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DESPACHO SANEADOR
EXCEPÇÃO DILATÓRIA
RECURSO AUTÓNOMO
PERSONALIDADE JUDICIÁRIA
CONDOMÍNIO
REPRESENTAÇÃO
FALTA DE PODERES DO ADMINISTRADOR
SUPRIMENTO
ESPAÇO AJARDINADO
ABUSO DE DIREITO DO CONDOMÍNIO
Sumário
I - A decisão que, no despacho saneador, conheça de exceção dilatória sem que dela resulte absolvição total ou parcial da instância não é passível de recurso autónomo (naquela fase do processo). II - Uma vez proferida aquela decisão, fica esgotado o poder jurisdicional do juiz, mas não se forma caso julgado sobre ela antes da decisão final do processo e do decurso do prazo de recurso que depois desta ocorrerá nos termos do nº 3 ou do nº 4 do art.º 644º do Código de Processo Civil. III - A administração de um condomínio tem personalidade judiciária. IV - A falta de poderes do administrador para representar a generalidade dos condóminos (numa ação cível) não é um problema de personalidade judiciária, mas de capacidade judiciária, sendo, por isso, suprível no processo. V - Não ocorre abuso do direito do condomínio quando, após a sua inércia relativa a utilização abusiva (com ocupação excessiva não autorizada) de um espaço comum ajardinado por um dos condóminos, mesmo por vários anos, a administração, na defesa do interesse coletivo, decide que deve ser reposta a situação anterior, com eliminação do excesso daquela utilização, desde que as circunstâncias, no seu conjunto, não reflitam um comportamento contraditório chocante ou juridicamente intolerável à luz do sentimento jurídico dominante.
Texto Integral
Proc. nº 1085/17.6T8PVZ.P1 – 3ª Secção (apelação)
Comarca do Porto – Juízo Local Cível de Póvoa de Varzim – J 1
Relator: Filipe Caroço
Adj. Desemb. Judite Pires
Adj. Desemb. Aristides Rodrigues de Almeida
Acordam no Tribunal da Relação do Porto
I.
ADMINISTRAÇÃO DO CONDOMÍNIO DO EDIFÍCIO B…, Bloco ., sito na Avenida …, nº …, Póvoa de Varzim, instaurou ação declarativa comum, de condenação, contra C…, residente na Av. …, nº …, R/Ch Esquerdo, Póvoa de Varzim, alegando essencialmente que o R. é proprietário da fração autónoma (R/Ch esquerdo) do Condomínio que a A. administra e, sem autorização da assembleia, abriu, a partir dela, uma porta numa parede mestra e exterior do edifício que agora deita diretamente para o jardim/terraço que é comum e de utilização coletiva dos condóminos, inovando e alterando a linha arquitetónica do edifício, ao mesmo tempo que impediu os outros condóminos da sua utilização. O R. passou a fazer uma utilização exclusiva e exaustiva daquele espaço desvirtuando completamente a sua finalidade.
Apesar de interpelado para o efeito, o R. recusa-se a repor o espaço no estado em que se encontrava antes de várias obras que nele realizou e da utilização que ali passou a fazer, continuando a agir como se fosse o seu único proprietário.
O A. terminou o seu articulado inicial com o seguinte pedido:
«NESTES TERMOS EM QUE E NOS MELHORES DE DIREITO QUE V. EXA. DOUTAMENTE SUPRIRÁ, DEVE A PRESENTE ACÇÃO SER JULGADA PROCEDENTE, POR PROVADA, E, CONSEQUENTEMENTE, SER O R. CONDENADO A: A) A DEMOLIR ÀS SUAS CUSTAS A OBRA ILEGALMENTE CONSTRUÍDA NA PAREDE DA FRACÇÃO AUTÓNOMA, POR FORMA A QUE O EDIFÍCIO FIQUE TAL COMO DESCRITO NO TÍTULO CONSTITUTIVO DA PROPRIEDADE HORIZONTAL, COM TODAS AS DEVIDAS E LEGAIS CONSEQUÊNCIAS. B) RETIRAR, DE FORMA COMPLETA E DEFINITIVA OS OBJECTOS DESCRITOS NOS ARTIGOS 27º, 31º, 32º, 33º, 34º E 35 DESTA PETIÇÃO INICIAL, COM TODAS AS DEVIDAS E LEGAIS CONSEQUÊNCIAS. C) RECONHECER TAL ESPAÇO – JARDIM - COMO PARTE COMUM DO EDIFÍCIO A QUE PERTENCE A SUA FRACÇÃO AUTÓNOMA COM TODAS AS EVIDAS E LEGAIS CONSEQUÊNCIAS COM TODAS AS DEVIDAS E LEGAIS CONSEQUÊNCIAS. D) ABSTER-SE DE REALIZAR OBRAS E, OU, CONSTRUÇÕES SEMELHANTES ÀS DESCRITAS, BEM COMO, A OCUPAR TAL ESPAÇO COM OBJECTOS, COM TODAS AS DEVIDAS E LEGAIS CONSEQUÊNCIAS. E) A DAR INICIO À REALIZAÇÃO ÀS DESCRITAS OBRIGAÇÕES NO PRAZO DE DEZ (10) DIAS A CONTAR DA DATA DA SENTENÇA, COM TODAS AS DEVIDAS E LEGAIS CONSEQUÊNCIAS. FINALMENTE,
F) SER O R. IGUALMENTE CONDENADO NO PAGAMENTO DE UMA QUANTIA SANCIONATÓRIA E INDEMNIZATÓRIA, A QUAL DEVE SER FIXADA NO VALOR MÍNIMO DE €.5,00, POR CADA DIA DE ATRASO NA REPOSIÇÃO DE TODOS AQUELES DIREITOS DE QUE BENEFICIAM OS CONDOMINOS, REPRESENTADOS PELA A A., E ISTO A CONTAR DA DATA DA CITAÇÃO DO R. SEMPRE COM TODAS AS DEVIDAS E LEGAIS CONSEQUÊNCIAS.
G) SER O R. IGUALMENTE CONDENADO A RESSARCIR A A. POR TODOS OS DEMAIS DANOS E PREJUÍZOS RESULTANTES DOS RESPECTIVOS ACTOS ILÍCITOS, SEJAM OS PATRIMONIAIS, SEJAM EXTRA-PATRIMONIAIS, OS QUAIS NESTE MOMENTO NÃO SÃO AINDA POSSÍVEIS DE LIQUIDAR, O QUE SE RELEGA PARA EXECUÇÃO SE SENTENÇA, COM TODAS AS DEVIDAS E LEGAIS CONSEQUÊNCIAS.
H) E AINDA, NO PAGAMENTO DAS CUSTAS, CONDIGNA PROCURADORIA E NO MAIS QUE FÔR DE LEI.» (sic)
Citado, o R. deduziu contestação alegando essencialmente que:
a) O A. apenas está mandatado para demandar o R. pelos condóminos do Bloco ., conforme ata de 25.2.2017, quando, na realidade, o Condomínio é composto ainda pelos Blocos . e .. Por isso, não representando a totalidade ou o conjunto da propriedade horizontal do edifício, carece de personalidade judiciária para a demanda.
b) Nos termos da referida ata da assembleia de 25.2.2017, o Administrador ficou mandatado para diligenciar pela remoção das botijas de gás e das escadas, bem como dos poderes para contratar mandatário judicial, indo agora a ação mais longe, peticionando a remoção de outros objetos do espaço em causa, não gozando, por isso, o Administrador de legitimidade para deduzir tal pretensão.
c) O pedido de condenação do R. no pagamento de uma quantia diária de € 5,00 é inepto, por ininteligível.
Impugnou depois o R. parte dos factos alegados na petição inicial e pediu a improcedência da ação.
O A. apresentou resposta às exceções deduzidas.
Frustrou-se uma tentativa de conciliação (ata de 14.3.2018).
