ABUSO DE CONFIANÇA FISCAL
INSUFICIÊNCIA DA MATÉRIA DE FACTO PARA A DECISÃO
ABSOLVIÇÃO
Sumário


I – A sentença recorrida não enferma do vício de insuficiência para a decisão da matéria de facto provada, se for esgotado o objeto do processo definido na acusação.

II - Não vindo alegado na acusação o facto pertinente à verificação da condição objetiva de punibilidade, ou seja, que o arguido foi notificado para, no prazo de 30 dias, efetuar o pagamento da quantia em dívida, acrescida dos juros moratórios e da coima aplicável, não podia esse facto ter sido considerado na motivação e na fundamentação de direito para apoiar a condenação do arguido recorrente.

III - Os institutos de alteração não substancial ou substancial dos factos não visam colmatar lacunas da acusação ou pronúncia, com origem na desconsideração de elementos que já aquando da respetiva prolação constavam dos autos, imprescindíveis à conformação de ilícito penal. Posição contrária corresponderia a admitir a transformação de uma realidade que, ab initio, por ausência da descrição completa dos respetivos elementos típicos, não configurava crime em conduta penalmente típica.

Texto Integral


Acordam, em conferência, na 2ª Subsecção Criminal do Tribunal da Relação de Évora:

I. RELATÓRIO
1. Da decisão
No processo comum singular n.º 389/18.5IDFAR do Tribunal Judicial da Comarca de Faro, Juízo Local Criminal de Albufeira, J3 foi realizado julgamento e proferida decisão em que foi:

a) Absolvido o arguido AA, pela prática, como coautor material, de um crime de abuso de confiança fiscal, previsto e punido pelo artigo 105.º, n.ºs 1, 2, 4, alínea a) e 7 do Regime Geral das Infrações Tributárias (RGIT);

b) Absolvida a sociedade arguida, “B…, Unipessoal, Lda.”, pela prática, como coautora material, de um crime de abuso de confiança fiscal, previsto e punido pelo artigo 105.º, n.ºs 1, 2, 4, alínea a) e n.º 7 e artigo 7º do RGIT;

c) Condenado o arguido AA, pela prática, como autor material, de um crime de abuso de confiança fiscal, previsto e punido pelo artigo 105.º, n.ºs 1, 2, 4, al. a) e 7 do RGIT, aprovado pela Lei n.º 15/2001, na pena especialmente atenuada de cem dias de multa à taxa diária de cinco euros, perfazendo a quantia de quinhentos euros;

d) Condenada a sociedade arguida, “B…, Unipessoal, Lda.”, pela prática, como autora material, de um crime de abuso de confiança fiscal, previsto e punido pelo artigo 105.º, n.ºs 1, 2, 4, alínea a) e 7 e artigo 7.º do RGIT, aprovado pela Lei nº 15/2001, de 5 de junho na pena especialmente atenuada de cento e vinte dias de multa, à taxa diária de seis euros, o que totaliza uma quantia de setecentos e vinte euros.
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2. Do recurso

2.1. Das conclusões do arguido AA
Inconformado com a decisão o arguido AA interpôs recurso extraindo da respetiva motivação as seguintes conclusões (transcrição):

“1.ª A sentença recorrida equimosou o sentido profundo da coerência, apreensibilidade, operacionalidade e justeza dos meios e das soluções de que a actividade interpretativa deve servir-se para encontrar a justa e correcta resolução do caso concreto.

2.ª E atento o manadeiro fáctico e probatório carreado aos autos, impunha-se uma decisão diversa, no sentido da absolvição dos arguidos.

3.ª A convicção do julgador há-de formar-se, após, uma ponderação serena de todos os meios de prova produzidos, guiado sempre, por padrões de probabilidade, num processo lógico-dedutivo de montagem do mosaico fáctico, perspectivado pelas regras da experiência comum.

4.ª Andou, mal o Tribunal “a quo” ao dar como provados os factos descritos nos Pontos 8, 10, 11, 12, e 13 dos factos provados da sentença.

5.ª O Tribunal “a quo” fundou a sua decisão, diz-se com o devido respeito, que muito é, na esteira que a arguida sociedade comercial não efectuou qualquer pagamento ao Estado em sede de IVA, referente ao 3º trimestre de 2017, verberando, que esta postergou todos os prazos suplementares, e cronologicamente, desenhados na lei, para a catarse que se impunha no relacionamento com a Administração Tributária.

Resulta à saciedade do cabedal documental aportado aos autos, que a sociedade arguida procedeu, sponte sua, e ainda no pleno decurso do prazo de 90 dias plastificado no artigo 105º, n.º4, alínea a) do RGIT, ao pagamento da quantia de 2.694,74 €, atirando o valor debitório em sede de IVA para patamares inferiores à quantia charneira de 7.500,00 €.

6.ª Deverá, desta forma, considerar-se como não provada a factualidade, tal qual, vertida nos pontos 8, 10, 11, 12 e 13 dos factos provados da sentença.

7.ª O arguido, em sede das suas declarações prestadas em Audiência de Julgamento, logrou trazer à discussão, a afectação efectiva e concreta das verbas, numa guisa de sub-rogação do dever de entregar ao Estado o IVA referente àquele período de tributação e que foi, completamente, desconsiderado e omitido na sentença.

8.ª O Tribunal nada disse, nada fundamentou, nada decidiu neste segmento concreto, fazendo, inelutavelmente, resvalar a sentença para o vício da Nulidade, por omissão de fundamentação, como infra melhor se desenvolverá.

Fazemos aqui uma navegação à cabotagem do eloquente Aresto do TRE de 20/12/2012, no sentido de apontar o vício de insuficiência para a matéria de facto provada, da sentença em que faltou apurar a afectação concreta das verbas que deveriam calçar o cumprimento da obrigação tributária.

Invoca-se, expressamente, o alegado vício, da insuficiência para a decisão da matéria de facto provada, não obstante ser de conhecimento oficioso, nos precisos termos plasmados no artigo 410.º, n.º 2, alínea a) do CPP.

9.ª O Tribunal “a quo” bordou uma motivação para respaldar a sua decisão, numa retórica, manifestamente, insuficiente, que não cumpre os mínimos de consagração constitucional, do universal dever de fundamentação.

10.ª Perfila-se vítrea a falta de fundamentação da sentença, maxime, neste segmento do contraditório, ficando o arguido privado de conhecer o percurso cognitivo traçado pela Srª. Juiz para desconsiderar a sua tese, rectius no que tange à afectação das verbas.

11.ª A sentença, ora, posta em crise, padece de Nulidade prevista no artigo 379.º, n.º 1, alínea a) do CPP, que para os devidos efeitos aqui, expressamente, se invoca, e que é de conhecimento oficioso.

A falta de fundamentação, consubstancia, igualmente, uma violação clara da Lei Fundamental, por equimose dos artigos 20.º, 32.º, n.º 1, e 205.º todos da CRP, prefigurando a interpretação do artigo 374.º do CPP no sentido de não incluir-se na estrutura da fundamentação da sentença toda a dimensão contraditória da hipótese apresentada pela Defesa e valoração crítica de todos os meios de prova não atendidos na decisão, bem como, a falta de narração crítica dos factos não provados, claramente, inconstitucional por violação dos preditos normativos, imanentes dos princípios da garantia da tutela jurisdicional efectiva, desenvolvido nas garantias de defesa, onde se inclui o direito ao recurso nas garantias do processo criminal.

Inconstitucionalidade esta que, expressamente, se invoca para os devidos efeitos legais, e que, também, esta, é de conhecimento oficioso.

12.ª Alguns segmentos decisórios por serem, completamente, estranhos ao thema decidemdum, bem como, aos próprios sujeitos processuais, terão contaminado o iter cognitivo e decisório espelhado na sentença, como sucede, v.g. quando a Sr.ª Juiz do Tribunal “a quo” decide a dosimetria da pena no pressuposto que o arguido já é reincidente neste tipo de Tatbestand, quando a verdade, é que ambos os arguidos não têm quaisquer antecedentes criminais.

A sentença, ora, posta em crise, padece, assim, da Nulidade prevista no artigo 379º, n.º 1, alínea a) do CPP, que para os devidos efeitos aqui, expressamente, se invoca, e que é de conhecimento oficioso.

13.ª É, serenamente, acolhido na Jurisprudência, que a notificação prevista no artigo 105º, n.º 4, alínea b) do RGIT deve ser, autonomamente, efectivada na pessoa colectiva e na pessoa do seu representante legal. (Vide urbi et orbi o Aresto do TRP de 26-02-2014).

A sentença é omissa quanto à notificação do arguido AA, enquanto gerente da sociedade comercial.

Tal omissão faz resvalar a sentença para o vício da insuficiência para a decisão da matéria de facto provada, nos precisos termos plasmados no artigo 410º, n.º2, alínea a) do CPP, que para os devidos efeitos, aqui, expressamente, se invoca.

14.ª A infracção tributária com relevância criminal, opera-se no dia seguinte ao prazo de 90 dias plasmado no artigo 105º, n.º 4, alínea a) do RGIT, por corresponder a uma mora qualificada.

15.ª O quantum debitório, na data de 14/02/2018 era de 6.680,64 €, portanto, inferior à cifra de 7.500,00 € bordada no artigo 105º, n.º 1 do RGIT.

Logo, é vítrea a conclusão, que, in casu, falha um elemento essencial do tipo de ilícito criminal, pois, a quantia em dívida era inferior ao valor de 7.500,00 €, pelo que o putativo crime não se consumou.

16.ª A Sr.ª Juiz do Tribunal “a quo” lavrou uma alteração não substancial dos factos, na própria sentença, ao modificar a qualificação jurídica do tipo de participação imputado a cada arguido.

De facto, no libelo acusatório, a imputação era feita a título de co-autoria material.

E na sentença a Sr.ª Juiz alterou para autoria material.

Sucede, que a predita alteração não substancial não foi precedida da necessária comunicação prévia plasmada no artigo 358º do CPP.

Tal omissão faz resvalar a sentença para o vício da Nulidade, prevista no artigo 379.º, n.º 1, alínea b) do CPP, e que aqui expressamente se invoca, para os devidos efeitos.

17.ª Violou, assim, a sentença em análise o plasmado nos artigos 358º; 410º, n.º2, alíneas a), b) e c) todos do CPP; O artigo 5º, n.º2 do RGIT, e os artigos 18º; 20º; 32º, n.º 1 e 2 e 205º todos da CRP e, ainda, o artigo 6º, n.º2 da Convenção Europeia dos Direitos do Homem.

