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ABUSO SEXUAL DE CRIANÇAS
CRIME CONTINUADO
REGIME PENAL JOVENS ADULTOS
Sumário
1. O crime de abuso sexual de crianças, ao nível da sua construção típica, mostra-se configurado como um ilícito de um só acto e não como um crime de vários actos. 2. Sendo legalmente inadmissível recorrer, nesta matéria, à figura do crime continuado por força da alteração introduzida no art.º 30.º pela Lei 40/2010 que aditou o n.º3 e afastou definitivamente a possibilidade de a pluralidade de crimes contra bens eminentemente pessoais ser punida como um só crime continuado, configurar o crime de abuso sexual de crianças como um crime de “trato sucessivo” seria permitir, por via de uma construção jurídica, aquilo que o legislador quis afastar expressamente por norma legal. 3. Independentemente dos contornos precisos das categorias de crime habitual, de crime prolongado, crime de empreendimento, crime exaurido e crime de trato sucessivo, é essencial que a unificação da multiplicidade de actos que os integram assente na própria descrição do tipo legal, o que não se verifica no crime de abuso sexual de crianças. 4. No crime de abuso sexual de crianças, prolongado no tempo, há vários crimes cometidos, vários sentidos sociais de ilicitude autónomos a reclamar a punição por cada um deles, ou seja, uma pluralidade de factos puníveis, em concurso efetivo e real, à luz do disposto nos artigos 30.º, nº 1 e 3 e 171.º do Código Penal. 5. Só assim não será, quando estejam em causa condutas sem a mínima concretização factual/temporal, para além da única ocasião, impedindo tal imprecisão da matéria de facto provada que se considere respeitado o princípio do contraditório, dado que o arguido não poderá validamente pronunciar-se sobre uma afirmação genérica, sendo de aceitar que nestes casos e apenas nestes, a situação seja equacionada de acordo com o princípio in dubio pro reo, isto é, optando-se pela condenação pela prática de um único crime. 6. A decisão de atenuação especial ao abrigo do regime penal especial para jovens delinquentes não depende da culpa do agente nem das exigências de prevenção geral, sob pena de se aplicar, tão-somente, aos crimes menos graves, sendo que, a sua aplicabilidade depende apenas e exclusivamente da verificação de sérias razões para crer que daquela aplicação resultam vantagens para a reinserção social do jovem. 7. No caso concreto dos autos, o crime de abuso sexual de crianças, dentro da ilicitude própria deste crime e da gravidade que reveste sempre o atentado à autodeterminação sexual de uma criança, não têm contornos de uma ilicitude especialmente intensa, atenta o contexto em que os mesmos ocorrerem. O arguido e a ofendida eram colegas de escola, iniciaram uma relação de namoro, consentida pela mãe da ofendida, e, ao fim de 1 ano de namoro, tendo o arguido 16 anos de idade e a ofendida 12 anos de idade, mantiveram relações sexuais de cópula completa «querida» por ambos que perdurou por mais cerca de 5 meses, num total de 26 vezes, as quais vieram a terminar com o fim do namoro. 8. São muito elevadas as necessidades de prevenção geral no crime de violência doméstica que cada vez se inicia mais cedo, ainda em fases namoro. A violência no namoro é uma realidade crescente e preocupante na nossa sociedade, onde se verifica que os jovens de ambos os sexos têm níveis de actuação e/ou aceitação de comportamentos violentos que são muito preocupantes e que urge prevenir de forma adequada. 9. Atento o contexto em que os factos foram praticados, a juventude do arguido, na data, 16 anos de idade, as necessidades de prevenção especial que não são especialmente elevadas, uma vez que o arguido não tem antecedentes criminais e mostra-se familiarmente inserido, conclui-se que a ameaça da pena de prisão, por um período relativamente longo, realiza de forma adequada e suficiente as finalidades da punição, pelo que, se julga adequado suspender a execução da pena única a aplicar ao arguido de 4 (quatro anos) de prisão pelo período de 3 (três) anos, acompanhada de regime de prova, nos termos do art.º 50º, nºs 1, 2 e 5, do Código Penal.
Texto Integral
Acordam no Tribunal da Relação de Lisboa
I – Relatório
Por acórdão proferido, em 7 de Novembro de 2019, foi o arguido M_______condenado, nos seguintes termos:
- Pela prática, em autoria material, na forma consumada de um crime de violência doméstica, previsto e punido, pelo artigo 152º, n.º 1, alínea b), do Código Penal, na pena de 2 (dois) anos e 3 (três) meses de prisão;
- Pela prática, em autoria material, na forma consumada e em concurso efectivo, de 26 (vinte e seis) crimes de abuso sexual de criança, previsto e punido, pelo artigo 171º, n.ºs 1 e 2, do Código Penal, na pena de 3 (três) anos e 3 (três) meses de prisão, por cada um deles;
- Em cúmulo jurídico, foi o arguido condenado na pena única de 6 (seis) anos de prisão.
- O arguido foi, ainda, condenado, no pagamento de uma indemnização à ofendida N____________, no valor de € 2 500 (dois mil e quinhentos euros), arbitrada nos termos do disposto no artigo 21º, da Lei n.º 112/2009, de 16 de Setembro e do artigo 82¬A, do Código de Processo Penal.
2. Inconformado, recorreu o arguido requerendo que lhe seja aplicado o regime penal para jovens delinquentes, com a consequente atenuação especial da pena que lhe for aplicável, afirmando, para tanto, que o tribunal «a quo» deveria ter solicitado relatório social visando tal possibilidade. Mais requer que, em qualquer dos casos, a pena que lhe foi aplicada seja reduzida para uma pena única que não exceda os 3 anos e 6 meses de prisão, declarada suspensa na sua execução com regime de prova.
Para tanto, alega em síntese, no que espeita aos crimes de abuso sexual de criança pelos quais foi condenado, em concurso efectivo, que o tribunal «a quo» deveria ter subsumido tal actuação à prática de um único crime continuado de abuso sexual de criança, com a consequente redução da pena. Mais afirma que deveria ter beneficiado do regime penal para jovens delinquentes com a consequente atenuação especial das penas e a final ter sido condenado numa pena única em medida não superior a 3 anos e 6 meses declarada suspensa na sua execução.