Após algumas vicissitudes relacionadas com a obtenção de meios de prova, teve lugar a audiência prévia onde se frustrou uma nova tentativa de conciliação das partes e se homologou a desistência do pedido da al. g) do petitório do articulado inicial.
Ainda na referida diligência, proferiu-se despacho com a seguinte proposição:
«(…) Por conseguinte, determina-se a notificação da autora para juntar acta de deliberação dos condóminos de todos os Blocos que a legitime como administradora a intentar a presente acção e que ratifique a sua actuação processual já efectuada nestes autos, sob pena de, não o fazendo, vir o réu a ser absolvido da presente instância, no prazo de 30 dias, suspendendo-se, entretanto, os termos da presente causa, de acordo com o disposto no artigo 29º do C.P.C.»
Por requerimento de 28.8.2018, o A. requereu o seguinte:
«Vem, em cumprimento do douto despacho de fls. _ dos autos – ref. n.º 394137777 – proferido na diligencia de Audiência prévia realizada aos 20 de Junho de 2018, Juntar aos autos, a Acta da Assembleia extraordinária realizada em 28 de Julho de 2018, no Edifício B…, pelos condóminos de todos os blocos, no âmbito da qual foi deliberado a legitimidade da A. para intentar a presente acção judicial, bem como, a ratificação da sua actuação processual, documento que adiante se junta e aqui se dá por integralmente reproduzido para todos os devidos e legais efeitos – doc. n.º 1».
Foi designada nova data para continuação da audiência prévia, onde o tribunal, além do mais:
- Julgou improcedente a exceção da nulidade do processo por ineptidão da petição inicial invocada na contestação com fundamento na ininteligibilidade do pedido formulado pelo autor sob a al. f) daquele articulado.
- Julgou improcedente a exceção de falta personalidade judiciária ativa e considerou sanadas as exceções da incapacidade judiciária e da ilegitimidade ativas também invocadas na contestação.
- Fixou em € 5.000,01 o valor da ação.
- Identificou o objeto do litígio.
- Especificou os temas de prova, de que não houve reclamação.
- Decidiu sobre a admissibilidade dos meios de prova.
- Designou data para a realização da audiência final.
Realizou-se a dita audiência, em cinco sessões, após o que foi proferida sentença com o seguinte dispositivo, ipsis verbis:
«Pelo exposto, decido julgar a presente acção parcialmente procedente e, em consequência, condenar o réu C…: a) a demolir, às suas custas, a obra construída na parede exterior da fração autónoma designada pela letra “T” do prédio urbano sito na Avenida …, n.º …º, Bloco ., r/c esquerdo, descrito na Conservatória do Registo Predial da Póvoa de Varzim sob o n.º 700/19880413, por forma a que o edifício fique tal como descrito no título constitutivo da propriedade horizontal; b) retirar, de forma completa e definitiva os objectos descritos nos factos provados sob os n.ºs 5, 7 e 8; c) reconhecer o jardim como parte comum do edifício a que pertence a sua fracção autónoma; d) abster-se de realizar obras e, ou, construções semelhantes às descritas, bem como a ocupar tal espaço com objectos, sem a autorização legalmente prevista. Custas nesta parte, que se fixa em 6/7 da causa, a cargo de autor e réu, na proporção do respectivo decaimento, que se fixa em 1/4 para o autor e 3/4 para o réu, nos termos do artigo 527º do C.P.C.».
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Inconformado, o A. apelou da decisão sentenciada, formulando as seguintes CONCLUSÕES:
«I – A Autora intentou ação enquanto administradora do bloco ., que constitui parte do complexo habitacional. II – A Autora invocou que o recorrente praticou factos ilícitos e abusivos nas partes comuns do edifício. III – O complexo habitacional insere se insere a fração do autor, é constituído por três torres, bloco ., ., e ., envolvidas por espaço comum a todos os blocos. IV – A Autora, administração do condomínio do edifício B…, bloco ., veio exercitar direitos em que apenas existe uma única propriedade horizontal para um conjunto de blocos contíguos, funcionalmente ligados entre si pela existência de partes comuns afectas ao uso de todas as frações que o compõem, desacompanhada de poderes que teriam que ser conferidos pelos 50 condóminos, e não por apenas 15, que compõem o bloco .. V – Ao ser intentada ação pela administração de condomínios do bloco ., tendo por objeto atuação que recai sobre partes comuns, faz ferir tal actuação da falta de pressupostos processuais. VI – O recorrente invocou que a administração de condomínio do bloco . carecia de personalidade judiciaria. VII – A falta de tal pressuposto processual determina a absolvição da instancia do ora recorrente. VIII – A falta de tal pressuposto processual não é suscetível de sanação. IX – Considerando o pedido e a causo de pedir subjacente à ação, intentada por quem noa dispunha de todo de poderes para vir a juízo, por desacompanhada por os demais condomínios e por deliberação a conferir poderes, já se vê que a sanação não era possível, estando o Tribunal impedido de realizar convite. X – No que concerne à falta de personalidade judiciaria, fora dos casos previstos no artigo 14 do CPC, são insanáveis e dai que não haja nenhum suporte legal para a intervenção corretora do Tribunal ao proferir despacho no sentido de procurar a superação da falta do indicado pressuposto judicial. XI – Deste modo, o Tribunal praticou ato que a lei não admite, com manifesta influencia na causa, quando se impunha a decretação a absolvição da instancia. XII – Acresce que, atua a Autora com manifesto abuso de direito. XIII – A Autora. atua num contexto de violação do principio da confiança, já que adotou conduta inconciliável com as espectativas adquiridas pela contraparte, em função do modo como atuou. XIV – A Conduta adotada pela A. quanto às obras realizadas pelo Recorrente, teve, objetivamente, no passado, uma atuação permissiva, inativa, que legitmamente foi entendida como uma tomada de posição em relação à construção como de respectiva anuência. XV – O Recorrente investiu na realização da obra, em virtude das espectativas que adquiriu e que lhe foram transmitidas pela Autora, realizando a obra cuja demolição lhe acarretara danos. XVI – Ao constatar esta realidade, deveria o Tribunal ter decretado a existência do abuso de direito por banda da Autora. XVII – Deste modo, o Tribunal “a quo” violou por erro de interpretação e aplicação o vertido nos artigos 5 nº 3, 6, 12 al. e), 14, 195, 278 n.º 1 al. c), 615 nº 1, al. d), todos do CPC, e artigos 334, 1430, 1436 e 1437 do Código Civil, 13, 20º e 268º, n.º 4 da CRP.» (sic)
Pediu a revogação da decisão recorrida.
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O A. respondeu em contra-alegações onde produziu argumentação no sentido da confirmação do julgado.
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Foram colhidos os vistos legais.
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II.
As questões a decidir --- exceção feita para o que for do conhecimento oficioso --- estão delimitadas pelas conclusões da apelação do R. acima transcritas (cf. art.ºs 608º, nº 2, 635º e 639º do Código de Processo Civil).
A apelação do A. versa sobre as seguintes questões que encerram exclusivamente matéria de Direito:
1. Insanabilidade da falta de personalidade judiciária da A. (decisão proferida no saneador).
2. Abuso de direito da A.
Há que tratar também a questão prévia suscitada pelo recorrido: Trânsito em julgado da decisão interlocutória recorrida.
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III. Foram dados como provados na 1ª instância os seguintes factos:[1]
1. Encontra-se inscrita através da Ap. 3349 de 06-01-2017, a aquisição a favor do réu do prédio urbano sito na Avenida …, n.º …º, Bloco ., r/c esquerdo, descrito na Conservatória do Registo Predial da Póvoa de Varzim sob o n.º 700/19880413 – T.
2. Encontra-se inscrita através da Ap. 7 de 13-04-1988, a constituição da propriedade horizontal do prédio urbano descrito na Conservatória do Registo Predial da Póvoa de Varzim sob o n.º 700/19880413.