Ex.ªs deve dar-se provimento ao presente recurso e ipso facto:
a) Revogar-se a sentença recorrida, considerando-se como não provados os Factos indicados nos pontos 8, 10, 11, 12, e 13 da sentença, e consequentemente absolver-se o arguido do crime por que foi condenado.

b) Não se entendendo, assim, deverá revogar-se a decisão recorrida para que, face à posição a assumir por esse Alto Tribunal, se profira nova Decisão em conformidade.”.
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2.2. Das contra-alegações do Ministério Público
Motivou o MP defendendo o acerto da decisão recorrida, embora sem apresentar conclusões.
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2.3. Do parecer do MP em 2.ª instância
Na Relação o Exmo. Senhor Procurador-Geral Adjunto emitiu parecer no sentido de ser julgada a improcedência total do recurso interposto pelo arguido, nos seguintes moldes:

“(…) O recurso interposto tem por objectivo a revogação da sentença e a sua substituição por outra que o absolva do ilícito em que foi condenado.

Para tanto, impugna a matéria de facto dada como provada invocando a violação do principio da livre apreciação da prova, alega a existência de nulidade respeitante à falta de fundamentação da sentença, mencionada no artigo 379.º n.º 1 a) do CPP e também a prevista na alínea b) e ainda o vicio de insuficiência para a decisão da matéria de facto, a que se reporta o artigo 410.º n.º 2 a) do CPP.

II - Considerando as questões suscitadas no recurso, desde já se adianta que se concorda com a resposta da Magistrada do Ministério Público, na sua peça processual, em que analisa a matéria fáctica e respectiva qualificação jurídica, defendendo o decidido na douta sentença de forma exacta e precisa.

Também entendemos que a sentença se mostra elaborada de forma suficiente, clara e escorreita, sem quaisquer obscuridades, erros ou contradições, não padecendo de quaisquer vícios ou violação de quaisquer preceitos legais.

De facto, a oportuna citação pela Magistrada do Ministério Público do Ac. TRE de 19.12.2013, proc. n.º 388/11.8IDFAR.E1, é esclarecedor quanto ao momento do preenchimento dos elementos do tipo de crime cometido pelo ora recorrente e quantificação dos respectivos montantes.

É o seguinte o sumário do mencionado acórdão publicado no sitio www.dgsi.pt:

“I - O momento da consumação criminosa no crime de abuso de confiança fiscal é o momento em que a prestação tributária deveria ter sido paga.

II - O mero pagamento parcial no âmbito da condição da alínea b) do n.º 4 do artigo 105º do RGIT não exclui a punibilidade. E não exclui essa punibilidade mesmo que o montante ainda em dívida nesse momento [no final do prazo de 30 dias da al. b)] seja inferior aos 7.500 € previstos no nº 1 do preceito.

III - Ou seja, consumado o crime, só o pagamento integral das indicadas quantias e no prazo da al. b) do nº 4 do artigo 105º do RGIT afasta a punibilidade da conduta.

IV - Isto porquanto os 7.500 euros são um “patamar” do tipo de ilícito e este verificava-se – estava preenchido - no momento da consumação do ilícito criminal. Assim, o momento chave para fazer operar o nº 1 do preceito (logo, para verificar o requisito 7.500 €) é o momento da consumação do crime e não o momento de verificação da condição objectiva de punibilidade, já que estas são duas realidades distintas.

V - Havendo aceitação e eficácia da declaração de rectificação em sede de direito tributário, a quantia que passou a estar em dívida e que deveria ter sido entregue nos cofres do Estado passa a ser a apurada após essa nova declaração, em novo momento de apuramento da ilicitude e culpa.

VI - Assim, se face à declaração de substituição apresentada (bem como ao pagamento parcial efetuado até essa data) a prestação tributária em falta é de montante inferior a 7.500 euros, deixa de ser criminalmente punível, nos termos e para os efeitos do disposto no artigo 105.º do RGIT.

VII - O ilícito fiscal assenta no dever e na realidade declarativa e o erro declarativo é aceite pela lógica e ordenamento fiscal. Assim como a rectificação declarativa, com efeitos ex tunc.

VIII - Esse erro deve ser atendível e, na medida em que aceite pela ordem jurídica como alterando a realidade fiscal “prestação em dívida”, altera o elemento objectivo de crime com o mesmo nomem iuri.[1]”

III - A prova produzida em audiência de julgamento foi considerada e apurada pelo Sra. Juíza segundo o princípio da livre apreciação da prova, tal qual vem consagrado de forma expressa no CPP, no seu artigo 127.º que preconiza: “Salvo quando a lei dispuser diferentemente a prova é apreciada segundo as regras da experiência e a livre convicção da entidade competente”.

«O princípio, tal como está inscrito no artigo 127.º do Código Penal, significa, no rigor das coisas, que o valor dos meios de prova não está legalmente pré-estabelecido, devendo o tribunal apreciá-los de acordo com a experiência comum, com o distanciamento, a ponderação e a capacidade crítica, na «liberdade para a objectividade» (…) A livre apreciação da prova pressupõe, pois, a concorrência de critérios objectivos que permitam estabelecer um substrato racional de fundamentação da convicção, que emerge da intervenção de tais critérios objectivos e racionais.» Ac. STJ de 9-2-2005, processo n.º 04P4721, www.dgsi.pt.

Já no Acórdão de 3.12.98, proferido no processo 98 P1168 também no sítio www.dgsi.pt, decidiu o STJ:

«I – O Tribunal faz a análise das provas produzidas em audiência e delas extrai livremente as conclusões segundo as regras da experiência e a livre convicção dos julgadores (artigo 127.º do CPP);

II – É ao Tribunal que julga a matéria de facto que compete livremente apreciar se um só depoimento é decisivo para apurar a sua convicção tanto mais que “testium fides diligenter examinand est” (cfr. Vaz Serra, in Excerto da Exposição de Motivos, com referência ao artigo 396º do C. Civil)».

De acordo com o disposto no artigo 127.º do CPP apenas constituem limites ao princípio da livre apreciação da prova as regras da experiência comum, e aquelas disposições legais que estabeleçam, designadamente um valor probatório especial para certas provas, ou simplesmente, condicionem ou proíbam a sua produção.

«…A livre apreciação da prova não é livre arbítrio ou valoração subjectiva, mas apreciação que liberta do jugo de um rígido sistema de prova legal, se realiza de acordo com critérios lógicos e objectivos; desta forma determina uma convicção racional, logo, também ela objectivável e motivável…» (Acórdão do STJ de 4.11.98, C.J. Ano VI, tomo 3, pág. 201).

«2. A livre convicção não significa, no entanto, apreciação segundo as impressões, nem inexistência de pressupostos valorativos, ou a desconsideração do valor de critérios, ainda objectivos ou objectiváveis, determinados pela experiência comum das coisas e da vida e pelas inferências lógicas do homem comum suposto pela ordem jurídica.

3. A livre convicção não significa liberdade não motivada de valoração, mas constitui antes um modo não estritamente vinculado de valoração da prova e de descoberta da verdade processualmente relevante, isto é, uma conclusão subordinada à lógica e à razão e não limitada por prescrições formais exteriores.» Extracto do sumário do Acórdão do STJ de 9-2-05, processo n.º 04P4721, www.dgsi.pt

Do exposto resulta que tal princípio atribui uma liberdade que visa exclusivamente a descoberta da verdade, devendo obediência a critérios de objectividade e segundo as regras da experiência, formulando conclusões subordinadas apenas a razão e à lógica.

Não obstante a apreciação da prova ser livre, tal não significa que a mesma se possa fazer um juízo arbitrário baseado em meras impressões. Deve sempre obedecer à experiência comum e à lógica do homem médio. E, com observância destas regras o juiz procurará sempre atingir a verdade material.

Baseando-se neste princípio e permanecendo fiel às regras da experiência comum, o julgador pode formar a sua convicção optando pelos depoimentos ou pelas provas que considere verdadeiras isentas.

Tendo sido isto precisamente o que aconteceu com a Sra. Juíza que julgou e condenou o arguido, relevando as provas que foram prestadas de forma clara, convincente e objectiva.

A prova produzida mostrou-se isenta de grandes complicações e de acessível apreensão, pelo que não se tornou difícil ao tribunal tomar a única decisão que se lhe impunha face ao seu teor, julgando correctamente a matéria fáctica no respeitante à apreciação e fundamentação dos factos dados como provados e como não provados e consequente exame crítico das provas.

Discordamos das motivações de recurso do arguido por, na nossa opinião, padecerem de incorrecção ao defenderem que a prova produzida em sede de julgamento foi erradamente analisada e que não poderia produzir de modo suficiente uma sentença condenatória nos termos em que o fez.

O recorrente partilha a prova da forma que mais lhe interessou para fundamentar as suas conclusões, limitando-se a discordar por, na sua opinião, não se ter feito prova, mas sem argumentar fundadamente.

Os factos considerados provados e não provados correspondem de forma fidedigna à prova efectuada na audiência de julgamento e à constante dos próprios autos, com a valorização do depoimento do inspector tributário considerado verdadeiro e isento, prestado com toda a clareza, objectividade e imparcialidade.

Aliás, a motivação dos factos provados e não provados, é bem explicita e esclarecedora do teor dos depoimentos recolhidos com interesse para a descoberta da verdade material, que retrata fielmente, não necessitando de quaisquer outros acréscimos ou desenvolvimentos para a sua compreensão, pelo que nos abstemos de mais considerandos.

A matéria de facto fixada na douta sentença corresponde integralmente e de forma fidedigna à produzida em sede de julgamento, apreciada de acordo com as regras da experiência e a livre convicção do julgador, pelo que não se verifica a violação de qualquer norma jurídica.

IV - Conforme resulta do disposto no artigo 374.º, n.º 2, do CPP é obrigatório que na fundamentação sejam indicadas as provas que contribuíram para formar a convicção do tribunal, assim como o seu exame crítico.

A falta de indicação das provas que serviram para alicerçar e fundamentar a convicção do tribunal, constitui uma nulidade prevista no artigo 379.º, a), do CPP.

“O princípio da motivação das decisões judiciais constitui uma das garantias fundamentais do cidadão no Estado Social de direito contra o arbítrio do poder judiciário” (Pessoa Vaz, “Direito Processual Civil – Do Antigo ao Novo Código”, Coimbra 1998, pág. 211).

