IMPENHORABILIDADE RELATIVA
IRS
REEMBOLSO
RETRIBUIÇÃO
Sumário


A proteção prevista no artigo 738.º, n.ºs 1 e 3, do CPC, através da impenhorabilidade relativa que estabelece, deve estender-se ao crédito relativo ao reembolso de IRS, decorrente de descontos operados em excesso no vencimento do contribuinte, desde que a quantia em causa de destine a assegurar subsistência do executado e do seu agregado familiar. (sumário da relatora)

Texto Integral


Acordam na 1.ª Secção Cível do Tribunal da Relação de Évora:

1. Relatório

Por apenso à ação executiva para pagamento de quantia certa movida por B…, Plc., na qual I…, Lda. veio a ser habilitada para prosseguir a execução no lugar do exequente, o executado A…, notificado da penhora do valor de € 3276,12 relativo ao reembolso do IRS respeitante ao ano de 2018, deduziu incidente de oposição à penhora.
Alega que, à data da penhora, o valor em causa de encontrava já liquidado e em fase de reembolso, assim não estando já na disposição da Autoridade Tributária; acrescenta que a penhora incide sobre a totalidade do reembolso, o qual se mostra necessário à sua subsistência, dado que se encontra desempregado, não aufere subsídio de desemprego e padece de problemas de saúde que exigem medicação regular, afirmando que o valor em causa se mostra impenhorável, nos termos do artigo 738.º do Código de Processo Civil; sustenta, ainda, que a quantia exequenda em dívida não é a indicada no auto de penhora, pelos motivos que expõe.
Por despacho de 30-09-2019, foi indeferida liminarmente a oposição à penhora, nos termos seguintes:
A presente oposição à execução é manifestamente improcedente, por vários motivos que passamos a expor sucintamente.
Primeiro, porque, para efeitos de penhora, é irrelevante que o valor de reembolso de IRS esteja ou não liquidado, processado e em fase de reembolso. De facto, o que importa é que se trata de um crédito do Executado ou, se quisermos, de uma quantia monetária pertencente ao Executado. Carece de fundamento pretender-se eximir tal quantia da penhora com o argumento falacioso de que o reembolso do IRS já estava em execução.
Segundo, não se trata de vencimento, nem de nenhuma “regalia social”. Regalias sociais são os subsídios que a Segurança Social paga. Pelo que se não aplica aqui o artigo 738.º do Código de Processo Civil.
Terceiro, o incidente de oposição à penhora não é o meio próprio para discutir questões de subsistência do Executado, nem da liquidação da quantia exequenda – cfr. artigos 784.º n.º 1 do Código de Processo Civil – de resto, já suscitadas em sede de execução.
Assim sendo, e nos termos do artigo 590.º n.º 1 do Código de Processo Civil, o Tribunal indefere liminarmente a petição inicial.
Custas a cargo do Opoente (artigo 527.º n.ºs 1 e 2 do Código de Processo Civil).
Registe-se e notifique-se.
Inconformado, o executado A… interpôs recurso deste despacho, pugnando para que seja revogado e formulando as seguintes conclusões:
«A) Entende o Apelante que, em face da petição apresentada, e prova documental junta deveria a sentença ter sido diversa, e a petição aceite e deferida;
B) Ademais, a douta sentença afere de falta de pronúncia, dado que Tribunal a quo não se pronunciou sobre os argumentos apresentados e fundamentados, indeferindo liminarmente a PI.
C) Estão preenchidos os requisitos dos artigos 784.º e 738.º, n.º 1 do CPC
D) O Opoente, aqui Apelante, na sua oposição deduziu vários fundamentos para que a oposição prosseguisse, designadamente a extensão da penhora que incidiu sobre o reembolso do IRS de 2018, quantia que o opoente/recorrente estava a aguardar,
E) Este reembolso de IRS correspondia a parte do seu vencimento que foi retido e cobrado indevidamente pelo Estado
F) Tendo sido decretado a sua devolução no ano fiscal seguinte, ano em que o Recorrente já não possuía quaisquer rendimentos e que era essencial para assegurar a sua vida e subsistência.
G) O Executado, aqui Apelante, estava a aguardar esse valor para os meses transatos e imprescindível para assegurar a sua subsistência e os seus cuidados de saúde,
H) Encontrando-se desempregado, sem rendimentos, pois não lhe foi concedido o subsídio de desemprego - Docs. Juntos à PI.
I) Acresce os problemas graves de saúde de que padece o opoente, ora Recorrente, que em 3 de Janeiro de 2018 teve um enfarte agudo do miocárdio.
J) O Tribunal a quo não se manifestou sequer sobre essa prestação que foi totalmente penhorada nem sequer equacionou a possibilidade de a reduzir para um mínimo.
K) Dado que era uma prestação que o Opoente estava a aguardar para fazer face às despesas identificadas e saldar empréstimo de quem o ajudar nos últimos 7 meses; repartindo a prestação por 7 meses, que representam, chega-se a um valor muito abaixo do salário mínimo nacional e por isso também da impenhorabilidade parcial da dita retribuição.
L) Pronúncia que o tribunal deveria ter efetuado mas que arredou, coartando a possibilidade do Executado exercer o seu direito em sede de oposição à penhora.
M) Foi vedado a possibilidade do expositivo e contraditório do ora Opoente violando a sentença a quo o teor do artigo 3.º do CPC
N) E também os artigos 784.º e 738.º CPC, cujos fundamentos se encontravam preenchidos para a prosseguimento do Incidente,
O) Designadamente sobre a extensão da penhora e a análise da impenhorabilidade da prestação, ou ainda na sua eventual redução.»
Não foram apresentadas contra-alegações.
Face às conclusões das alegações do recorrente e sem prejuízo do que seja de conhecimento oficioso, cumpre apreciar se deve ser determinado o prosseguimento do incidente de oposição à penhora.
Dispensados os vistos, cumpre decidir.