3. O réu construiu, no lugar de uma janela, uma abertura onde colocou uma porta na parede exterior da fracção autónoma referida em 1, que dá acesso directo ao jardim do prédio referido em 2.
4. A porta tem dimensões de largura e altura não concretamente apuradas.
5. Depois de colocar a porta, o réu colocou umas escadas que vão dessa porta ao referido jardim, onde se encontram fixadas.
6. O réu chegou a colocar no referido jardim um cadeirão, para ali apanhar sol e repousar.
7. O réu colocou vasos de plantas, ocupando parte daquele referido jardim.
8. O réu depositou botijas de gás num espaço para o efeito por si construído no referido jardim.
9. O réu realiza por diversas vezes churrascos no jardim, com emissão de fumos e cheiros, e nessas alturas coloca mesas e cadeiras.
10. O autor solicitou por diversas vezes ao réu para que retirasse aqueles objectos e as escadas que se encontram no jardim.
11. O autor remeteu ao réu comunicação escrita, datada de 17-04-2015, através da sua Advogada, nos termos constantes de fls. 14 verso a 15 cujo teor aqui se dá integralmente por reproduzido.
12. Foi apresentada queixa junto da Câmara Municipal … nos termos constantes de fls. 16 e verso, cujo teor aqui se dá integralmente por reproduzido.
13. Foi remetida ao representante do autor, pela Câmara Municipal …, uma comunicação nos termos constantes de fls. 17, cujo teor aqui se dá integralmente por reproduzido.
14. Em 1 de Março de 1988, por escritura pública, D… declarou instituir “o regime da propriedade horizontal” sobre o prédio construído no terreno descrito na Conservatória do Registo Predial da Póvoa de Varzim sob o n.º 00305/301086, nos termos constantes de fls. 36 verso a 42 verso, cujo teor aqui se dá integralmente por reproduzido.
15. O prédio referido em 14 é composto da seguinte forma:
- Bloco ., integrado pelas fracções A, B, C, D, E, F, G, H, I, J e L.
- Bloco ., integrado pelas fracções M, N, O, P, Q, R e S.
- Bloco ., integrado pelas fracções T, U, V, X, Z, AA, AB, AC, AD, AE, AF, AG, AH, AI e AJ.
- Cave, integrada pelas fracções AL, AM, AN, AO, AP, AQ, AR, AS, AT, AU, AV, AZ, BA, BB, BC e BD.
16. Tal prédio acha-se inscrito na conservatória de registo predial sob o n.º 700/19880413, sito na Avenida …, n.ºs …/…, Póvoa de Varzim, que na sua composição descreve a existência de um “Edifício de 3 Blocos, designados por ., . e ., o 1º e o 2º da cave, rés-do-chão e 3 andares; e o 3º de cave, rés-do-chão e 6 andares.
17. A fracção . tem entrada pelo n.º …; a ., pelo n.º … e as restantes do Bloco ., pelo n.º …; as do Bloco ., pelo n.º … e as restantes do Bloco ., pelo n.º ….
18. A partir do rés-do-chão, o indicado prédio é constituído por três torres, todas com saída para a via publica.
19. Em toda a envolvente das 3 torres existe um espaço com uma parte cimentada e outra ajardinada.
20. Tal espaço é passível de utilização por todos os condóminos.
21. Desde o ano de 2000 que o réu vem habitando a fracção referida em 1, aí tendo instalado o centro da sua vida familiar.
22. Desde então eram frequentes as visitas à casa do réu por banda do Sr. E… e respectiva família.
23. O réu e o Sr. E… e família tomavam refeições no jardim contiguo à fracção referida em 1.
24. Como o Sr. E… habitava a fracção ao nível do 6º andar e o réu habitava no rés-do-chão, eram utilizados utensílios de cozinha do réu.
25. A varanda não dispunha de passagem directa para o jardim, o que obrigava a terem que dar a volta ao bloco . para ir a casa do réu buscar alguém utensílio que faltasse.
26. A obra foi realizada sem oposição e à vista de toda a gente.
27. Até ser contratado um jardineiro, o réu passou a cuidar do jardim, acessível a todos os condóminos.
28. As refeições no jardim continuaram a suceder-se, servindo a casa do réu como plataforma de apoio, onde se ia buscar a louça e utensilio, se servia das máquinas para confeccionar os alimentos, lavar a louça, refrigerar as bebidas, ao longo de vários anos.
29. Em 2013, o réu e o Sr. E… e família deixaram de conviver.
30. Foi remetida ao representante do autor, pela Câmara Municipal …, uma comunicação nos termos constantes de fls. 17, cujo teor aqui se dá integralmente por reproduzido.
31. Foi proferida informação pela Câmara Municipal …, nos termos constantes de fls. 52 verso, cujo teor aqui se dá integralmente por reproduzido.
32. Foi remetida ao réu, pela Câmara Municipal …, uma comunicação nos termos constantes de fls. 53, cujo teor aqui se dá integralmente por reproduzido.
33. Em 13 de Julho de 2017 foram obtidas desistências de queixa em processos crime que corriam termos pelo Juízo Local Criminal de Vila do Conde, nos termos constantes de fls. 53 verso a 55 verso, cujo teor aqui se dá integralmente por reproduzido.
34. A procuração, em representação do autor, foi outorgada pelo Sr. E… e pela Sr. F…, na qualidade de administradores.
35. Em Assembleia Geral Ordinária que decorreu no dia 31 de Janeiro de 2015, os condóminos deliberaram que as botijas de gás pertencentes ao réu tinham que ser retiradas do jardim.
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A 1ª instância deu como não provada a seguinte matéria:[2]
1. A abertura da porta referida em 3 dos factos provados teve como efeito impedir a utilização desse espaço físico pelos demais condóminos.
2. Impedindo o réu o seu uso pelos restantes condóminos, que se vêm impossibilitados de circular, repousar, brincar com os filhos e utilizar o jardim.
3. O réu põe no jardim o estendal da roupa a secar.
4. Com a sua actuação, o réu impede aos outros condóminos o uso e fruição do referido espaço de jardim.
5. No ano de 2000 desempenhavam as funções de administradores de condomínio, o Sr. G… e o Sr. E….
6. Foi sugerido pelo E… que fosse aberta uma passagem que permitisse directamente o acesso da casa do réu para o jardim.
7. Porque o Sr. E…, conjuntamente com o Sr. G…, eram os administradores de condomínio do Bloco ., e a proposta era apresentada por um dos elementos da administração, o réu anuiu à realização da obra.
8. O Sr. E… e o Sr. G… garantiram que inexistia qualquer obstáculo à realização da obra, obrigando-se a obter parecer favorável da administração de condómino integrada pela totalidade dos condóminos de todo o edifício (Blocos ., . e .).
9. O Sr. E… procedeu à demolição parcial do muro lateral da varanda de casa do réu.
10. O Sr. E… mandou fabricar uma porta em PVC e uma escada em ferro.
11. O Sr. E… criou um espaço para colocação das mencionadas botijas de gás.
12. Aquando da aquando da autorização concedida pelos administradores do Bloco . e assunção de garantias de que obteriam consentimento dos demais condóminos, foi dado como exemplo de que não importaria qualquer conflitualidade estética, as varandas dos demais blocos . e . que dispõem de portas iguais à colocada na casa do réu.
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IV. A questão prévia suscitada pelo recorrido nas contra-alegações: Trânsito em julgado da decisão recorrida
Por se tratar de uma questão prévia, relativa ao trânsito em julgado da decisão objeto do recurso, é por ela que começamos necessariamente a nossa análise. Em função da sua decisão se conhecerá, ou não, do objeto da apelação (art.º 608º, nº 2, ex vi art.º 663º, nº 2, do Código de Processo Civil).
