CONFLITO NEGATIVO DE COMPETÊNCIA
APLICAÇÃO DE MEDIDA DE COAÇÃO NA FASE DE JULGAMENTO
IMPEDIMENTO
Sumário


I - Na fase de julgamento compete ao juiz a quem o processo tiver sido distribuído proceder ao reexame dos pressupostos da prisão preventiva ou da obrigação de permanência na habitação, no prazo a que alude o artigo 213.º do CPP, sem que a decisão que venha a ser proferida nesse âmbito – seja ela de manutenção, revogação ou de substituição por qualquer outra medida de coação, incluindo as previstas no artigo 200.º - tenha como consequência o impedimento a que alude a al. a) do artigo 40.º do CPP.

Texto Integral



I. RELATÓRIO

O senhor juiz do Juízo de competência genérica de Silves, da comarca de Faro, veio, nos termos do artigo 35.º, n.º1 do CPP, denunciar a existência de um alegado conflito negativo de competência e suscitar a sua resolução, porquanto, no âmbito dos autos de processo comum singular com o n.º 54/19.6GESLV, na qualidade de juiz substituto (despacho proferido em 23-12-2019) declarou-se incompetente para a realização do julgamento do referido processo, por entender que competente para tal, por não se verificar qualquer motivo de impedimento, é o senhor Juiz 1, Dr. AA, do Juízo de competência genérica de Silves, a quem o processo foi distribuído para julgamento, o qual se havia declarado impedido para presidir à audiência de julgamento, face ao disposto no art. 40.º, al. a), do CPP.

Estando certificado que o trânsito da decisão proferida em 2.º lugar ocorreu no dia 10 de fevereiro de 2020 e não sendo passível de recurso a decisão proferida pelo senhor juiz titular do processo, quanto ao seu alegado impedimento, estão criadas as condições para apreciar e resolver o impasse derivado das sobreditas decisões.

Cumprido o disposto no artigo 36.º, n.º1 do CPP, o Exmo. Senhor Procurador-Geral Adjunto é de parecer que inexiste fundamento para a declaração de impedimento do senhor juiz titular do processo e, por isso, deverá ser declarada a sua competência para a realização do julgamento e ulteriores termos do processo.

II. FUNDAMENTAÇÃO:

Nos referidos autos, o Meritíssimo juiz titular do processo, Dr. AA, proferiu em 16-12-2019 o despacho de saneamento, a que alude o artigo 311.º do CPP, tendo recebido a acusação deduzida contra o arguido AR, pela prática de um crime de violência doméstica, p. e p. pelo artigo 152.º, n.º1, al. b) e n.º2, al. a), n.º4 e 5 do Código Penal. E, sem ter designado data para a realização do julgamento, pronunciando-se sobre o estatuto processual do arguido, determinou que este aguardasse os ulteriores termos do processo sujeito a TIR (já prestado), bem como sujeito à proibição de se aproximar da residência da vítima, e do eventual local de trabalho desta, com sujeição a pulseira eletrónica; bem assim a proibição de quaisquer contactos com a ofendida e a proibição de aquisição de armas de fogo, ou outras com potenciais efeitos letais, tudo nos termos dos artigos 191.º, 192.º, 194.º, 195.º, 196.º e 200.º, n.º1, al. a), d) e e) do CPP. E, nos termos do artigo 40.º, n.º1, al. a) do CPP, declarou-se impedido para presidir à audiência de julgamento e ordenou que os autos fossem conclusos ao senhor juiz Dr. AF, para os efeitos tidos por convenientes.

O senhor juiz substituto, a quem o processo foi concluso, por seu despacho de 23-12-2019, declarou-se incompetente para a tramitação do processo, por considerar inexistir fundamento legal para a declaração de impedimento que foi prolatada, (cujos fundamentos não se transcrevem, por não nos ter sido enviado o suporte informático, em formato word, e para não atrasar mais a resolução da questão).