2. Apreciação do objeto do recurso

Vem posto em causa na apelação o despacho que indeferiu liminarmente o incidente de oposição à penhora deduzido pelo apelante, por se ter considerado verificada a sua manifesta improcedência.
Entendeu a 1.ª instância que, para efeitos de penhora do valor relativo ao reembolso de IRS, não assume relevância a circunstância, invocada pelo executado, de se encontrar o montante liquidado em fase de reembolso; mais considerou não se encontrar a quantia penhorada abrangida pela previsão do invocado artigo 738.º do Código de Processo Civil; reputou-se, ainda, deslocadas no âmbito do incidente de oposição à penhora as demais questões suscitadas.
Discordando deste entendimento, sustenta o apelante que deveria ter sido determinado o prosseguimento do incidente, considerando que o reembolso penhorado configura uma parte indevidamente retida do salário auferido pelo executado e que, por esse motivo, lhe são aplicáveis os limites à penhorabilidade definidos pelo artigo 738.º, n.º 1, do Código de Processo Civil, defendendo que tal impõe se aprecie a extensão com que a penhora foi efetuada, o que constitui fundamento da oposição deduzida.
Vejamos se lhe assiste razão.
O incidente de oposição à penhora, regulado nos artigos 784.º e 785.º do Código de Processo Civil, configura um dos meios previstos na lei de reação pelo executado ou seu cônjuge (cf. artigo 787.º, n.º 1, do citado código) contra penhora considerada ilegal.
Sob a epígrafe Fundamentos da oposição, o artigo 784.º, no seu n.º 1, elenca as situações que podem constituir fundamento de oposição à penhora, a saber: a) inadmissibilidade da penhora dos bens concretamente apreendidos ou da extensão com que ela foi realizada; b) imediata penhora de bens que só subsidiariamente respondam pela dívida exequenda; c) incidência da penhora sobre bens que, não respondendo, nos termos do direito substantivo, pela dívida exequenda, não deviam ter sido atingidos pela diligência.
Regulando o processamento do incidente, dispõe o artigo 785.º, n.º 2, do Código de Processo Civil, que o incidente segue os termos dos artigos 293.º a 295.º, aplicando-se ainda, com as necessárias adaptações, o disposto nos n.ºs 1 e 3 do artigo 732.º, preceito do qual decorre que há lugar a despacho liminar, devendo a oposição à penhora ser liminarmente indeferida quando: a) tiver sido deduzida forma do prazo; b) o fundamento não se ajustar ao disposto no artigo 784.º, n.º 1; c) seja manifestamente improcedente.
A 1.ª instância indeferiu liminarmente o incidente por manifesta improcedência, o que vem questionado na apelação e cumpre reapreciar.
Em sede de processo executivo, encontra-se regulado um regime de proteção dos meios necessários ao sustento do devedor e do seu agregado familiar, designadamente por via da definição de bens total ou parcialmente impenhoráveis, os quais não respondem pelo cumprimento da obrigação exequenda.
É sabido que o património do devedor constitui a garantia geral das obrigações, estatuindo o artigo 601.º do Código Civil que, pelo cumprimento da obrigação, respondem todos os bens do devedor suscetíveis de penhora, sem prejuízo dos regimes especialmente estabelecidos em consequência da separação de patrimónios, princípio geral que se encontra reafirmado no artigo 735.º, n.º 1, do Código de Processo Civil, ao dispor que estão sujeitos à execução todos os bens do devedor suscetíveis de penhora que, nos termos da lei substantiva, respondem pela dívida[1]. Resulta destes preceitos que os bens impenhoráveis se encontram excluídos da execução, não respondendo pelo cumprimento da obrigação.
Os artigos 736.º, 737.º e 738.º do Código de Processo Civil indicam, respetivamente, os bens absoluta ou totalmente impenhoráveis, os bens relativamente impenhoráveis e os bens parcialmente penhoráveis.
Entre os casos de penhorabilidade parcial, previstos no indicado artigo 738.º, encontram-se os vencimentos, salários, prestações periódicas pagas a título de aposentação ou de qualquer outra regalia social, seguro, indemnização por acidente, renda vitalícia, ou prestações de qualquer natureza que assegurem a subsistência do executado, sendo impenhoráveis dois terços da parte líquida, tendo como limite máximo o montante equivalente a três salários mínimos nacionais à data de cada apreensão e como limite mínimo, quando o executado não tenha outro rendimento, o montante equivalente a um salário mínimo nacional, não se aplicando esta restrição à penhorabilidade das aludidas prestações quando o crédito exequendo for de alimentos, caso em que é impenhorável a quantia equivalente à totalidade da pensão social do regime não contributivo; também no caso da penhora de dinheiro ou de saldo bancário se mostra impenhorável o valor global correspondente ao salário mínimo nacional ou, tratando-se de obrigação de alimentos, a quantia equivalente à totalidade da pensão social do regime não contributivo. Permite, ainda, o n.º 6 do referido artigo 738.º ao juiz que, excecionalmente e a requerimento do executado, ponderados o montante e a natureza do crédito exequendo, bem como as necessidades do executado e do seu agregado familiar, reduza, por período que considere razoável, a parte penhorável dos rendimentos e mesmo, por período não superior a um ano, os isente de penhora.
