ESTABELECIMENTO COMERCIAL
UNIVERSALIDADE JURÍDICA
PENHOR
ALVARÁ
Sumário

1–Um estabelecimento comercial pode ser objecto de penhor, no seu conjunto, enquanto unidade económica ou universalidade jurídica.

2–Embora tal garantia possa também ser constituída isoladamente sobre alguns dos bens ou direitos que integram o estabelecimento comercial, existem elementos que não podem ser autonomizados para efeitos de constituição de penhor.

3–Um dos elementos que não pode ser separado do estabelecimento comercial, nomeadamente nas farmácias, é o alvará.

4–Tendo as partes declarado em “contrato de financiamento” subscrito pelas mesmas e autenticado notarialmente a constituição de penhor sobre o “estabelecimento comercial denominado Farmácia …,” e não obstante constar também desse contrato a constituição de tal garantia sobre os “direitos emergentes do Alvará”, tal declaração não pode deixar de ser interpretada como tendo sido intenção dos contratantes a constituição de penhor sobre o estabelecimento comercial como um todo, incluindo o respectivo alvará.

Texto Integral

Acordam na 1ª Secção Cível do Tribunal da Relação de Lisboa:


I–Relatório

Nos autos de reclamação de créditos que correm termos por apenso ao processo de insolvência relativos à sociedade “Farmácia …, Lda” foi impugnada a lista de credores reconhecidos pelos credores G…, SA, U…, SA e pela insolvente.

U…, SA, impugnou a lista de credores sustentando a incorrecta qualificação – como garantido – de parte do crédito do Banco …, SA, ora N…, SA, relativamente ao valor de € …, com base em penhor sobre os direitos emergentes do alvará, penhor sobre o estabelecimento comercial de farmácia, hipoteca e penhor de quotas representativas do capital social da sociedade insolvente.
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Foi apresentada resposta à impugnação deduzida pela insolvente, na qual o credor J… reiterou ser devido o montante reconhecido.
O N…, SA, também respondeu à impugnação do seu crédito, sustentando que o penhor invocado consta de documento autenticado, mas, ainda que assim não fosse, a exigência de forma apenas se aplicaria ao penhor de coisas e não de direitos, como é o caso.
Alegou que a invocação de todas as garantias foi realizada em cumprimento do disposto no artº 128º do CIRE.
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Foi realizada tentativa de conciliação e o tribunal proferiu despacho ao abrigo do disposto no artº 136º, nº1, do CIRE, tendo declarado verificados os créditos que não foram objecto de impugnação e bem assim aqueles cuja verificação dependia apenas da apreciação dos elementos já constantes dos autos.

Foi então determinado que o N…, SA, procedesse à junção integral do documento que tinha junto com a resposta à impugnação e após tal junção foi proferida sentença que julgou verificado o crédito reclamado pelo N…, SA e graduou os créditos pelo seguinte modo:

A)–Pelo produto da venda do direito ao trespasse do estabelecimento de farmácia (incluindo o Alvará e os bens móveis integradores do estabelecimento),
1– Em primeiro lugar o crédito garantido por penhor: 
N…, S.A. - € … 
2– Em segundo lugar, rateadamente, os créditos salariais: 
J… - € … (crédito privilegiado)
S… - € … (crédito privilegiado)
J… - € … (crédito privilegiado)
J… - € … (crédito privilegiado)
S… - € … (crédito privilegiado)
F… - € … (crédito privilegiado)
3– Em terceiro lugar: 
I… - € … (crédito privilegiado)
4– Em quarto lugar, rateadamente: 
A… - € … (crédito comum)
(…)
5– Em quinto lugar, rateadamente: 
A … - € … (crédito subordinado)
(…)

