ACIDENTE DE TRABALHO
PRESTAÇÃO SUPLEMENTAR
VEÍCULO AUTOMÓVEL
ASSISTÊNCIA DE TERCEIRA PESSOA
VALOR
MONTANTE DA INDEMNIZAÇÃO
INCONSTITUCIONALIDADE
REPARAÇÃO DO DANO
Sumário


1. A recuperação do sinistrado para a vida activa inclui todos os aspectos da sua vida pessoal e social, ainda que com carácter lúdico.
2. Tem, assim, direito a obter a readaptação do seu veículo automóvel, caso as sequelas resultantes do acidente assim o exijam.
3. Caso a readaptação do seu veículo não seja tecnicamente possível, o sinistrado tem o direito de obter outro veículo já dotado das características técnicas necessárias à sua utilização.
4. Neste caso, o direito de escolha não assiste apenas à entidade responsável, podendo ocorrer a intervenção do tribunal e o sinistrado ter a oportunidade de escolher outro de custo superior, embora suportando a diferença.
5. O art. 54.º n.º 1 da Lei 98/2009, ao permitir que a prestação suplementar para assistência a terceira pessoa tenha um limite máximo que pode ser inferior ao valor da retribuição mínima mensal garantida, coloca o sinistrado em acidente de trabalho em situação de desvantagem económica e impede-o de beneficiar dessa assistência.
6. É, pois, inconstitucional, por violação do direito à assistência e justa reparação das vítimas de acidente de trabalho, estatuído no art. 59.º n.º 1 al. f) da Constituição (sumário do relator)

Texto Integral


Acordam os Juízes da Secção Social do Tribunal da Relação de Évora:

No Juízo do Trabalho de Beja, em consequência de acidente de trabalho ocorrido a M…, instaurado o competente processo, na tentativa de conciliação foi obtido acordo parcial, com reconhecimento do evento como acidente de trabalho, do nexo causal entre tal e as lesões sofridas pelo sinistrado, da IPATH de 80% desde a alta clínica em 05.12.2016, e da retribuição auferida pelo sinistrado, da qual se encontrava transferido para a Seguradora o valor de € 505,00 x 14 = € 7.070,00.
Prosseguiu a causa para a fase contenciosa, mediante petição inicial apresentada contra S…, S.A., na qual se pediu a condenação desta a pagar os seguintes montantes:
- Danos patrimoniais (dano biológico) – € 300.000,00;
- Danos patrimoniais (dano patrimonial futuro) – € 200.000,00;
- Danos patrimoniais (assistência por terceira pessoa) – € 249.600,00;
- Danos patrimoniais (aquisição de viatura adequada) – € 40.645,20;
- Afectação da capacidade sexual e reprodutiva – € 100.000,00;
- As despesas médicas, terapêuticas e medicamentosas que venha a suportar durante o resto da vida em consequência do acidente.
Contestada a causa, com invocação da inadmissibilidade legal dos pedidos formulados, no saneador foram desde logo julgados improcedentes os pedidos indemnizatórios relativos ao dano biológico, ao dano patrimonial futuro e à afectação da capacidade sexual reprodutiva, prosseguindo quanto ao demais peticionado.
Em articulado superveniente, o sinistrado alegou que já adquiriu veículo automóvel adaptado às suas necessidades, no que despendeu € 18.315,84, devendo a indemnização ser ajustada a este valor. Mais pediu, a título de auxílio de terceira pessoa em pelo menos 4 horas diárias, se fixe uma indemnização no valor de € 498.089,00.
Após julgamento, a sentença decidiu condenar a Seguradora no seguinte:
- Pagar a quantia de € 17.715,84, a título de reparação pela aquisição de viatura adaptada às necessidades do sinistrado;
- Pagar uma prestação suplementar para assistência a terceira pessoa, cujo valor mensal, à data da alta, era de € 230,57, a pagar 14 vezes ao ano, desde a data da alta e com as actualizações devidas desde 01.01.2017;
- Manter avaliações médicas e/ou assistência regulares ao sinistrado, designadamente em Ortopedia, Medicina Física e Reabilitação, Psiquiatria, Anestesiologia/dor, Psicologia, Otorrinolaringologia, Urologia, suportando as despesas com as mesmas e com a medicação.