A obrigação de fundamentar as decisões judiciais constitui um verdadeiro factor de legitimação do poder jurisdicional, contribuindo para a congruência entre o exercício desse poder e o dever de aplicar o direito. Garante assim o respeito pelos princípios da legalidade, da independência do juiz e da imparcialidade das suas decisões.

Nos termos do artigo 374.º, n.º 2, do CPP a fundamentação consta também de uma exposição, tanto quanto possível completa, ainda que concisa, dos motivos de facto e de direito que fundamentam a decisão, com indicação e exame crítico das provas que serviram para formar a convicção do tribunal.

«Estes motivos de facto que fundamentam a decisão não são nem os factos provados nem os meios de prova mas os elementos que em razão das regras da experiência ou de critérios lógicos constituem o substrato racional que conduziu a que a convicção do tribunal se formasse em determinado sentido ou valorasse de determinada forma os diversos meios de prova apresentados em audiência» (Marques Ferreira, Meios de Prova, Jornadas de Direito Processual Penal – O Novo Código de Processo Penal, Coimbra 1992).

Daqui decorre que, após a descrição dos factos provados e não provados, o tribunal faz alusão às razões de facto e de direito que informam e esclarecem o modo de formação da convicção.

Por se mostrar bastante elucidativo sobre esta temática, tomamos a liberdade de transcrever um extracto do sumário do acórdão do STJ de 15-10-2008, processo n.º 08P2864, www.dgsi.pt:

«IV – O dever constitucional de fundamentação da sentença basta-se, assim, com a exposição, tanto quanto possível completa, ainda que concisa, dos motivos de facto e de direito que fundamentam a decisão, bem como com o exame crítico das provas que serviram para fundar a decisão, sendo que tal exame exige não só a indicação dos meios de prova que serviram para formar a convicção do tribunal, mas também os elementos que, em razão das regras da experiência ou de critérios lógicos, constituem o substrato racional que conduziu a que a convicção do Tribunal se formasse em determinado sentido, ou a que este valorasse de determinada forma os diversos meios de prova apresentados em audiência (Ac. do STJ de 14-06-2007, Proc. n.º 1387/07 - 5.ª).

V – Com a exigência de fundamentação consegue-se que as decisões judiciais se imponham não em razão da autoridade de quem as profere, mas antes pela razão que lhes subjaz (Marques Ferreira, Jornadas de Direito Processual Penal, pág. 230). Ao mesmo tempo, permite-se a plena observância do princípio do duplo grau de jurisdição, podendo, desse modo, o tribunal superior verificar se, na sentença, se seguiu um processo lógico e racional de apreciação da prova, ou seja, se a decisão recorrida não se mostra ilógica, arbitrária ou notoriamente violadora das regras da experiência comum (Germano Marques da Silva, Curso de Processo Penal, III, pág. 294), sem olvidar que, face aos princípios da oralidade e da imediação, é o tribunal de 1.ª instância aquele que está em melhores condições para fazer um adequado uso do princípio da livre apreciação da prova (Ac. do STJ de 17-05-2007, Proc. n.º 1608/07- 5.ª).

VI – Como decidiu este Supremo Tribunal (Ac. de 03-10-2007, Proc. n.º 07P1779 - 3.ª), a fundamentação da sentença em matéria de facto consiste na indicação e exame crítico das provas que serviram para formar a convicção do tribunal, que constitui a enunciação das razões de ciência reveladas ou extraídas das provas administradas, a razão de determinada opção relevante por um ou outro dos meios de prova, os motivos da credibilidade dos depoimentos, o valor de documentos e exames que o tribunal privilegiou na formação da convicção, em ordem a que os destinatários (e um homem médio suposto pelo ordem jurídica, exterior ao processo, com a experiência razoável da vida e das coisas) fiquem cientes da lógica do raciocínio seguido pelo tribunal e das razões da sua convicção.

VII – A obrigatoriedade de indicação das provas que serviram para formar a convicção do tribunal e do seu exame crítico destina-se a garantir que na sentença se seguiu um procedimento de convicção lógico e racional na apreciação das provas, e que a decisão sobre a matéria de facto não é arbitrária, dominada pelas impressões, ou afastada do sentido determinado pelas regras da experiência. A integração das noções de “exame crítico” e de “fundamentação” de facto envolve a implicação, ponderação e aplicação de critérios de natureza prudencial que permitam avaliar e concluir se as razões de uma decisão sobre os factos e o processo cognitivo de que se socorreu são compatíveis com as regras da experiência da vida e das coisas e com a razoabilidade das congruências dos factos e dos comportamentos.

VIII – Mas a lei não exige que em relação a cada facto se autonomize e substancie a razão de decidir, como também não exige que em relação a cada facto fonte de prova se descreva como a sua dinamização se desenvolveu em audiência, sob pena de se transformar o acto de decidir numa tarefa impossível (Ac. do STJ de 30-06-1999, in SASTJ, n.º 32, pág. 92).

IX – O art. 379.º do CPP determina que é nula a sentença quando o tribunal deixe de pronunciar-se sobre questões que devesse apreciar ou conheça de questões de que não podia tomar conhecimento (n.º 1, al. c)), sendo que as questões impostas à apreciação do julgador são as suscitadas pelos sujeitos processuais ou as de conhecimento oficioso.

X – A omissão de pronúncia traduz-se num non liquet em relação ao objecto contestado, à questão ou situação colocada, legalmente relevante, e que, por isso, tem de ser expressamente decidida. Mas, como bem salientou o acórdão deste Supremo Tribunal de 23-05-2007 (Proc. n.º 1405/07 - 3.ª), a pronúncia cuja omissão determina a consequência prevista no art. 379.º, n.º 1, al. c), do CPP – a nulidade da sentença (vício de conhecimento oficioso pelo tribunal de recurso) – deve incidir sobre problemas e não sobre motivos ou argumentos; é referida ao concreto objecto que é submetido à cognição do tribunal e não aos motivos e razões alegadas.»

Compulsando o teor da sentença, constata-se a existência da fundamentação, bem elaborada e de forma suficiente, em estrita obediência ao disposto no artigo 374.º n.º 2 do CPP, mencionando a confissão do arguido, assim como a prova testemunha e documental relevante, sem esquecer o exame crítico destes elementos.

Para o STJ, o artigo 374.º, n.º 2, do CPP não pode ser entendido no sentido de exigir ao julgador a exposição pormenorizada de todo o raciocínio lógico que se encontra na base da sua convicção de considerar ou não provado certo facto, ou que faça uma apreciação crítica das provas de forma a permitir a sua apreciação pelo tribunal de recurso (Acs. do STJ de 19.5.94, recurso n.º 46279 e de 20.5.93, recurso n.º 43859).

Ora, só a ausência de total referência a provas que constituíram a fonte da convicção do tribunal integra a violação do artigo 374.º, n.º 2, do CPP e a consequente nulidade prevista no artigo 379.º a) do mesmo diploma, considerando-se satisfeita a exigência daquele artigo pela simples indicação dos meios de prova (cfr. ainda Acórdãos do STJ de 15.7.84, Recurso n.º 40094, de 6.3.91, Recurso nº 40874, de 16.3.84, Recurso n.º 45759 de 15.5.94, Recurso n.º 46279).

V – O arguido, além de questionar a livre apreciação da prova, também arguiu o vício da insuficiência da matéria de facto provada.

Para ocorrer, nos termos do artigo 410.º, n.º 2, do CPP, é necessário que resultem do texto da decisão recorrida por si só ou conjugada com as regras da experiência comum.

“II – Só se verifica insuficiência para a decisão da matéria de facto provada quando esta, por si só ou em conjugação com as regras da experiência comum, resulta inepta para fundar o julgamento” (Sumário do Ac. do STJ de 11.12.96, processo 96 P1188, in www.dgsi.pt).

“II – O vicio da insuficiência da matéria de facto para a decisão refere-se, não à insuficiência da prova para a matéria de facto que veio a ser dada como provada, mas à insuficiência da matéria de facto provada para a decisão de direito, isto é, quanto os factos provados não justificam o direito aplicável” (Sumário do Ac. do STJ de 18.3.98, processo 97 P1544, in www.dgsi.pt).

Ainda no mesmo sentido e realçando que a prova deve ser apreciada no seu conjunto, o Sumário do STJ no Ac. de 5.6.96, processo 046789, in www.dgsi.pt cujo teor é o seguinte:

“I – O vicio da insuficiência da matéria de facto para a decisão deve ser de tal ordem que a patenteie a impossibilidade de um correcto juízo subsuntivo entre a materialidade fáctica apurada e a norma penal abstracta chamada à respectiva qualificação, mas apreciada pela sua globalidade e não em meros pormenores divorciados do contexto em que se descreve a sucessão de factos imputada ao agente. Assim, não é necessária, relativamente a factos isolados do conjunto, uma minúcia particular, nem sempre possível pelas contingências da prova apreciada em Tribunal”.

Ou ainda, como refere Germano Marques da Silva, em “Curso de Processo Penal, Tomo III, pág. 325, no que “consiste a insuficiência da matéria de facto para a decisão de direito. É necessário que a matéria de facto dada como provada não permita uma decisão de direito, necessitando de ser completada. Antes de mais, é necessário que a insuficiência exista internamente, dentro da própria sentença ao acórdão. Para se verificar este fundamento é necessário que a matéria de facto se apresente como insuficiente para a decisão proferida por se verificar lacuna no apuramento da matéria de facto para uma decisão de direito”.

Portanto, a insuficiência da matéria de facto só se pode ter como existente quando a factualidade provada for insuficiente para justificar a decisão assumida, isto é, quando se considera realizado um tipo legal de crime sem que esteja provada matéria de facto bastante, o que, diga.se não é manifestamente o caso.

A motivação dos factos provados e não provados também é bem explicita e esclarecedora do teor do depoimento recolhido com interesse para a descoberta da verdade material, que retrata fielmente, não necessitando de quaisquer outros acréscimos ou desenvolvimentos para a sua percepção, pelo que nos abstemos de mais considerandos.

Pelo exposto, temos forçosamente de concluir que, de forma alguma pode proceder a motivação do recorrente quando na prática o que se verifica é tão só a divergência existente entre o recorrente e o tribunal na apreciação da prova.