B)–Pelo produto da venda dos bens móveis identificados no auto de fls. 6 verso e 7 do Apenso D
1– Em primeiro lugar, rateadamente, os créditos salariais: 
J… - € … (crédito privilegiado)
(…)
2– Em segundo lugar: 
Instituto da Segurança Social, I.P. - € … (crédito privilegiado)
3– Em terceiro lugar, rateadamente: 
A … - € … (crédito comum)
(…)
4– Em quarto lugar, rateadamente: 
A … - € … (crédito subordinado)
(…)
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A… Limited, habilitada como adquirente do crédito reclamado por U…, SA, veio recorrer da sentença supra referida, tendo no final das suas alegações de recurso apresentado as seguintes CONCLUSÕES, que se reproduzem:

A.–A Recorrente considera que o crédito garantido reconhecido ao credor N…, SA. é nulo.
B.–Alvará para o funcionamento constitui apenas um dos diversos elementos que integram o estabelecimento comercial de farmácia. 
C.–O estabelecimento comercial consiste numa universalidade jurídica que aglutina/integra elementos corpóreos e incorpóreos afectos ao exercício de uma atividade comercial. 
D.–Destarte, o penhor constituído apenas sobre o alvará, dissociado, portanto dos demais elementos corpóreos e incorpóreos que integram o estabelecimento comercial, corresponde a uma prestação originariamente impossível, sob pena de se ferir de morte a estrutura do estabelecimento, desintegrando-o e, consequentemente, paralisando-o na sua consecução dos seus fins. 
E.–A douta sentença recorrida deverá ser revogada e considerar que o penhor sobre o alvará é nulo, e consequentemente, o crédito reclamado pelo credor N…, SA, deve ser qualificado como comum. 
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As contra-alegações apresentadas pelo N…, SA, não foram admitidas, por intempestivas.
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O recurso foi admitido como Apelação, a subir nos próprios autos e com efeito meramente devolutivo.
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Foram colhidos os vistos dos Exmºs Adjuntos.
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II–Questões a decidir

É entendimento uniforme que é pelas conclusões das alegações do recurso que se define o seu objecto e se delimita o âmbito de intervenção do tribunal ad quem (artigo 635º, nº 4 e 639º, nº 1, do Código de Processo Civil), sem prejuízo das questões cujo conhecimento oficioso se imponha (artigo 608º, nº 2, ex vi do artigo 663º, nº 2, do mesmo Código). Acresce que os recursos não visam criar decisões sobre matéria nova, sendo o seu âmbito delimitado pelo conteúdo do acto recorrido.
Assim, face das conclusões apresentadas pela recorrente são as seguintes as questões que importa analisar e decidir:
- se o penhor identificado nos autos se encontra ferido de nulidade.
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III–Fundamentação

A)–De Facto             
Os elementos fácticos que foram considerados provados na 1ª Instância são os seguintes:

1– Farmácia …, Lda., pessoa colectiva n.º …, com sede na Rua …, freguesia de …, concelho de …, foi declarada insolvente por sentença de …, transitada em julgado.
2– Foram apreendidos nos autos os bens móveis identificados no auto de fls. 6 verso e 7 do apenso D e o direito ao trespasse do estabelecimento de farmácia – Farmácia …, – incluindo o Alvará nº …, atribuído pelo Infarmed e os bens móveis integradores do estabelecimento.
3– No apenso B foi verificado a favor do Estado – …, um crédito no valor de € …, referente a custas.
4– Em 26.5.2011 Banco …, SA, Farmácia …, Lda., na qualidade de cliente, M…,  D…, N…, e P…, na qualidade de prestadores de garantia celebraram um acordo de financiamento, cuja cópia se mostra a fls. 163 e ss., cujo teor aqui se dá por integralmente reproduzido, nos termos do qual, além do mais, foi acordada a concessão de um crédito até ao montante máximo de € 1…. a favor da cliente, sendo estipuladas como garantias a constituição de hipoteca a favor de um imóvel propriedade dos garantes; penhor de quotas no valor nominal de € 6… representativas do capital social da cliente; penhor do estabelecimento comercial de farmácia denominada Farmácia …, instalado na Rua …, freguesia de … e os direitos emergentes do alvará e/ou outras licenças para funcionamento da farmácia, emitido pelo Infarmed (…) sob o n.º …
5– O mencionado acordo foi objecto de autenticação notarial nos termos vertidos s fls. 294 e verso.
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B)–De Direito
Conforme se referiu supra, são as conclusões das alegações que definem e delimitam, como é sabido, o respectivo objecto e consequente área de intervenção do Tribunal “ad quem”, ressalvando-se as questões que, sendo de conhecimento oficioso, encontrem nos autos os elementos necessários à sua integração.
Assim, atento o teor das conclusões da apelante, há que decidir se, contrariamente ao que foi decidido na 1ª instância, o penhor invocado pelo credor N…, A, é nulo.
Sustentou a recorrente que o penhor de “direitos do alvará” que o credor N…, SA, refere na sua reclamação de crédito é nulo.
Invocou que o alvará para funcionamento constitui apenas um dos diversos elementos que integram o estabelecimento comercial de farmácia, pelo que, o penhor constituído apenas sobre o alvará, dissociado dos demais elementos corpóreos e incorpóreos que integram o estabelecimento, corresponde a uma prestação originariamente impossível.
Concluiu que o penhor é nulo face ao que resulta do disposto nos arts 294º e 401º, nº1, do Código Civil.

Estabelece o primeiro destes artigos que:
“Os negócios jurídicos celebrados contra disposição legal de carácter imperativo são nulos, salvo nos casos em que outra solução resulte da lei.”

Por sua vez, o artigo 401º, nº1, estabelece que:
“A impossibilidade originária da prestação produz a nulidade do negócio jurídico”.
Conforme resulta dos factos provados, encontra-se demonstrado que, em …, o  Banco …, SA, Farmácia …, Lda., na qualidade de cliente, M…, D…, N… e P…, na qualidade de prestadores de garantia, celebraram um acordo de financiamento, cuja cópia se mostra a fls. 163 e ss, nos termos do qual, além do mais, foi acordada a concessão de um crédito até ao montante máximo de € 1…. a favor da cliente, sendo estipuladas como garantias a constituição de hipoteca a favor de um imóvel propriedade dos garantes; penhor de quotas no valor nominal de € 6… representativas do capital social da cliente; penhor do estabelecimento comercial de farmácia denominada Farmácia …, instalado na Rua …, freguesia de … e os direitos emergentes do alvará e/ou outras licenças para funcionamento da farmácia, emitido pelo Infarmed (…) sob o n.º ….

O penhor é uma garantia real que confere ao credor “…o direito à satisfação do seu crédito, bem como dos juros, se os houver, com preferência sobre os demais credores, pelo valor de certa coisa móvel, ou pelo valor de créditos ou outros direitos não susceptíveis de hipoteca, pertencentes ao devedor ou a terceiro” – cfr artigo 666º, nº 1, do Código Civil.

Podem ser dados em penhor coisas móveis, créditos ou outros direitos não hipotecáveis.

Relativamente ao penhor de direitos, face ao disposto no artº 680º do CC, é admitido o penhor de direitos quando estes tenham por objecto coisas móveis e sejam susceptíveis de transmissão.