A primeira questão da apelação reporta-se à insanabilidade da falta de personalidade judiciária da A. O R. recorrente argumenta que a falta daquele pressuposto processual não é suscetível de sanação e que o tribunal, apreciando tal exceção suscitada na contestação, determinou, em sede de audiência prévia, “a notificação da autora para juntar acta de deliberação dos condóminos de todos os Blocos que a legitime como administradora a intentar a presente acção e que ratifique a sua actuação processual já efectuada nestes autos, sob pena de, não o fazendo, vir o réu a ser absolvido da presente instância, no prazo de 30 dias, suspendendo-se, entretanto, os termos da presente causa, de acordo com o disposto no artigo 29º do C.P.C.”
Depois, por despacho de 16.10.2018, continuando aquela audiência, o tribunal julgou improcedente a exceção de falta de personalidade judiciária ativa. Fê-lo conhecendo, em conjunto daquela exceção e das também invocadas exceções da falta de capacidade judiciária e de legitimidade ativas, com o seguinte trecho final:
«(…) Regularmente notificado de tal despacho, o autor “Condomínio do Edifício B…, n.º …, Bloco .” veio proceder à junção de acta de Assembleia de Condóminos do Edifício B…, n.º …, Blocos ., . e ., na Póvoa de Varzim, na qual consta que foi deliberado por unanimidade dos condóminos presentes e representados a autorização do autor, representado pela sua administração, para accionar judicialmente o réu com os pedidos formulados na presente acção e ratificar todos os actos processuais por ele praticados nos autos. E note-se que o próprio réu alude ao longo da sua peça processual aos “administradores do bloco .”, reconhecendo tal autonomização. Por conseguinte, julga-se improcedente a invocada excepção de falta personalidade judiciária activa e consideram-se sanadas as excepções da incapacidade judiciária e da ilegitimidade activas.»
Com efeito, o tribunal fez prosseguir a normal tramitação do processo, designadamente fixando objeto do processo, especificando os temas de prova, pronunciando-se sobre os meios de prova e marcando data par a realização da audiência final.
O que a recorrida agora nos vem dizer é que, quando nesta sede de recurso da sentença, o apelante vem impugnar a decisão que, na audiência prévia, decidiu pela existência de personalidade judiciária da A., fá-lo extemporaneamente, fora do prazo de que dispunha para recorrer da mesma, o que resultou no trânsito em julgado da mesma, com força dentro do próprio processo (caso julgado formal), ao abrigo dos art.ºs 619º, 620º e 621º do Código de Processo Civil. Estaria, assim, verificada a exceção dilatória do caso julgado, do conhecimento oficioso, a justificar o não conhecimento, no recurso, da questão da falta de personalidade judiciária.
Não tem razão a recorrida.
O regime monístico de recursos criado pelo Decreto-lei nº 303/2007, de 24 de agosto, prevê a apelação da decisão do tribunal da 1ª instância que põe termo ao processo (art.º 691º, nº 1, do anterior Código de Processo Civil), estabelecendo, excecionalmente e de modo taxativo (sob o nº 2 do mesmo preceito legal), um conjunto de situações em que também é admissível recurso autónomo e imediato de decisões da 1ª instância, independentemente do recurso da decisão final. Todas as demais decisões só podem ser impugnadas nos termos do nº 3, ou seja, no recurso desta decisão (final) ou do despacho previsto na al. l) do citado nº 2, ou, na falta daquela decisão, em conformidade com o disposto no subsequente nº 4.
Como refere Cardona Ferreira[3], enquanto o nº 1 do art.º 691º prevê para decisões que põem termo ao processo, sejam elas de mérito ou não, o nº 2 estabelece um elenco de decisões que, globalmente, podem ser interlocutórias, mas que poem termo a uma questão específica.
Este regime foi acolhido, na sua essência, pelo atual Código de Processo Civil, aqui aplicável (art.º 644º). Também agora, a lei admite dois regimes diversos:
a) São suscetíveis de recurso imediato as decisões que ponham termo ao processo, procedimento cautelar ou incidente autónomo (art.º 644º, n.º l, al. a)) e bem assim os despachos saneadores referidos na al. b);
b) Também assim as decisões tipificadas no nº 2;
As restantes decisões, independentemente da sua natureza, apenas podem ser impugnadas juntamente com o recurso da decisão final (n.º 3) ou, se este não existir (por não ser admissível ou por não ter sido deduzido), em recurso único a interpor depois de a mesma transitar em julgado, se a impugnação tiver interesse autónoma para a parte (nº 4).
A. Abrantes Geraldes[4] dá precisamente o despacho saneador que, fora dos casos referidos no nº 1, al. b), julgue alguma exceção dilatória, sem que dele resulte a absolvição total ou parcial da instância, como exemplo de decisão intercalar que, reunindo os pressupostos gerais de recorribilidade, só podem ser impugnadas no âmbito do recurso que eventualmente seja interposto da decisão final do processo, de acordo com o disposto no nº 3, ou nas condições referidas no nº 4
Ora, a decisão que, na fase do saneador, considerou que a A. tem personalidade judiciária, capacidade judiciária e legitimidade processual para estar em Juízo não pôs termo ao processo, não decidiu do mérito da causa, nem absolveu o R. da instância, pelo que não se enquadra em nenhuma das al.s a) e b) do nº 1 do art.º 644º do Código de Processo Civil. Também não preenche os requisitos que, nos termos de alguma das al.s a) a i) do nº 2 do mesmo artigo, justificam apelação autónoma.
Com efeito, restava ao R. impugnar aquela decisão interlocutória, proferida na audiência prévia de 16.10.2018, nos termos dos nºs 3 ou 4 do mesmo art.º 644º. Fê-lo ao abrigo do nº 3, juntamente com a invocação da exceção do abuso de direito da A. para impugnação da sentença.
É certo que, com a prolação do despacho saneador se esgotou o poder jurisdicional do tribunal a quo quanto à matéria em causa (art.º 613º, nº 1, do Código de Processo Civil[5]), mas isso não se confunde com o trânsito em julgado da decisão, seja ele formal ou material, que só se verifica quando já não seja suscetível de recurso ordinário ou de reclamação (art.º 628º do Código de Processo Civil).
Derradeiramente, não podemos deixar de fazer constar aqui que o douto acórdão da Relação de Guimarães citado pela recorrida em abono da sua posição[6], vai justamente em sentido diverso. Tirado a propósito da legitimidade, refere, certeiramente, que o caso julgado formal impede que sobre a mesma questão processual recaia posterior pronúncia e decisão, para mais de sentido contrário. Houve ali duas pronúncias sucessivas sobre a legitimidade no mesmo processo, sendo a segunda contrária à primeira, não tendo nenhuma das partes recorrido desta no recurso interposto da sentença. Escreveu-se ali:
«(…) É que, mesmo só sendo impugnável por via de recurso com a presente decisão final que pôs termo à causa, nos termos das disposições conjugadas do nºs 1, alínea a), e 3, do artº 644º, CPC, o certo é que tal não sucedeu, pelo que tal decisão tornou-se definitiva e obrigatória no processo.».
Havia caso julgado formal, enquanto no caso que nos ocupa, a impugnação da decisão relativa à personalidade judiciária proferida no saneador está em tempo nesta fase do recurso da sentença, não se tendo formado, quanto a ela, caso julgado formal.
Improcede a questão prévia.