Assim, não existe qualquer factualidade ou elemento que possa, ainda que de forma ténue, apontar para a revogação da sentença.”
*
2.4. Da tramitação subsequente

Foi observado o disposto no n.º 2 do artigo 417.º do CPP.
Cumpridos os vistos teve lugar a conferência.
Cumpre apreciar e decidir.
***
II. FUNDAMENTAÇÃO
1. Objeto do recurso
De acordo com o disposto no artigo 412.º do CPP e atenta a Jurisprudência fixada pelo Acórdão do Plenário da Secção Criminal do Supremo Tribunal de Justiça n.º 7/95, de 19/10/95, publicado no DR I-A de 28/12/95 o objeto do recurso define-se pelas conclusões apresentadas pelo recorrente na respetiva motivação, sem prejuízo de serem apreciadas as questões de conhecimento oficioso.
*
2. Questões a examinar
2.1. Errada apreciação da prova produzida em Audiência de Julgamento (artigo 127.º do CPP);

2.2. Vício da insuficiência para a decisão da matéria de facto provada (artigo 410º, n.º 2, alínea a) do CPP);

2.3. Nulidade da sentença (artigo 379º, n.º 1, alíneas a) e b) do CPP);

2.4. Violação dos artigos 20.º, 32.º, n.º 1, e 205.º da CRP os artigos 18.º; 20.º; 32.º, n.ºs 1 e 2 e 205.º todos da CRP e artigo 6.º, n.º 2 da Convenção Europeia dos Direitos do Homem;

2.5. Erro de julgamento quanto à matéria de direito (artigo 412.º, n.º 2 do CPP).
***
3. Apreciação

3.1. Da decisão da 1ª instância
Definidas as questões a tratar, importa considerar o que se mostra fixado pela instância recorrida.
*
3.1.1. Factos provados na 1.ª instância
O Tribunal deu como provados os seguintes factos (transcrição):
1. A arguida “B…, Unipessoal, Lda.” é uma sociedade por quotas matriculada na Conservatória do Registo Comercial de Albufeira;

2. O objecto social da sociedade arguida consiste na restauração comércio, importação e exportação de produtos alimentares e bebidas”, correspondente ao CAE 56101 – R3;

3. A gerência da sociedade arguida é exercida pelo arguido AA;

4. No âmbito dessa actividade, a sociedade arguida é sujeito passivo de IVA, inscrita no regime normal trimestral de apuramento de IVA, encontrando-se obrigada a liquidar este imposto nas facturas emitidas aos seus clientes, pelos serviços por si prestados;

5. No final de cada período de tributação, a sociedade arguida deve deduzir a esse IVA que cobrou aos seus clientes, o IVA que suportou nos bens e serviços que adquiriu no âmbito da sua actividade;

6. No caso de a diferença entre esses valores ser positiva, no final do mencionado período de tributação a sociedade arguida encontra-se obrigada a apresentar ao Estado a respectiva declaração periódica, de onde resultem esses valores, e a entregar tal quantia;

7. Assim, a sociedade arguida entregou declarações de IVA nas quais é apurado imposto a pagar, sem que o mesmo tenha sido entregue ao Estado, relativamente ao terceiro trimestre de 2017 do valor de €9.375,38 (nove mil trezentos e setenta e cinco euros e trinta e oito cêntimos);

8. Ou seja, a sociedade arguida não procedeu à entrega ao Estado da totalidade dos montantes retidos aos seus clientes a título de IVA, conforme estava obrigada, nem dentro do prazo legalmente estabelecido para o pagamento do imposto, nem no prazo de 90 dias subsequentes ao terminus do prazo de entrega;

9. A sociedade arguida foi notificada, em 26 de Fevereiro de 2018, para, no prazo de 30 dias, proceder ao pagamento da quantia em dívida, relativa às quantias retidas a título de IVA, respectivos juros de mora e coima, com a informação que a realização de tal pagamento no aludido prazo extinguiria a sua responsabilidade criminal;

10. No entanto, apesar de regularmente notificada para o efeito, a sociedade arguida não procedeu ao pagamento da totalidade do montante devido – no montante de €9.375,38 – correspondente ao IVA efectivamente prestado -, no prazo indicado, nem posteriormente;

11. Assim, a sociedade arguida reteve a título de IVA as quantias que cobrou aos seus clientes e dos mesmos recebeu, as quais declarou mas não entregou ao Estado;

12. Os factos descritos foram praticados pelo arguido AA enquanto legal representante da sociedade arguida, agindo em representação e no interesse da mesma;

13. Ao proceder da forma descrita, os arguidos quiseram reter e fazer suas quantias que sabiam que não lhes pertenciam e que, por imposição legal, por força da retenção dos referidos impostos, deveriam ter sido entregues ao Estado, tendo tomado a resolução de apenas entregar os impostos retidos quando lhes fosse conveniente, ficando o Estado lesado nesses montantes;

14. O arguido AA tinha conhecimento dos factos descritos e agiu de forma livre e consciente, bem sabendo ser proibida por lei a referida conduta;

Apurou-se, ainda, que:
15. A sociedade celebrou com a Direcção de Finanças de Faro um plano de pagamento em prestações da quantia devida a título de IVA;

16. Em 13.12.2017, a sociedade arguida efectuou o pagamento da quantia de €2.072,40;

17. E em 31.01.2018, efectuou o pagamento da quantia de €622,34;

18. A sociedade arguida já efectuou o pagamento da totalidade da quantia que deu origem aos presentes autos;

19. O arguido AA é empresário e aufere o salário mensal no montante de €600,00;

20. Vive sozinho, em casa arrendada;

21. Paga a quantia mensal de €355,00 a título de renda de casa;

22. Os arguidos não possuem antecedentes averbados ao certificado de registo criminal.

3.1.2. Factos não provados na 1ª instância
O Tribunal a quo considerou que não ficaram por provar quaisquer factos com interesse para a decisão da causa.
*
3.1.3. Da fundamentação da convicção pelo Tribunal recorrido
O Tribunal motivou a factualidade provada e não provada pela seguinte forma (transcrição):

A convicção do tribunal no que respeita aos factos provados estribou-se na análise crítica e ponderada do conjunto da prova produzida e examinada em audiência de julgamento, a qual foi apreciada segundo as regras da experiência e a livre convicção do julgador (artigo 127.º do CPP), como se passa a expor.

Tomou-se, desde logo, em consideração o teor dos documentos constantes dos autos, nomeadamente, a certidão comercial da sociedade arguida (fls. 16 e ss.); a certidão de notificação dos arguidos nos termos e para efeitos do estatuído no artigo 105.º, n.º 4, alínea b) do RGIT (fls. 21 e ss.); comprovativos de pagamentos da quantia em dívida; o parecer elaborado pela Direção de Finanças de Faro (fls. 102 e ss.); o CRC dos arguidos.

Contribuíram, em conjugação com os documentos elencados, para formar a convicção do julgador no que tange à factualidade supra exposta, o depoimento prestado pelo arguido, que, de forma livre e espontânea, admitiu os factos descritos na acusação, justificando os mesmos com a incapacidade e dificuldades económicas que, à data, assolavam a sociedade arguida.

Essencial para a formação da convicção do julgador foi, também, o depoimento da testemunha CC – inspector tributário a exercer funções na Direcção de Finanças de Faro - que, de forma objectiva e coerente, esclareceu os factos constantes da acusação, bem como a forma como a investigação foi desenvolvida e o modo como foi apurada a quantia em dívida, da responsabilidade da arguida.

Em face dos elementos de prova constantes dos autos, dúvidas não restam de que os arguidos não procederam à entrega, no prazo legalmente estabelecido para o efeito, junto da Administração Tributária as quantias devidas a título de IVA, e que foram por si recebidas aquando dos pagamentos efectuados pelos clientes, não obstante terem conhecimento de que os valores não lhes pertenciam e deveriam ser entregues a essa entidade. E o arguido AA tinha conhecimento dessa obrigatoriedade, em virtude das funções de empresária que ocupava, tanto mais que tais factos são do conhecimento geral, ainda mais no meio empresarial, tendo os empresários perfeito conhecimento das condutas que lhes são impostas, nomeadamente ao nível da entrega de impostos devidos.

Não se duvida que a arguida integrou no seu património os montantes que recebeu a título de IVA e que deveria entregar junto da Administração Tributária, afectando as respectivas quantias a outras finalidades, ainda que apenas contabilisticamente.

Assim, por tudo o exposto, se valorou o julgado nos termos supra expostos.”
*
3.1.4. Da fundamentação de direito pelo Tribunal recorrido
O Tribunal a quo fundamentou de direito pela seguinte forma (transcrição):

“Os arguidos vêm acusados da prática de determinados factos que os terão feito incorrer, em autoria material, num crime de abuso de confiança fiscal, p. e p. pelos arts. 6º a 8º e 105.º, n.º 1, 2, 4 e 7 do Regime Geral das Infracções Tributárias (Lei n.º 15/2001, de 5 de Junho, com as alterações introduzidas pelas Leis n.ºs 109-B/2001 de 27 de Dezembro, 32-B/2002 de 30 de Dezembro, 107-B/2003 de 31 de Dezembro, 55-B/2004 de 30 de Dezembro, 39-A/2005 de 29 de Julho, 60-A/2005 de 30 de Dezembro, 53-A/2006 de 29 de Dezembro, 22-A/2007 de 29 de Junho, 67-A/2007 de 31 de Dezembro, 64-A/2008 de 31 de Dezembro, 3-B/2010, de 28 de Abril, 55-A/2010, de 31 de Dezembro, e pelos Decretos-Lei n.ºs 229/2002 de 31 de Outubro, 307-A/2007 de 31 de Agosto e Lei nº 64-A/2008, de 31 de Dezembro).

Estatui o art. 105º do Regime Geral das Infracções Tributárias (doravante, RGIT) que:

“1 - Quem não entregar à administração tributária, total ou parcialmente, prestação tributária de valor superior a (euro) 7500, deduzida nos termos da lei e que estava legalmente obrigado a entregar é punido com pena de prisão até três anos ou multa até 360 dias.

2 - Para os efeitos do disposto no número anterior, considera-se também prestação tributária a que foi deduzida por conta daquela, bem como aquela que, tendo sido recebida, haja obrigação legal de a liquidar, nos casos em que a lei o preveja.
(…)
4 - Os factos descritos nos números anteriores só são puníveis se:

a) Tiverem decorrido mais de 90 dias sobre o termo do prazo legal de entrega da prestação;

b) A prestação comunicada à administração tributária através da correspondente declaração não for paga, acrescida dos juros respectivos e do valor da coima aplicável, no prazo de 30 dias após notificação para o efeito.

