarou comprar-lhes, pelo preço de € 90.000,00, o prédio urbano descrito na Conservatória do Registo Predial ... sob o n.º ....
8. Esse negócio de compra e venda datado de 11 de Abril de 2012 foi declarado nulo pela sentença proferida no P. n.º 6946/16.7T8GMR, por simulação absoluta, tendo sido ordenado o cancelamento dos registos de aquisição do imóvel.
9. Por documento autenticado datado de 17 de Novembro de 2016, J. C., com o expresso consentimento da mulher, M. R., declarou vender, pelo preço de € 90.000,00, aos ora réus R. M. e M. M., na proporção e ½ para cada um, o prédio descrito na Conservatória do Registo Predial ... sob o n.º ....
10. No mesmo acto, os ora réus declararam-se devedores da importância de € 82.750,00 perante o Banco …, que deste declararam ter recebido a título de empréstimo para aquisição do prédio em causa.
11. Em 17.11.2016, R. M. e M. M. registaram o prédio a seu favor e sobre ele constituíram hipoteca a favor do Banco ....
12. Aquando do referido em 9) e 11), os réus R. M. e M. M. sabiam da existência da dívida referida em 3).
13. Os réus R. M. e M. M. sabiam que, aquando do negócio referido em 7), nem os ali vendedores, nem os ali compradores, quiseram vender ou comprar, tendo o acordo sido celebrado com intuito de impedir que o bem em questão respondesse pelas dívidas de J. M. e A. J..
14. O referido 9) e 11) visou impedir que o prédio objecto desse negócio viesse a responder pela dívida referida em 3).
15. Os ora réus sabiam da inexistência de bens de valor suficiente à liquidação da dívida referida em 3) no património J. M. e A. J..
*** A) Recurso da decisão que julgou improcedente a exceção de caducidade 3.2. Da caducidade do direito de impugnação
A única questão a decidir, relativamente ao primeiro recurso interposto pelos Réus (da decisão que julgou improcedente a exceção de caducidade) é a de saber, tal como já delimitamos, se se verifica a caducidade do direito de impugnação por parte da Autora.
Os Recorrentes invocaram nos presentes autos a caducidade do direito de impugnação da Autora entendendo que quando são objecto de impugnação actos de transmissão subsequentes, é na data da primeira alienação efectuada pelo devedor, que se inicia a contagem do prazo de caducidade, porque é nesse momento que se verifica a lesão da garantia patrimonial, sendo certo que a procedência da impugnação contra a transmissão posterior depende de se manter a suscetibilidade de impugnação da primeira transmissão, nomeadamente, de o direito à impugnação deste ato lesivo da sua garantia patrimonial não ter caducado por decurso do tempo.
Sustentam ainda que a suscetibilidade de procedência da impugnação encontra-se definitivamente arrumada, por força do caso julgado decorrente da decisão, transitada em julgado, proferida no âmbito do processo n.º 6946/16.7T8GMR nos termos da qual foi julgado improcedente o pedido, formulado pela aqui Autora, de impugnação pauliana da primeira transmissão.
Foi entendimento do tribunal a quo que tendo o negócio impugnado sido celebrado em 17 de Novembro de 2016 e a presente acção intentada em 18/07/2019 não tinham passado os cinco anos a que alude o artigo 618º do Código Civil, não se verificando a excepção de caducidade.
Ao contrário do que sustentam os Recorrentes o tribunal a quo entendeu que o ato impugnado, para efeitos de início de contagem do prazo de caducidade, é o da alienação do prédio aos Recorrentes.
É contra este entendimento que se insurgem os Recorrentes.
Vejamos então se lhes assiste razão.
Não vem questionado nos autos que nos encontramos no âmbito de uma acção de impugnação pauliana, tal como desde o início a configurou a Autora.
Conforme decorre da factualidade provada nos anos de 2008 a 2011, a Autora vendeu a J. M. diversos bens alimentares, destinados a um estabelecimento comercial que este explorava, cujo preço ascendia, em 31/08/2011, ao valor global de €71.308,84; no âmbito da acção declarativa com processo comum, instaurada pela Autora, que correu termos sob o n.º 6946/16.7T8GMR, pelo Juiz 2 do Juízo Central Cível de Guimarães, do Tribunal Judicial da Comarca de Braga, foi proferida sentença em 08/04/2019, transitada em julgado em 21/05/2019, J. M. e A. J. foram condenados a reconhecer e pagar à Autora o valor de €71.308,84, reportado a fornecimentos do ano de 2011, a título de capital, acrescido dos respectivos juros de mora.