3. O recurso foi admitido.
4. O Mº.P.º apresentou resposta ao recurso, defendendo a procedência parcial do mesmo.
Para tanto afirma que, pese embora, em seu entender o arguido não deva beneficiar do regime especial para jovens delinquentes pelos motivos devidamente explanados na decisão recorrida, já, no que respeita ao crime de abuso sexual de criança defende que o arguido deveria ter sido condenado pela prática de um único crime de abuso sexual de criança com uma pena de prisão que se deveria fixar em três anos e três meses de prisão e, em cúmulo jurídico, numa pena única não superior a 5 anos de prisão, abrindo-se, assim, a possibilidade de ponderar a suspensão da pena de prisão, conforme requereu o arguido, sempre subordinada a regime de prova.
5. Neste Tribunal, o Srº. Procurador-Geral Adjunto aderiu à posição do Mº.Pº. junto da 1ª instância pelos fundamentos referidos na resposta apresentada ao recurso, defendendo, igualmente, a condenação do arguido numa pena única, não superior a 5 anos de prisão, com a possibilidade de ser ponderada a suspensão da execução da pena de prisão subordinada a regime de prova.
6. O arguido não apresentou resposta.
7. Colhidos os vistos legais e realizada a conferência cumpre decidir.
II. Fundamentação: 1. Delimitação do objecto do recurso.
É pacífica a jurisprudência do S.T.J. no sentido de que o âmbito do recurso se define pelas conclusões que o recorrente extrai da respectiva motivação, sem prejuízo das questões que são de conhecimento oficioso deste Tribunal, como no caso dos vícios enumerados no art.410º, nº 2, do CPP.
Assim sendo, de acordo com as conclusões da respectiva motivação as questões que se suscitam no recurso do arguido são as seguintes: Questão prévia
Realização de audiência nos termos do art.411º, nº5, do C.P. Recurso do arguido
. Subsunção das condutas do arguido à prática um crime continuado, crime único de trato sucessivo ou de um concurso efectivo de crimes;
. Aplicabilidade do Regime Penal para Jovens Delinquentes;
. Medida concreta das penas parcelares e da pena única;
. Suspensão da execução da pena.
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Questão prévia:
No recurso que apresentou requereu o arguido nos termos do art.411º, nº5, do CPP que seja realizada audiência de julgamento para debater os pontos concretos que constam da motivação de recurso.
Dispõe o art.411º, nº5, do C.P.Penal que no requerimento de interposição de recurso o recorrente pode requerer que se realize audiência, especificando os pontos da motivação do recurso que pretende ver debatidos.
Dispõe, por sua vez, o nº 3, do art.º 419º, C.P.P. que o recurso é julgado em conferência quando:
«(…)
c) Não tiver sido requerida a realização de audiência e não seja necessário proceder à renovação da prova nos termos do artigo 430º».
Como decorre expressamente do disposto no citado art.411º, nº5 do CPP, o requerente no requerimento onde requer a realização da audiência deve especificar os pontos da motivação de recurso que pretende ver debatidos.
Em nosso entender, não é por acaso que o legislador utiliza nesta disposição legal os termos deve «especificar» e «os pontos da motivação» e não, outras afirmações, tais como, matéria e/ou temas em vez de pontos e, «motivação» e não às conclusões do recurso.
Na verdade, o preceituado nesta disposição legal só pode ter uma leitura, isto é, a de que não basta ao requerente indicar em termos genéricos as questões que suscitou em sede de recurso e que pretende ver debatidas em audiência, mas, a imposição de um dever de enunciar, ponto por ponto e em concreto, os factos indicados na motivação de recurso que em seu entender consubstanciam tais questões.
Esta é de resto a interpretação que melhor se enquadra com as alterações que o legislador veio trazer com a Lei n.º 48/2007, de 29.8, consagrando a audiência nos Tribunais da Relação como uma excepção e um direito renunciável (cfr. neste sentido Paulo Pinto de Albuquerque (Comentário ao Código de Processo Penal, 3ª edição actualizada, Universidade Católica Editora, 2009, p. 1118) e com a própria natureza do recuso que tem como objectivo não a realização de um novo julgamento sobre toda a matéria objecto da decisão em 1ª instância mas um “remédio” para suprir deficiências da decisão daquela instância.
Esta tem sido a posição assumida pela 3ª secção deste Tribunal da Relação de Lisboa. Como já se decidiu nesta secção «(…) não podemos considerar que o pedido efectuado de modo algum satisfaz tal requisito, já que remete a globalidade da motivação apresentada, sendo que a sua aceitação, levaria a que o preceito em causa se transformasse em letra morta e desprovido de qualquer eficácia.” – Acórdãos desta 3ª secção, recurso Penal nº 51/15.0YUSTR.L1 – Relator Desembargador Vasco Freitas e Recurso Penal nº. 577/14.3TAALM-3 - Relatora Desembargadora Adelina Barradas.
Assim sendo, face ao que se deixa exposto, atento o pedido genérico efectuado, por não estarem reunidos os pressupostos legais, indefere-se a realização da audiência, nos termos do art.411º, nº5 do CPP.
2. Da decisão recorrida
Com relevância e interesse para a decisão da causa o tribunal “a quo” deu como assente a seguinte matéria factual:
«1. A ofendida N____________ e o arguido M_______frequentaram a Escola X________, onde estudavam, sita na Rua________.
2. No dia 04 de Outubro de 2016, a ofendida e o arguido iniciaram uma relação de namoro, tendo a ofendida 11 (onze) anos e o arguido 15 (quinze) anos de idade.
3. No dia 04 de Outubro de 2017, o arguido e a ofendida mantiveram, pela primeira vez, relações sexuais de cópula vaginal completa.
4. Nesta data, a ofendida tinha 12 (doze) de idade e o arguido tinha 16 (dezasseis) anos de idade.
5. Desde essa data, o arguido e a ofendida mantiveram relações sexuais, pelo menos uma vez por semana, até ao fim de Março de 2018, em datas não concretizadas, na residência do arguido e noutros locais.
6. Em todas as ocasiões, o arguido introduziu o seu pénis ereto na vagina da ofendida e, fazendo movimentos próprios da cópula, friccionava o seu pénis repetidamente, até ejacular no interior da vagina da ofendida.