5 - Nos casos previstos nos números anteriores, quando a entrega não efectuada for superior a (euro) 50000, a pena é a de prisão de um a cinco anos e de multa de240 a 1200 dias para as pessoas colectivas. (…)

7 - Para efeitos do disposto nos números anteriores, os valores a considerar são os que, nos termos da legislação aplicável, devam constar de cada declaração a apresentar à administração tributária.”

Com este tipo de incriminação visa-se tutelar o património do Estado, mediante a tutela e protecção criminal da obrigação de entrega das quantias que foram confiadas ao agente para que este as remetesse aos Cofres do Estado, protegendo-se, assim, as receitas públicas.

Tutela-se, assim, o dever de pagar impostos que, como é dito no Acórdão do TC nº 554/2001, “é essencial para a realização dos fins do Estado, quer para prover à satisfação das suas necessidades financeiras, quer também para prosseguir o objectivo de uma repartição justa de rendimentos e riqueza, constitucionalmente consagrado”.

Trata-se de um bem jurídico supra individual, intimamente conexionado com conceitos de justiça distributiva ou justiça social e princípios de não exclusão, em que o Estado se compromete a assegurar uma democracia económica, dando adequada gestão às receitas obtidas e impedindo a exclusão do indivíduo dos benefícios inerentes a esse bem jurídico (cfr. COSTA ANDRADE E SUSANA AIRES DE SOUSA, “As metamorfoses e desventuras de um crime (abuso de confiança fiscal) irrequieto - Reflexões a propósito da alteração introduzida pela Lei nº 53 A/2006 de 29 de Dezembro”, in R.P.C.C., ano 17, nº 1. pág. 53 e ss.).

Neste crime, o objecto da omissão de entrega é a prestação tributária, conceito que engloba os impostos e outros tributos cuja cobrança caiba à administração tributária (cfr. arts. 1º, nº1, al.a) e 11º, al. a) do RGIT), abrangendo o art. 105º três tipos de prestações pecuniárias cuja não entrega faz recair sobre o agente a responsabilidade penal por tal crime, a saber: 1) prestação tributária deduzida nos termos da lei e que estava legalmente obrigado a entregar; 2) prestação tributária que foi deduzida por conta daquela, como, por exemplo, retenção na fonte em sede de I.R.S. bem como a que, tendo sido recebida, haja obrigação legal de liquidar, como, por exemplo, o I.V.A., e 3) prestação deduzida de natureza parafiscal e desde que possa ser entregue autonomamente.

Nesta infracção estão em causa créditos de impostos ou tributos fiscais ou parafiscais devidos ao Estado, estabelecendo-se uma relação entre o Estado-Administração Fiscal, enquanto sujeito activo da relação jurídica tributária, titular do direito de exigir o cumprimento das obrigações tributárias, titular do crédito do imposto; por outro lado, o sujeito passivo que, nos termos da lei, está vinculado ao cumprimento da prestação tributária, seja como contribuinte directo, substituto ou responsável.

Pressupõe este delito uma relação em que intercedem três sujeitos: o Estado – Administração Fiscal, titular do crédito do imposto; o contribuinte originário propriamente dito, que é o sujeito substituído, e, por último, um terceiro, o substituto, o único sujeito em posição de cometer o crime.

Este normativo tem em vista situações de substituição tributária, estando-se perante um crime omissivo, um crime de mera inactividade, em que a omissão integradora do ilícito é antecedida de uma acção, de um comportamento actuante, positivo, de facere, consubstanciado numa conduta legal, de prévia dedução (obrigação de retenção), que conduz a que o substituto se converta num depositário das quantias deduzidas, figurando como um intermediário no processo da arrecadação da receita, constituindo-se na obrigação de dar o devido destino, traduzindo-se a omissão subsequente na violação da obrigação de entrega do imposto retido, consubstanciando-se na não entrega, total ou parcial, do que estava obrigado a entregar à administração tributária.

Assenta este crime numa conduta bifásica, seguindo-se a uma primeira fase de actuação perfeitamente lícita – a dedução – que funciona como seu pressuposto, uma outra traduzida numa omissão (neste sentido, cfr. Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra de 10.11.2010, proc. nº67/07.0IDCBR.C1, in www.dgsi.pt).

Trata-se, assim, de um crime omissivo puro na medida em que o facto típico revisto na norma incriminadora se verifica com a não entrega da prestação tributária, tendo-se por praticada a omissão na data em que termina o prazo para o cumprimento da obrigação tributária, por força do nº2 do art. 5º do RGIT (cfr. Acórdãos do Tribunal da Relação de Coimbra, datados de 21.09.2010, no processo n.º 12/08.6IDGRD.C1, de 10.11.2010, no processo n.º 67/07.0IDCBR.C1, do Tribunal da Relação de Lisboa, datado de 20.07.2009, no processo n.º 7867/2008-3, in www.dgsi.pt).

Pelo exposto, pode-se salientar que constituem elementos objectivos deste tipo de crime: a) a não entrega à administração tributária, total ou parcialmente, de prestação tributária; b) que o agente esteja legalmente obrigado a entregar (de valor superior a €7.500,00, deduzida nos termos da lei, após a reforma de 2008).

Pese embora o elemento “apropriação” tenha desaparecido do tipo objectivo do crime em análise (ao contrário da formulação do anterior artigo 24.º do R.J.I.F.N.A.), a verdade é que “a não entrega total ou parcial da prestação tributária ou equiparada traduz-se num apropriar-se, num fazer sua coisa móvel alheia” (cfr. JORGE LOPES DE SOUSA E MANUEL SIMAS SANTOS, “Regime Geral das Infracções Tributárias Anotado”, 2ª Edição, Áreas Editoras, 2003, pág. 646.

No que respeita concretamente ao I.V.A., por se tratar de um imposto de auto-liquidação (cujas operações a ele sujeitas estão descritas no artigo 1.º do Código do I.V.A.), incumbe ao contribuinte enviar, mensal ou trimestralmente, consoante o regime, ao serviço de administração do I.V.A., uma declaração relativa às operações efectuadas no exercício da sua actividade do mês ou período precedente, acompanhada do pagamento do montante do imposto respectivo (artigos 16.º, 22.º, 36.º e 37.º, do C. I.V.A.).

E como se refere no Acórdão do Supremo Tribunal Administrativo, datado de 21.04.2010, no processo n.º 85/10 “há obrigação de os sujeitos passivos procederem à sua liquidação e adicionarem o valor do imposto liquidado ao valor das mercadorias ou prestação de serviços, incluindo-o na factura ou documento equivalente, para efeitos da sua exigência aos adquirentes das mercadorias ou aos utilizadores dos serviços (arts. 35.º e 36.°, n.° 1, do CIVA). Nas situações em que não se está perante um acto isolado (como sucede no caso em apreço) o art. 26.°, n.° 1, do CIVA impõe a obrigação de entrega do montante do imposto apurado (o “imposto exigível”) no momento da apresentação das declarações a que se refere o art. 40.° do mesmo Código, independentemente de ter sido efectuado pelos adquirentes de bens ou utilizadores de serviços o pagamento da quantia facturada” (in www.dgsi.pt).

No âmbito das contra-ordenações tributárias tem sido defendido pelos Tribunais que a contra-ordenação prevista no artigo 114.º do R.G.I.T não abrange aquelas situações em que o imposto (I.V.A.) que devia ter sido entregue não está em poder do sujeito passivo, por não o ter recebido (cfr. Acórdãos do Supremo Tribunal Administrativo, de 28.05.2008, proferido no processo nº 279/08, de 02.06.2010, no processo n.º 0338/10, de 08.12.2009, no processo n.º 0887/09, 10.02.2010, no processo n.º 01204/09, in www.dgsi.pt).

E como se lê no Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra, datado de 15.12.2010, no processo n.º 24/06.4IDGRD.C1, “sendo esta jurisprudência aquela que vem sendo seguida pelo STA no que respeita ao regime contraordenacional, não fará qualquer sentido – nem isso decorre do tipo de crime – exigir uma interpretação mais ampla no que respeita à conduta criminal que configurasse o tipo de crime sustentado na mera não entrega de quantias putativamente recebidas” (in www.dgsi.pt).

Conclui-se, assim, que, pese embora o n.º 7 do artigo 105.º do R.G.I.T. disponha que os valores a considerar são os que devam constar de cada declaração a apresentar, “no caso do IVA, só comete o crime de abuso de confiança fiscal, previsto e punido pelo artigo 105º do RGIT, aquele sujeito passivo que tendo efectivamente recebido o montante devido pela cobrança do imposto e esteja por isso obrigado à sua entrega ao Estado, o não faça no prazo legalmente fixado para tal” (cfr. Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra, datado de 15.12.2010, no processo n.º 24/06.4IDGRD.C1, disponível em www.dgsi.pt).

Por sua vez, configuram condições objectivas de punibilidade, as quais têm uma relação directa com o facto mas que não pertencem nem ao tipo de ilícito nem ao tipo de culpa, constituindo meros pressupostos materiais de punibilidade, as indicadas no n.° 4 do artigo 105.° do R.G.I.T.:

a) tiver decorrido mais de 90 dias sobre o termo do prazo legal de entrega da prestação comunicada à administração tributária através da correspondente declaração não for paga, acrescida dos juros respectivos e do valor da coima aplicável, no prazo de 30 dias após notificação para o efeito (cfr. Acórdão de Fixação de Jurisprudência do Supremo Tribunal de Justiça n.º 6/2008, de 09.04.2008, publicado no D.R., 1.ª Série, n.º 94, de 15.05.2008; em sentido diferente, configurando estas circunstâncias como elementos integrantes do tipo de crime, e não como condições objectivas de punibilidade, TAIPA DE CARVALHO, “O crime de abuso de confiança fiscal”, Coimbra Editora, 2007, pág. 40).

No plano subjectivo, o abuso de confiança fiscal é um crime doloso, podendo ser cometido com qualquer uma das modalidades de dolo (artigo 14.º do C.P.), não sendo necessário um qualquer dolo específico como a intenção de obtenção de vantagem patrimonial indevida ou de apropriação das quantias liquidadas ou deduzidas.