Por escritura de 11 de Abril de 2012, aqueles J. M. e A. J. declararam vender a J. C., irmão da referida A. J., que declarou comprar-lhes, pelo preço de €90.000,00, o prédio urbano descrito na Conservatória do Registo Predial ... sob o n.º ... e por documento autenticado datado de 17 de Novembro de 2016, o referido J. C., com o expresso consentimento da mulher, M. R., declarou vender, pelo preço também de €90.000,00, aos ora Recorrentes R. M. e M. M., na proporção de ½ para cada um, o mesmo prédio, tendo estes na mesma data registado o prédio a seu favor e constituído hipoteca a favor do Banco ....
Temos por isso, e para o que aqui neste momento releva, a existência de duas transmissões do prédio: a primeira pelos devedores para J. C., irmão da referida A. J. em 11 de Abril de 2012, e uma transmissão posterior deste para os aqui Recorrentes 17 de Novembro de 2016.
Como é consabido pelo, cumprimento da obrigação respondem todos os bens do devedor susceptíveis de penhora (artigo 601º do Código Civil), sendo o património do devedor a garantia geral das obrigações pelo mesmo assumidas, concedendo-se ainda ao credor a possibilidade de se precaver solicitando ao devedor a prestação de garantias reais ou pessoais, ou ambas, tendo em vista assegurar a satisfação do seu crédito.
Tendo em vista a tutela do devedor, designadamente contra a sonegação ou dissipação pelo devedor de bens do seu património, o legislador estabeleceu ainda meios conservatórios da garantia patrimonial, como a declaração de nulidade, a sub-rogação do credor ao devedor, o arresto e a impugnação pauliana (v. Pedro Romano Martinez Pedro Fuzeta da Ponte, Garantias de Cumprimento, 4ª Edição, página 15 e seguintes).
De facto, mesmo celebrando atos válidos, o devedor pode prejudicar os interesses legítimos do credor diminuindo o seu património, a garantia patrimonial.
O direito português admite a impugnação pauliana, possibilitando ao credor tornar relativamente ineficazes atos de alienação ou oneração realizados pelo devedor para o prejudicar que envolvam diminuição da garantia patrimonial e não sejam de natureza pessoal.
Neste sentido Mário Júlio de Almeida Costa (Direito das Obrigações, 12ª Edição, Revista e Atualizada, página 857) define a impugnação pauliana (numa “simples noção introdutória”) como a faculdade que a lei concede aos credores de atacarem judicialmente certos atos válidos, ou mesmo nulos, celebrados pelos devedores em seu prejuízo.
O artigo 610º do Código Civil prescreve que os actos que envolvam diminuição da garantia patrimonial do crédito e não sejam de natureza pessoal podem ser impugnados pelo credor, se concorrerem as circunstâncias seguintes:
a) Ser o crédito anterior ao acto ou, sendo posterior, ter sido o acto realizado dolosamente com o fim de impedir a satisfação do direito do futuro credor;
b) Resultar do acto a impossibilidade, para o credor, de obter a satisfação integral do seu crédito, ou agravamento dessa impossibilidade.
a) Ser o crédito anterior ao acto ou, sendo posterior, ter sido o acto realizado dolosamente com o fim de impedir a satisfação do direito do futuro credor;
b) Resultar do acto a impossibilidade, para o credor, de obter a satisfação integral do seu crédito, ou agravamento dessa impossibilidade.
E o artigo 615º acrescenta ainda que não obsta à impugnação a nulidade do acto realizado pelo devedor (n.º 1) e que o cumprimento de obrigação vencida não está sujeito a impugnação, mas é impugnável o cumprimento tanto da obrigação ainda não exigível como da obrigação natural (n.º 2).
No artigo 616º n.º1 do Código Civil prevê-se que julgada procedente a impugnação o credor tem o direito à restituição dos bens na medida do seu interesse, podendo executá-los no património do obrigado à restituição e praticar os actos de conservação da garantia patrimonial autorizados por lei, afastando-se assim o legislador do sistema da nulidade que era a solução consagrada no Código de Seabra cujo artigo 1044º estipulava que rescindido o acto ou contrato, os bens revertiam ao cúmulo dos bens do devedor, em benefício dos seus credores; ora, o n.º 4 do actual artigo 616º estabelece também que os efeitos da impugnação aproveitam apenas ao credor que a tenha requerido.
Não está, assim, em causa a declaração de nulidade que permitiria a todos os credores do devedor executar o seu património pois os efeitos da impugnação pauliana aproveitam apenas ao credor que a tenha requerido. Também Pires de Lima e Antunes Varela (Código Civil Anotado, Volume I, 4ª Edição Revista e Atualizada, páginas 633 e 634) referem que o carácter pessoal da acção de impugnação pauliana aparece especialmente afirmado neste artigo 616º n.º 1 e 4.