Para uma mais clara apreciação da questão em apreço, passamos a transcrever o que consta exactamente do contrato outorgado entre as partes no que respeita ao penhor em causa nos autos:
“(…)
Financiamento nº …
(…)

12.–Garantias de Crédito:
(…)
Penhor de Estabelecimento Comercial Farmácia:
1. Penhor de estabelecimento comercial denominado Farmácia …, instalado em …, freguesia de …, concelho de …, cujo contrato de trespasse se anexa (…)
2. Direitos emergentes do Alvará e/ou outras licenças para funcionamento da Farmácia, emitido pelo INFARMED – Instituto Nacional do Medicamento e Produtos de Saúde, IP (…)”
Para efeitos de se apurar o que as partes estabeleceram entre si no que concerne ao que foi dado em penhor com vista a garantir o pagamento da quantia objecto do financiamento concedido pelo Banco …, SA, ora N…, SA, à insolvente Farmácia …, Lda, há que proceder à interpretação do contrato e para tal, há que atender às regras estabelecidas nos arts. 236º e ss. do CC.
O Código Civil define o tipo de sentido negocial decisivo para a interpretação em termos de uma posição objectivista: “A declaração vale com o sentido que um declaratário normal, colocado na posição do real declaratário, possa deduzir do comportamento do declarante” – artº 236º, nº1, do C. Civil. 
Em regra, “releva o sentido que seria considerado por uma pessoa normalmente diligente, sagaz e experiente em face dos termos da declaração e de todas as circunstâncias situadas dentro do horizonte concreto do declaratário, isto é, em face daquilo que o concreto destinatário da declaração conhecia e daquilo até onde ele podia conhecer.
A prevalência do sentido correspondente à impressão do destinatário é, todavia, objecto, na lei, de uma limitação, (…): para que tal sentido possa relevar torna-se necessário que seja possível a sua imputação ao declarante, isto é, que este pudesse razoavelmente contar com ele (…)” – Mota Pinto, Teoria Geral do Direito Civil, Coimbra Editora, 3ª edição actualizada, pags 447/448.
Em caso de dúvida, deve prevalecer, nos contratos onerosos, o sentido “que conduzir ao maior equilíbrio das prestações” – art. 237º.
Nos negócios formais, exige-se que o sentido da declaração tenha “um mínimo de correspondência no texto do respectivo documento, ainda que imperfeitamente expresso” – art. 238º, nº 1 -, podendo, contudo relevar a vontade das partes, apesar dessa falta de correspondência, se “as razões determinantes da forma do negócio se não opuserem a essa validade” – nº 2.

Em sede de interpretação do negócio jurídico, a declaração negocial vale de acordo com o sentido que um declaratário normal, colocado na posição real declaratário, possa deduzir do comportamento do declarante (teoria da impressão do destinatário) – artigo 236º, 1. Mas se o declaratário conhece a vontade real do declarante, é de acordo com ela que vale a declaração emitida (artº 236º, 2). Nesta situação prevalece o sentido subjectivo, tal como foi querido pelo autor da declaração, afastadas que ficam as razões da relevância do sentido objectivo, como sejam a legítima confiança do declaratário e os interesses gerais do comércio jurídico.

Não sendo conhecida a vontade real, a declaração vale com o sentido que um declaratário normal ou razoável (medianamente instruído, diligente, sagaz, inteligente), colocado na posição do real declaratário, possa deduzir do comportamento do declarante, a não ser que este com ela não possa razoavelmente contar (art. 236º, nº 1). Releva o sentido que seria apreendido por um declaratário razoável, em face dos termos da declaração e nas circunstâncias do concreto declaratário. Assim, não será se o declarante razoavelmente, não pudesse contar com esse sentido, pois torna-se necessário que o declarante, actuando com o ónus de adequada declaração, devesse contar com a possibilidade de ao seu comportamento declarativo ser atribuído aquele sentido objectivo. “Na interpretação dos negócios jurídicos prevalece aquele sentido objectivo que se obtenha do ponto de vista do declaratário concreto, mas supondo-se uma pessoa razoável” (Manuel de Andrade, Teoria G. da Relação Jurídica, II, 312).