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Do mérito da apelação
1. Insanabilidade da falta de personalidade judiciária da A.
Como observámos já, o recorrente apresenta-se na primeira questão da apelação a defender que ao tribunal estava vedado viabilizar o suprimento da questão da falta de personalidade judiciária do Condomínio. Di-lo assim, essencialmente nas conclusões VI, VIII, IX e X: O recorrente invocou que a administração de condomínio do bloco . carecia de personalidade judiciária. A falta de tal pressuposto processual determina a absolvição da instância do ora recorrente. Considerando o pedido e a causa de pedir subjacente à ação, intentada por quem não dispunha de todo de poderes para vir a juízo, por desacompanhada por os demais condomínios e por deliberação a conferir poderes, já se vê que a sanação não era possível, estando o Tribunal impedido de realizar convite. No que concerne à falta de personalidade judiciária, fora dos casos previstos no artigo 14 do Código de Processo Civil, são insanáveis e daí que não haja nenhum suporte legal para a intervenção corretora do Tribunal ao proferir despacho no sentido de procurar a superação da falta do indicado pressuposto judicial.
Analisemos esta questão introduzindo nela uma visão geral, ainda que sucinta, do que são os pressupostos da personalidade jurídica, da personalidade judiciária e da capacidade judiciária.
O conceito de personalidade jurídica é eminentemente qualitativo. Dizer de alguém ou de alguma organização que possui personalidade jurídica significa que pode figurar como sujeito de relações jurídicas, sem distinguir se de muitas ou de poucas, se de todas em geral ou se apenas de algumas em especial.
Quando se pretende quantificar a aptidão do sujeito para encabeçar relações respeitantes a um sector mais ou menos vasto da vida jurídica, ou respeitante a toda ela, fala-se, antes, de capacidade de direito ou capacidade jurídica.[7]
Segundo o art.º 11º, nº 1, do Código de Processo Civil, a personalidade judiciária consiste na suscetibilidade de ser parte[8]. Quem tem personalidade jurídica, tem igualmente personalidade judiciária (nº 2).
Como diz Castro Mendes[9], “a personalidade judiciária não é uma capacidade de gozo (…). É um fenómeno de personalidade jurídica, limitado pela sua eficácia ou relevância: só produz efeitos dentro do processo”. Se falta a personalidade judiciária, não há parte; falta, em rigor, o ramo da instância em que essa devia funcionar como sujeito. Há uma aparência de instância que chega para fundamentar os atos do processo que se pratiquem, mas falta a instância.
Antunes Varela e outros[10] definem a personalidade judiciária como a possibilidade de requerer ou de contra si ser requerida, em próprio nome, qualquer das providências de tutela jurisdicional reconhecidas na lei.As partes podem ser principais ou acessórias. O critério geral fixado na lei para saber quem tem personalidade judiciária é o da correspondência (coincidência ou equiparação) entre a personalidade jurídica (ou capacidade de gozo de direitos) e a personalidade judiciária.
Todos os indivíduos gozam de personalidade judiciária, podem ser partes em juízo, uma vez que que também podem ser sujeitos, em princípio, de quaisquer relações jurídicas (art.º 67º do Código Civil). Esta regra estende-se às pessoas coletivas e às sociedades (partes nos processos em que são autores ou réus), embora agindo necessariamente em Juízo por meio dos seus representantes estatutários.
Como exceção ao princípio da correspondência entre capacidade de gozo de direitos e a personalidade judiciária, existem várias situações previstas na lei, todas elas orientadas no sentido de estender a personalidade judiciária a quem não goza de personalidade jurídica ou a quem é pelo menos duvidoso que a possua. Dizem-nos Antunes Varela e outros[11] que é “uma forma expedita de acautelar a defesa judiciária de legítimos interesses em crise, nos casos em que haja quaisquer situação de carência em relação à titularidade dos respectivos direitos (ou dos deveres correlativos)”. Disso dão exemplo a herança jacente e patrimónios autónomos semelhantes, entre estes os bens ou massas unificadas de bens que pertençam a um conjunto de pessoas ao qual não seja reconhecida personalidade jurídica, entre estes os condóminos, na propriedade horizontal, conforme art.ºs 1433º, nº 4 e 1437º, nº 1, do Código Civil.
Pensamos ser uniforme o entendimento de que o condomínio não tem personalidade jurídica. Mas também é verdade que, não sendo uma pessoa coletiva, recolhe ou empresta das pessoas coletivas alguns instrumentos, e age, quer nas relações externas, quer nas internas, como sujeito diferente dos condóminos, existindo uma comunidade de interesses dotada de organização em que os condóminos concorrem para formação da vontade do grupo segundo a regra da colegialidade, que constitui um princípio típico de organização das formações coletivas.
Como refere Sandra Passinhas[12], “o condomínio enquanto grupo organizado, constituindo um fenómeno relevante na realidade social, é considerado pelo ordenamento jurídico como merecedor de uma particular tutela, através de uma série de normas que reconhecem e disciplinam a sua relevância autónoma”.
O art.º 12º do Código de Processo Civil estende expressamente a personalidade judiciária ao condomínio resultante da propriedade horizontal, relativamente às ações que se inserem no âmbito dos poderes do administrador. Tal significa que fora do âmbito dos poderes do administrador, o condomínio não tem personalidade judiciária e, portanto, os condóminos agirão em Juízo em nome próprio.
O administrador é um dos órgãos do condomínio, investido nas funções executivas pela assembleia de condóminos. Cumpre-lhe, nomeadamente, realizar os atos conservatórios dos direitos relativos aos bens comuns e executar as deliberações da assembleia de condóminos (art.º 1436º, al.s f) e h), do Código Civil).
Nos presentes autos algo está para além da administração ordinária e não está, por isso, no âmbito das funções que pertencem ao administrador do respetivo condomínio. Deve entender-se que pertence à Assembleia dos condóminos a decisão sobre a oportunidade de instaurar ou não a ação judicial contra o Condómino. Tão relevante e decisivo assunto de demandar ou não demandar não pode ficar na única e exclusiva iniciativa do Administrador.
Pires de Lima e Antunes Varela[13] referem que há assuntos respeitantes à gestão dos bens comuns que exorbitam da competência do administrador, mas que cabem na da Assembleia, carecendo o Administrador de autorização desta para intentar as competentes ações judiciais. O mesmo dizendo tais autores relativamente a todos os atos que, excedendo embora o âmbito da gestão normal, a lei inclui na esfera de competência da Assembleia, exemplificando com situações em que seja necessária a propositura de uma ação que tenha por objeto direitos referentes às partes comuns, para as quais defendem não assistir ao Administrador competência para tomar tal iniciativa.
A instauração de uma ação judicial com as caraterísticas da presente implica a ponderação de vários fatores, desde a escolha do mandatário, passando pelos seus honorários e despesas judiciais a pagar, avaliação do interesse na ação relativamente à gravidade da ação do R., possibilidade de prévia negociação da reposição do espaço comum, etc. o A. não podia tê-la instaurado sem autorização da Assembleia de todos os condóminos dos três Blocos que compõem o prédio do Condomínio.
O art.º 1437º, nº 1, do Código Civil, refere que “o administrador tem legitimidade para agir em juízo, quer contra qualquer dos condóminos, quer contra terceiro, na execução das funções que lhe pertencem ou quando autorizado pela assembleia”.
Como bem explica Sandra Passinhas[14], o legislador não trata ali da legitimidade processual, no sentido da legitimatio ad causam, porque a legitimidade, que consiste no interesse direto em demandar, é um pressuposto processual que só em concreto pode ser determinado. Só o juiz, e não o legislador, pode decidir sobre a legitimidade ou não das partes. Esta norma respeita à legitimatio ad processam, ou seja, à capacidade processual. O administrador, enquanto órgão, tem aquilo a que se chama representação orgânica, e representa ex necessario o condomínio. A assembleia não pode limitar a esfera de legitimação ativa do administrador, definida pelo núcleo das suas funções.