Porém, o exercício do direito de impugnação está sujeito a prazo, estabelecendo o artigo 618º do Código Civil que o direito de impugnação caduca ao fim de cinco anos, contados da data do acto impugnável.
Está em causa um prazo de caducidade e não um prazo de prescrição, subtraído ao conhecimento oficioso do tribunal, pois que respeita a matéria não excluída da disponibilidade das partes (artigos 303º e 333º nº 1 e 2 do Código Civil), tendo os Recorrentes invocado a verificação da caducidade no articulado de contestação.
A questão que aqui se coloca é o que deve considerar-se o “ato impugnável” para efeitos de contagem do prazo, designadamente nos casos em que se verifica uma dupla transmissão.
Nos casos em que o devedor transmite o bem a um terceiro, através por exemplo de um contrato de compra e venda, cremos não se suscitarem dúvidas que o ato impugnável para este efeito de início de contagem do prazo de caducidade é o da celebração do contrato de compra e venda.
Mas, nos casos em que o terceiro adquirente procede também ele à transmissão a um subadquirente, como ocorre nos autos, o prazo de caducidade conta-se da data da celebração deste contrato de compra e venda ou da data da compra e venda celebrada entre o devedor e o adquirente?
Entendemos assistir nesta parte razão aos Recorrentes quando afirmam que quando são objecto de impugnação actos de transmissão subsequentes, é na data da primeira alienação efectuada pelo devedor, que se inicia a contagem do prazo de caducidade, porque é nesse momento que se verifica a lesão da garantia patrimonial.
Também neste sentido se pronuncia João Cura Mariano (Impugnação Pauliana, 2ª Edição Revista e Aumentada, página 327) considerando que “quando são também objecto de impugnação atos de transmissão subsequentes, é na data da primeira alienação, efectuada pelo devedor que se inicia a contagem do prazo de caducidade, porque é neste momento que se verifica a lesão da garantia patrimonial”.
De facto, a lesão da garantia patrimonial do credor ocorre com a alienação por parte do devedor; o próprio artigo 613º do Código Civil, referente às transmissões posteriores (ou constituição posterior de direitos), estabelece que para que a impugnação proceda contra as transmissões posteriores, é necessário que, relativamente à primeira transmissão, se verifiquem os requisitos da impugnabilidade e ainda que haja má-fé tanto do alienante como do posterior adquirente, no caso de a nova transmissão ser a título oneroso.
Relativamente às transmissões posteriores é, por isso, necessária a verificação dos requisitos da impugnabilidade da primeira alienação, isto é que possa ser impugnada a primeira alienação, pois se esta o não poder ser não se justifica a impugnação das alienações subsequentes sob pena de “se criar um grave e injusto gravame para o primeiro adquirente de boa fé” (cfr. Pires de Lima e Antunes Varela, ob. cit. página 630) e, no caso da transmissão ser a título oneroso, é ainda necessário que tenha havido má fé, tanto do alienante como do posterior adquirente; sendo este regime válido relativamente a todas as transmissões posteriores.
Perfilhamos, assim, o entendimento que para a impugnação de transmissões posteriores não pode ter decorrido o prazo de caducidade relativamente à primeira alienação, isto é não se pode verificar a caducidade do direito de impugnar a primeira alienação, iniciando-se, por isso, a contagem do prazo de caducidade na data da primeira alienação, efectuada pelo devedor.
Considerando que o ato de alienação pelo devedor ocorreu no dia 11 de abril de 2012, e que a acção foi intentada em 18/07/2019, verifica-se então a caducidade do direito de impugnação conforme pretendem os Recorrentes?
Entendemos, ainda assim, que se não verifica in caso a caducidade do direito de impugnação.
É que a Autora efectivamente impugnou a primeira alienação, e fê-lo tempestivamente, pois que a acção declarativa com processo comum, instaurada pela Autora em 2016, e que correu termos sob o n.º 6946/16.7T8GMR, configura também uma acção pauliana na qual a Autora impugnou a transmissão do prédio pelos devedores J. M. e A. J. para J. C., e a tal não obsta que o tenha feito a título subsidiário.
Tal acção foi instaurada em 2016 e, por isso, dentro do prazo de cinco anos contado da data do acto impugnável celebrado em 11 de abril de 2012.