Inconformada, a Seguradora introduziu a instância recursiva e concluiu:
1. A ora Apelante não se conforma em parte com a douta sentença proferida, mormente quanto à condenação no valor em novo de um veículo automóvel.
2. Entende a Apelante que as prestações em espécie que estamos a comtemplar no caso dos autos tratam-se de ajudas técnicas e/ou outros dispositivos técnicos de compensação das limitações funcionais do sinistrado.
3. As referidas ajudas técnicas não abrangem o veículo automóvel em si, mas o valor da adaptação que seja necessária, no caso a utilização de mudanças automáticas.
4. A mui douta decisão viola o disposto nos arts. 23.º a), 25.º n.º 1 al. g) e 41.º, todos da LAT.
5. Atento o teor do n.º 3 dos arts. 41.º e 42.º da LAT não cabe à entidade responsável apresentar orçamentos de reparação ou de modificação, pois o teor das supracitadas disposições legais é absolutamente claro, quanto a esta matéria.
6. Atento o valor patrimonial do anterior veículo do Apelado e o valor do que comprou após o acidente, impunha uma ponderação e a atribuição de uma verba equitativa para o efeito, no caso a atinente à hipotética adaptação do novo veículo.
7. Não sendo conhecido o valor para a adaptação do veículo, poderia a mesma ter sido relegada para liquidação posterior, já que o sinistrado não fez prova do valor da mesma, prova que cabia a este e não à Apelante.

Por seu turno, o sinistrado contra-alegou e apresentou recurso subordinado, contendo as seguintes conclusões:
I. A Douta Sentença recorrida deverá manter-se na íntegra, no que ao que diz respeito ao ressarcimento por aquisição de viatura, uma vez que a mesma analisou os factos e as provas de forma isenta, e fez uma correcta interpretação dos factos provados, aplicando as normas jurídicas que se impunham convocar perante a situação concreta.
II. Por outro lado, no que concerne ao direito do autor à assistência de terceira pessoa em virtude do acidente, deveria a Douta Sentença ter decidido de forma diferente.
III. Com efeito, o Recorrente suportará com uma empregada doméstica, e à razão de 4 horas por dia, 6,00€ à hora e 14 meses ao ano, a quantia anual de 10.800,00€.
IV. Conforme consta dos autos, a pensão anual atribuída ao Recorrente foi fixada em cerca de 5.348,00€ anuais.
V. Na Douta Sentença ora recorrida condenou-se a Ré, e a este título, no pagamento de (actualmente) 230,57€ x 14 meses = 3.227,98€.
VI. A LAT visa a reparação dos danos sofridos (neste caso) pelo trabalhador em consequência de acidente de trabalho.
VII. Está assente que o Recorrente ficou com uma incapacidade permanente de 80% e que é incapaz de fazer as lides de casa, de se alimentar, vestir, alguns actos de higiene pessoal e que o acompanhem nas suas deslocações.
VIII. E que necessitava de ajuda de terceiro, 4 horas por dia, todos os dias, ou seja, 180 horas por mês.
IX. No entanto, os 230,57€ mensais fixados a título de prestação suplementar para assistência a terceira pessoa, só lhe permitirão pagar cerca de 39 horas de trabalho.
X. A pensão do Recorrente permite-lhe, com dificuldade, fazer face às despesas correntes de renda, alimentação, vestuário, higiene, etc.
XI. Ou seja, o Recorrente não dispõe, por si, de forma de suportar o remanescente do encargo com a terceira pessoa, e que a prestação suplementar não cobre.
XII. O artigo 54.º da LAT dispõe que a prestação suplementar da pensão prevista no artigo anterior é fixada em montante mensal e tem como limite máximo o valor de 1,1 IAS, o que desrespeita o direito constitucional à assistência e justa reparação devida aos sinistrados, previsto na al. f), do n.º 1, do art.º 59.º da Constituição da República Portuguesa
XIII. A norma estabelece unicamente o montante máximo, deixando ao julgador margem para fixar o mesmo consoante o caso em concreto.
XIV. Considera o Recorrente que o único critério não deverá ser o número de horas, devendo considerar-se todo o circunstancialismo do caso.
XV. O drama que o Recorrente vive, de ainda jovem se ter visto sujeito à necessidade de depender duma terceira pessoa para realizar a mais comum das tarefas diárias, não deveria ser acentuado pela incapacidade de suportar os custos com tal ajuda.
XVI. Sendo certo que existe o critério objectivo das horas necessárias de prestação do auxílio por terceira pessoa, seria de justiça o mesmo ser acompanhado de critérios subjectivos, como a capacidade económica do sinistrado, o seu apoio familiar ou o custo real de tal trabalho.
XVII. Assim, por todo o exposto, e porque é permitido por Lei ao julgador no seu prudente arbítrio, considera-se que deveria a prestação suplementar de terceira pessoa ser fixada no máximo previsto no artigo 54.º da LAT.

