TRANSACÇÃO JUDICIAL
SENTENÇA HOMOLOGATÓRIA
TÍTULO EXECUTIVO
Sumário

1. A transacção formulada em processo judicial, não dispensa o juiz de proceder à sua homologação, apreciando a sua validade, quer no que respeita ao seu objecto, quer no que respeita à qualidade das pessoas nela intervenientes.
2. É a sentença de homologação da transacção que constituirá o título executivo.
(Sumário do Relator)

Texto Integral

Sumário:

(…)

Acordam os Juízes da 2.ª Secção Cível do Tribunal da Relação de Évora:

No Juízo de Execução de Setúbal, (…), (…) e (…) instauraram, em 08.05.2019, execução de decisão judicial condenatória contra (…), para pagamento da quantia de € 22.126,74, invocando como título executivo “acordo homologado por sentença de 21 de Janeiro de 2002, já transitado em julgado.”
Porém, o requerimento foi rejeitado por falta de título executivo, porquanto inexistia sentença homologatória da transacção celebrada.

Deste despacho recorrem os exequentes, concluindo:
I. A decisão sob escrutínio, nega a condição de título executivo ao documento junto aos autos, proveniente de uma acção declarativa.
II. De facto, parece ter, o juiz da causa originária, ou a secção, olvidado concluir o processo após o decurso do prazo de auscultação do autor ausente, e parece não ter sido proferida sentença condenando as partes a cumprir o que elas próprias acordaram. Nomeadamente, o réu devedor, assumiu a dívida, em montante, e propôs-se fazer o seu pagamento em prestações em número e valor determinados, com precisas datas de vencimento das prestações.
III. Ainda assim, o Mm.º Juiz a quo da execução, que prolatou a decisão ora posta em crise, interpretou o art. 46.º, n.º 1, al. b), do CPC antigo, aplicável a estes autos, com demasiadas restrições.
IV. Não estamos, perdoe-se-nos a menção, no âmbito do Direito Penal em que os tipos de crime não admitem interpretação extensiva.
V. O princípio da tipicidade e da taxatividade em direito civil, mesmo em direito adjectivo, permite mais ampla interpretação.
VI. Uma declaração de dívida e uma promessa de pagamento feitas perante juiz, em audiência formal, mesmo que ainda não homologada por razões que só são da responsabilidade do tribunal, não pode deixar de ser considerado título executivo à luz do antigo art. 46.º, n.º 1, al. b), do CPC, vigente na data da transacção em juízo, norma obviamente violada pelo Mm.º Juiz a quo da execução.

Não foram produzidas contra-alegações.
Dispensados os vistos, cumpre-nos decidir.

Está documentalmente demonstrado nos autos o seguinte:
1. O título executivo oferecido consiste em cópia de acta de audiência de julgamento ocorrida em 21.01.2002, na Acção ordinária n.º 43/99, da Vara Mista de Setúbal, na qual era Autor (…) e Réu (…).
2. Do teor dessa acta, consta o seguinte:
«De viva voz e publicamente, após identificar o processo, procedi à chamada das pessoas que nele devem intervir. Verifiquei encontrarem-se:
PRESENTES: Todas as pessoas para este acto convocadas, COM EXCEPÇÃO do Autor e das testemunhas do Autor (…).
Comunicado verbalmente à Mm.ª Juiz o rol dos presentes, foi declarada aberta a audiência.
Nesta altura, pela Mm.ª Juiz, foi tentada a conciliação das partes, tendo as mesmas dito estarem dispostas a transigir sobre o objecto da lide, o que fizeram nos seguintes termos:

O réu compromete-se a pagar ao autor a quantia de € 24.850,11 (…), ou 4.982.000$00 (…).
O pagamento será efectuado em prestações mensais de € 2.493,99 (…), ou 500.000$00 (…) cada uma, sendo a última de € 2.354,33 (…), ou 472.000$00 (…), que terão início no corrente mês de Janeiro de 2002 e as seguintes até ao fim de cada mês.
O não pagamento de qualquer das prestações implica o vencimento das restantes.
O pagamento será efectuado através de transferência de conta bancária para a conta de que é titular o autor junto da Caixa Agrícola do Guadiana Interior – Balcão de Serpa, com o seguinte NIB (…).
As custas em dívida a juízo são suportadas em comum e partes iguais prescindindo das de parte e de procuradoria na parte disponível.
*
Seguidamente, a Mm.ª Juiz proferiu o seguinte:
DESPACHO
Uma vez que o ilustre mandatário do autor não tem poderes especiais para transigir, determino se notifique o autor, nos termos do Art. 1163.º do Código Civil, considerando-se ratificados os actos praticados pelo ilustre mandatário caso nada diga no prazo de 10 dias.
Notifique.»
3. Não foi proferida sentença homologatória da transacção.

Aplicando o Direito, pretendem os Recorrentes enquadrar o documento oferecido como título executivo na al. b) do n.º 1 art. 46.º do Código de Processo Civil de 1961, na redacção em vigor na época da formulação da transacção, a que corresponde o actual art. 703.º, n.º 1, al. b), do Código de Processo Civil – documentos exarados ou autenticados, por notário ou por outras entidades ou profissionais com competência para tal, que importem constituição ou reconhecimento de qualquer obrigação.
A questão é que a transacção, embora seja a fonte das obrigações constituídas pela parte, nos termos do art. 1248.º do Código Civil, não dispensa a homologação judicial quando efectuada no âmbito de uma causa judicial pendente, acto este que se destina a apreciar a validade da transacção, quer no que respeita ao seu objecto, quer no que respeita à qualidade das pessoas nela intervenientes, como exigido pelo art. 300.º, n.º 3 do Código de Processo Civil de 1961, na redacção em vigor à data dos factos.,
E é essa sentença de homologação judicial que constituirá o título executivo depois do seu trânsito em julgado, salvo se o recurso contra ela interposto tiver efeito meramente devolutivo – artigo 704.º, nº 1, do actual Código de Processo Civil, a que corresponde o artigo 47.º, nº 1, do anterior diploma.
A propósito desta questão, Alberto dos Reis escreveu o seguinte: «Claro que a sentença é indispensável. Não basta o acto das partes em si (a confissão, a desistência, a transacção), para que a instância se extinga e a acção termine. Este efeito produz-se através da sentença homologatória.» E mais adiante, a propósito do papel do juiz no julgamento da confissão, desistência ou transacção, define-o nos seguintes termos: «examinar se o acto é válido, quer em atenção ao seu objecto, quer em atenção à qualidade das pessoas. A isto se circunscreve, em princípio, o poder de apreciação do tribunal. (…) Limita-se a apurar se o acto de vontade é válido; desde que se certifique da validade, tem de proferir sentença de absolvição ou de condenação nos precisos termos da declaração de vontade da parte ou das partes.»[1]
Precisamente, este é o acto que inexiste no caso dos autos: não está proferida a sentença de homologação, estando em aberto, ainda, a questão da validade da transacção formulada em 21.01.2002, quer no que respeita ao seu objecto, quer no que respeita à qualidade das pessoas que nela intervieram.
E obviamente que a discussão da aplicabilidade da alínea b) do n.º 1 do artigo 46.º do Código de Processo Civil de 1961 é aqui deslocada – obviamente, inexistiu o acto do magistrado que a lei impunha em ordem à exequibilidade do acto.
De resto, como correctamente se aponta na decisão recorrida, “a obtenção de título executivo teria sido conseguida com a apresentação de um requerimento no processo declarativo, para que no mesmo fosse proferida a sentença homologatória que se deveria seguir ao decurso do prazo assinalado no despacho constante da acta da audiência.”
É este, pois, o caminho que a parte tem à sua disposição.

Decisão.
Destarte, nega-se provimento ao recurso.
Custas pelos Recorrentes.
Évora, 23 de Abril de 2020
Mário Branco Coelho (relator)
Isabel de Matos Peixoto Imaginário
Maria Domingas Simões

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[1] In Comentário ao Código de Processo Civil, vol. III, Coimbra, 1946, págs. 534 e 536.