A impugnação pauliana, na parte respeitante à transmissão do prédio em causa, não chegou a ser apreciada na referida acção uma vez a Autora a título principal pediu que fosse declarado nulo, por simulação absoluta, o contrato de compra e venda formalizado pela escritura pública celebrada no dia 11 de abril de 2012, e subsidiariamente que fosse assegurado à Autora o direito pessoal de restituição do prédio, na medida do seu interesse, como se nunca tivesse saído do património dos devedores, face à ineficácia relativa de tais vendas em relação à Autora e que lhe fosse reconhecido o direito de executar o prédio na exata medida do necessário para a satisfação do seu crédito, sem a concorrência de qualquer outro eventual credor.
Por isso, na referida acção, foi decidido reconhecer o direito de crédito da Autora no valor de €71.308,84, a título de capital, acrescido dos respetivos juros de mora vencidos e anular, por simulação absoluta, o contrato de compra e venda formalizado pela escritura pública celebrada no dia 11 de abril de 2012, tendo dessa forma ficado prejudicado o conhecimento da impugnação pauliana quanto ao prédio vendido pelo devedor, uma vez que a venda foi declarada nula por simulação absoluta, tendo sido ordenado o cancelamento do registo de aquisição do imóvel.
Não corresponde por isso à verdade que a questão da impugnação da primeira transmissão se encontre “definitivamente arrumada, por força do caso julgado” pois que a decisão proferida no âmbito do processo n.º 6946/16.7T8GMR não julgou improcedente tal pedido (de impugnação) relativamente ao prédio alienado pelos devedores (mas tão só relativamente aos veículos automóveis de matricula “QQ” e “DT” que os devedores venderam aos aqui Recorrentes).
Assim, sendo impeditivo da caducidade a prática, dentro do prazo legal, do acto a que a lei atribua efeito impeditivo (cfr. artigo 331º do Código Civil) temos de concluir que tendo a Autora instaurado acção de impugnação pauliana em 2016 (dentro do prazo de cinco anos contados da data do acto impugnável realizado em 2012) relativamente à primeira transmissão do prédio pelos devedores, não se verifica a caducidade do direito da Autora impugnar a segunda transmissão, o negócio de compra e venda aos aqui Recorrentes.
Improcede, pois, a apelação, sendo as custas da responsabilidade dos Recorrentes atento o seu integral decaimento (artigo (artigo 527º n.º 1 e 2 do Código de Processo Civil).
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B) Recurso da sentença
Mantendo-se a decisão proferida pelo tribunal a quo quanto à questão da não verificação da caducidade importa agora apreciar se deverá manter-se a decisão jurídica da causa que, julgando procedente a acção, reconheceu à Autora X – Sociedade Unipessoal, Ld.ª o direito de executar o prédio urbano, na medida do necessário para a satisfação do seu crédito.
Importa ainda apreciar a decisão que, na mesma data, determinou o desentranhamento do requerimento apresentado pelos Recorrentes com a invocação da exceção de ilegitimidade passiva, não se pronunciando sobre esta questão.
Tal como delimitado pelos Recorrentes o seu recurso reporta-se:
a) à decisão de julgar processualmente inadmissível o seu requerimento e a (consequente) decisão de desentranhamento do mesmo; e/ou
b) à decisão de não conhecer a exceção (dilatória) de ilegitimidade dos réus; e
c) à decisão de julgar procedente a acção.
As questões suscitadas pelos Recorrentes no seu recurso são, por isso, as de saber se é admissível a invocação da exceção de ilegitimidade pelo réu após a contestação, não devendo ser desentranhado o requerimento que apresentaram, se são parte ilegítima por existir preterição de litisconsórcio necessário e se obsta à impugnação da segunda alienação a declaração da nulidade da primeira transmissão.
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3.3. Da admissibilidade de invocação da exceção de ilegitimidade pelo réu após a contestação
Em 09/01/2010, já após a apresentação da contestação e depois de ser proferido o despacho saneador, os Réus apresentaram requerimento onde vieram invocar a ilegitimidade passiva e requerer a sua absolvição da instância.
Pelo tribunal a quo foi proferido despacho em 27/01/2020 determinando o desentranhamento do requerimento nos seguintes termos: “Requerimento ref. 34494291 (fls. 129 ss.): Em 09.01.2020, ou seja, já depois do despacho saneador e até mesmo da interposição de recurso quanto à excepção de caducidade, vieram os réus apresentar requerimento onde invocaram a ilegitimidade passiva e pugnaram pela respectiva absolvição da instância. Não fundaram o requerido em qualquer preceito. E, efectivamente, não está prevista a invocação das excepções nessa fase processual – arts. 572º; 576º ss.; 590º; 591º e 595º do CPC. O requerimento é, por conseguinte, processualmente inadmissível. Pelo exposto, determino o desentranhamento do requerimento em causa, com a consequente devolução aos apresentantes – art. 130º do CPC. Custas pela ocorrência anómala a suportar pelos réus, fixando-se a taxa de justiça no mínimo legal – nº 4 do art. 7º do RCP”.