Já nesta Relação, o Digno Magistrado do Ministério Público emitiu o seu parecer.
Dispensados os vistos, cumpre-nos decidir.

A matéria de facto estabelecida nos autos é a seguinte:
1) No dia 1 de Agosto de 2014, o ora Autor celebrou com a “F…” um contrato de trabalho a termo certo, com início nesse mesmo dia 1 de Agosto, e términus no dia 31 de Julho de 2015.
2) Por aplicação deste contrato, o Autor, mediante uma retribuição mensal de € 485,00 ilíquidos, comprometeu-se a prestar a actividade profissional de pintor, sob as ordens, direcção e fiscalização da mencionada entidade patronal.
3) A entidade patronal F…, pela subscrição da apólice de seguro 10.00379171, transferiu para a ora Ré a responsabilidade infortunística emergente de acidentes de trabalho que o Autor pudesse sofrer.
4) No dia 5 de Março de 2015, cerca das 17 horas, enquanto se encontrava a trabalhar sob ordens e direcções da sua entidade patronal, nas instalações desta, sitas na Q…, Castro Verde, o Autor sofreu um acidente.
5) Naquele circunstancialismo de tempo e lugar, o Autor que se encontrava a trabalhar num poste, a cerca de 3 metros de altura, e sem nada que o pudesse prever ou explicar, sofreu uma queda.
6) Tal queda originou que o Autor caísse daquela altura para o chão, embatendo com a cabeça no pavimento, o que lhe provocou os danos e lesões melhor descriminados no auto de exame médico e que lhe determinaram uma IPP de 80%, com IPATH, a partir da data da alta fixada em 05.12.2016.
7) O sinistro foi comunicado à Ré, a qual, após ter rejeitado responsabilidades em 5 de Maio de 2015, veio “assumir o sinistro” em 31 de Julho de 2015.
8) A 6 de Setembro de 2017, em sede de tentativa de conciliação nos presentes autos a Ré:
i. Reconheceu o acidente sofrido pelo Autor como acidente de trabalho;
ii. Aceitou o nexo de causalidade entre tal acidente de trabalho e as lesões sofridas pelo Autor;
iii. Aceitou que a responsabilidade por acidentes de trabalho em relação ao Autor nos autos estava para si transferida com referência ao montante salarial: salário base – € 505 x 14m; na totalidade de € 7.070;
iv. Concordou com as ITP que foram fixadas ao sinistrado;
v. Concordou com a IPP de 80%, com IPATH, que foi atribuída ao sinistrado.
9) Nessa sequência, e por acordo já homologado judicialmente, a Ré reconheceu-se devedora ao Autor duma pensão anual e vitalícia, actualizável, com início no dia seguinte ao da alta definitiva, no valor de € 4.666,20;
10) Bem como de um subsídio de elevada incapacidade, nos termos do disposto no artigo 67.º, n.º 3, da LAT, no valor de € 5.201,68;
11) E o valor de € 30,00 referente a despesas de transportes para ida ao Tribunal.
12) A Ré não reconheceu o direito reclamado pelo Autor de ser ressarcido pelos danos biológicos sofridos, pelos danos morais, pelo dano patrimonial futuro e pela necessidade de assistência de terceira pessoa.
13) Na sequência do acidente o Autor teve e tem necessidade de cuidados de terceira pessoa para prestar todos os cuidados imprescindíveis, nomeadamente, para se alimentar, vestir e cuidar de certos actos da sua higiene pessoal, bem como para o acompanhar nas suas deslocações, em 4 horas diárias.
14) Como consequência do acidente o autor apenas consegue conduzir veículos com caixa automática, necessitando de adaptação de veículo.
15) Porque não conseguia conduzir o seu veículo, em consequência do acidente, o Autor viu-se forçado a vender a viatura de que era proprietário, um Fiat Punto, com a matrícula …DX, que era de embraiagem e mudanças manuais e de impossível adaptação, tendo recebido pelo mesmo € 600,00.
16) Com a aquisição de uma viatura Citroen C4 Cactus, com caixa de velocidades automática, o autor despendeu a quantia de € 18.315,84.
17) Face às sequelas e quadro clínico actual que o Autor apresenta, necessita futuramente de avaliações médicas e/ou assistência regulares designadamente em Ortopedia, Medicina Física e Reabilitação, Psiquiatria, Anestesiologia/dor, Psicologia, Otorrinolaringologia, Urologia, tendo necessidade de continuar com assistência médica e medicação.