Como se viu, nos negócios formais, a teoria da impressão do destinatário sofre alguma adaptação objectiva, no sentido de que a declaração não pode valer com um sentido que não tenha um mínimo de correspondência no texto do documento, ainda que imperfeitamente expresso, a não ser que seja essa a real vontade das partes e não se lhe oponham as razões determinantes da forma. O sentido hipotético da declaração que deve prevalecer no quadro objectivo da respectiva interpretação não pode prescindir de um mínimo de correspondência no texto do documento, como decorrência do carácter solene do negócio. Vale o sentido objectivo da declaração revelada no texto do documento. A teoria da impressão do destinatário, de certo modo, cede à teoria da manifestação; o que releva essencialmente é o sentido colhido no texto do documento.

Analisando o texto que corporiza a declaração negocial, tem que se concluir, à luz das regras supra referidas, que da mesma resulta a intenção das partes de constituir penhor a favor do credor reclamante ora recorrido não só sobre “os direitos emergentes do alvará”, mas sobre todo o estabelecimento comercial.

O alvará é um documento que serve de título aos actos de autoridades que decidem de forma favorável pretensões várias, licenças e autorizações e que têm, normalmente, como pressuposto um interesse público.

Como se refere no Ac. do STJ de 29/10/2019, relator: Cons. Ricardo Costa e que pode ser consultado in www.dgsi.pt «O chamado “direito ao alvará” de farmácia e a sua relação com a farmácia como estabelecimento-empresa têm sido merecedores de alguns equívocos na sua apreciação jurídica. Para a sua clarificação, teremos que lançar mão do DL 307/2007, de 31 de Agosto, que estabelece o regime jurídico das farmácias de oficina, sendo a sua vigência a pertinente para se aplicar ao estabelecimento de farmácia da insolvente.
Esse regime impõe um controlo público para a instalação e exploração lícitas das actividades e serviços «de saúde e de interesse público» (art. 2º) prosseguidos pelas farmácias. Esse controlo cabe ao «Infarmed – Autoridade Nacional do Medicamento e Produtos, I.P.» (antes: Instituto Nacional da Farmácia e do Medicamento) e faz-se originariamente através de um procedimento de «licenciamento», composto por concurso para pré-selecção dos candidatos e emissão de “alvará” (requerido pelo particular interessado). A atribuição de “alvará” é pressuposto para abertura ao público e é emitido em nome e em benefício do proprietário da farmácia, ainda que sempre imputado às condições concretas de funcionamento e localização da farmácia (art. 25º, 1-4, 6).
Esse procedimento conduz à prática de um acto administrativo[6] da Administração Pública Estadual indirecta, na modalidade de acto primário permissivo, e configura uma típica autorização: “acto pelo qual um órgão da Administração permite a alguém o exercício de um direito ou de uma competência preexistente”; “alguém é titular de um direito subjectivo, mas a lei estabelece que esse direito só pode ser exercido mediante autorização prévia, dada caso a caso pela autoridade administrativa competente, pelo que o particular, se pretende exercer o seu direito, tem de dirigir-se à Administração Pública, requerendo que lhe seja conferida autorização para esse fim. O direito pertence ao particular, não é a autorização que lho confere: ele já é titular do direito, mas o respectivo exercício está condicionado pela necessidade de obter uma autorização prévia da Administração Pública”[7]. Em suma, sendo o particular titular do direito de propriedade do estabelecimento de farmácia e dos poderes e faculdades jurídicos inerentes que lhe permitem a exploração e gestão das actividades típicas do objecto desse estabelecimento, contudo, o exercício desses poderes e faculdades só é legítimo se e depois do interesse privado subjacente ser fiscalizado pelo interesse público com que potencialmente se confronta e se deve equilibrar[8].
Passando em sentido positivo esse teste de controlo público, que incide sobre os requisitos legais de aptidão e funcionamento e aspira a uma declaração de conformidade ou não conformidade[9], o “alvará” corresponde ao título (sob a forma de documento) constitutivo da autorização para o exercício lícito, na alçada público-administrativa, da realização e exploração (originariamente pelo proprietário) da actividade de farmácia[10].»
Diz-se ainda ali que: «O “alvará” emitido ou averbado não é um elemento ou bem ou meio empresarial do estabelecimento de farmácia enquanto organização produtiva. Antes se radica numa situação jurídica necessária à prossecução da actividade empresarial e que acompanha a circulação negocial da empresa. É requisito (fundante e condicionante) para o aviamento objectivo da empresa. Essa situação jurídica – e o “alvará” em que se constitui como seu título executivo-instrumental – tem valor económico-patrimonial (muito relevante, por corresponder a autorização pública insuprível) e este valor é parte decisiva do valor de negociação ou de mercado do estabelecimento de farmácia concreto – sendo esse valor autonomizável e ponderável enquanto parte do respectivo valor de aviamento”.»
Partindo destes elementos e ainda com base nas regras de interpretação negocial supra referidas, concluiu-se no mesmo Acórdão que: «Corresponde ao entendimento de um declaratário normal, diligente e experiente, colocado na posição do declaratário concreto e tendo em conta o comportamento dos declarantes (art. 236º, 1, CCiv.), interpretar a cláusula de constituição de penhor sobre “os direitos emergentes do alvará para funcionamento” de uma farmácia, no âmbito e para o efeito da garantia de um mútuo bancário destinado à prossecução do objecto do estabelecimento farmacêutico, como um penhor sobre o estabelecimento como um todo (admissível e válido à luz do art. 280º do CCiv.), necessariamente privilegiado com essa condição público-administrativa para o respectivo exercício empresarial, devidamente executada pelo “alvará” emitido ou averbado, e não sobre um título que não é susceptível de domínio e apropriação nem transmissível, ainda que com valor integrado no goodwill do estabelecimento susceptível de avaliação. Trata-se igualmente de sentido interpretativo com correspondência objectiva abrangida pelo texto do documento que formaliza o mútuo («mínimo de correspondência», de acordo com o art. 238º, 1, do CCiv.).»