Entendeu o tribunal a quo não ser processualmente admissível aos Recorrentes a invocação das exceções na fase processual em que se encontravam, invocando os artigos 572º, 576º e seguintes, 590º, 591º e 595º do Código de Processo Civil.
Cremos, contudo, que o n.º 2 do artigo 573º do Código de Processo Civil confere razão de forma clara à posição aqui sustentada pelos Recorrentes quanto à admissibilidade da invocação da exceção de ilegitimidade passiva.
Vejamos.
Determina o referido artigo 573º, sob a epígrafe oportunidade de dedução de defesa, que toda a defesa deve ser deduzida na contestação, excetuados os incidentes que a lei mande deduzir em separado (n.º 1) e que depois da contestação só podem ser deduzidas as exceções, incidentes e meios de defesa que sejam supervenientes, ou que a lei expressamente admita passado esse momento, ou de que se deva conhecer oficiosamente (n.º 2).
Assim, se a regra para os meios de defesa em geral é a da concentração na contestação (o principio da concentração da defesa na contestação está expressamente consagrado o n.º 1 do referido preceito), a lei estabelece exceções, designadamente quanto a meios de defesa que podem ser deduzidos após a apresentação da contestação conforme resulta de forma inequívoca do n.º 2 do artigo 573º.
Como refere Paulo Pimenta (Processo Civil declaratório, 2014, página 177) a regra da “concentração da defesa na contestação conhece algumas limitações, que o próprio artigo 573º refere. Tais limitações reconduzem-se a duas espécies: - defesa separada, prevista no art. 573º n.º 1 in fine (…) – defesa posterior, prevista no artigo 573º 2.” (neste sentido Abrantes Geraldes, Paulo Pimenta e Luís Filipe Pires de Sousa, Código de Processo Civil Anotado, 2018, página 646).
Já a propósito do anterior artigo 489º do Código de Processo Civil Antunes Varela, J. Miguel Bezerra e Sampaio e Nora (Manual de Processo Civil, 2ª edição, página 312 e seguintes) consideravam que há meios de defesa, “(…) a que genericamente se refere o n.º 2 do artigo 489º, que podem ser deduzidos depois da apresentação da contestação; um primeiro núcleo, por assentar em factos posteriores à contestação ou que posteriormente vieram ao conhecimento do demandado (defesa superveniente); um segundo núcleo, por se basear em factos de que, pela sua especial gravidade, o tribunal pode conhecer ex officio para além da contestação (defesa retardável, hoc sensu)”consideravam estar em causa na defesa retardável os meios de defesa de que o tribunal pode conhecer oficiosamente e que de entre as excepções invocáveis após a se destacavam a falta de personalidade ou de capacidade judiciária, a ilegitimidade, a falta de autorização ou deliberação necessária e a falta de constituição de advogado, quando não devidamente sanadas, a litispendência e o caso julgado.
A chamada defesa posterior, que pode ser deduzida após a apresentação da contestação, reveste três modalidades:
a) a defesa superveniente, fundada em factos supervenientes (objectiva e subjectivamente; cfr. artigos 588º e 589º do Código de Processo civil);
b) os meios de defesa autorizados pela lei, aqueles cuja dedução após a contestação a lei expressamente admite (como a incompetência absoluta, o impedimento do juiz, a falta de citação do réu ou do Ministério Público como parte principal e a falta de vista ou exame ao Ministério Público como parte acessória);
c) a chamada defesa oficiosa na qual se incluem todos os meios de defesa de que o tribunal pode conhecer oficiosamente (o que ocorre com quase todas as exceções dilatórias e com parte das exceções peremptórias) ainda que aqui não seja conferida a possibilidade ao réu de alegar novos factos que as sustentem, pois esse direito ficou precludido com a apresentação da contestação.
Para o que aqui releva importa considerar a chamada defesa oficiosa pois que a ilegitimidade é exceção do conhecimento oficioso (artigos 577º alínea e) e 578º).
E quanto às exceções de conhecimento oficioso a lei admite a sua dedução após a contestação, constituindo uma exceção ao princípio da concentração da defesa na contestação, não obstante na sua invocação o réu não possa alegar factos novos.
Temos pois de concluir que os Recorrentes podiam invocar a exceção da sua ilegitimidade após a contestação, sendo certo que na sustentação da exceção não estava em causa a invocação de factos novos.
Entendemos, por isso, assistir razão aos Recorrentes quando referem que o seu requerimento não devia ter sido desentranhado, antes devia ter sido apreciada a questão da ilegitimidade passiva por preterição de litisconsórcio necessário.