7. A partir do mês de Novembro de 2017, em datas não concretamente apuradas, o arguido, quando estava com a ofendida, dava início a discussões verbais com a mesma, durante as quais desferia pontapés no corpo da ofendida, pancadas com as mãos abertas no corpo e rosto da mesma e puxava-lhe os cabelos.
8. Em Março de 2018, a relação de namoro terminou.
9. No dia 05 de Abril de 2018, pelas 21 horas, a ofendida encontrava-se na via pública, no _______, quando foi abordada pelo arguido.
10. Ao ver a ofendida, o arguido aproximou-se e dirigindo-se à mesma disse: “puta, só queres levar na cona”.
11. Nesse momento, a ofendida dirigiu-se apeada para a sua residência, sita na Rua _______________.
12. O arguido seguiu-a, aproximou-se da mesma, e desferiu-lhe pelo menos um pontapé.
13. Ato contínuo, agarrou-a e desferiu-lhe várias pancadas com as mãos fechadas no rosto, atingindo-a sobretudo no nariz.
14. Alguns dias depois, o arguido, através da conta Instagram da ofendida, enviou-lhe mensagem dizendo: “vou-me vingar, vou-te matar”.
15. Em consequência direta e necessária da conduta do arguido, a ofendida sofreu traumatismo de natureza contundente, que lhe determinou 10 (dez) dias de doença, sem incapacidade para o trabalho.
16. O arguido agiu com o propósito alcançado de atingir a dignidade pessoa, a auto-estima e a saúde física e psíquica da ofendida, com quem manteve uma relação íntima de namoro, sabendo que a devia tratar com respeito, dignidade e consideração, enquanto pessoa e enquanto sua namorada e posteriormente enquanto sua ex-namorada.
17. O arguido sabia ainda que a sua conduta era susceptível de provocar ferimentos na ofendida, sabendo que a sua conduta era susceptível de a molestar na sua saúde e integridade física, o que quis e conseguiu.
18. O arguido agiu ainda com o propósito de manter relações sexuais de cópula completa com a ofendida, a fim de satisfazer os seus impulsos sexuais, durante cerca de 5 (cinco) meses, apesar de saber que esta tinha apenas 12 (doze) anos de idade.
19. O arguido agiu livre, voluntária e conscientemente, bem sabendo que as suas condutas são proibidas e punidas por Lei.
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Mais resultou provado:
20. Do certificado do registo criminal do arguido nada consta.
21. O arguido M_______ encontra-se integrado no agregado familiar de origem, composto pelos seus progenitores e por 2 (dois) irmãos mais novos, numa dinâmica coesa, com laços de união e entreajuda entre os membros, mantendo convívio com membros da família alargada.
22. O percurso escolar foi marcado por repetidas reprovações, manifestando desinteresse, inadaptação e manutenção de comportamentos agressivos para com os colegas, com contacto com o Sistema de Justiça Tutelar Educativo.
23. Após esse contacto, registado no âmbito de processo tutelar educativo que decorreu entre 2016 e 2018, o comportamento do arguido revelou-se normativo, tendo prosseguido a escolaridade numa turma de _____ integrada na escola __________, no âmbito do qual concluiu o equivalente ao 9º ano de escolaridade.
24. Neste contexto escolar, o arguido iniciou a relação de namoro com a ofendida.
25. Em anteriores relações o arguido assume a manifestação de anteriores comportamentos disfuncionais e atos agressivos mútuos, entre os elementos do casal.
26. O arguido evidencia crenças legitimadoras de violência doméstica, associadas a papéis de género – a que não é alheia a cultura de origem –, o que aliadas a dificuldades no domínio do controlo dos seus impulsos quando confrontado com situações sentidas por si como emocional/afetiva.
27. No seio familiar são desvalorizadas e legitimadas determinadas condutas agressivas.
28. O arguido denota ainda distanciamento e imaturidade.
29. No foro da sexualidade, a vida ativa do arguido iniciou-se pelos 14 (catorze), 15 (quinze) anos, com uma jovem com mais 2 (dois) anos de idade, desvalorizando as diferenças de idades relativamente às namoradas que já teve, face ao “mútuo” acordo da relação, nomeadamente quanto a tais questões.
30. O arguido evidencia falta de motivação para os cursos de formação, conduzindo-o a um estilo de vida desocupado, apesar de verbalizar a vontade de frequentar um curso que lhe dê equivalência ao 12º ano de escolaridade ou, alternativamente, o início de atividade profissional em stand de automóveis ou em actividade hoteleira.
31. Iniciou recentemente a frequência de aulas de código para aquisição de habilitação legal para conduzir.
32. O arguido subsiste através do rendimento social de inserção do agregado de origem, bem como, dos rendimentos auferidos pelos progenitores na venda ambulante.
33. O arguido revela dificuldades no reconhecimento da ilicitude dos factos imputados e a sua imaturidade apresenta-se como factor de risco ao cumprimento regular de medida de execução em comunidade».
E deu como não provados os seguintes factos:
«1. Aquando do referido em 10. dos factos provados, o arguido disse para a ofendida: “andas a foder com todos, foi preciso tirar-te a virgindade para agora todos te vão à cona”.
2. Aquando do referido em 12. dos factos provados, o arguido desferiu um pontapé na zona lombar».
3. São as seguintes as conclusões que o recorrente extrai da motivação do recurso:
«1 - O arguido M________, ora recorrente, foi condenado pela prática, em autoria material, na forma consumada e em concurso efetivo, de 1 (um) crime de violência doméstica, previsto e punido pelo artigo 152, n.º 1, alínea b), do Código Penal, na pena de 2 (dois) anos e 3 (três) meses de prisão;
2 - foi ainda condenado pela prática, em autoria material, na forma consumada e em concurso efetivo, de 26 (vinte e seis) crimes de abuso sexual de criança, previsto e punido pelo artigo 171º, n° 1 e 2, do Código Penal, na pena de 3 (três) anos e 3 (três) meses de prisão, por cada um deles;
3 - em cúmulo jurídico, numa pena única de 6 (seis) anos de prisão efectiva;
4 - O ora Recorrente delimita o presente Recurso:
a) à questão da medida da pena;
b) à questão de se saber, quanto ao crime p. e p. no art.º 171, n° 1 e 2 do Código Penal, se estamos perante o acervo de crimes em que foi condenado ou, se por um crime na forma continuada;
c) à não suspensão da execução da pena;
d) à não aplicação do regime especial para jovens delinquentes;
5 - Conquanto tudo o que se passa e consta dos autos, não apresenta perigosidade de maior, sendo o gravame a tal respeito mais de extrapolação dos crimes praticados.