APLICANDO O DIREITO
Do pagamento do valor relativo à aquisição de viatura adaptada
Ficou demonstrado que o sinistrado, mercê das sequelas sobrevindas, apenas consegue conduzir veículos com caixa automática, necessitando de adaptação de veículo, e uma vez que o seu era de impossível adaptação, adquiriu outro com caixa de velocidades automática.
Com base neste manancial fáctico, a sentença condenou a Seguradora no pagamento do valor relativo ao preço de aquisição desse veículo, deduzido do valor de retoma do anterior.
A Seguradora impugna esta decisão, argumentando que as ajudas técnicas não abrangem o veículo automóvel em si, mas apenas o valor da adaptação que seja necessária, que não lhe cabe apresentar orçamentos de reparação ou modificação, e ainda que atenta a diferença de valor entre o anterior veículo do sinistrado e o novo, deveria ter sido condenada apenas em verba equitativa para o efeito. Finalmente, argumenta que não sendo conhecido o valor para a adaptação do veículo, poderia ter sido relegada para liquidação posterior.
Porém, o primeiro argumento enfrenta o seguinte óbice: está provado que o anterior veículo do sinistrado era de impossível adaptação, pelo que qualquer discussão acerca do custo de adaptação é absolutamente descabida.
Carlos Alegre notava[1], face ao art. 10.º al. a) da anterior Lei de Acidentes de Trabalho (Lei 100/97, de 13 de Setembro), que este delimitava “o conteúdo da reparação, apenas, às prestações necessárias e adequadas ao restabelecimento: do estado de saúde; da capacidade de trabalho ou de ganho; da recuperação para a vida activa, da vítima. (…) Com o que deixamos dito, pretendemos enfatizar a natureza excepcional do conteúdo, da forma e dos destinatários do direito à reparação, nos acidentes de trabalho, sendo três, como referimos os seus objectivos: restabelecimento do estado de saúde da vítima, reposição da sua capacidade de trabalho ou de ganho e a sua recuperação para a vida activa geral. (…) Quando chamámos a atenção para os três objectivos da reparação de acidentes de trabalho – e fizemo-lo repetidamente – quisemos dizer que o legislador se preocupa, realmente, com a integridade produtiva do trabalhador-sinistrado, quando pretende que se restabeleça a capacidade de trabalho ou de ganho, mas que não descurou outros aspectos do trabalhador-ser humano, preocupando-se com o restabelecimento do estado de saúde e com a sua recuperação para a vida activa (que não é somente o trabalho).”
De igual modo, o actual art. 23.º al. a) da Lei 98/2009, de 4 de Setembro, continua a prever que o direito à reparação compreende também outras prestações em espécie, seja qual for a sua forma, adequadas e necessárias não apenas ao restabelecimento do estado de saúde e da capacidade de trabalho e de ganho do sinistrado, mas ainda à sua recuperação para a vida activa.
Neste contexto, o conceito de vida activa tem um alcance mais abrangente que a mera recuperação funcional do sinistrado, estando “mais próximo da reparação natural, que é a vida que o sinistrado tinha – ou podia ter – antes de ter sofrido as lesões que lhe resultaram do acidente.”[2]
E daí que a jurisprudência venha afirmando que a recuperação do sinistrado para a vida activa inclui todos os aspectos da sua vida pessoal e social, ainda que com carácter lúdico, assim determinando a readaptação do veículo automóvel do sinistrado (caso tal seja tecnicamente possível).[3]
Nas situações em que a readaptação do veículo automóvel do sinistrado não é possível por razões técnicas (como é o caso dos autos), é preciso ponderar que a atribuição ao sinistrado das prestações em espécie é uma emanação do princípio geral da reposição natural no domínio da responsabilidade civil, constante do art. 562.º do Código Civil, consistindo “no dever de se reconstituir a situação anterior à lesão, isto é, o dever de reposição das coisas no estado em que estariam, se não se tivesse produzido o dano.”[4]
Logo, se a opção é a reconstituição natural, nas situações em que o sinistrado deixa de poder utilizar o seu veículo em consequência das sequelas sofridas, e este se revela de impossível adaptação, a solução passa pelo fornecimento de outro com as características técnicas adequadas.
Argumenta a Seguradora que apenas a ela caberia o direito de escolha, mas haverá a notar que a necessidade de o sinistrado utilizar veículos com caixa automática foi unanimemente reconhecida em sede de junta médica e, ainda, que o art. 42.º n.º 1 da Lei 98/2009 reconhece o direito do sinistrado optar pela importância correspondente ao valor das ajudas técnicas indicados pelo médico assistente ou pelo tribunal quando pretenda adquirir outras de custo superior.
Logo, ao contrário do que afirma a Seguradora, o direito de escolha das ajudas técnicas não lhe cabe apenas a ela, podendo ocorrer aqui a intervenção do perito médico do tribunal de trabalho – nos termos do art. 41.º n.º 3, in fine – e tendo o sinistrado a oportunidade de escolher outras de custo superior, embora suportando a diferença.
No caso, a Seguradora não alega que o veículo adquirido pelo sinistrado é de valor excessivo ou desajustado à satisfação das necessidades de recuperação do sinistrado para a vida activa. E, em bom rigor, o valor do veículo revela que este é de gama média, possuindo a característica técnica que a junta médica unanimemente reconheceu como necessária, pelo que ao abrigo do aludido princípio da reconstituição natural, se justifica a manutenção da decisão recorrida, na parte em que condenou a Seguradora no valor relativo à aquisição da viatura adaptada, com dedução do valor de retoma da anterior.