Contudo, a questão da manutenção do requerimento não assume particular relevo pois estando em causa exceção do conhecimento oficioso sempre se imporia ao tribunal o conhecimento da mesma, sendo certo que o tribunal a quo não se pronunciou expressamente sobre a legitimidade das partes (de todo o modo e ainda que tivesse sido proferido saneador enunciando, sem em concreto a apreciar, a legitimidade das partes, o mesmo não faria caso julgado, nem mesmo formal, e não obstaria a que a questão, que é de conhecimento oficioso, seja, numa fase subsequente, ponderada e decidida, em sede de sentença ou até como suscitada como objecto da apelação, e apreciada e decidida em acórdão proferido pelo Tribunal da Relação - cfr. artigos 595º nº 3, 1ª parte, 608º nº 1, e 663º nº 2, parte final, todos do Código de Processo Civil).
O que nos remete para a próxima questão a apreciar e que se prende com existência ou não, na acção de impugnação pauliana, de litisconsórcio necessário passivo, relativamente ao devedor, ao terceiro adquirente e ao subadquirente no caso de dupla alienação.
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3.4. Do litisconsórcio necessário passivo, relativamente ao devedor, ao terceiro adquirente e ao subadquirente na ação de impugnação pauliana no caso de dupla alienação
A questão suscitada pelos Recorrentes, em sede do já referido requerimento de 09/01/2010 em que invocaram a exceção da ilegitimidade passiva, mas também no presente recurso, prende-se com a preterição de litisconsórcio necessário decorrente da ausência na presente acção de impugnação pauliana do devedor e do adquirente, uma vez que os Recorrentes são já os subadquirentes em face da dupla alienação do prédio.
Tal como supra referimos, não vem questionado nos autos que nos encontramos no âmbito de uma acção de impugnação pauliana (como afirmam os próprios Recorrentes dúvidas não há que a Autora deduziu um pedido de impugnação pauliana) e nem que estamos perante atos subsequentes de transmissão do prédio.
Conforme decorre da factualidade provada por escritura de 11 de Abril de 2012, os devedores J. M. e A. J. declararam vender a J. C., o prédio urbano descrito na Conservatória do Registo Predial ... sob o n.º ... e por documento autenticado datado de 17 de Novembro de 2016, o referido J. C., com o expresso consentimento da mulher, M. R., declarou vender, pelo preço também de €90.000,00, aos ora Recorrentes R. M. e M. M., na proporção de ½ para cada um, o mesmo prédio.
Releva aqui mais uma vez a existência de duas transmissões do prédio: a primeira pelos devedores para J. C. em 11 de Abril de 2012, e uma transmissão posterior deste para os aqui Recorrentes em 17 de Novembro de 2016.
É também inequívoco que a presente acção foi instaurada pela Autora apenas contra os subadquirentes (os aqui Recorrentes), não tendo sido demandados os devedores e nem o adquirente.
O tribunal a quo nunca se pronunciou expressamente sobre a legitimidade das partes, nem no despacho saneador e nem na sentença proferida após o despacho que determinou o desentranhamento do requerimento dos Réus suscitando a questão da sua ilegitimidade pelo que temos sem dúvida de depreender que perfilha o entendimento de que os Réus/subadquirentes são parte legítima.
Não é esse, contudo, o nosso entendimento, e ressalvado o devido respeito que nos merece aposição contrária, entendemos que na presente acção, à semelhança do que deverá ocorrer nas acções de impugnação pauliana, deviam ter sido também demandados os devedores e o adquirente, configurando-se concretamente uma situação de preterição de litisconsórcio necessário passivo.
O litisconsórcio necessário corresponde a uma pluralidade de partes que obrigatoriamente devem estar na acção sob pena de ilegitimidade, não dependendo da vontade das partes.
Conforme decorre do preceituado no artigo 33º do Código de Processo Civil se a lei ou o negócio exigir a intervenção dos vários interessados na relação controvertida, a falta de qualquer deles é motivo de ilegitimidade (n.º 1), sendo igualmente necessária a intervenção de todos os interessados quando, pela própria natureza da relação jurídica, ela seja necessária para que a decisão a obter produza o seu efeito útil normal (n.º 2) e produzindo a decisão o seu efeito útil normal sempre que, não vinculando embora os restantes interessados, possa regular definitivamente a situação concreta das partes relativamente ao pedido formulado (n.º 3).