6 - Dir-se-á mesmo que a severa punição infligida, é mais produto do combate à tipologia do crime que ao subjectivo de rebeldia ou habitualidade perigosa do Arguido.
7 - Quanto se acaba de dizer, repercute-se significativamente no anterior comportamento do Arguido, relativamente ao qual não apresenta antecedentes criminais.
8 - Do ponto de vista da integração social, familiar e profissional e ainda do processo educativo, reproduzem-se aqui as considerações tecidas (decorrentes da recolha de prova) pelo acórdão ora recorrido e que constam dos pontos 21 a 33 da matéria de facto provada.
9 - Atenta a auto-delimitação que o ora Recorrente faz relativamente ao âmbito do presente recurso, reproduzem-se na íntegra os factos dados como provados e que no entender do ora Recorrente poderiam e deveriam ter conduzido o Colectivo à aplicação de uma pena mais branda.
10 - A própria defesa do Arguido reconhece ser a conduta em análise merecedora de censura, mas crê, por outro lado, que a mesma, atenta a globalidade dos factos e o enquadramento que os envolve (adiante melhor se explicitará a razão de ser desta discordância), aconselhava uma pena menos severa e não inibidora de qualquer projecto de futuro a curto prazo.
11 - O recorrente não vislumbra qualquer vício relativamente ao crime de violência doméstica. Pugnará tão-somente – no que diz respeito a este crime – pela redução da pena em que foi condenado, atenta a idade do recorrente (16 anos) a reconhecida (pelo Colectivo de Juízes) imaturidade e na emergência simples da aplicação do regime especial para jovens delinquentes.
12 - Quanto ao crime de abuso sexual de menores, é certo que a conduta do arguido inscreve-se no disposto no artigo 171º nº 1 e 2 do Código Penal.
13 - No caso que nos ocupa em concreto, a questão, salvo melhor opinião, é, contudo, equívoca.
14 - A Ofendida iniciou a sua vida sexual com o arguido – com o consentimento daquela – quando ela tinha 12 anos e ele 16 anos.
15 - O arguido – como bem refere o acórdão ora recorrido – denota distanciamento e imaturidade.
16 - Eram namorados. E o consentimento geraria, desde logo, a sua inclusão, porventura, nas causas gerais de justificação.
17 – É um facto que O consentimento da vítima não possui virtualidade para eximir o agente da responsabilidade criminal, por a lei partir do pressuposto, próximo da constatação natural, que o menor, por regra, não possui o desenvolvimento psicológico suficiente para compreender as consequências, por vezes graves, deles emergentes, que podem prejudicar gravemente o desenvolvimento da sua personalidade física e psíquica, no aspecto do livre desenvolvimento da personalidade na esfera sexual.
18 - Não pretende a Defesa reverberar o Judicial Português; antes e tão-somente fazer incidir a atenção para a falibilidade de apreciação do rigor probatório, em matéria e circunstâncias de tanto melindre quanto esta.
19 - É consabido que a iniciação sexual dos jovens acontece, nos dias de hoje, cada vez mais cedo.
20 - A este propósito
“Apesar da primeira relação completa, com penetração, ser hoje mais frequente entre 13 e 15 anos, as experiências sexuais iniciais acontecem muito antes disso. “Cerca de 20% das crianças entre nove e dez anos já têm contactos eróticos, como beijo de língua e toque sem roupa”, declara Carmita. “A idade vem baixando porque existe um estímulo muito mais precoce do que há alguns anos, sobretudo por intermédio da televisão, dos smartphones e da internet como um todo”, diz o médico hebiatra (especialista em adolescentes) Maurício de Souza Lima, do Hospital Sírio Libanês, autor do livro “Filhos Crescidos, Pais Enlouquecidos” (Editora Landscape)....
e ainda:
“O governo do presidente Emmanuel Macron um projeto de lei que visa introduzir então uma idade legal mínima para o consentimento sexual — a idade ainda não está decidida, mas será entre 13 e 15 anos. O projeto de lei deverá ser apresentado a 7 de Março”.
21 - I. O número de crimes determina-se pelo número de vezes que o mesmo tipo de crime for preenchido pela conduta do agente.
22 - II. Constitui um só crime continuado a realização plúrima do mesmo tipo de crime ou de vários tipos de crime que fundamentalmente protejam o mesmo bem jurídico, executada por forma essencialmente homogénea e no quadro da solicitação de uma mesma situação exterior que diminua consideravelmente a culpa do agente, embora não abranja os crimes praticados contra bens eminentemente pessoais.
23 - III. A realização plúrima do mesmo tipo legal pode constituir num só crime, persistindo o dolo ao longo de toda a realização da conduta; num só crime, na forma continuada se, pese embora não obedecendo a uma só motivação dolosa, a conduta for executada num quadro externo que estimule ao agente a sua repetição e assim diminua consideravelmente a sua culpa; ou, fora desses casos, num concurso efectivo de crimes.
24 - IV. A reiteração de condutas abusivas da sexualidade de crianças ditadas por razões endógenas, concernentes com a personalidade do arguido, não podem ser reconduzidos a uma única resolução criminosa quando é o próprio arguido a criar as condições para a presença da menor nas diversas situações ocorridas. Acórdão do TRP de 9 de Julho de 2014.
25 - A conduta do arguido neste caso é manifestamente homogénea, devendo considerar-se que ocorre uma realização plúrima do mesmo tipo de crime, ou, por outras palavras, um só desígnio.
26 - Do exposto, oferece-se neste capítulo, que o gravame da pena aplicada, e até o enquadramento legal efectuado, não tem explicação fácil, razão ou coerência consistentes, face a um diferente enquadramento legal, devendo o arguido ser condenado “apenas” pela prática de um crime, na forma continuada, p. e p. no artigo 171º do Código Penal.