A representação em juízo do condomínio respeita, de modo inderrogável, no sentido do artigo 1437°, ao administrador eleito pela assembleia dos condóminos, no que respeita às lides compreendidas no âmbito das funções do administrador ou dos maiores poderes que lhe forem atribuídos pelo regulamento ou pela assembleia. A faculdade do administrador de representar o condomínio, no âmbito das suas atribuições, não pode sofrer limitações, nem por vontade da assembleia, nem por vontade do administrador. Fora do âmbito das suas funções, o administrador tem poder para agir em Juízo quando autorizado pela assembleia.[15]
A falta de personalidade judiciária --- que o recorrente invoca --- é, em regra, insanável, como resulta, a contrario, do art.º 27º do Código de Processo Civil[16], mas tal pressuposto não deve confundir-se com a figura da capacidade judiciária. Esta consiste na suscetibilidade de estar, por si, em juízo (art.º 15º, nº 1, do Código de Processo Civil) e tem por base e por medida a capacidade de exercício de direitos (nº 2). É a suscetibilidade de a pessoa por si, pessoal e livremente, decidir sobre a orientação da defesa dos seus interesses em juízo, em aspetos que não são de mera técnica jurídica.
A parte tem em regra capacidade judiciária quando pode em direito substantivo, por si, pessoal e livremente, provocar qualquer dos efeitos jurídicos possíveis do processo.
Sempre que um dos efeitos possíveis da ação seja um efeito que a pessoa não podia produzir por si, pessoal e livremente, para essa ação a pessoa é judiciariamente incapaz.
Ora, diz-nos o nº 1 do art.º 29º do Código de Processo Civil que “se a parte estiver devidamente representada, mas faltar alguma autorização ou deliberação exigida por lei, é designado o prazo dentro do qual o representante deve obter a respetiva autorização ou deliberação, suspendendo-se entretanto os termos da causa”.
Esta é uma questão de suprimento da incapacidade: a parte pode estar em juízo, mas não dispõe de autorização ou deliberação que devesse obter para exercer a sua representação.
Refere Lebre de Freitas[17] que este artigo (então a propósito do art.º 25º do anterior Código de Processo Civil) trata da falta de autorização ou deliberação que o representante da parte (incapaz, pessoa coletiva, ente com mera personalidade judiciária) devesse obter para exercer a representação. Dá mesmo como exemplo de falta de deliberação o administrador do condomínio propor uma ação relativa à propriedade de bens comuns sem que a assembleia de condóminos lhe tenha atribuído os poderes especiais exigidos pelo art.º 1437º, nº 3, Código Civil.
Verificado que o Administrador não dispunha de deliberação dos condóminos que permitisse representar o condomínio em Juízo, considerando a finalidade da ação, o tribunal convidou-o a apresentar, e ele apresentou, a referida deliberação que, em si, não foi posta em causa. Passou então o Administrador a ter capacidade para representar em Juízo a totalidade do Condomínio, composto pelos Blocos ., . e ..
O recorrente defende na apelação que o Ex.mo Juiz não deveria ter suprido a falta de personalidade judiciária.
O que o tribunal fez foi diligenciar pelo suprimento da incapacidade judiciária do administrador, tendo-a considerado regularmente suprida no despacho recorrido. Ao fazê-lo não tratou o tribunal a quo do pressuposto da personalidade judiciária cuja falta, de resto, como observámos já, não é, em regra, suprível. Basta ler o dispositivo da decisão recorrida para constatar que o tribunal julgou improcedente a invocada exceção da falta de personalidade judiciária ativa e considerou sanadas as exceções da incapacidade judiciária e da legitimidade ativas.[18]
Como vimos, a representação em Juízo do condomínio é assegurada pelo seu administrador. É através dele que o condomínio é parte ativa ou passiva no processo.
O prédio que constitui o Condomínio é composto por um edifício com três blocos/torres (., . e .), mas constitui uma única unidade predial, quer na escritura de constituição da propriedade horizontal, quer no registo predial e ainda na matriz das finanças.
Em toda a envolvente das 3 torres existe um espaço com uma parte cimentada e outra ajardinada, passível de ser utilizado por todos os condóminos.
Alegou o R., na contestação, que no presente caso aparece um pretenso administrador que apenas representa um dos três blocos do edifício, e desacompanhado de poderes a conferir pelos demais proprietários das frações dos demais blocos. Conclui ali que o A. carece de personalidade judiciária por não representar a totalidade ou o conjunto da propriedade horizontal do edifício.
Desde logo, na contestação --- onde, em regra toda a defesa deve ser efetuada, sob pena de preclusão[19] (art.º 573º, nºs 1 e 2, do Código de Processo Civil) --- o R. recorrente não justifica a afirmação de que o Administrador apenas representa um dos edifícios do condomínio; não diz designadamente que os outros dois blocos têm outro ou outros administradores, quem eles sejam, como foram eleitos, como estão distribuídos os poderes entre eles e como estavam organizados.
Ainda assim, o A. acabou por reconhecer que há mais de 20 anos que os três blocos que compõem o Edifício B… têm uma administração de condomínio autónoma, tendo juntado inclusivamente o Livro de Atas do Bloco ..
Não é, ao menos por regra, de admitir a existência de vários administradores num edifício constituído em propriedade horizontal, como é o caso. As funções de administrador têm a ver com o edifício no seu conjunto, e não são repartíveis entre várias pessoas sem se quebrar inexoravelmente a unidade na administração do condomínio, que o legislador considerou indispensável à boa gestão das partes comuns.
Sandra Passinhas, na defesa desta tese, argumenta mesmo que o administrador constitui o único meio de atuação responsável do condomínio. Representa um pólo único de responsabilidade, quer perante os condóminos (pelo exercício diligente das suas funções), quer perante terceiros. Na sua perspetiva, a aceitação do regime da propriedade horizontal terá de ser in totum. Mesmo havendo vários edifícios na composição da propriedade horizontal (um supercondomínio, por exemplo) deverá haver apenas um administrador, a quem caberá a gestão e a representação de todas as partes comuns, quer as que pertencem a cada edifício particular, quer as que ligam funcionalmente os edifícios entre si. Entende que está, definitivamente, fora do espírito legal a existência de um administrador para cada edifício e de um administrador geral que, afinal, só seria administrador das partes que ligam funcionalmente os edifícios entre si.[20]
Mas, mesmo admitindo que pudesse haver autonomização dos Blocos ., . e . para efeito do exercício da administração, ou autonomização de administração para as partes comuns ao conjunto dos três blocos (excluindo as partes comuns de cada edifício), a verdade é que sempre deveria depender de uma deliberação do condomínio global --- como resulta do acórdão da Relação de Lisboa de 12.12.2017, proferido no processo nº 17030/13.5T2SNT.L1-1[21] ---, no caso, não demonstrada. A ata nº 12 relativa à assembleia de condóminos reunida a 3.2.1996 refere-se apenas a uma posição tomada pelo Bloco . e dela decorre só uma deliberação para apresentação autónoma de conta: “Ficou também deliberado de que a partir de agora, deveriam as contas de cada Bloco, ser apresentadas independentemente” (sic)) e não a autonomização na administração, tomada pelo conjunto dos blocos, designadamente quanto a cada Bloco, às partes comuns de cada torre ou comuns aos três blocos.
Seja como for, a verdade é que está em Juízo a Administração do Condomínio do Edifício B…, Bloco ., na qualidade de autora, a quem a lei processual reconhece personalidade judiciária, ou seja, a suscetibilidade de ser parte (art.º 11º, nº 1 e 12º al. e), do Código de Processo Civil). Tendo sido necessário obter poderes de representação da generalidade dos condóminos também dos Blocos . e ., para que a ação produzisse o seu efeito útil normal --- concedidos em assembleia de condóminos dos Blocos ., . e . que reuniu a 28.7.2018; cf. ata junta por requerimento de 28.8.2019 --- isso não é, como vimos, uma questão de personalidade judiciária, mas de capacidade e legitimidade da administração, com suprimento por decisão com que o R. se conformou.
Afastada que fica a posição defendida pelo recorrente de que o tribunal supriu a falta de personalidade judiciária do condomínio e confirmado que o que foi suprido foi a falta de capacidade judiciária, há que julgar improcedente esta primeira questão da apelação.
