CONFLITO NEGATIVO DE COMPETÊNCIA
ABUSO DE CONFIANÇA
COMPETÊNCIA TERRITORIAL
Sumário


I - Após a dedução da acusação, que fixa, em primeira linha, o objeto do processo penal, é aos factos aí descritos e imputados ao arguido que deve atender-se para definir a competência do tribunal, incluindo a territorial. É o princípio da vinculação temática que o impõe.

II – Não têm cabimento legal quaisquer investigações complementares, antes de recebida a acusação, realizadas especificamente para tomar posição sobre a questão da competência territorial.

Texto Integral


I.
O Meritíssimo Juiz do Juízo Local Criminal de Setúbal suscitou junto deste Tribunal da Relação de Évora a resolução do conflito negativo de competência entre aquele Juízo e o Juízo Local Criminal de Albufeira, por ambos recusarem competência territorial - cada um deles atribuindo-a ao outro - para conhecer do crime de abuso de confiança, p. e p. pelo artigo 205.º, n.º1 do Código Penal, imputado pelo MP em acusação deduzida contra o arguido AA.

Foi cumprido o disposto no artigo 36.º, n.º1 do CPP.

O Exmo. Senhor Procurador-Geral Adjunto neste Tribunal da Relação, no seu douto parecer, pronunciou-se no sentido de ser declarado territorialmente competente o Juízo Local Criminal de Albufeira, dizendo, muito em resumo, “que do teor da acusação – peça processual que delimita o objecto do processo – nada consta a propósito do destino dado ao dinheiro pelo arguido, nomeadamente se o utilizou como seu proprietário, como e onde, pelo que permanece a dúvida sobre a localização do elemento relevante para determinar a competência territorial. E, neste caso, parece-nos que se mantém a competência do tribunal onde primeiro houve notícia do crime (artigo 21.º do CPP), ou seja, o Tribunal de Albufeira”.

II.
Para a resolução do conflito importa atentar nos seguintes factos:

O Magistrado do MP do DIAP de Albufeira deduziu, em 21-02-2019, acusação, em processo comum e com intervenção de Tribunal singular, contra o arguido acima referido, imputando-lhe a autoria material, na forma consumada, de um crime de abuso de confiança, p. e p. pelo artigo 205.º, nos termos sobreditos, por o arguido, alegadamente, se ter apropriado, e gasto em proveito próprio, de quantias transferidas para uma sua conta bancária, no montante total de €4.699,44, que eram destinadas a outra pessoa, a título de compensação pela cessação do contrato de trabalho.

Remetido o processo para julgamento, a Mm. ª Juíza do Juízo Local Criminal de Albufeira, após ter efetuado diligências no sentido de apurar onde se encontrava domiciliada a conta para a qual foram feitas as transferências bancárias, por despacho de 27-09-2019, declarou o tribunal territorialmente incompetente e julgou competente para a realização do julgamento o Tribunal Judicial de Setúbal, para onde determinou a remessa dos autos, argumentando a dado ponto que: “…ninguém poderá dizer ao certo o momento em que, nem o local onde, o arguido decidiu fazer-se dominus dos dinheiros alegadamente por si recebidos com obrigação de os entregar a outrem. Mas residindo em Setúbal, a probabilidade maior de o ter feito nessa cidade resulta evidente.

Já as manifestações exteriores dessa sua intenção, como a apropriação e o subsequente dispêndio do dinheiro em proveito próprio, hão-de forçosamente ser associados à cidade de Setúbal, pois que sendo o seu local de residência e trabalho, aí não apenas recebeu todo o dinheiro, (que, nos termos da acusação, foi entregue na conta bancária com o nº 0038.0059.0036.0892.7718.8, a qual se encontra domiciliada em Setúbal…”

Remetido o processo à comarca de Setúbal e distribuído ao Juízo Local Criminal, J1, o Meritíssimo Juiz, por seu despacho de 5 de novembro de 2019, declinou a competência dizendo, além do mais, o seguinte:

“Em primeiro lugar, não consta da acusação nenhum facto de onde se possa extrair qualquer fator relevante de conexão com a cidade de Setúbal, seja porque a residência do arguido não constitui critério de conexão para efeitos do artigo 19.º do Código de Processo Penal, seja porque da acusação não consta nem dali se pode extrair que a conta bancária onde supostamente foi rececionada a quantia apropriada se encontra domiciliada em Setúbal.