27 - O Acórdão ora recorrido acaba por condenar o arguido na pena de 6 anos de prisão.
28 - Aqui reside, também, a discordância do ora recorrente.
29 -Na determinação da medida da pena devem ser em tidas em conta para além da culpa do agente as necessidades de prevenção, tal como dispõe o artigo 71º do Código Penal.
30 - esta deverá ser sempre aplicada na medida exacta da sua necessidade e sempre subordinada a uma proibição de excesso.
31 - Quando estamos perante uma pena excessiva (ainda que tenha sido considerada necessária) que ultrapasse o juízo de censura que o agente causador do crime mereça, essa pena é injusta.
32 - Pese embora estejamos perante uma actuação censurável – em particular o crime de violência doméstica – o arguido entende que esta conduta não é passível de uma pena tão severa quanto a aplicada.
33 - Só a prevenção justa é necessária.
34 - Neste caso, entende o recorrente que o Tribunal teve principalmente em conta a função retributiva da pena, olvidando-se da função ressocializadora da mesma que tenderia a considerar que as finalidades da punição deverão ser executadas com o sentido pedagógico e ressocializador.
35 - Dúvidas não devem haver quanto ao estabelecimento de uma prognose favorável em torno deste recorrente. Porém, essa oportunidade não lhe foi concedida.
36 - O regime penal dos jovens delinquentes, previsto no Decreto-Lei nº 401/82, de 23 de Setembro, constitui o regime penal regra aplicável a jovens entre os 16 e os 21 anos, não senda a aplicação deste regime uma faculdade, mas um poder-dever vinculado que o juiz deve usar sempre que se verifiquem os respectivos pressupostos.
37 - Para tanto, o juiz tem de averiguar, mesmo oficiosamente, se existem pressupostos de facto que imponham a aplicação do regime previsto no referido diploma, sempre que a pessoa submetida a julgamento tenha, ao tempo dos factos, idade que se integre dentro dos limites objectivos de aplicação.
38 - À data dos factos, o recorrente tinha completado apenas 16 anos.
39 - O artigo 9º do Código Penal remete para legislação especial o regime penal dos indivíduos maiores de 16 e menores de 21 anos. A imposição de um regime penal próprio para os designados "jovens delinquentes" traduz uma das opções fundamentais de política criminal, ancorada em concepções moldadas por uma racionalidade e intencionalidade de preeminência das finalidades de integração e socialização, e que, por isso, comandam quer a interpretação, quer a aplicação e a avaliação das condições de aplicação das normas pertinentes.
40 - A delinquência juvenil, com efeito, e em particular a delinquência de jovens adultos e de jovens na fase de transição para a idade adulta, é um fenómeno social muito próprio das sociedades modernas, urbanas, industrializadas e economicamente desenvolvidas, obrigando, desde logo o legislador, a procurar respostas exigidas por este problema de indiscutível dimensão social.
41 - O regime pressuposto no artigo 9º do Código Penal consta (ainda hoje) do Decreto-Lei nº 401/82, de 22 de Setembro, e contém uma dupla vertente de opções no domínio sancionatório: evitar, por um lado e tanto quanto possível, a pena de prisão, impondo a atenuação especial sempre que se verifiquem condições prognósticas que prevê (artigo 4º), e por outro, pelo estabelecimento de um quadro específico de medidas ditas de correcção (artigos 5º e 6º).
42 - O regime penal especial aplicável aos jovens entre os 16 e os 21 anos constitui, pois, uma imediata injunção de política criminal que se impõe, por si e nos respectivos fundamentos, à modelação interpretativa dos casos concretos objecto de apreciação e julgamento. Injunção que se mantém actual (e porventura mesmo actualizada), como se pode ver na mais recente manifestação externa de uma intenção legislativa de recomposição do regime vigente (a Proposta de Lei n° 45/VIII, no "Diário da Assembleia da República", II série-A, de 21 de Setembro de 2000).
43 - a pena de prisão, ao retirar o jovem do meio em que é suposto ir inserir-se progressivamente, produz efeitos dessocializantes devastadores» (cfr. Proposta de Lei, cit.), constituindo um sério factor de exclusão.
44 - Uma das formas de prosseguir esta finalidade, já constante do regime actualmente vigente no artigo 4° do Decreto-Lei n° 401/82, é a imposição ao juiz do dever de atenuar especialmente a pena «quando tiver razões para crer que da atenuação resultem vantagens para a reinserção social do jovem condenado.
45 - A aplicação do regime penal relativo a jovens entre os 16 e os 21 anos - regime-regra de sancionamento penal aplicável a esta categoria etária - não constitui, pois, uma faculdade do juiz, mas antes um poder-dever vinculado que o juiz deve (tem de) usar sempre que se verifiquem os respectivos pressupostos; a aplicação é, em tais circunstâncias, tanto obrigatória, como oficiosa.
46 - A lei processual prevê, aliás, modos próprios à recolha pelo juiz de elementos que o habilitem a exercer o poder-dever quanto à aplicação do regime especial.
47 -No caso concreto – e que nos ocupa - é muito simplista a fundamentação do acórdão recorrido quanto à não aplicação deste regime.
48 - Deveria (teria que) o Colectivo ter-se munido de informação, porventura relatório social visando (em exclusivo) esta possibilidade, para que, mais habilitado, pudesse decidir pela aplicabilidade do regime. Não o fez.
49 – Deve, pois, a pena do ora recorrente ser especialmente atenuada e suspensa na sua execução.
50 – Se tal não se entender por carência de elementos que habilitem o Tribunal a tal decisão, dever-se-á ordenar o reenvio dos autos nos termos do disposto no artigo 426º A do CPP para que, com esta finalidade exclusiva, decidir da aplicação do regime».
5. Apreciando
- O arguido delimita o seu recurso à questão da medida da pena e, a propósito desta questão defende, numa primeira linha de argumentação, que a sua actuação deveria ter sido subsumida e, consequentemente, punida como um só crime de abuso sexual de criança, por estar em causa uma conduta repetitiva, prolongada no tempo, isto é, um crime de trato sucessivo e não a prática, em concurso efectivo, de 26 crimes de abuso sexual de criança.
O MºPº na resposta ao recurso afasta possibilidade de se estar perante um crime de trato sucessivo por entender que ao nível da construção típica, o crime de abuso sexual de criança se mostra configurado com um ilícito de um só acto.