Na sequência foi suscitado o presente conflito.

III. O direito

A questão é, saber se há fundamento de impedimento do senhor juiz titular do processo e os trâmites processuais devem ser prosseguidos pelo senhor juiz substituto ou, não se verifica esse fundamento de impedimento e, respeitando o princípio constitucional do juiz natural, deve ser o senhor juiz titular a prosseguir com o processo.

É manifesto que não nos deparamos com um verdadeiro conflito negativo de competência, tendo em conta que este, de acordo com o disposto no art. 34.º, do CPP, só ocorre quando dois ou mais tribunais de diferente ou da mesma espécie se considerarem competentes ou incompetentes para conhecer do mesmo crime imputado ao mesmo arguido.

No caso em apreço, o senhor juiz titular do processo declarou-se impedido para o julgamento, por ter aplicado medida de coação ao arguido, prevista no artigo 200.º do CPP, e determinou a apresentação dos autos ao juiz substituto.

Sendo irrecorrível o despacho em que o juiz se considere impedido (cf. artigo 42.º, n.º 1, do CPP), sem a intervenção deste tribunal, a situação exposta redundaria, no domínio dos atos em causa, numa interrupção da relação processual penal, impasse a determinar que se considere verificar-se um conflito de competência atípico, definidor de uma situação que reclama solução urgente, desde logo, atenta a natureza urgente do processo em que foi suscitado (processo por crime de violência doméstica) decidindo se há real motivo de impedimento e, em tal situação, fazer funcionar o regime de substituição.

Vejamos.

Dispõe o artigo 40.º do CPP, sob a epígrafe de «Impedimento por participação em processo»

Nenhum juiz pode intervir em julgamento, recurso ou pedido de revisão relativos a processo em que tiver:

a) Aplicado medida de coação prevista nos artigos 200.º a 202.º;
b) Presidido a debate instrutório;
c) Participado em julgamento anterior;
d) Proferido ou participado em decisão de recurso anterior que tenha conhecido, a final, do objeto do processo, de decisão instrutória ou de decisão a que se refere a alínea a), ou proferido ou participado em decisão de pedido de revisão anterior.
e) Recusado o arquivamento em caso de dispensa de pena, a suspensão provisória ou a forma sumaríssima por discordar da sanção proposta.

O senhor juiz titular do processo fundamenta o seu impedimento na alínea a) do transcrito preceito, por ter aplicado ao arguido, no despacho que recebeu a acusação, medida de coação prevista nas alíneas a), d) e e) do art. 200.º do CPP.

Por sua vez, o senhor juiz substituto diz que o invocado impedimento não se verifica, uma vez que os autos se encontram na fase de julgamento, não tendo tido o senhor juiz em questão qualquer intervenção na fase de inquérito do presente processo. Refere ainda que, em fase de inquérito, foi aplicada, por outro juiz, em sede de 1.º interrogatório judicial, a medida de afastamento do arguido da residência da ofendida, e proibição de contactos com esta, com controlo por meios eletrónicos.

Cita, em abono da sua posição, o acórdão do STJ de 10/03/2010, proferido no processo n.º 36/09.6GAGMR-A.S1, com o seguinte sumário:

“I- O art. 40.º do CPP tem em vista garantir a imparcialidade do juiz enquanto elemento fundamental à integração da função jurisdicional, face a intervenções processuais anteriores que, pelo seu conteúdo e âmbito, considera como razão impeditiva de futura intervenção.

II - O envolvimento do juiz no processo, através da sua directa intervenção enquanto julgador, através da tomada de decisões, o que sempre implica a formação de juízos e convicções, sendo susceptível de o condicionar em futuras decisões, assim afectando a sua imparcialidade objectiva, conduziu o legislador a impedi-lo de intervir nas situações em que a cumulação de funções processuais pode fazer suscitar no interessado, bem como na comunidade, apreensões e receios, objectivamente fundados.