Do valor da prestação suplementar para assistência a terceira pessoa
Argumenta o sinistrado, no recurso subordinado que interpôs, que estando demonstrado que necessita dos cuidados de terceira pessoa, em 4 horas diárias, o valor mensal fixado a título de prestação suplementar para assistência a terceira pessoa (€ 230,57 x 14, com referência à data da alta definitiva, ocorrida em 05.12.2016, com actualizações devidas desde 01.01.2017) não lhe permite suportar o vencimento de um(a) empregado(a) doméstico(a), à razão de 4 horas por dia.
Mais argumenta que o limite máximo de 1,1 IAS fixado no art. 54.º n.º 1 da Lei 98/2009 é inconstitucional, por violação do direito à assistência e justa reparação das vítimas de acidente de trabalho, contido no art. 59.º n.º 1 al. f) da Constituição.
Vejamos.
No art. 19.º n.º 1 da anterior Lei de Acidentes de Trabalho (Lei 100/97, de 13 de Setembro), estipulava-se que a prestação suplementar para assistência de terceira pessoa tinha um valor mensal “não superior ao montante da remuneração mínima mensal garantida para os trabalhadores do serviço doméstico.” No actual regime, esse limite máximo foi fixado em 1,1 IAS – art. 54.º n.º 1 da Lei 98/2009.
O indexante dos apoios sociais (IAS) foi criado pela Lei 53-B/2006, de 29 de Dezembro, como “referencial determinante da fixação, cálculo e actualização dos apoios e outras despesas e das receitas da administração central do Estado, das Regiões Autónomas e das autarquias locais, qualquer que seja a sua natureza, previstos em actos legislativos ou regulamentares” – art. 2.º n.º 1 deste diploma.
Serve, pois, de base ao cálculo das prestações sociais da Segurança Social, mas também é utilizado para o cálculo de receitas do Estado, como deduções no IRS[5], mínimo de existência – que o art. 70.º n.º 1 do Código do IRS afirma equivaler à disponibilidade de um rendimento líquido de imposto de 1,5 x 14 x IAS – ou ainda de base de incidência das contribuições à Segurança Social[6].
É também utilizado como base de cálculo da isenção no pagamento de taxas moderadoras no Serviço Nacional de Saúde, concedido a utentes em situação de insuficiência económica, que o art. 6.º n.º 1 do DL 113/2011, de 29 de Novembro, considera aqueles que integram “agregado familiar cujo rendimento médio mensal seja igual ou inferior a 1,5 vezes o valor do IAS.”
Importa recordar que o indexante dos apoios sociais (IAS) estava fixado para o ano de 2009 em € 419,22, e que a sua actualização esteve suspensa[7] até 2016; em 2017 foi actualizado para € 421,32, em 2018 para € 428,90, em 2019 para € 435,76 e em 2020 para € 438,81.[8] Consequentemente, o limite máximo estabelecido no mencionado art. 54.º n.º 1 da Lei 98/2009 manteve-se em € 461,14 entre 2009 e 2016, subiu para € 463,46 em 2017, para € 471,79 em 2018, para € 479,34 em 2019, encontrando-se fixado em € 482,69 para o ano de 2020.
Por seu turno, a retribuição mínima mensal garantida sofreu outra evolução: em 2009 estava fixada em € 450,00; em 2010 subiu para € 475,00; entre 01.01.2011 e 30.09.2014 manteve-se em € 485,00; entre 01.10.2014 e 31.12.2015 subiu para € 505,00; em 2016 para € 530,00; em 2017 para € 557,00; em 2018 para € 580,00; em 2019 para € 600,00; e no ano de 2020 está fixada em € 635,00.[9]