O litisconsórcio necessário pode ter origem na lei ou no negócio ou ter por base a natureza da relação jurídica em causa, sendo essencialmente dois “os critérios que presidem à previsão do litisconsórcio necessário” (Abrantes Geraldes, Paulo Pimenta e Luis Filipe Pires de Sousa, Código de Processo Civil Anotado, 2018, página 62): “o critério da indisponibilidade individual ou da disponibilidade plural do objecto do processo para o litisconsórcio legal ou convencional e o critério da compatibilidade dos efeitos produzidos para o litisconsórcio natural” (v. Teixeira de Sousa, As Partes, o Objeto e a Prova na Ação declarativa, página 65).
Conforme se pronunciam Abrantes Geraldes, Paulo Pimenta e Luís Filipe Pires de Sousa (ob. cit. página 63) são pouco comuns os casos de litisconsórcio necessário de origem negocial, sendo mais frequentes os de origem legal, que pode ser expressa ou implícita, dando como exemplo quanto a este, de acordo com o entendimento maioritário, o caso da impugnação pauliana.
Tanto quanto nos é dado conhecer julgamos ser efectivamente entendimento maioritário o que considera a existência de litisconsórcio necessário na impugnação pauliana.
Quanto à legitimidade passiva do terceiro adquirente e do subadquirente julgamos não se suscitarem quaisquer dúvidas pois é sobre os mesmos que recai o “dever de restituição”, no sentido de que o bem foi transmitido para eles e são directamente afectados pela impugnação e, quanto ao devedor, o mesmo não só é parte no ato impugnado, como a lei exige que tenha atuado de má-fé juntamente com o terceiro; e relativamente à transmissão posterior a lei exige também a verificação dos requisitos da impugnabilidade quanto à primeira transmissão.
O artigo 612º do Código Civil remete-nos efectivamente para a necessidade da presença na acção de impugnação pauliana do devedor e do terceiro adquirente ao impor como requisito (quanto ao ato oneroso) que ambos tenham agido de má-fé; e o artigo 613º impõe como requisito no caso de transmissões posteriores que, relativamente à primeira transmissão, se verifiquem os requisitos da impugnabilidade (n.º 1 alínea a), designadamente que o devedor e o adquirente tenham agido de má-fé.
Entendemos, por isso, que estamos perante um caso de litisconsórcio passivo de origem legal (implícita) cuja preterição determina a ilegitimidade passiva.
Neste sentido, afirma João Cura Mariano (ob. cit. página 288 e seguintes) que a “legitimidade passiva pertence ao terceiro adquirente sobre quem incide o “dever de restituição” que resulta da impugnação, e também ao devedor, enquanto participante no ato impugnado”.
Para João Cura Mariano no Código de Seabra era indiscutível a existência de uma situação de litisconsórcio necessário passivo em face dos efeitos anulatórios da impugnação pauliana, e no regime atual suscitam-se algumas dúvidas em face dos efeitos da impugnação não atingirem imediata e directamente a posição do devedor, apesar de Vaz Serra ter defendido a imposição expressa de litisconsórcio necessário. Ainda que não conste expressamente, entende que implicitamente o legislador reconheceu a exigência do litisconsórcio no artigo 611º do Código Civil ao impor ao devedor ou a terceiro interessado na manutenção do acto o ónus da prova a prova de que o obrigado possui bens penhoráveis de igual ou maior valor, tal imposição pressupõe necessariamente que o devedor é parte na acção, “até porque é ele que está em melhor situação para conhecer o se património”. Assim, “(…) deve reconhecer-se que a situação de litisconsórcio passivo necessário resulta da própria lei (…) E esta exigência tanto se verifica na impugnação pauliana direcionada a obter autorização para o credor executar o bem transmitido no património do terceiro (art. 616.º, n.º 1, C.C.) como naquela em que apenas se pretende obter o valor do bem transmitido ou o enriquecimento obtido (art. 616.º, n.º 2 e 3, do C.C.). Quando se verificou uma dupla alienação, estando a segunda transmissão abrangida pela impugnação, e visando-se a execução do bem no património do subadquirente, também este deve ser demandado, ao lado do devedor e do adquirente”.
É este também o entendimento de Pedro Romano Martinez e Pedro Fuzeta da Ponte (ob. cit. página 40 e 41) que de forma assertiva afirmam que existe litisconsórcio necessário passivo em acção de impugnação pauliana relativa a negócio jurídico oneroso, pois a acção só poderá proceder se vendedor e comprador tiverem agido de má fé, devendo, assim, a acção ser intentada contra ambos, acrescentando ainda a conveniência da dedução da acção contra todos os intervenientes na relação jurídica quer estejam em causa negócios onerosos e gratuitos; para estes autores “a relação controvertida, pelos diversos aspectos que envolve, diz respeito a três sujeitos: ao devedor e ao terceiro interessados na eficácia do negócio, quanto ao acto de diminuição da garantia patrimonial; ao credor impugnante e ao devedor, quanto à relação de crédito cuja garantia patrimonial se pretenda acautelar”. Consideram ainda que no caso de se verificarem transmissões posteriores é igualmente necessário, para que a acção seja eficaz, que esta seja também dirigida contra os subadquirentes, sob pena de tal omissão implicar a ilegitimidade dos restantes réus.