Afirma, porém, que, no circunstancialismo concreto dos autos, designadamente, atento o facto da ofendida e do arguido se terem conhecido e iniciado um relação de namoro quando frequentavam a mesma escola do Ensino Básico, sendo ambos menores, a ofendida com 11 anos de idade e o arguido com 15 anos de idade, as relações sexuais entre ambos terem ocorrido cerca de 1 ano após o início do namoro, contando a ofendida, na data, com 12 anos de idade e o arguido com 16 anos de idade e prolongando-se tais relações no tempo, por cerca de mais 5 meses (de 4.10.207 até finais de Março de 2018) e, apenas, no contexto desse namoro, se poder entender, na sequência dos ensinamentos do Professor Figueiredo Dias (in Direito Penal Parte Geral, Tomo I, pág., 1165 e 1186) estar-se perante «uma conexão espácio-temporal das realizações típicas (…) uma unidade de contexto espácio- temporal que sugere vivamente, ou, na maioria dos casos, mesmo impõe a unidade de sentido do ilícito do comportamento total (…)» e, consequentemente, perante um mero concurso aparente, devendo o arguido ser punido por um único crime de abuso sexual de criança, previsto e punível, pelo art.171º, nºs. 1 e 2 do Código Penal.
Sobre as diferentes posições que se suscitam sobre esta questão e, mais concretamente sobre o crime de trato sucessivo, crime exaurido ou o concurso real e efectivo de crimes, o acórdão recorrido nada diz, tendo concluído de forma lacónica que o arguido preencheu com a sua conduta e por 26 vezes, tantas quantas as relações sexuais dadas como provadas, os elementos objectivos e subjectivos (dolo) do crime de abuso sexual de criança, previsto e punível, pelo art.171º, nº1 e 2 do Código Penal, constituindo-se, assim, na prática, em autoria material e em concurso efectivo e real de 26 (vinte e seis) crimes de abuso sexual de criança.
Esta questão, porém exige uma abordagem mais fundamentada, dada a complexidade e a especificidade do caso concreto dos autos que se afasta dos comportamentos regras neste tipo de criminalidade e das questões suscitadas no recurso do arguido e na resposta a esse recurso do MºPº.
Situações como a dos autos - em que a actuação do agente preenche em ocasiões distintas os elementos típicos do crime de abuso sexual de crianças (art.º 171.º do Código Penal) - têm merecido intensa discussão na jurisprudência, sendo possível distinguir três correntes:
De acordo com uma primeira corrente jurisprudencial inspirada no acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 29.11.2012, processo 862/11.6TAPFR.S1 quando a prática daquele crime envolve “uma repetitiva actividade prolongada no tempo”, convenciona-se que “há só um crime – apesar de se desdobrar em várias condutas que, se isoladas, constituiriam um crime”.
Esta unificação ocorre por via da figura, de criação jurisprudencial, denominada de “trato sucessivo”.
Quanto a nós, esta corrente jurisprudencial, que nos parece ser a defendida pelo arguido no seu recurso, não é de acolher, desde logo, porque o crime de abuso sexual de crianças, ao nível da sua construção típica, mostra-se configurado como um ilícito de um só acto e não como um crime de vários actos. Por outro lado, sendo legalmente inadmissível recorrer, nesta matéria, à figura do crime continuado por força da alteração introduzida no art.º 30.º pela Lei 40/2010 que aditou o n.º3 e afastou definitivamente a possibilidade de a pluralidade de crimes contra bens eminentemente pessoais ser punida como um só crime continuado o tratamento do abuso sexual de crianças como crime de “trato sucessivo” traduzir-se-ia, na expressão usada por Conceição Ferreira da Cunha, em “deixar entrar pela janela o que se quis que saísse pela porta”- cfr. Nestes sentido, «Os crimes contra as pessoas» – Relatório sobre o programa, os conteúdos e os métodos de ensino da disciplina, Porto: Universidade Católica Editora, 2017, p. 150
Uma segunda corrente jurisprudencial, embora conclua igualmente a prática de “um crime de trato sucessivo”, só aparentemente parte dos mesmos pressupostos.
Na verdade enquanto que na primeira versão as várias resoluções criminosas são unificadas ficcionando-se “um crime de trato sucessivo”, nesta segunda posição invoca-se o conceito de “trato sucessivo” para os casos em que se entende que “uma pluralidade de factos externamente separáveis deve conformar uma acção unitária quando os diversos actos parciais, que respondem a uma única resolução volitiva, se encontram tão ligados no tempo e espaço que, para um observador não interveniente são percepcionados como uma unidade natural”- cfr. neste sentido os acórdãos do Supremo Tribunal de Justiça, de 12.07.2012 – processo 1718/02.9JDLSB, e o acórdão do STJ de 13.02.2019 – processo 3922/17.6JAPRT.S1, ambos em www.dgsi.pt.
Assim, de acordo com esta corrente, a ideia de “trato sucessivo” surge associada a uma única resolução criminosa, afirmando-se que “o dolo do agente abarca ab initio uma pluralidade de actos sucessivos que ele se dispõe logo a praticar, para tanto preparando, se necessário, as condições de realização, estando-se no plano da unidade criminosa” –neste sentido, podem ler-se igualmente o acórdão do Tribunal da Relação de Évora, de 20.10.2015 – processo 290/14.1T3STC.E1 e o Acórdão da mesma Relação, de 25.03.2014, processo 145/06.3GDTVD.E2, ambos em www.dgsi.pt
Baseia-se esta corrente no ensinamento do Professor Eduardo Correia, de acordo com a qual “para afirmar a existência de uma unidade resolutiva é necessária uma conexão temporal que, em regra e de harmonia com os dados de experiência psicológica, leva a aceitar que o agente executou toda a sua actividade sem ter de renovar o respectivo processo de motivação».
A diferença entre estas duas correntes reconduz-se, assim, ao nível da estrutura do tipo de crime na perspectiva com que encaram a unificação das condutas.