Da análise deste regime resulta que se encontram excluídos da execução os bens absolutamente indispensáveis ao sustento do executado e do seu agregado familiar[2], “por estarem em causa interesses vitais do executado”[3], o que constitui um meio de tutela da dignidade da pessoa humana.
Visando evitar que o executado fique desprovido de recursos para o seu sustento e do seu agregado familiar, em resultado da realização de penhora, este regime constitui uma decorrência do princípio da dignidade da pessoa humana plasmado no artigo 1.º da Constituição da República Portuguesa.
O executado invoca a inadmissibilidade da penhora da quantia de € 3276,12, relativa ao reembolso do IRS respeitante ao ano de 2018, por entender que se mostra impenhorável face aos limites fixados no artigo 738.º do Código de Processo Civil, preceito que a 1.ª instância considerou inaplicável à penhora do reembolso em causa.
Sob a epígrafe Bens parcialmente penhoráveis, dispõe o n.º 1 do citado artigo 738.º o seguinte: São impenhoráveis dois terços da parte líquida dos vencimentos, salários, prestações periódicas pagas a título de aposentação ou de qualquer outra regalia social, seguro, indemnização por acidente, tenda vitalícia, ou prestação de qualquer natureza que assegurem a subsistência do executado.
Analisando o âmbito de aplicação deste preceito, verifica-se que se reporta a prestações de qualquer natureza que assegurem a subsistência do executado, visando a proteção do sustento do executado e do seu agregado familiar, através da impenhorabilidade relativa que estabelece.
Esta proteção estende-se às quantias em dinheiro e aos depósitos bancários, conforme dispõe o artigo 739.º, do mesmo código, ao estatuir o seguinte: São impenhoráveis a quantia em dinheiro ou o depósito bancário resultantes da satisfação de crédito impenhorável, nos mesmos termos em que o era o crédito originário. Decorre deste preceito a equiparação das quantias em dinheiro e dos depósitos bancários aos créditos impenhoráveis, designadamente aos previstos no n.º 1 do citado artigo 738.º, se resultarem da satisfação de tais créditos, por se presumir igualmente se destinarem a assegurar a subsistência do executado.
Estando em causa um crédito resultante do reembolso de IRS devido ao executado, o mesmo tem origem em deduções operadas no vencimento ou salário pelo mesmo auferido no ano a que respeita, cujo montante total veio a ser considerado excessivo pela Autoridade Tributária, a qual procede ao reembolso do saldo positivo apurado.
Não poderá, assim, ignorar-se que, na origem ao crédito em apreciação, se encontram os aludidos descontos operados no vencimento ou salário do executado, conforme defende na apelação, devendo ser acautelada a possibilidade de se destinar aquele crédito à mesma finalidade, ou seja, a assegurar a subsistência do executado.
Assim sendo, deverá a proteção prevista no artigo 738.º, n.ºs 1 e 3, do CPC, através da impenhorabilidade relativa que estabelece, estender-se ao crédito relativo ao reembolso de IRS, desde que destinado a assegurar subsistência do executado.
Neste sentido, cf. o acórdão da Relação de Coimbra de 13-11-2019 (relatora: Maria João Areias), proferido no processo n.º 3739/12.4TJCBR-C.C1 (publicado em www.dgsi.pt), no qual se considerou o seguinte:
O reembolso de IRS constituiu um crédito do devedor sobre as Finanças, constituindo o direito do contribuinte a receber determinada quantia a título de IRS por parte da Administração Fiscal, tendo em conta o escalão de IRS em que se situa, as deduções que lhe foram sendo efetuadas a título de retenção na fonte e a composição do seu agregado familiar.
O direito a reembolso a título de IRS significa que as retenções que mensalmente lhe foram sendo feitas por conta de IRS no vencimento do executado, o foram em montante superior ao devido e apurado a final. O montante a devolver respeita a vencimento da executada que lhe foi descontada indevidamente.
Assim sendo, também nesta situação se nos afigura que este crédito a título de reembolso de IRS terá de assumir a natureza do facto que lhe deu origem.
Ora, estando em causa a devolução pela Autoridade Tributária de montante relativo a descontos operados em excesso no vencimento do executado e alegando o apelante factualidade com base na qual sustenta a inadmissibilidade da penhora efetuada ou da extensão com que foi realizada, não poderá concluir-se, a título liminar, pela manifesta improcedência do incidente, antes cabendo apreciar o fundamento de oposição à penhora apresentado.
Nesta conformidade, cumpre julgar procedente a apelação e determinar o prosseguimento do incidente de oposição à penhora.