Comparando a evolução do limite máximo estabelecido para a prestação suplementar para assistência a terceira pessoa com a evolução da retribuição mínima mensal garantida, verifica-se que aquela apenas foi ligeiramente superior no ano de 2009, passando a situar-se em valor inferior logo em 01.01.2010, com a diferença a acentuar-se nos anos seguintes, sendo no ano de 2020 a diferença entre os dois valores já de € 152,31.
Significa isto que um sinistrado – afectado de graves sequelas que o impedem de, por si só, prover à satisfação das suas necessidades básicas diárias, envolvendo os actos relativos a cuidados de higiene pessoal, alimentação e locomoção (art. 53.º n.ºs 2 e 5 da Lei 98/2009) – e a quem é reconhecido, porque dela carece, o direito a uma prestação suplementar para assistência a terceira pessoa, acaba por receber um valor que, objectivamente, não lhe permite contratar um trabalhador que lhe preste tal assistência.
Para além da indignidade de se atribuir um valor para assistência a terceira pessoa que não permite contratar quem a preste, coloca-se o sinistrado, nestas situações normalmente já gravemente afectado na sua saúde física e psíquica e com muito acentuada perda da sua capacidade de ganho, numa situação de maior desfavor, sendo obrigado a alocar parte de outras indemnizações ou pensões, a que tem direito para outros fins, ao pagamento da retribuição devida ao terceiro que lhe vai prestar a necessária assistência.
Ademais, o valor máximo estabelecido no art. 54.º n.º 1 da Lei 8/2009 mostra-se inferior a patamares que a legislação reconhece, para outros fins, como mínimo de existência ou situação de insuficiência económica, como sucede para fins de IRS ou para isenção de taxas moderadoras no SNS – 1,5 o valor do IAS – colocando assim os sinistrados em acidente de trabalho que necessitam de assistência a terceira pessoa em situação de clara desvantagem económica na contratação de trabalhador que lhes preste tal benefício.
Conclui-se, pois, que o art. 54.º n.º 1 da Lei 98/2009, ao permitir que a prestação suplementar para assistência a terceira pessoa tenha um limite máximo que pode ser inferior ao valor da retribuição mínima mensal garantida, assim colocando o sinistrado em acidente de trabalho em situação de desvantagem económica e impedindo-o de beneficiar dessa assistência, é inconstitucional, por violação do direito à assistência e justa reparação das vítimas de acidente de trabalho, estatuído no art. 59.º n.º 1 al. f) da Constituição.
Recusando-se, pois, a aplicação da mencionada norma, com fundamento em inconstitucionalidade, tomando como base de cálculo o valor da retribuição mínima mensal garantida à data da alta – tal como era a solução do art. 19.º n.º 1 da Lei 100/97 – e ponderando, ainda, que a prestação suplementar para assistência a terceira pessoa deve ser fixada em função do tempo necessário a essa assistência e paga durante 14 vezes por ano[10], deverá esta prestação fixar-se, à data da alta (05.12.2016) em € 530,00 x 4/8 = € 265,00, paga 14 vezes por ano, e actualizada conforme a evolução da retribuição mínima mensal garantida.