A primeira corrente, identifica o crime de “trato sucessivo” com a unificação de várias resoluções criminosas (vários dolos), imposta por razões que, de um ponto de vista pragmático, são também as que estão subjacentes à construção normativa da figura do crime continuado, concretamente, porque quando os crimes sexuais envolvem uma repetitiva actividade prolongada no tempo, torna-se difícil e quase arbitrária qualquer contagem de crimes.
A segunda corrente, estrutura o crime com uma única resolução criminosa tomada desde o inicio e que abarca toda a actuação do agente, isto é, uma única unidade resolutiva para uma pluralidade actos sucessivos que o agente se dispõe, ab initio a praticar, sem ter de renovar o respectivo processo de motivação e de acordo com a qual é, naturalmente, necessária a existência de uma conexão temporal.
Por último, uma terceira corrente jurisprudencial que rejeita a unificação de condutas em casos de várias actuações prolongadas no tempo, negando a aplicação da figura do “trato sucessivo” ao crime de abuso sexual de crianças, seja na configuração assente numa única resolução criminosa, seja na versão baseada em várias resoluções criminosas.
Defende esta última corrente que “independentemente dos contornos precisos das categorias de crime habitual, de crime prolongado, crime de atentado ou empreendimento, crime exaurido e crime de trato sucessivo, é essencial que a unificação da multiplicidade de actos que os integram assente na própria descrição do tipo legal, o que não se verifica relativamente ao tipo legal de abuso sexual de crianças p. e p. pelo art.º. 171.º do C. Penal”. E só assim não será quando estejam em causa condutas sem a mínima concretização factual/temporal, para além da única ocasião que é de ter por assente e em que tal imprecisão da matéria de facto provada impede que se considere respeitado o princípio do contraditório, dado que o arguido não poderá validamente pronunciar-se sobre uma afirmação genérica, pelo que, nestes casos e apenas nestes a situação tem de ser equacionada de acordo com o princípio in dubio pro reo, isto é, optando-se pela condenação pela prática de um único crime (que não crime único) -cfr. neste sentido o Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça, de 30.09.2015, disponível em www.dgsi.pt – processo 2430/13.9JAPRT.S1:
Acolhemos esta última corrente jurisprudencial, desde logo porque entendemos, também, nós que o crime de abuso sexual de crianças, ao nível da construção típica, mostra-se configurado como um ilícito de um só acto, não como um crime de vários actos como sucede, designadamente, nas situações de tráfico de estupefacientes (v. g., acórdão de 17-12-2009, processo n.º 11/02.1PECTB-5.ª), ou de infracções fiscais ou contra a segurança social, que se protraem por períodos mais ou menos longos (neste tipo foi já considerada a figura denominada de “infracções contínuas sucessivas” no acórdão de 18-12-2008, processo n.º 20/07-5.ª), ou mesmo em caso de burla qualificada e falsificação de documento (acórdão de 21-02-2008, processo n.º 2035/07-5.ª).
Em nosso entender, no crime de abuso sexual de crianças, prolongado no tempo, há vários crimes cometidos, vários sentidos sociais de ilicitude autónomos a reclamar a punição por cada um deles, ou seja, uma pluralidade de factos puníveis em concurso efectivo e real, tudo à luz do disposto nos artigos 30.º, nº 1 e 3 e 171.º do Código Penal. Sobre esta posição, versando a pluralidade de crimes sexuais em concurso real, mas estando em causa apenas a medida da pena única, podem ver-se, entre muitos outros, os acórdãos do STJ de 22-05-2013, processo n.º 93/09.5TAABT.E1.S1-3.ª; de 5-11-2013, processo n.º 400/12.3JAPRT.P1.S1-5.ª; de 20-11-2013, processo n.º 1181/12.6JAPRT.P1.S1-3.ª); de 27-02-2014, processo n.º 1702/12.4TATVD.S1-5.ª; de 23-04-2014, processo n.º 68/08.1GABNV.L1.S1-3.ª; de 30-04 2014, processo n.º 415/12.1T3STC.E1.S1-5.ª; de 23-10-2014, processo n.º 1524/13.5JAPRT.S1-5.ª.
Pelo exposto, enquadrada a questão de modo, é manifesta a falta de razão do recorrente, mostrando-se acertada a decisão recorrida no que respeita à condenação do arguido pela prática, em autoria material, na forma consumada e em concurso efectivo e real de 26 (vinte e seis) crimes de abuso sexual de criança, previsto e punido, pelo artigo 171, n.ºs 1 e 2, do Código Penal.
- Do regime penal para jovens delinquentes.
Subsumidos os factos ao direito, importa agora aquilatar da pena a aplicar ao arguido.
Comecemos pela possibilidade de aplicação ao arguido do regime penal para jovens delinquentes, previsto pelo Decreto-Lei n.º 401/82, de 23 de Setembro, defendida no recurso.
De acordo com o artigo 9º, do Código Penal «Aos maiores de 16 anos e menores de 21 são aplicáveis normas fixadas em legislação especial».
Estabelece, por sua vez, o artigo 1º, n.º 2, do Decreto-Lei n.º 401/82, de 23 de Setembro, que «É considerado jovem para efeitos deste diploma o agente que, à data da prática do crime, tiver completado 16 anos sem ter ainda atingido os 21 anos».
E, nos termos do artigo 4º, do mesmo diploma legal, se for aplicável pena de prisão, deve o juiz atenuar especialmente a pena, nos termos dos artigos 73º e 74º do Código Penal, quando tiver sérias razões para crer que da atenuação resultem vantagens para a reinserção social do jovem condenado.
Refere-se no preâmbulo do citado Decreto-Lei - nº 4 - que “trata-se, em suma, de instituir um direito mais reeducador do que sancionador, sem esquecer que a reinserção social, para ser conseguida, não poderá descurar os interesses fundamentais da comunidade, e de exigir, sempre que a pena prevista seja a de prisão, que esta possa ser especialmente atenuada, nos termos gerais, se para tanto concorrerem sérias razões no sentido de que, assim, se facilitará aquela reinserção”.
Invoca o arguido no seu recurso que os motivos para que o tribunal «a quo» não lhe tenha aplicado o regime penal para jovens delinquentes são pouco fundamentados e que o Tribunal deveria ter-se munido de informação, nomeadamente, relatório social visando (em exclusivo) esta possibilidade, para que ficasse mais habilitado a decidir pela aplicabilidade do regime penal para jovens, o que não o fez.