III - Tendo em conta todas as causas de impedimento taxativamente previstas na lei (als. a) a e) do art. 40.º), certo é constituir elemento comum de todas elas a intervenção anterior do juiz do processo, ou seja, a intervenção em fase anterior do processo. (…)” (sublinhado do ora relator)

É também esse o nosso entendimento, como já deixamos manifestado na decisão de conflito n.º 32/18.2YREVR, e também conforme com decidido no acórdão do TRC de 25-06-2008, proferido no processo n.º 1522/02.4TACBR.C1, acessível em www.dgsi.pt, ali citado, onde, historiando a evolução legislativa do preceito aqui em causa, se decidiu o seguinte: (…) O nosso processo penal, por exigência constitucional – art. 32º, nº 5 da Constituição da República Portuguesa – tem estrutura acusatória. Essencial ao princípio do acusatório é a separação entre a entidade que investiga e acusa, e a entidade que julga o thema decidendum por aquele definido. Como doutrinam Gomes Canotilho e Vital Moreira “A «densificação» semântica da estrutura acusatória faz-se através articulação de uma dimensão material (fases do processo) com uma dimensão orgânica-subjectiva (entidades competentes). Estrutura acusatória significa, no plano material, a distinção entre instrução, acusação e julgamento; no plano subjectivo, significa a diferenciação entre juiz de instrução (órgão de instrução) e juiz julgador (órgão julgador) e entre ambos e órgão acusador.” (Constituição da República Portuguesa Anotada, Vol. I, 4ª Ed. Revista, 522).

Só desta forma se harmoniza o interesse público da punição com a necessária imparcialidade do julgador, assim se alcançando um processo justo e equitativo.

Mas um processo penal assente numa estrutura acusatória comporta ainda assim diversos graus, em função da maior ou menor intervenção relativa, atribuída à entidade que investiga e acusa e à entidade que julga. Nesta perspectiva, o nosso processo penal tem sido entendido como de base acusatória, flexibilizado ou moderado pelo princípio da investigação também na fase do julgamento.

(…) A imparcialidade do juiz é, como vimos, uma exigência do processo justo mas também, um direito dos cidadãos enquanto destinatários da justiça. Por isso a lei do processo, para garantir o princípio da imparcialidade, estabelece um regime de incompatibilidades, impedimentos, recusas e escusas do juiz. Aqui se prevêem situações objectivas – ligação do juiz com os intervenientes processuais, ou anterior intervenção do juiz no processo – que fazem legitimamente suspeitar da imparcialidade do juiz.

O art. 40º do C. Processo Penal, na redacção da Lei nº 3/99, de 13 de Janeiro, dispõe:

“Nenhum juiz pode intervir em recurso ou pedido de revisão relativos a uma decisão que tiver proferido ou em que tiver participado ou no julgamento de um processo a cujo debate instrutório tiver presidido ou em que, no inquérito ou na instrução, tiver aplicado e posteriormente mantido a prisão preventiva do arguido.”.

Na redacção da Lei nº 48/2007, de 29 de Agosto, o art. 40º do C. Processo Penal passou a dispor:

“Nenhum juiz pode intervir em julgamento, recurso ou pedido de revisão relativos a processo em que tiver:
a) Aplicado medido de coacção prevista nos artigos 200.º a 202.º;
b) Presidido a debate instrutório;
c) Participado em julgamento anterior;
d) Proferido ou participado em decisão de recurso ou pedido de revisão anteriores;
e) Recusado o arquivamento em caso de dispensa de pena, a suspensão provisória ou a forma sumaríssima por discordar da sanção proposta.”.