Como referem COSTA ANDRADE E SUSANA AIRES DE SOUSA “nem sequer se exige – como acontecia na versão originária do RJIFNA – uma intenção de apropriação” (cfr. Ob.cit., pág. 54. No mesmo sentido, Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra de 21/10/2009, processo 12/08.6IDGRD.C1, in www.dgsi.pt).

Por fim, decorre do artigo 7.º, n.º 1, do R.G.I.T. que “as pessoas colectivas, sociedades, ainda que irregularmente constituídas, e outras entidades fiscalmente equiparadas são responsáveis pelas infracções previstas na presente lei quando cometidas pelos seus órgãos ou representantes, em seu nome e no interesse colectivo”, não excluindo, todavia, a responsabilidade individual dos seus agentes (n.º 3 do mesmo preceito).

E do artigo 6.º, n.º 1, do R.G.I.T. resulta que “quem agir voluntariamente como titular de um órgão, membro ou representante de uma pessoa colectiva, sociedade, ainda que irregularmente constituída, ou de mera associação de facto, ou ainda em representação legal ou voluntária de outrem será punido mesmo quando o tipo de crime exija: a) determinados elementos pessoais e estes só se verifiquem na pessoa do representado; b) que o agente pratique o facto no seu próprio interesse e o representante actue no interesse do representado”.

Revertendo ao caso decidendo, resultou provado que a arguida “B…, Unipessoal, Lda.” estava registada para efeitos de I.V.A. no regime normal de periodicidade trimestral, pelo exercício da actividade de restauração comércio, importação e exportação de produtos alimentares e bebidas”, desta forma, sujeita e exercendo uma actividade igualmente sujeita a tal imposto (artigos 1.º, n.º 1, alínea a) e b), e 2.º, n.º 1, alínea a) e b), do C.I.V.A.).

Provou-se, também, que o arguido AA era o único gerente da sociedade arguida e o responsável pelas transacções, recebimentos e pagamentos efectuados pela sociedade e ainda pela sua gestão fiscal e financeira.

Essa empresa, e esse seu representante, agindo em seu nome, no período correspondente ao trimestre de 2017, liquidaram e receberam dos seus clientes a quantia de €9.375,38 (nove mil trezentos e setenta e cinco euros e trinta e oito cêntimos) a título de IVA e não o entregaram nos cofres do Estado, não obstante terem enviado à Administração Fiscal as declarações periódicas previstas no CIVA. E não entregaram até ao dia 15 do segundo mês seguinte ao que respeitava a respectiva operação tributável nem nos 90 dias após o termo do prazo legal de entrega e tendo os mesmos arguidos sido notificados, a título pessoal e como representante legal da empresa arguida, não procederam ao pagamento da quantia liquidada em sede de I.V.A., acrescida de juros e do valor da coima aplicável (artigo 105.º, n.º 4, alínea b), do R.G.I.T.).

O arguido AA agiu em nome e no interesse da sociedade arguida, e também no seu próprio interesse, pelo que também a sociedade arguida é responsável criminalmente pela conduta daquele (artigos 6.º e 7.º do R.G.I.T.).

Esse arguido ao não entregar nos cofres do Estado o montante a título de I.V.A. liquidado e recebido, integrando-o na esfera patrimonial da sociedade arguida, agiu de forma deliberada, livre e consciente, bem sabendo que tinha a obrigação de entregar tal quantia ao Estado, e com o propósito concretizado de obter uma vantagem patrimonial indevida à custa da retenção da sobredita quantia, o que representou, bem sabendo que a sua conduta era proibida e punida por lei.

Coloca-se aqui a questão de saber se poderá ser afastado o preenchimento dos elementos constitutivos deste tipo de ilícito em virtude de os arguidos terem efectuado a entrega de parte da quantia devida a título de IVA em momento anterior à notificação prevista no art. 105º, nº4, al.b) do RGIT.

Desde já adiantamos que se entende que o pagamento efectuado pelos arguidos não afasta o preenchimento dos elementos constitutivos do presente crime.

Como é sabido, a responsabilidade tributária pelo imposto devido e a responsabilidade penal tributária não podem ser confundidas. A autonomia de ambas essas responsabilidades é salientada por Germano Marques da Silva (in “Direito Penal Tributário”, Lisboa, 2009, p. 113) nestes termos: «O facto gerador da dívida de imposto existe independentemente da prática de qualquer crime: a obrigação tributária é autónoma relativamente à responsabilidade penal pela prática de crime tributário e é geralmente proveniente da prática de facto ilícito, ainda que entre a dívida tributária e a responsabilidade pelo crime exista conexão».

Ora, parece evidente que o «facto de existir uma obrigação de pagar impostos incumprida impele a sequente reacção da máquina fiscal com recurso à respectiva execução, mas tal não significa, necessariamente, que o devedor entrou no domínio da violação penal», pois o não cumprimento de uma obrigação para com o Estado, a verificar-se, não pode equivaler automaticamente a uma infracção penal, «sob pena duma instrumentalização do direito penal à revelia de princípios e valores». «Para que o mero incumprimento se transmute em crime é necessário algo mais do que este incumprimento o que só se pode traduzir na existência da violação do valor, ou bem jurídico, como base no qual a norma penal foi construída. No caso concreto do normativo em análise tal valor, como já se referiu, consubstancia-se no desrespeito pela relação de confiança em que assenta a relação fiscal e na circunstância de o arguido não entregar ao estado uma quantia que recebeu como mero substituto.» (AUJ do STJ de 29-04-2015, in DR nº 106, I, de 02-06-2015).

Nessa senda, prescreve o art. 105º, nº 4, alíneas a) e b), do RGIT, relativamente ao crime de abuso de confiança fiscal, que os factos (descritos nos números anteriores) só são puníveis se: a) tiverem decorrido mais de 90 dias sobre o termo do prazo legal de entrega da prestação; b) a prestação comunicada à administração tributária através da correspondente declaração não for paga acrescida dos juros respectivos e do valor da coima aplicável, no prazo de 30 dias após notificação para o efeito.

Com a citada norma da alínea b), introduzida pela Lei 53-A/2006, de 29/12, pretendeu o legislador evitar a proliferação de procedimentos criminais, a melhoria da eficiência do sistema, bem como distinguir em lei expressa o comportamento do arguido cumpridor das suas obrigações declarativas perante a administração fiscal e a segurança social daqueles outros que ocultam tal informação, por não serem actuações com a mesma valoração criminal.

O AUJ do STJ nº 6/2008, de 9-04-2008, pôs termo à controvérsia entretanto gerada quanto à interpretação de tal preceito, fixando jurisprudência nos seguintes termos: «A exigência prevista na alínea b) do n.º 4 do artigo 105.º do RGIT, na redacção introduzida pela Lei 53-A/2006, configura uma nova condição objectiva de punibilidade que, nos termos do artigo 2.º, n.º 4, do Código Penal, é aplicável aos factos ocorridos antes da sua entrada em vigor. Em consequência, e tendo sido cumprida a obrigação de declaração, deve o agente ser notificado nos termos e para os efeitos do referido normativo (alínea b) do n.º 4 do art. 105.º do RGIT)».

Esse segmento uniformizador da jurisprudência foi fundamentado em tal acórdão, nomeadamente, com os seguintes trechos:

«Suportados na letra da lei, mas fazendo apelo a um critério teleológico na sua interpretação e com plena consciência de que o direito criminal se dirige à protecção de valores, ou bens jurídicos, não vislumbramos uma outra intenção do legislador que não a de evitar a criminalização de condutas que podiam ter um mero tratamento de natureza administrativa. Então, a denominada proliferação de inquéritos será evitada dando àquele que assumiu a sua obrigação declarativa perante a Administração Fiscal a possibilidade de regularizar a sua situação tributária.

Os elementos teleológico e histórico convergem, assim, em abono de uma interpretação segundo a qual o legislador terá pretendido descriminalizar o facto nos casos em que, tendo havido declaração da prestação não acompanhada do pagamento, este vem a ser efectuado após intimação da Administração para que o "indivíduo" regularize a sua situação tributária. Pretendeu-se alcançar tal objectivo fazendo surgir para Administração Fiscal a obrigação de notificar o contribuinte em mora (e não em falta de declaração) e para este a condição de pagamento do montante em falta como condição de não accionamento do procedimento criminal pelo crime de abuso de confiança fiscal.

(…) A alteração legal produzida, repercutindo-se na punibilidade da omissão e ligada, de forma inextricável, ao tipo de ilícito é, todavia, algo que é exógeno ao mesmo tipo.

(…) As condições objectivas da punibilidade são aqueles elementos da norma, situados fora do tipo de ilícito e tipo de culpa, cuja presença constitui um pressuposto para que a acção anti-jurídica tenha consequências penais.

(…) As condições objectivas de punibilidade são, assim, circunstâncias que se situam fora do tipo de ilícito e da culpa e de cuja presença depende a punibilidade do facto, ou seja, são um pressuposto para que o actuar anti jurídico importe consequências penais. São condições em que uma ponderação das finalidades extrapenais tem prioridade em face da necessidade da pena. (…) As condições objectivas de punibilidade participam de todas as garantias do Estado de Direito estabelecidas para os elementos do tipo. Jeschek exemplifica com a aplicabilidade da função de garantia da lei penal ou as exigências de prova sobre as mesmas condições.». Constata-se, assim, que só após o decurso de mais de 90 dias sobre o termo do prazo legal de entrega da prestação tributária e, ainda, do não pagamento, no prazo de 30 dias, após notificação para o efeito, da prestação comunicada à administração tributária através da correspondente declaração, acrescida dos juros respectivos e do valor da coima aplicável, é que estão verificados no crime todos os pressupostos indispensáveis para que a punição possa desencadear-se.

Mas será que, no caso em apreço, se mostra verificada a analisada condição objectiva da punibilidade da conduta protagonizada pelo arguido?

Compulsados os autos, verifica-se que a notificação aludida foi efectuada em 26.02.2018 depois de celebrado um acordo entre o Estado e os arguidos – e de pois de efectuado o pagamento de parte da quantia devida -, o qual conferira a estes a possibilidade de regularizar a sua situação tributária, mediante o pagamento da respectiva dívida em prestações. Ora, esse acordo celebrado em entre dois sujeitos de direito, o Estado, na veste de credor, e o privado devedor, importou a não exigibilidade (imediata) do crédito tributário daquele.