DECISÃO
Destarte, nega-se provimento ao recurso interposto pela Seguradora e concede-se parcial provimento ao recurso subordinado interposto pelo sinistrado, fixando-se a prestação suplementar para assistência a terceira pessoa no valor mensal, em 05.12.2016, de € 265,00, paga 14 vezes ao ano e actualizada desde 01.01.2017 conforme a evolução da retribuição mínima mensal garantida, acrescendo os juros pelo modo fixado na sentença.
Custas pela Seguradora.
Entregue cópia certificada deste aresto ao Digno Magistrado do Ministério Público, para efeitos de interposição obrigatória de recurso de constitucionalidade.

Évora, 13 de Fevereiro de 2020

Mário Branco Coelho (relator)
Paula do Paço
Emília Ramos Costa
_______________________________________________
[1] In Acidentes de Trabalho e Doenças Profissionais, 2.ª ed., Almedina, 2001, págs. 73 a 75.
[2] Na feliz expressão utilizada no Acórdão da Relação do Porto de 11.10.2011 (Proc. 559/07.1TTPRT.P1), disponível em www.dgsi.pt e correctamente citado na decisão recorrida.
[3] Cfr., a propósito, não apenas o Acórdão de Relação do Porto de 11.10.2011 supra citado, mas ainda os Acórdãos desta Relação de Évora de 30.03.2016 (Proc. 869/05.2TBSTC.3.E1), da Relação de Guimarães de 15.12.2016 (Proc. 1095/09.7TTBRG.G1), e da Relação do Porto de 07.12.2018 (Proc. 242/14.1T4AGD.P1), todos disponíveis em www.dgsi.pt.
[4] Pires de Lima e Antunes Varela, in Código Civil Anotado, vol. I, 4.ª ed., Coimbra Editora, 1987, pág. 576.
[5] Cfr. os n.ºs 1, 6 e 7 do art. 87.º do Código do IRS,
[6] Cfr. o art. 45.º n.º 1 do Código dos Regimes Contributivos do Sistema Previdencial de Segurança Social.
[7] A suspensão da actualização anual do indexante dos apoios sociais (IAS) foi determinada pelo art. 1.º n.º 1 do DL 323/2009, de 24 de Dezembro.
[8] Os valores do IAS foram sucessivamente fixados, nos mencionados anos, pelas Portarias n.º 1514/2008, de 24 de Dezembro; n.º 4/2017, de 3 de Janeiro; n.º 21/2018, de 18 de Janeiro; n.º 24/2019, de 17 de Janeiro; e n.º 27/2020, de 30 de Janeiro.
[9] A mencionada retribuição mínima mensal garantida foi sucessivamente fixada, nos mencionados períodos, pelos Decretos-Lei n.º 246/2008, de 18 de Dezembro; n.º 5/2010, de 15 de Janeiro; n.º 143/2010, de 31 de Dezembro; n.º 144/2014, de 30 de Setembro; n.º 254-A/2015, de 31 de Dezembro; n.º 86-B/2016, de 29 de Dezembro; n.º 156/2017, de 28 de Dezembro; n.º 117/2018, de 27 de Dezembro; e n.º 167/2019, de 21 de Novembro.
[10] Tal como se decidiu no Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 08.05.2013 (Proc. 771/11.9TTVIS.C1.S1) e no Acórdão da Relação do Porto de 21.02.2018 (Proc. 1419/13.2TTPNF.P1), ambos em www.dgsi.pt.