No caso concreto, em face da transmissão pelos devedores para o terceiro adquirente, e da transmissão deste para os Recorrentes, temos de concluir que a Autora deveria ter instaurado a presente acção não apenas contra estes mas também contra aqueles, e que tal não está na dependência da vontade da Autora/credora e nem se apresenta como uma opção; a falta dos devedores e do adquirente é susceptível de gerar a ilegitimidade passiva por preterição de litisconsórcio necessário como sustentam os Recorrentes, assistindo-lhes razão.
O facto de a Autora ter instaurado a acção n.º 6946/16.7T8GMR contra os devedores e o terceiro adquirente onde subsidiariamente impugnou a primeira transmissão e a título principal pediu a declaração da nulidade do negócio de compra e venda do prédio por simulação, não altera no caso concreto a necessidade da presente acção ser intentada também contra eles. A declaração de nulidade do negócio declarada pela sentença proferida naquela acção não é oponível sem mais aos aqui Réus uma vez que não estamos perante a situação prevista no n.º 2 do artigo 291º do Código Civil pois a acção não foi proposta e registada dentro dos três anos posteriores à conclusão do negócio (este data de 2012 e a acção foi intentada em 2016), e por outro lado, a impugnação pauliana e respetivos requisitos, deduzida com carácter subsidiário, não chegou a ser apreciada e decidida relativamente ao imóvel (mas apenas quanto aos veículos automóveis transmitidos para os Réus, tendo estes intervenção naquela acção apenas nessa qualidade e já não de adquirente do prédio).
Em face do exposto, está verificada nos autos a preterição do litisconsórcio necessário passivo, pelo que estamos perante uma situação de ilegitimidade passiva, que constitui excepção dilatória a qual, dá lugar à absolvição da instância dos Réus, ora Recorrentes (artigos 576º, nºs 1 e 2 e alínea e) do artigo 577º, ambos do Código de Processo Civil) - e obsta a que este Tribunal da Relação conheça do mérito, ficando prejudicado o conhecimento da última questão delimitada.
Em face do exposto procede, pois, a apelação, sendo de revogar a decisão recorrida.
As custas da apelação e da acção são da responsabilidade da Recorrida atento o seu decaimento (artigo 527º n.º 1 e 2 do Código de Processo Civil).
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SUMÁRIO (artigo 663º n.º 7 do Código do Processo Civil):
I - Quando são objecto de impugnação atos de transmissão subsequentes, a contagem do prazo de caducidade inicia-se na data da primeira alienação efectuada pelo devedor porque é neste momento que se verifica a lesão da garantia patrimonial. II - Se a regra para os meios de defesa em geral é a da concentração na contestação, a lei estabelece exceções, designadamente quanto a meios de defesa que podem ser deduzidos após a apresentação da contestação conforme resulta de forma inequívoca do n.º 2 do artigo 573º. III - Uma das excepções é o núcleo de casos integrado pelos meios de defesa de que o tribunal pode conhecer oficiosamente em que a lei admite a sua dedução após a contestação, não obstante na sua invocação o réu não possa alegar factos novos. IV - Estando em causa a exceção de ilegitimidade passiva, exceção dilatória que o juiz pode conhecer oficiosamente, as partes podem invocá-la depois da contestação. V - Na acção de impugnação pauliana, a relação controvertida envolve três sujeitos: o credor, o devedor alienante e o terceiro adquirente e, no caso de transmissões posteriores, envolve ainda os subadquirentes, sendo necessária a intervenção de todos sob pena de se verificar a ilegitimidade passiva por preterição de litisconsórcio necessário.
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IV. Decisão
Pelo exposto, acordam os juízes desta Relação em:
a) Julgar improcedente o recurso da decisão que julgou improcedente a exceção de caducidade, confirmando a decisão recorrida;
b) Condenar os Recorrentes nas custas desse recurso;
c) Julgar procedente o recurso da sentença e, em consequência, revogar a sentença recorrida e julgar os Réus/Recorrentes parte ilegítima por preterição de litisconsórcio necessário passivo, absolvendo-os da instância.
d) Condenar a Autora/Recorrida nas custas do recurso e nas custas da acção.
Guimarães, 28 de maio de 2020 Texto elaborado em computador e integralmente revisto pela signatária