Claro que, no plano dos princípios, talvez fosse defensável uma diferente opção do legislador. Na verdade, perante um quadro com os contornos do ora em apreço, o comum senso jurídico poderia levar a considerar que a vigência dum tal acordo obstaria a que o sujeito Estado, agora no pretendido exercício do respectivo jus puniendi, pudesse preencher a condição legalmente imposta para esse exercício, enquanto o respectivo crédito não fosse (tributariamente) exigível, notificando o devedor para o pagamento dum seu crédito que, afinal, não lhe é devido dentro do prazo contido em tal notificação. A admissibilidade, com tais pressupostos, do preenchimento da aludida condição de punibilidade parece equivaler a “normalizar” uma espécie de “esquizofrenia” jurídica do ente Estado, bem como, no limite, poderá violar os princípios da boa-fé e da confiança a que todos os sujeitos de direito estão adstritos, a começar pelo Estado, por serem ínsitos ao estado de direito e, por isso, estruturantes do nosso ordenamento jurídico fundamental.

Todavia, não se pode olvidar a reconhecida autonomia da responsabilidade tributária (pelo imposto devido) face à responsabilidade penal tributária, sendo o crime em causa, um crime omissivo puro, que se consuma no momento em que o agente não entrega a prestação tributária devida, daí ser incontornável o reconhecimento de que o accionamento desta última está objectivamente condicionada à notificação para pagamento dos créditos que são devidos e exigíveis, não sendo defensável, à face da lei, a não verificação de tal exigibilidade, por força do referido acordo, porque o mesmo não tem a virtualidade defendida pelo recorrente de impedir a sua responsabilidade criminal.

Tendo o recorrente sido notificado para pagamento dos montantes em dívida, como foi e não tendo procedido dentro desse prazo legal a tal pagamento, face à lei vigente, tem-se por verificado, o necessário pressuposto da legitimidade da mencionada condição de punibilidade da conduta, ilícita dos arguidos.

Foi o que considerou o acórdão do Tribunal da Relação do Poro de 03.02.2016, embora a propósito de um imposto: «A afirmação do recorrente de que quando em 27/11/2013 foi notificado para, no prazo de 30 dias, proceder ao pagamento do IVA de Dezembro/2012, acrescido dos juros e o mais legal, nos termos do disposto na al. b) do art. 105°, nº 4 do RGIT, já a Administração Tributária tinha autorizado tal pagamento em prestações, estando em curso o plano, sendo verdadeira, é inconsequente e inconclusiva, pois, a partir dela, não formula o recorrente, pelo menos de modo claro, qualquer questão. Se o recorrente pretende fazer derivar desse acordo de pagamento o mesmo objectivo da condição de punibilidade estatuída no na al. b) do art. 105°, nº 4 do RGIT, (…) devendo considerar-se tal condição não verificada quando o acordo é pontualmente cumprido, como acontece no caso dos autos, diremos apenas que essa “equivalência”, podendo o legislador tê-la feito, o certo é que não a fez, e não pode o juiz, a pretexto de interpretação, invadir a competência do legislador.

As realidades são diferentes o que justifica materialmente a diversidade de tratamento jurídico: pagar a prestação acrescida dos juros respectivos e do valor da coima aplicável, no prazo de 30 dias após notificação para o efeito (art.º 105º, n.º4 al. b) do RGIT), não é assimilável ao acordo de pagamento, do mesmo montante em 24 prestações mensais sucessivas. O pagamento imediato como modo de liquidação de uma prestação tributária é um facto que ocorreu numa data determinada; o acordo de pagamento, diferido no tempo, reportando-nos à mesma prestação tributária, só se transforma em pagamento total, que é o que releva no caso, com a liquidação da última prestação, facto que à data da acusação, proferida nos autos em 23.1.2014, ainda não tinha ocorrido e não se pode ficcionar.

Conclui-se, assim, que o acordo de pagamento, entre o devedor da prestação tributária e a AT, não obsta à verificação e funcionamento da condição de punibilidade da conduta, consagrado no art.º 105º, n.º4 al. b) do RGIT.».

Por conseguinte, e por tudo o exposto, entendemos que o pagamento parcial efectuado pelos arguidos não exime os mesmos da responsabilidade criminal que sobre si impende.

Pelo que, e em conclusão, não se verificando quaisquer elementos susceptíveis de integrarem uma causa de exclusão da ilicitude ou da culpa, em face da matéria que resultou provada, resta referir que os arguidos, com a sua conduta, preencheram todos os elementos objectivos e subjectivos do tipo de crime sub judice, cometendo, assim, um crime de abuso de confiança fiscal previsto e punido pelos artigos 6.º, 7.º, n.º 1 e 3, 105.º, n.º 1, 2, 4 e 7 do Regime Geral das Infracções Tributárias.
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A propósito da co-autoria, estatui o art. 26º do C. Penal que “É punível como autor quem executar o facto, por si ou por intermédio de outrem, ou tomar parte directa na sua execução, por acordo ou juntamente com outro ou outros, e ainda quem, dolosamente, determinar outra pessoa à prática do facto, desde que haja execução ou começo de execução”.

Ora, na comparticipação criminosa sob a forma de co-autoria, este acordo não pressupõe a participação de todos na elaboração do plano comum de execução do facto, que não tem de ser expresso, através de qualquer comportamento concludente, e que não tem de ser prévio ao início da prestação do contributo do respectivo co-autor.

É o que se diz no Acórdão do STJ de 19.03.2009 (in www.dgsi.pt): “Essencial à co-autoria é um acordo, expresso ou tácito, este assente na existência da consciência e vontade de colaboração, aferidas aquelas à luz das regras da experiência comum, bem como a intervenção, maior ou menor, dos co-autores na fase executiva do facto, em realização de um plano comum, não sendo senão esse o sentido da locução “tomar parte na sua execução, por acordo ou conjuntamente com outros”.

Esse acordo de execução tanto pode ser extremamente simples como complexo, mas abrange sempre a divisão; através desse acordo os co-autores atribuem-se e aceitam prestar, reciprocamente, as tarefas que lhes estão confiadas, destinadas ao plano comum a concretizar; trata-se de um acordo de vontades dos co-autores acerca do plano de execução e repartição de funções a ele inerente (assim, EDUARDO CORREIA, Direito Criminal, 1953, pág. 253).

Desde que o agente acorde na realização integral do crime, com a consciência de colaboração nele da actividade dos demais, torna-se co-responsável pelos actos que levam ao resultado do crime, desde que não escape ao plano prévio, antes se inscrevendo nele (assim, acórdãos do STJ de 29.03.2006 e 16.11.2005, in www.dgsi.pt).

A ideia central da doutrina do domínio funcional do facto, invocada com larga aceitação para clarificar o conceito de co-autoria, reconduz-se, para ROXIN (citado por MARIA DA CONCEIÇÃO VALDÁGUA, in Inicio da Tentativa do Co-autor, págs. 172 e 173), a que cada co-autor é senhor de todo o facto, delimitado pelo plano criminoso e integrado, portanto, pelo contributo de todos os co-autores, porque tendo tomado sobre si, na repartição de tarefas que acordou realizar com os demais, uma tarefa necessária para a realização do facto, ele tem, também, nas mãos o poder de impedir, através da simples omissão do contributo prometido que o plano comum se realize, daí que os co-autores sejam co-titulares do domínio de todo o facto.

Por força da comunhão de esforços resulta que cada agente responde não apenas por aquilo que concretamente faz, mas pela actuação global dos comparticipantes, pela consciência recíproca da actuação dos comparticipantes.

Segundo FARIA COSTA o acordo prévio parece não ser indispensável, bastando a simples consciência de colaboração para existir a comparticipação. Na verdade refere aquele professor que “Desde que se verifique uma decisão (“por acordo ou juntamente com outro ou outros”) e uma execução também conjunta estaremos caídos na figura jurídica da co-autoria. Todavia, para definir uma decisão conjunta parece bastar a existência da consciência e vontade de colaboração de várias pessoas na realização de um tipo legal de crime juntamente com outro ou outros. É evidente que na sua forma mais nítida tem de existir um verdadeiro acordo prévio – podendo mesmo ser tácito – que tem igualmente que se traduzir numa contribuição objectiva para a realização típica” (Formas de Crime, Jornadas de Direito Criminal, O Novo Código Penal Português e Legislação Complementar, pág. 170).

No vertente caso, os arguidos vêm acusados da prática do crime em co-autoria.

Ora, entendemos que, estando nós na presença de uma pessoa colectiva, não poderemos falar em co-autoria, já que não é possível descortinar qualquer acordo de vontades com o arguido pessoa singular, caindo antes a factualidade julgada como provada no campo da autoria material penal.”.

4. Da apreciação do recurso
O recorrente imputa vários vícios à sentença cuja eventual procedência prejudica a apreciação de outras questões suscitadas.

Entre as questões essenciais a analisar, deverá ter-se em conta o tipo de crime pelo qual o arguido foi acusado e condenado bem como a eventual verificação do vício do artigo 410.º, n.º 2, alínea a) do CPP (insuficiência para a decisão da matéria de facto provada) e a violação do artigo 359.º do CPP (alteração substancial dos factos descritos na acusação).

4.1. Do crime pelo qual o arguido foi acusado e condenado
Como resulta da acusação constante de fls. 67 a 69 dos autos, os arguidos AA e a sociedade “B…,Unipessoal, Lda”, foram acusados de terem cometido, em coautoria material e na forma consumada, um crime de abuso de confiança fiscal previsto e punido nos artigos 105.º, n.º 1, 7.º, n.ºs 1 e 3 do RGIT, artigos 11.º, n.º 1, 26.º e 30.º, n.º 2 do CP.

O crime em causa tem como seus elementos constitutivos a não entrega pelo sujeito passivo do IVA à administração fiscal da prestação tributária de valor superior a 7.500 €, depois de fazer a declaração da sua cobrança e no prazo de 90 dias sobre o termo do prazo legal da entrega da prestação, após ter sido notificado para, no prazo de 30 dias, proceder ao respetivo pagamento, acrescido dos juros respetivos e do valor da coima aplicável.

O não pagamento da prestação tributária nos moldes descrito é punido com pena de prisão até 3 anos ou com multa até 360 dias.

Os elementos referidos, fazem todos eles parte do tipo do crime e são elementos objetivos do ilícito, conforme defende Figueiredo Dias[1].