Comparando as duas redacções podemos afirmar que mais uma vez – tendo em conta as alterações que o art. 40º do C. Processo Penal tem sofrido desde a sua versão original – o legislador assumiu como critério para definir as situações em que a imparcialidade do juiz que já participou em fase anterior do processo é objectivamente posta em causa, o do grau de intensidade da sua intervenção. (…)

Assim, podemos dizer que, em regra, o impedimento do art. 40º, a), do C. Processo Penal, na actual redacção, ocorre quando intervém como juiz do julgamento de um arguido, o juiz de instrução criminal que, na fase do inquérito ou da instrução, lhe aplicou medida de coacção prevista nos arts. 200º a 202º, do C. Processo Penal. (…)» (sublinhado nosso)

A questão dos impedimentos do julgador, em processo penal, está intimamente associada à necessidade de conferir ao arguido o direito a que a sua causa seja examinada por um tribunal imparcial, respeitando-se as garantias de defesa contempladas no artigo 32.º da nossa Lei Fundamental, designadamente a estrutura acusatória do processo penal. Ora, o princípio do acusatório impõe a separação da função de investigação e acusação da função de julgamento, como garantia de imparcialidade do julgador. Assim, as garantias de imparcialidade e objetividade, no decurso do julgamento, são necessárias para a boa administração da justiça e exigíveis pelas garantias de defesa dos arguidos constitucionalmente consagradas.

A imparcialidade dos tribunais é uma exigência não apenas contida no citado artigo 32.º, mas uma decorrência do Estado de direito democrático (artigo 2.º), na medida em que se inscreve na garantia universal de defesa dos direitos e interesses legalmente protegidos, através de um órgão de soberania com competência para administrar a justiça (artigo 202.º n.º 1 da CRP). Ora, neste dever genérico de imparcialidade do tribunal inclui-se, compreensivelmente, uma exigência de não suspeição subjetiva do juiz; a atividade do juiz não pode apresentar-se contaminada por circunstâncias geradoras de desconfiança quanto à sua imparcialidade.

Como referem Figueiredo Dias e Nuno Brandão, em texto de apoio sobre o tema “Sujeitos Processuais Penais – O Tribunal”,[1] a fls.12 e ss, a propósito da tutela da imparcialidade – impedimentos e suspeições, «O princípio da imparcialidade do juiz repudia o exercício de funções judiciais no processo por quem tenha ou se possa objetivamente recear que tenha uma ideia pré-concebida sobre a responsabilidade penal do arguido; bem como por quem não esteja em condições ou se possa objetivamente temer que não esteja em condições de as desempenhar de forma totalmente desinteressada, neutral e isenta. (…)

Na experiência portuguesa, há um largo consenso doutrinal (…) e jurisprudencial (…) no sentido de uma compreensão da garantia de imparcialidade como dimensão essencial da estrutura acusatória do processo penal constitucionalmente imposta pelo art. 32.º,n.º5 da CRP e da independência dos tribunais reconhecida pelo art. 203.º da CRP. E é natural que assim seja, pois tanto em relação à ideia do acusatório e do princípio da acusação que lhe é imanente como em relação à independência judicial, essas distintas, mas incindíveis projeções do princípio do Estado de direito comungam de um mesmo desígnio de uma realização da justiça pautada pela máxima objetividade e isenção e capaz de se impor aos seus destinatários diretos e à comunidade em geral sem quaisquer sombras de desconfiança, emergindo aí a imparcialidade como uma exigência irredutível.

O estatuto constitucional reconhecido à garantia de imparcialidade tem sido entre nós objeto de sucessivas e acesas controvérsias, em especial em torno da possibilidade de participação num dado processo de um juiz que nele já teve intervenção numa fase processual anterior. A lei ordinária tem sido censurada doutrinal e jurisprudencialmente ora por ficar aquém, ora por ir além daquilo que é exigido constitucionalmente. O certo é que um entendimento maximalista em determinada época adotado pelo Tribunal Constitucional sobre a conformidade constitucional do regime legal, nomeadamente, do art. 40.º do CPP, induziu o legislador ordinário a alargar progressivamente o leque dos impedimentos por participação anterior no processo. Contanto que tal alargamento não vá acompanhado de uma pretensão de atribuição à garantia constitucional de imparcialidade de um conteúdo mais lato do que aquele que efetivamente possui, à partida não há razão para debater o problema no plano da constitucionalidade. Pois, como se sabe, o legislador é livre de estabelecer um regime legal mais garantista do que aquele que a Constituição impõe. Questão é, porém, saber se, em face do conteúdo que adquiriu e das dificuldades acrescidas que coloca à organização do funcionamento dos tribunais, um tal alargamento se mostra equilibrado e defensável de um ponto de vista político-criminal.