Da análise do processado, verifica-se que após os autos terem sido remetidos à distribuição e em momento anterior ao despacho do artigo 311.º (que diga-se, nunca chegou a ser proferido) o tribunal realizou diligências para investigar e determinar a domiciliação da conta bancária, vindo a obter informação bancária que a mesma se encontrava domiciliada em Setúbal (cf. fls. 362, 368, 369, 372, 374 e 376).

Aquele tribunal formulou então um juízo de mera probabilidade, que a consumação do crime ocorreu em Setúbal. Contudo, os factos relevantes a ter em conta, como já referimos, são apenas os constantes da acusação e não quaisquer outros, obtidos a posteriori. E nessa medida, se constata que na acusação inexiste qualquer referência à cidade de Setúbal nem tal resultava dos autos, sendo que, pelo contrário, a única referência territorial existente no processo respeita a Albufeira.

O único elemento de ligação a Setúbal foi a residência do arguido. No entanto, salvo Douto entendimento em sentido diverso, consideramos que o critério da residência do arguido não constitui critério legal a ter em conta para efeitos da competência territorial. Ao invés, cremos dever fazer-se uso das regras gerais e complementares para aferir e determinar a competência territorial.

Os critérios legais para a determinação da competência territorial vêm elencados nos artigos 19.º e seguinte do Código de Processo Penal, tendo o legislador consagrado uma série de critérios gerais e critérios complementares por forma a impedir um vazio legal. Se o critério geral não tiver aplicação deve aferir-se se existe algum critério complementar que seja aplicável ao caso concreto.

Efetivamente, o critério geral do artigo 19.º, n.º 1 do Código de Processo Penal corresponde ao local da consumação do crime. Só que em muitas situações da vida real não é possível determinar o local dessa consumação, por ser o mesmo desconhecido, não se encontrar determinado ou não ser determinável, entre outros casos.

Quando assim suceda, em nosso modesto entendimento, deve aplicar-se o critério complementar previsto artigo 21.º do Código de Processo Penal, onde se estipula «Se o crime estiver relacionado com áreas diversas e houver dúvidas sobre aquela em que se localiza o elemento relevante para determinação da competência territorial, é competente para dele conhecer o tribunal de qualquer das áreas, preferindo o daquela onde primeiro tiver havido notícia do crime. 2 - Se for desconhecida a localização do elemento relevante, é competente o tribunal da área onde primeiro tiver havido notícia do crime.»

No caso dos autos e atenta a factualidade constante da acusação não é possível determinar nem o momento nem o local onde o arguido supostamente inverteu o título da posse e passou a comportar-se como legítimo proprietário das quantias supostamente transferidas para a sua conta bancária. Nessa medida, existindo dúvidas sobre a localização do elemento relevante para determinar a competência territorial, embora em tese sejam competentes os tribunais de várias áreas, o certo é que prefere o tribunal da área onde primeiro tiver havido notícia do crime.

Se for desconhecida a localização do elemento relevante, é competente o tribunal onde primeiro tiver havido notícia do crime.

Em qualquer dos casos, foi o Tribunal Judicial de Albufeira e não o Tribunal Judicial de Setúbal, que primeiramente teve notícia do crime, por ter sido nesse tribunal apresentada a respetiva queixa-crime.”

As referidas decisões transitaram em julgado.
(...)
Do quadro factual exposto resulta evidente a existência de conflito negativo de competência territorial entre os dois referidos juízos do Tribunal Judicial da comarca de Faro e da comarca de Setúbal (artigo 34.º, n.º 1, do CPP) que, por serem da área desta Relação, compete ao Presidente da Secção Criminal dirimi-lo – artigo 12.º, n.º 5, alínea a) do CPP,

É competente para conhecer de um crime o tribunal em cuja área se tiver verificado a consumação – artigo 19.º, n.º1 do CPP. É este o critério preferencial elegido pelo legislador.