Não olvidamos que o recorrente suscitou a questão da inconstitucionalidade do convite à A. para junção de ata de deliberação de todos os condóminos dos Blocos ., . e . do edifício do condomínio com vista ao referido suprimento. Porém, além de o ter feito apenas no corpo das alegações (não nas conclusões), fê-lo no pressuposto do suprimento (indevido) da falta de personalidade judiciária; pelo que a questão não só está fora do objeto do recurso, delimitado pelas respetivas conclusões (art.ºs 635º, nº 4 e 639º, nº 1, do Código de Processo Civil), como sempre estaria prejudicada, por não se tratar de uma questão de suprimento de falta de personalidade judiciária, mas de falta de capacidade judiciária. É ainda curioso notar que o recorrente não fundamenta minimamente a sua afirmação de que ocorre violação do princípio da igualdade e do princípio da tutela jurisdicional efetiva, bastando-se com a citação dos art.ºs 13º, 20º e 268º, nº 4, da Constituição da República.
Decidiu bem o tribunal recorrido ao reconhecer personalidade judiciária à administração do condomínio.
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2. Abuso de direito do Condomínio
Diz o recorrente que o Condomínio agiu num contexto de violação do princípio da confiança, por ter adotado conduta inconciliável com uma conduta anteriormente tomada, violando as expetativas adquiridas pelo R. A conduta adotada quanto às obras realizadas pelo recorrente teve, objetivamente, no passado, uma atuação permissiva, inativa, que legitmamente foi entendida como uma tomada de posição em relação à construção como sendo de anuência. Na perspetiva do recorrente, a A. incorre em abuso de direito na modalidade de venire contra factum proprium.
Vejamos.
É ilegítimo o exercício de um direito, quando o titular exceda manifestamente os limites impostos pela boa fé, pelos bons costumes ou pelo fim social ou económico desse direito --- é o que dispõe o art.º 334º do Código Civil.
A priori legítimo o exercício do direito, se feito de forma que ofenda manifestamente a boa fé, os bons costumes ou o seu fim social ou económico, em suma, o sentimento jurídico socialmente dominante, torna-se ilegítimo, daí advindo a paralisação dos respetivos efeitos, tudo se passando como se aquele direito não existisse na esfera patrimonial do titular, sobrando apenas a sua aparência.
Pode entender-se juridicamente por exercício abusivo do direito “um comportamento que tenha a aparência de licitude jurídica --- por não contrariar a estrutura formal-definidora (legal ou conceitualmente) de um direito, à qual mesmo externamente corresponde --- e, no entanto, viole ou não cumpra, no seu sentido concreto-materialmente realizado, a intenção normativa que materialmente fundamenta e constitui o direito invocado, ou de que o comportamento realizado se diz exercício”[22].
Uma das funções essenciais do Direito é, sem dúvida, assegurar expetativas. A tutela das expetativas das pessoas é essencial a uma ordenação que pretenda ter como efeito a estabilidade e a previsibilidade das ações. Como se sabe, a confiança é um poderoso meio de redução da complexidade social, limitando a quantidade e a variedade de informação que tem de ser elaborada pela pessoa na sua vida social, e desempenhando uma função de desoneração da formação de expetativas em cada caso e a partir do nada. Numa certa perspetiva, poderíamos dizer que a sua necessidade radica fundo nas próprias estruturas comunicacionais do “mundo-da-vida”, pois a desconfiança mútua permanente dilaceraria por certo quaisquer possibilidades de comunicação aberta, possibilitando uma ação apenas estratégica[23].
Trata-se --- importa notar --- não só de uma forma de proteção extra negocial da confiança, como de uma proteção não apenas ‘negativa”, mas “positiva”, na medida em que o confiante pode exigir a “correspondência” a essa confiança, isto é, ser colocado na situação correspondente ao cumprimento da vinculação em que confiou, e não apenas na situação em que estaria se não tivesse depositado confiança no comportamento alheio.
Uma das modalidades pelas quais se revela o abuso de direito é o venire contra factum proprium, que o R. agora invoca.
A violação do princípio da confiança revela normalmente um comportamento com que, razoavelmente, não se contava, face à conduta anteriormente assumida e às legítimas expetativas que gerou --- “venire contra factum proprium” --- que se enquadra na expressão legal “manifesto excesso”.
Como escreve o Prof. Menezes Cordeiro, “o venire contra factum proprium postula dois comportamentos da mesma pessoa, lícitos em si e diferidos no tempo. O primeiro – o factum proprium – é, porém, contrariado pelo segundo”.[24]
O mesmo Professor[25] refere, lapidarmente, que são quatro os pressupostos da proteção da confiança, ao abrigo da figura do “venire contra factum proprium”:
“1°- Uma situação de confiança, traduzida na boa-fé própria da pessoa que acredite numa conduta alheia (no factum proprium); 2.° Uma justificação para essa confiança, ou seja, que essa confiança na estabilidade do factum proprium seja plausível e, portanto, sem desacerto dos deveres de indagação razoáveis; 3.° Um investimento de confiança, traduzido no facto de ter havido por parte do confiante o desenvolvimento de uma actividade na base do factum proprium, de tal modo que a destruição dessa actividade (pelo venire) e o regresso à situação anterior se traduzam numa injustiça clara; 4.° Uma imputação da confiança à pessoa atingida pela protecção dada ao confiante, ou seja, que essa confiança (no factum proprium) lhe seja de algum modo recondutível.”
Como refere ainda o citado acórdão do Supremo Tribunal de Justiça[26], “subjacente à proibição do venire contra factum proprium está a ideia de que os riscos originados na credibilidade da conduta anterior do agente não devem ser suportados por quem, dentro da normalidade da vida da relação, acreditou na mensagem irradiada pelo significado objectivo da conduta do mesmo agente”.
Assim, a conduta do agente, para ser integradora do “venire” terá, objetivamente, de trair o “investimento de confiança” feito pela contraparte, importando que os factos demonstrem que o resultado de tal conduta constituiu, in concreto, uma clara injustiça.
Do acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 21.01.2003[27] consta que “a proibição de comportamentos contraditórios é de aceitar quando o venire contra factum proprium atinja proporções juridicamente intoleráveis, traduzido em chocante contradição com o comportamento anteriormente adotado pelo titular do direito”.
Está provado que o R., no lugar de uma janela, abriu uma passagem na parede exterior da sua fração, onde colocou uma porta que dá acesso direto ao jardim do prédio. Depois colocou uma escada a ligar a porta ao jardim e chegou a usar ali um cadeirão para apanhar sol e repousar. Colocou vasos de plantas e também depositou botijas de gás no local. Realizou, por diversas vezes, churrascos no jardim, com emissão de fumos e cheiros e, nessas ocasiões, colocava mesas e cadeiras.
O R. chegou a cuidar do jardim até ser contratado um jardineiro, mas mantendo-se o espaço sempre acessível a todos os condóminos.
Mas também está provado que o A. solicitou por diversas vezes ao R. que retirasse aqueles objetos e as escadas que aplicara (ponto 11 dos factos provados). Fê-lo depois, mais uma vez, através do seu mandatário, através da carta que juntou com a petição inicial, datada de 17.4.2015, pela qual lhe concedeu um prazo para o efeito. Dirigiu uma queixa, no mesmo sentido, à Câmara Municipal ….
O espaço em causa é passível de ser utilizado por todos os condóminos (ponto 20 dos factos provados).
O R. habita a sua fração desde o ano 2000, aí tendo instalado o centro da sua vida familiar e, desde então, frequenta o referido jardim. A obra que realizou deve-se ao facto de a sua varanda não dispor de passagem direta para o jardim, vendo-se obrigado a circundar o edifício.