Para dar consistência efetiva à garantia de imparcialidade, além de estruturar o processo penal de acordo com o princípio da máxima acusatoriedade possível, o legislador ordinário estabeleceu um conjunto de impedimentos (arts. 39.º e 40.º) e suspeições (art. 43.º), fundados em razões de dúvida de diversa ordem sobre a imparcialidade da atuação do juiz e com regimes jurídicos distintos: umas vezes verifica-se a, pura e simples, impossibilidade de o juiz intervir em um certo processo penal, mediante previsão de circunstâncias que, sem mais e necessariamente, ditam o seu afastamento, as quais são portanto declaradas independentemente de qualquer objeção suscitada pelos participantes processuais à atuação do juiz no caso concreto; outras vezes é apenas concedida aos sujeitos processuais a possibilidade de afastarem a intervenção do juiz, nomeadamente, quando haja o risco de esta ser considerada suspeita, por existir motivo, grave e sério, adequado a gerar desconfiança sobre a sua imparcialidade. No primeiro caso estamos perante impedimentos, no segundo perante suspeições do juiz.

(…) Os impedimentos encontram-se especificados nos arts. 39.º e 40.º com base em três ordens de razões: a relação pessoal do juiz com algum sujeito ou participante processual; a intervenção anterior no processo, como juiz ou noutra qualidade; e a necessidade de participar no processo como testemunha.»

Nos impedimentos do artigo 40.º do CPP releva a consideração de qual tenha sido a intervenção do juiz no processo, nas fases anteriores à do julgamento.

Os impedimentos, porque não envolvem qualquer juízo de desconfiança concreta sobre um juiz, relacionado com a causa que lhe foi atribuída ou com as respectivas partes, têm uma função preventiva, razão pela qual têm de ser apostos antes de o juiz se ver confrontado com a necessidade de decidir, devendo ser declarados pelo próprio juiz imediatamente, por despacho proferido nos autos, nos termos do art. 41.º do CPP, logo que ocorram. Já as suspeições arrancam de uma posição muito específica e pessoal, de uma particular posição do julgador ante a causa, que pode comprometer aquela incontornável postura de independência e imparcialidade, nos termos do art. 43.º, n.ºs 1 e 2, do CPP, desde que se perfile o concreto risco de verificação de motivo sério e grave adequado a gerar a desconfiança sobre a sua imparcialidade, não podem ser declaradas voluntariamente, antes e, nos termos do n.º 4 daquele art. 43.º, ser requeridas pelo julgador ao tribunal competente que o recuse a intervir, se o não tiverem feito o MP, o arguido, assistente ou partes civis, nos termos do n.º 3 do mesmo preceito.- cf. neste sentido o Ac. do STJ de 09-06-2010, relator Armindo Monteiro

Assim, podemos dizer que, em regra, o impedimento do art. 40.º, al. a), do Código de Processo Penal, na atual redação, ocorre quando intervém como juiz do julgamento de um arguido, o juiz que, nas fases preliminares do processo, lhe aplicou medida de coação prevista nos arts. 200.º a 202.º, do C. Processo Penal, ou presidiu ao debate instrutório.