A questão coloca-se quanto à afirmação do locus delicti, que uma apreciação analítico - linguística da acusação não suporta.

Afigura-se-nos que a razão está do lado do Exmo. Juiz do Juízo Local Criminal de Setúbal, bem como do Exmo. Procurador Geral Adjunto.

Em primeiro lugar, após a dedução da acusação, que fixa, em primeira linha, o objeto do processo penal, é aos factos aí descritos e imputados ao arguido que deve atender-se para definir a competência do tribunal, incluindo a territorial. É o princípio da vinculação temática que o impõe.

Neste sentido, vai também o aresto de 4 de Julho de 2007, Processo n.º 1502/07 – 3.ª Secção, no qual o STJ reitera esse entendimento ao dizer que “é com base nos factos descritos na acusação que a questão da competência territorial deve ser decidida, sendo ilegítimas quaisquer investigações complementares realizadas especificamente para tomar posição sobre tal matéria.” (no mesmo sentido vai o acórdão do Supremo Tribunal de 2/5/2002, proc. 165/02, in Sumários dos Acórdãos do STJ).

E também será a esses factos vertidos na acusação que a resolução do conflito deve atender (cf. ac. do STJ de 21-06-2007, Processo n.º 1426/07 – 5.ª Secção).

Na verdade, recebida a acusação e designado dia para julgamento, uma eventual alteração dos factos vertidos na acusação só poderá ocorrer em sede de julgamento e após a produção de prova, no respeito pelo disposto nos artigos 358.º ou 359.º do CPP e não antes. E essas alterações de facto em sede de audiência são irrelevantes para efeitos de aferição da competência territorial do tribunal, pois, esta apenas pode ser conhecida até ao início da audiência de julgamento – cf. artigo 32.º, n.º2, al. b) do CPP.

O crime de abuso de confiança consuma-se com a apropriação que se traduz, sempre, na inversão do título de posse ou de detenção: o agente, que recebe a coisa «uti alieno», passa, em momento posterior, a comportar-se, relativamente a ela, «uti dominus» (naturalmente através de atos objetivamente idóneos e concludentes, nos termos gerais), sendo exatamente nesta realidade objetiva que se traduz a «inversão do título de posse ou detenção» e é nela que se traduz e se consuma a apropriação.

Ora, como vem sendo entendido pela nossa jurisprudência, o simples depósito em conta bancária não significa um ato decisivo de apropriação, mostrando-se necessário que essa apropriação seja revelada através de atos de que o arguido inverteu o título de posse e passou a comportar-se como proprietário do dinheiro.

Do teor da acusação nada consta quanto, ao onde e quando o arguido inverteu o título de posse, pelo que permanece a dúvida sobre a localização do elemento relevante para determinar a competência territorial.

Assim, perante a impossibilidade (face ao teor da acusação deduzida) de determinação da competência territorial com base no critério preferencial do “locus delicti”, a lei prevê a aplicação subsidiária de outro dos critérios – o tribunal da área onde primeiro tiver havido notícia do crime – cf. art. 21.º do CPP.

Porque a notícia do crime foi levada em primeira mão ao DIAP de Albufeira, com a queixa aí apresentada contra o arguido, o tribunal competente da comarca de Faro para conhecer do crime imputado ao arguido é o juízo local criminal de Albufeira, para onde o processo foi remetido, após dedução da acusação.

III.
Pelo exposto, sem necessidade de mais considerações, atribuo a competência para os termos subsequentes do processo aqui em causa ao Juízo Local Criminal de Albufeira.

Não são devidas custas.

Cumpra-se o disposto no artigo 36.º, n.º 3, do CPP, comunicando-se também aos Exmos. Juízes Presidentes dos Tribunais Judiciais das Comarcas de Faro e Setúbal.

Évora, 20 de Março de 2020

(processado por computador e revisto pelo relator)

(Assinatura digital)

Fernando Ribeiro Cardoso (Juiz-Presidente da Secção Criminal)