Já em sintonia com o entendimento de Jescheck[2] o prazo de 90 dias sobre o termo do prazo legal da entrega da prestação, acrescido do prazo para pagamento em 30 dias após a notificação para o pagamento da prestação acrescidos dos juros respetivos e do valor da coima aplicável, deveriam ser encarados, como fazendo parte, como aquele autor designa, de “condições de punibilidade impróprias” (por serem circunstâncias que fundamentam a pena por razões exclusivas de política criminal).

Independentemente da perspetiva acolhida quanto ao enquadramento dos elementos relativos ao decurso dos prazos da entrega devida pelos sujeitos passivos, após a declaração do recebimento de quantias que estavam obrigados a entregar à administração fiscal, as mesmas são reveladoras que, para o legislador, o artigo 95.º da Lei n.º 53-A/2006 (que alterou a redação do artigo 105.º da RGIT e em especial do seu n.º 4), tinha por objetivo último tipificar os elementos do crime garantindo que o Estado recebia, ainda, as quantias que o “cobrador” do IVA tinha arrecadado.

Sendo aquele o objetivo final do legislador, a censura penal e a necessidade da pena, como forma de coação sobre o “cobrador do imposto” só surgem depois de corridos todos os “trâmites” estabelecidos para conseguir o respetivo pagamento, que culminavam com a notificação ao “cobrador” para pagar no prazo de 30 dias a quantia em dívida apurada na devida altura, acrescida dos juros moratórios e da coima aplicável pelo atraso na entrega do IVA devido.

Assume, pois a maior relevância e importância para os responsáveis pelo pagamento do IVA a sua notificação para no prazo de 30 dias efetuarem o pagamento do IVA em falta, acrescido dos respetivos juros moratórios e da coima aplicável. Nesse sentido a lei exige a notificação autónoma dos responsáveis pelo pagamento em dívida, sejam eles o sócio gerente da sociedade em causa, em nome individual, seja a própria sociedade, na pessoa do seu representante legal.

Foi aliás nesse sentido que a administração fiscal (cf. fls. 21 e 22 dos autos) determinou a notificação da sociedade em causa na pessoa do seu gerente AA e pessoalmente o arguido AA.

Ainda em relação ao tipo de crime em causa, é de salientar que o presente recurso apenas foi interposto pelo arguido e não também pela sociedade “B…, Unipessoal, Lda”.

Nessa parte, a sentença recorrida ao julgar como provados os factos constantes dos n.ºs 7 a 13 da matéria de facto, que incriminavam a sociedade em causa e descreviam os elementos de facto em que assentava a respetiva incriminação, indicou os factos suficientes para aplicar a norma jurídica respeitante ao crime em causa tendo em consideração os elementos do respetivo ilícito.

Pouco importava para o ilícito apontado à sociedade, terem o arguido a título individual e a sociedade pago, no prazo de 90 dias, a quantia de 2.614,74, “atirando”, como diz o recorrente o valor debitório relativo ao IVA para patamares inferiores ao de 7.500 €.

O tipo de ilícito, como foi referido e por motivos de orientação de política criminal, só deixa de ser punido, independentemente de maior ou menor culpa da sociedade e dos seus órgãos representativos, da maior ou menor quantia entregue para baixar o patamar da dívida, como resultava da lei, do efetivo pagamento da dívida correspondente aos 9.375,38 €, acrescidos dos juros moratórios e da coima cominada no prazo de 30 dias a contar da notificação para tal efeito da Administração Fiscal.

É certo não ter o tribunal indicado expressamente a razão pela qual não teve em conta a entrega dos 2.694,74 € efetuada pelos arguidos, mas tendo seguido a linha por si considerada correta quanto ao conteúdo dos elementos do crime em causa, não estava obrigado a dissertar sobre o bem ou mal fundado da tese do recorrente e da sociedade em causa.

O entendimento seguido de que o julgador só tem de resolver as questões suscitadas pelas partes, mas não tem de apreciar as questões prejudicadas pela solução dadas a outras, resulta, designadamente, do artigo 608.º, n.º 2 do CPC, aplicável por força do artigo 4.º do CPP.

O tribunal não tem de responder a todos os argumentos aduzidos, pelos arguidos, MP ou assistentes, como tem sido decidido uniformemente pelos nossos tribunais superiores (o que não está aliás em causa, pois a sociedade não interpôs recurso da decisão condenatória), por isso nessa parte nada haveria a apontar à decisão recorrida.
*
4.2. Da insuficiência para a decisão recorrida da matéria de facto dada como provada quanto ao arguido e da alteração substancial dos factos constantes da acusação (artigos 410.º, n.º 2, alínea a) e 359.º, n.º 1 do CPP)

Como foi assinalado no ponto 4.1. deste Acórdão, para que o arguido AA fosse condenado como coautor do crime pelo qual foi acusado, cujos elementos constitutivos globalmente considerados foram referidos, era indispensável constar da acusação, deduzida a título pessoal contra ele, a menção de ter o mesmo sido notificado para, no prazo de 30 dias a contar da notificação, pagar a quantia de 9.375,38 € acrescida dos juros respetivos e do valor da coima aplicável (como constava da certidão de notificação de fls. 22 dos autos).

A sentença recorrida, porém, na matéria de facto, não deu como provado que o arguido havia sido notificado para, no prazo de 30 dias, proceder ao pagamento da quantia em dívida, relativa às quantias retidas a título de IVA (aliás tal factualidade não constava da acusação), mas apenas referiu ter a sociedade “B…, Unipessoal, Lda” sido notificada para esse efeito, embora mencionando que o arguido AA, enquanto legal representante da sociedade arguida, tivesse agido em representação e no interesse da sociedade.

Apesar do referido, a sentença recorrida pretendeu justificar, na fundamentação de direito, ter o arguido AA agido no interesse da sociedade arguida e também no seu próprio interesse, invocando os artigos 6.º e 7.º do RGIT, mas não o podia fazer.

De facto, depois de o julgador ter recebido a acusação do MP, de cujo teor não constava a notificação do arguido para pagar no prazo de 30 dias a quantia em dívida acrescida dos juros moratórios e da coima aplicável, e, portanto, sem ter sido descrito um elemento de facto essencial para o tipo de crime em causa, não podia ter sido considerado tal facto na motivação e na fundamentação de direito para apoiar a condenação do arguido recorrente.

Se é certo ter a sentença reconhecido a falta de invocação de um facto, não se pode dizer que incorreu no vício da alínea a) do n.º 2 do artigo 410.º do CPP, pois esgotou o objeto do processo definido na acusação. O que aconteceu foi o julgador ter considerado na decisão de direito um facto não constante do elenco dos provados.

Os institutos de alteração não substancial ou substancial dos factos não visam colmatar lacunas da acusação ou pronúncia, com origem na desconsideração de elementos que já aquando da respetiva prolação constavam dos autos, imprescindíveis à conformação de ilícito penal. Posição contrária corresponderia a admitir a transformação de uma realidade que, ab initio, por ausência da descrição completa dos respetivos elementos típicos, não configurava crime em conduta penalmente típica.

Perceção diferente não decorre da fundamentação do acórdão do STJ de Fixação de Jurisprudência n.º 17/20015, na parte em que consigna: “Porém, se não é aplicável, nestas situações, o mecanismo do art.º 358.º do CPP, também não será caso de aplicação do art.º 359.º, pois, correspondendo a alteração à transformação de uma conduta não punível numa conduta punível (e, nesse sentido, substancial) ou, como querem alguns, uma conduta atípica numa conduta típica, a verdade é que ela não implica a imputação ao arguido de crime diverso. Pura e simplesmente, os factos constantes da acusação (aqueles exactos factos) não constituem crime, por não conterem todos os pressupostos essenciais de que depende a aplicação ao agente de uma pena ou medida de segurança criminais”.
Por conseguinte, a questão situa-se a montante do preceito convocado (artigo 359.º do CPP), norma que surgiu a justificar a alteração dos factos, prendendo-se, sim, com a estrutura acusatória que, por imposição constitucional, domina o processo criminal e que, grosso modo, se revela no facto de o julgamento se circunscrever dentro dos limites ditados por uma acusação deduzida por entidade diferenciada.

No caso em apreço, o que consta da acusação em relação ao arguido é um "nada jurídico" que não permite a sua punibilidade, precisamente por não vir alegada na acusação o facto pertinente à verificação da condição objetiva de punibilidade, ou seja, que o arguido foi notificado para, no prazo de 30 dias, efetuar o pagamento da quantia em dívida.

Por isso, a consequência num caso, como o presente, em que por ausência da necessária narração dos factos se mostrava a acusação ferida de nulidade e, por conseguinte, deveria, no momento próprio, ter sido rejeitada quanto ao arguido (artigo 311.º, n.º 1, alínea a), e n.º 3, alínea b), do CPP), não pode deixar de ser, na presente fase processual, outra senão a da absolvição do arguido/recorrente.

O arguido AA é, assim, absolvido do crime, independentemente da análise das demais questões por si invocadas, porquanto a procedência do recurso com o fundamento invocado, prejudica a análise e torna irrelevantes as demais questões suscitadas no presente recurso.

III. DECISÃO
Nestes termos e com os fundamentos expostos:

1.Dá-se provimento ao recurso interposto pelo recorrente AA e em consequência, absolve-se o arguido da prática como autor material de um crime de abuso de confiança fiscal previsto e punível pelos artigos 105.º, n.º 4, alínea a) e n.º 7 do RGIT aprovado pela Lei n.º 15/2001, na redação dada pelo artigo 95.º da Lei n.º 53-A/2006.

II. Sem custas.
*
Nos termos e para os efeitos do disposto no artigo 94.º, n.º 2 do CPP consigna-se que o presente Acórdão foi elaborado pela relatora e integralmente revisto pelos signatários, com nota de conformidade por parte do Exmo. Sr. Desembargador Adjunto Dr. Gilberto Cunha, nos termos do artigo 15.º-A do DL 10-A/2020 de 13.3, aditado pelo DL 20/2020, de 1.5..

26 de maio de 2020

Beatriz Marques Borges (Relatora)
Gilberto Cunha (Adjunto)
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[1] Cf. neste sentido DIAS, Figueiredo – “Direito Penal: Questões Fundamentais: A Doutrina Geral do Crime: Parte Geral”. Tomo I. 2.ª edição. Coimbra Editora. 2007. P. 675. ISBN 978-972-32-1523-6.

[2] Cf. “Tratado de Derecho Penal: Parte Geral”. Bosch. Casa Editorial, SA. P. 766. ISBN 84-7162-852-X.