Não está provado o período ou os períodos em que aquelas obras foram realizadas, sendo que o foram sem oposição e à vista e toda a gente, certamente antes de 2013 (data em que deixou de conviver com o vizinho E…). Está dada como não provada qualquer autorização para a realização das obras.
É do R. o ónus da prova dos factos que constituem a exceção do abuso de direito (art.º 342º, nº 2, do Código Civil).
Não obstante a não oposição à realização das obras enquanto estas decorreram, o condomínio veio a manifestar oposição às mesmas e ao uso que o R. passou a fazer do jardim. O R. não demonstrou o período de tempo que mediou entre a conclusão das obras e a primeira manifestação daquela oposição. Pode ter sido relativamente curto.
Em todo o caso, o R. não podia deixar de saber que estava a ocupar um espaço de utilização comum com meios exclusivamente dele, assim obstruindo ou, no mínimo, dificultando a sua utilização normal pela generalidade dos condóminos.
Nos condomínios, a reação/oposição a determinadas condutas internas é bastas vezes toldada pela sensata necessidade de zelar pelas relações de boa vizinhança entre os condóminos, onde facilmente se deparam diferentes sensibilidades.
O que houve da parte da administração e dos condóminos não foi mais do que tolerância e boa vontade perante uma utilização individual que foi, progressivamente, ultrapassando, a olhos vistos, o legítimo exercício do direito do R. e de que este se foi também aproveitando, sem que se conheça qualquer atitude dos administradores ou de um qualquer condómino que seja, de auxílio, de apoio ou simples favorabilidade expressa à realização das obras e à utilização que o R. passou a fazer daquele espaço comum, cuja relevância sempre dependeria de deliberação, nos termos do art.º 1430º do Código Civil. E também não se conhece qualquer pedido de autorização do R. para a sua realização, ainda que mal dirigido fosse. A sua conduta foi abusiva.
Não foram realizadas obras de grande vulto, de difícil reposição, pelo que era razoável esperar que a generalidade dos condóminos ajuizasse no sentido de que “aquilo não está bem”, “um dia tem de sair dali” e fosse tolerando a ação do R., sem nada dizer e “até mais ver…”.
Importa não olvidar que o R. tinha e tem o direito de utilizar aquele espaço de jardim, tal como os demais condóminos e que o modo como passou a servir-se dele é que foi excessivo, mas não intolerável.
Deste modo, a tolerância da administração e dos condóminos não era, objetivamente, adequada a criar no R. uma expetativa segura de que nunca, jamais, o condomínio deixaria de lhe exigir a reposição da situação anterior às obras que realizou no jardim e uma utilização conforme ao interesse coletivo. Assim, até porque os condóminos não são sempre os mesmos e impera, em cada momento, a vontade expressa pela sua maioria.
O princípio da confiança origina-se da correlação entre a boa fé e o caso concreto. “Ele exige que as pessoas sejam protegidas quando, em termos justificados, tenham sido levadas a acreditar na manutenção de um certo estado de coisas”[28]. Para que se aplique a proibição de venire contra factum proprium, é necessário que seja aguçada em outrem uma confiança que seja reconhecida, uma confiança legítima, para que em consequência, se conserve o comportamento inicial em sentido objetivo.
A conduta atual do condomínio apenas contraria a sua inércia anterior que não é uma expressão de vontade daquele coletivo de pessoas na qual o R. recorrente devesse razoavelmente confiar que assim continuaria a ser e que posição diferente o fizesse supor que foi ludibriado.[29] Não há propriamente uma deslealdade relevante do Condomínio, nem uma confiança fundamentada do R. de que jamais lhe iria ser exigida uma utilização do espaço do jardim conforme ao seu direito.
Não obstante o tempo que possa ter decorrido desde a realização das obras, a oposição do Condomínio é razoavelmente aceitável; ao menos, não constitui uma clara ou clamorosa injustiça a justificar o funcionamento da válvula de segurança que é o instituto do abuso de direito. Não ofende o sentimento jurídico dominante nem constitui uma contradição chocante com a sua inércia anterior.
Improcede esta segunda questão da apelação.
As decisões recorridas merecem confirmação.
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SUMÁRIO (art.º 663º, nº 7, do Código de Processo Civil):
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V.
Pelo exposto, acorda-se nesta Relação em julgar a apelação do R. improcedente e, em consequência, confirma-se a decisão proferida no despacho saneador relativa à personalidade judiciária da A. e a sentença recorrida.
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Custas pelo R. apelante, por te decaído no recurso (art.º 527º, nºs 1 e 2, do Código de Processo Civil).
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Porto, 5 de março de 2020
Filipe Caroço
Judite Pires
Aristides Rodrigues de Almeida
_______________ [1] Por transcrição. [2] Por transcrição. [3] Guia de Recursos em Processo Civil, Coimbra, 2007, pág. 134. [4] Recursos no Novo Código de Processo Civil, Almedina, 2013, pág.s 160 e 161 e nota 234. [5] Sem prejuízo do que dispõem os nºs 2 e 3 do mesmo artigo. [6] Acórdão de 3.11.2016, proferido no proc. 1747/12.4TJVNF.G1, inwww.dgsi.pt. [7] Dias Marques, Noções Elementares de Direito Civil, Lisboa 1973, pág. 5. [8] Partes - figura essencialmente processual, embora com fundas raízes substantivas - são as pessoas pela qual e contra a qual é requerida, através da ação, a providência judiciária (A. Varela, Miguel Bezerra e Sampaio e Nora, Manual de Processo Civil, Coimbra, 2ª edição, pág. 107. [9] Direito Processual Civil, vol. II, AAFDL, 1980, pág.s 10 e seg.s. [10] Ob. cit., pág. 108. [11] Idem, pág.s 110 e 111. [12] A Assembleia de Condóminos e o Administrador na Propriedade Horizontal, Almedina, 2ª edição, pág. 179. [13] Código Civil Anotado, Vol. III, pág. 455 e 456, em anotação ao citado art.º 1437º. [14] Ob. cit., pág. 339. [15] A mesma autora, citando Alberto Celeste, Liti Condominicdi, pág. 160. [16] Como exceção, o caso de habilitação dos sucessores do falecido quando este facto é certificado em consequência das diligências para citação do réu, nos termos do art.º 351º, nº 2, do Código de Processo Civil. [17] Código de Processo Civil anotado, Coimbra, Vol. 1º, 1999, pág. 49. [18] Negrito e sublinhado nossos. [19] Exceto nos casos ali previstos. [20] Ob. cit., pág. 289 e 290. [21] Inwww.dgsi.pt, citado no despacho recorrido e nas contra-alegações do recurso. [22] Castanheira Neves, “Lições de Introdução ao Estudo do Direito”, edição copiografada, Coimbra, 1968/69, pág. 391, citado no acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 30.1.2003, Colectânea de Jurisprudência do Supremo, T. I, pág. 64. [23] Paulo Mota Pinto, Sobre a Proibição do Comportamento Contraditório (Venire Contra Factum Proprium) no Direito Português (in Boletim da Faculdade de Direito – Volume Comemorativo, Coimbra 2003, pág.s 269 e seg.s.). [24] Da Boa Fé no Direito Civil” – Colecção Teses, pág. 745. [25] In “Revista da Ordem dos Advogados”, Ano 58, Julho 1998, pág. 964. [26] Agora, citando Baptista Machado, Tutela da Confiança e Venire Contra Factum Proprium, Obras Dispersas, vol. I, Braga, 1991, pág. 352. [27] Proc. 2970/02 da 1ª secção, citado no acórdão da Relação do Porto de 23.5.2005, inwww.dgsi.pt. [28] Menezes Cordeiro, Litigância de Má-Fé, abuso de Direito de ação e Culpa “In Agendo”, Almedina, 2014. Pág. 107. [29] Embora se admita, nos termos gerais, que uma conduta omissiva possa, tacitamente, induzir noutrem a confiança legítima de que o agente irá manter a sua posição no futuro.