Com efeito, a licença que constitui o alvará atribui um direito que não tem por objeto certa coisa móvel, sendo que, conforme se viu supra, o artº 680º do C. Civil estabelece que só é admissível o penhor de direitos quando estes tenham por objecto coisas móveis e sejam susceptíveis de transmissão. O objecto do alvará é uma declaração de conformidade do estabelecimento, in casu, de farmácia com os requisitos legais de funcionamento.
Deste modo e como se referiu no Ac. da Rel. de Coimbra de 27-04-2017, in www.dgsi.pt, acórdão esse referido na sentença em recurso: “O penhor do alvará de farmácia é nulo, por estar legalmente impossibilitada, dada a natureza desta licença, a sua venda ou transmissão isolada do estabelecimento que detém aquela. (arts.280º, nº1, 401º, nº1 e 680º do CC.)”

Todavia, no caso sub judice e pelos fundamentos referidos, não pode deixar de se concluir que foi intenção das partes constituir penhor sobre o estabelecimento como um todo. É isso, inclusive, que consta plasmado no documento subscrito e que foi objecto de autenticação notarial, título bastante para efeitos de constituição do penhor em apreço – cfr arts 18.º, n.º 4, do Decreto-Lei n.º 307/2007, de 31 de Agosto e 681º, nº1, do C. Civil.
Foi o estabelecimento que foi apreendido para a massa insolvente.
Deve, pois, manter-se a sentença recorrida, devendo o recurso ser julgado improcedente.
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IV–Decisão

Nestes termos, acordam os Juízes desta 1ª Secção do Tribunal da Relação de Lisboa em julgar totalmente improcedente a apelação e, consequentemente, mantêm--se a decisão recorrida.
Custas pela Apelante – artº 527º, nºs 1 e 2, do C.P.Civil.
Registe e notifique.


                                              
Lisboa, 12/05/2020   

   
Manuela Espadaneira Lopes
Fernando Barroso Cabanelas
Paula Cardoso