E é essa a linha interpretativa que também tem sido seguida pelo Tribunal Constitucional, que tem mantido, a propósito desta questão, uma linha orientadora no sentido de que o critério da admissibilidade da intervenção no julgamento de juiz que tenha tido intervenção anterior no processo passa pela distinção entre intervenções que pela sua frequência, intensidade ou relevância, sejam aptas a razoavelmente permitir que se formule uma dúvida séria sobre as condições de isenção e imparcialidade desse mesmo juiz ou a gerar uma desconfiança geral sobre essa mesma imparcialidade e independência e intervenções pontuais ou isoladas. Só no primeiro caso a estrutura acusatória do processo veda a participação do juiz no julgamento. Já a prática de atos isolados durante o inquérito não constitui, em princípio, causa de quebra objetiva da imparcialidade do juiz, determinante do seu impedimento no julgamento.

Dessa jurisprudência se retira, como critério geral, que não deve considerar -se afetada a imparcialidade do juiz, o princípio do acusatório, ou a exigência de que o processo criminal assegure todas as garantias de defesa — parâmetros constitucionais em função dos quais a imparcialidade do juiz em processo penal tem sido perspetivada — por virtude de toda e qualquer intervenção processual anterior ao julgamento, mas somente por aquela que consista na prática de atos que, pela sua frequência, intensidade ou relevância, sejam idóneos a considerar o juiz comprometido com «pré -juízos» sobre as questões que tenha de decidir, designadamente, sobre a matéria de facto ou sobre a culpabilidade do arguido (cf., entre outros, os ac. 129/2007 e 444/12 do TC).

Impõe-se ainda referir que a alteração legislativa decorrente da Lei n.º 59/98, de 25 de Agosto, conexionou os institutos do impedimento e da suspeição, de forma inequívoca, ao introduzir o n.º 2 do artigo 43.º do CPP, onde se prevê que pode constituir fundamento de recusa (e também de escusa), nos termos do n.º1, a intervenção do juiz noutro processo, ou em fases anteriores do mesmo processo fora dos casos do artigo 40.º.

Tal poderá compreender-se nos casos em que há um profundo grau de imersão do juiz de instrução no âmbito do objeto do processo quando intervém neste domínio, nomeadamente quando autoriza a interceção, gravação ou registo de conversações e comunicações, validando o material recolhido pela interceção, quando autorize buscas domiciliárias, buscas e apreensões em escritório de advogado, consultório médico e estabelecimento bancário e quando ordene apreensão de correspondência, etc. [2]

Ora, não consta que o senhor juiz, a quem o processo foi distribuído para julgamento, tenha praticado ou autorizado a prática de atos de inquérito (pois, no caso concreto, não foi requerida a abertura da instrução), isto é, tenha praticado atos ou autorizado diligências com vista à obtenção de provas que permitissem sustentar a culpabilidade do visado, ou que teve intervenção em quaisquer atos relativos à investigação ou instrução do processo, decretando a aplicação de quaisquer medida de coação de entre as previstas nos artigos 200.º a 202.º do CPP, ou formado qualquer juízo indiciário no que respeita à eventual sujeição do arguido a julgamento.

No caso concreto, o que o senhor juiz fez, enquanto juiz do tribunal de julgamento e já nessa fase processual, foi assegurar um reexame das medidas de coação aplicadas, adaptando-as aos factos imputados ao arguido na acusação, tendo em conta o aí promovido. Por isso, a intervenção do senhor juiz, neste caso, teve uma dimensão fundamentalmente garantística – e não de valoração de concretos indícios, pois esses indícios foram valorados em fase anterior do processo, pelo juiz que aplicou as medidas de coação e pelo Ministério Público que deduziu a acusação, que foi formalmente recebida.

Não está, pois, em causa a formulação de um juízo prévio sobre os factos que constituem o objeto do processo e a culpabilidade do arguido.