Em conclusão:
A proteção prevista no artigo 738.º, n.ºs 1 e 3, do CPC, através da impenhorabilidade relativa que estabelece, deve estender-se ao crédito relativo ao reembolso de IRS, decorrente de descontos operados em excesso no vencimento do contribuinte, desde que a quantia em causa de destine a assegurar subsistência do executado e do seu agregado familiar.

3. Decisão

Nestes termos, acorda-se em julgar procedente a apelação e, em consequência, determinar o prosseguimento do incidente de oposição à penhora, revogando o despacho recorrido.
Sem custas.
Notifique.
Évora, 27-02-2020
Ana Margarida Leite (relatora)
Cristina Dá Mesquita
José António Moita
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[1] A lei processual devolve à lei substantiva a definição do âmbito dos bens sobre que pode recair a execução (cf. Fernando Amâncio Ferreira, Curso de Processo de Execução, 6.ª edição revista e atualizada, Coimbra, Almedina, 2004, p. 169).
[2] Cf. Antunes Varela, Das Obrigações em Geral, volume II, 4.ª edição revista e atualizada, Coimbra, Almedina, 1990, p. 144.
[3] José Lebre de Freitas (A Ação Executiva, 7.ª edição, Coimbra, Gestlegal, 2017, p. 250-252), explica: “Impenhoráveis por estarem em causa interesses vitais do executado são aqueles bens que asseguram ao seu agregado familiar um mínimo de condições de vida (bens imprescindíveis a qualquer economia doméstica que se encontrem na residência permanente do executado: art. 737-3), são indispensáveis ao exercício da profissão do executado (instrumentos de trabalho e objetos indispensáveis ao exercício da sua atividade ou à sua formação profissional: art. 737-2), constituem uma parte do rendimento do seu trabalho por conta de outrem ou se reputam indispensáveis ao seu sustento (art. 738, n.ºs 1 e 5), à sua integridade física (instrumentos e objetos indispensáveis aos deficientes e ao tratamento de doentes: art. 736-f) ou à sua personalidade moral”. António Menezes Cordeiro (Direito das Obrigações, 1.º volume, reimpressão da 1.ª edição de 1980, Lisboa, Associação Académica da Faculdade de Direito de Lisboa, 1986, p. 165) esclarece que “a lei, preocupada em proteger a subsistência e a dignidade do devedor, subtrai à responsabilidade determinados bens, ditos, por isso, bens impenhoráveis”.