Como referem ainda os Professores Figueiredo Dias e Nuno Brandão, no texto supracitado, a fls.20, a propósito da redação e interpretação do artigo 40.º, al. a) do CPP, na sua redação atual «É ainda incompreensível a ausência de uma delimitação – como a introduzida pelo art. 134.º da Lei 3/99, mas inexplicavelmente eliminada na revisão de 2007 do CPP – de tal aplicação às fases do inquérito e da instrução, com o que, sem uma interpretação restritiva da norma, fica aberta a porta ao absurdo de considerar impedido o juiz de julgamento que, pela primeira vez, aplica ao arguido uma das medidas de coação previstas pelos arts. 200.º a 202.º (v. g., proibindo o arguido de manter qualquer contacto com as testemunhas da acusação arroladas para o julgamento, depois de conhecidas pressões e ameaças por ele exercidas sobre testemunhas do processo já na pendência da audiência de discussão e julgamento).» (sublinhado e negrito do relator).

Um entendimento literal do preceito implicaria necessariamente um bloqueio do sistema processual, o que não terá sido querido pelo legislador.

E, de facto, lendo os trabalhos preparatórios, a Proposta de Lei n.º 109/X, não vemos claramente que tenha sido intenção do legislador alargar o impedimento ao juiz de julgamento que apenas nesta fase do processo decretasse uma das medidas elencadas na referida alínea a) do citado artigo 40.º do CPP.

Com efeito, a justificação apresentada na exposição de motivos para alteração do preceito, diz-nos tão-somente que: “O regime de impedimentos, previsto no artigo 40.º, é modificado. Estabelece-se que o juiz que tenha recusado aplicar o arquivamento em caso de dispensa de pena, a suspensão provisória do processo ou o processo sumaríssimo por considerar insuficiente a sanção ou haja aplicado uma medida de coacção assente na existência de fortes indícios da prática do crime está impedido de participar nas fases ulteriores de julgamento e recurso. Não se estende o impedimento ao juiz que tenha mantido a medida de coacção, porque tal proibição não tem a seu favor justificação tão intensa e seria de difícil aplicação prática.”

Não estamos, no caso subjudice, perante situação em que o juiz, a quem o processo foi distribuído para o julgamento, haja tido intervenção em fase anterior do processo, sendo certo também não se vislumbrar motivo suscetível de colocar em causa a sua imparcialidade. Com efeito, a fase processual em que interveio é a do julgamento e inexiste razão objectiva geradora de desconfiança sobre a sua imparcialidade.

Em conclusão, na fase de julgamento compete ao juiz a quem o processo tiver sido distribuído proceder ao reexame dos pressupostos da prisão preventiva ou da obrigação de permanência na habitação, no prazo a que alude o artigo 213.º do CPP, sem que a decisão que venha a ser proferida nesse âmbito – seja ela de manutenção, revogação ou de substituição por qualquer outra medida de coação, incluindo as previstas no artigo 200.º - tenha como consequência o impedimento a que alude a al. a) do citado artigo 40.º do CPP.

Assim, a razão está do lado do senhor juiz substituto.

IV - DECISÃO:
Pelo exposto dirime-se o presente conflito atípico, julgando-se competente para a realização do julgamento e subsequente tramitação do processo o senhor juiz, Dr. AA, do juízo de competência genérica de Silves, da comarca de Faro, a quem os autos foram distribuídos.

Sem tributação.

Cumpra-se o disposto no artº 36º nº 3 CPP e, dê-se conhecimento ao Ex.º Sr.º Juiz Presidente da Comarca de Faro.

(Processado e revisto pelo relator)

Évora, 09-03-2020

(assinatura eletrónica)

Fernando Ribeiro Cardoso (presidente da Secção Criminal)

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[1] - Texto de apoio ao estudo da unidade curricular de Direito e Processo Penal do Mestrado Forense da Faculdade de Direito da Universidade de Coimbra (2015/2016).

[2] - Cf., no sentido de identificação destas causas que podem afetar a imparcialidade do julgador, Mouraz Lopes, A tutela da imparcialidade endoprocessual no processo penal português, a fls.103 e ss.