Não tem, porém, razão.
Na verdade encontra-se junto aos autos, a fls. 292 a 294, «relatório social para determinação da sanção referente ao arguido» solicitado pelo tribunal e elaborado pela Direcção Geral de Reinserção Social que aborda de forma devidamente fundamentada todo percurso de vida do arguido, as suas condições sociais e pessoais que se mostra absolutamente esclarecedor e adequado aos fins a que destina.
Improcede, assim, a argumentação do recorrente.
Prosseguindo,
O acórdão recorrido ponderou o regime penal para jovens delinquentes e pronunciou-se no sentido da sua não aplicabilidade, no caso concreto, afirmando o seguinte:
«Não obstante o arguido, à data dos factos, ter apenas 16 (dezasseis) anos de idade e, por conseguinte, abstractamente ser de atender ao Regime Penal Aplicável aos Jovens Delinquentes, nos termos do disposto no artigo 1º, do Decreto-Lei n.º 401/82, de 23 de Setembro, não beneficia do mesmo.
Da aplicação deste regime resultaria a atenuação especial das penas, nos termos do disposto nos artigos 73 e 74, do Código Penal. Porém, esta atenuação não é de aplicação imediata e, por conseguinte, a mesma só faz sentido se resultar dos autos existirem sérias razões para crer que da atenuação resultarão vantagens para a reinserção social do jovem condenado.
Ora, o Tribunal ponderou este regime legal e a sua aplicação sub judice, concluindo pela inexistência das referidas razões sérias para crer ser mais favorável para a reinserção social da condenada a atenuação especial, considerando:
- ser da mais elementar consciência humana que a violência deve ser erradicada de qualquer relacionamento saudável entre os seres humanos e não deve ser assumida como uma forma “normal”, “adequada” de relação em qualquer cultura, não podendo existir crenças legitimadoras, associadas a papéis de género;
- o histórico de manifestação de comportamentos disfuncionais e atos agressivos mútuos, assumidos pelo arguido em anteriores relações;
- ser do conhecimento do arguido as nefastas consequências, para o bem-estar da sua namorada, do comportamento que adotou e relativamente ao qual não evidencia uma postura crítica, antes desvalorizando-o;
- o comportamento adotado em audiência, revelador da sua imaturidade, associado às dificuldades de dominar os seus impulsos, nomeadamente em situações que envolvam afetos e emoções;
- o anterior contato com o sistema de Administração da Justiça, designadamente, o Tutelar Educativo, que não foi suficiente para o afastar da prática de atos ilícitos e adotar um comportamento conforme com as normas incriminadoras;
- a ausência de motivação a vários níveis, quer formativo, quer de adesão a programas de conteúdos educativos.
Pelo exposto, a pena aplicada ao arguido M_______ teve por ponto de partida a moldura abstrata e não especialmente atenuada, afastando-se expressamente o Regime Penal Aplicável aos Jovens Delinquentes».
Como resulta do supra exposto, os fundamentos que estiveram na base da não aplicação ao arguido do regime penal para jovens delinquentes prendem-se, essencialmente, com a elevada ilicitude dos factos cometidos, com as necessidades de prevenção geral, designadamente, no que respeita à violência no âmbito do relacionamento entre seres humanos «a violência deve ser erradicada de qualquer relacionamento saudável entre os seres humanos e não deve ser assumida como uma forma “normal”, “adequada de relação», no facto de o arguido já ter tido contactos com o sistema Tutelar Educativo e, ainda, em considerações ligadas à sua imaturidade, dificuldade de dominar os seus impulsos, nomeadamente, em situações que envolvam afectos e emoções.
Ora, salvo o devido respeito, não se nos afigura que na sua globalidade os motivos expostos sejam os adequados e/ou suficientemente relevantes para afastar a aplicabilidae ao arguido do regime penal para jovens delinquentes.
É facto indiscutível que a conduta do arguido reveste uma elevada ilicitude. O arguido começou a manter com a ofendidas relações de cópula vaginal completa sabendo que esta tinha, apenas, 12 anos de idade e agrediu-a, por diversas vezes, física e psicologicamente.
Sem querer retirar a gravidade que os factos demonstram, o caso concreto dos autos, tem, porém, contornos muito específicos.
Não se pode olvidar que a ofendida e o arguido conheceram-se quando frequentavam a escola onde ambos estudavam, iniciaram uma relação de namoro tendo a ofendida 11 anos de idade e o arguido 15 anos de idade, sendo ambos muitos jovens, cerca de 1 ano após o inicio desse namoro, resolveram manter, pela primeira vez, relações sexuais de cópula vaginal completa, tendo nesta data, a ofendida 12 anos de idade e o arguido 16 anos de idade.
A mãe da ofendida, como resulta da fundamentação do acórdão, era conhecedora do namoro existente entre a filha e o arguido, falou com ambos e pediu-lhe para que sempre houvesse «respeito».
Por outro lado, ao contrário do que parece ter sido o entendimento do acórdão recorrido, a decisão de atenuação especial ao abrigo do regime penal especial para jovens delinquentes não depende da culpa do agente nem das exigências de prevenção geral, mas apenas e exclusivamente da verificação de sérias razões para crer que daquela aplicação resultam vantagens para a reinserção social do jovem.
«A atenuação especial da pena prevista no art.º 4.º do DL 401/82 não se funda nem exige "uma diminuição acentuada da ilicitude e da culpa do agente" nem, contra ela, poderá invocar-se "a gravidade do crime praticado e/ou a defesa da sociedade e/ou a prevenção da criminalidade ", pois que, por um lado, a lei não exige - para que possa operar - a «demonstração de» (mas a simples «crença em») «sérias razões» de que «da atenuação resultem vantagens para a [sua] reinserção social (…) a atenuação especial da pena a favor do jovem delinquente não pressupõe, em relação ao seu comportamento futuro, um
"bom prognóstico", mas, simplesmente, um "sério" prognóstico de que dela possam resultar "vantagens" para uma (melhor) reinserção social do jovem condenado» (cfr. STJ 27-02-2003, recurso 149/03-5)».
Deste modo, não será por quaisquer razões ligadas às necessidades de prevenção geral e à «defesa do ordenamento jurídico» ou «ser da mais elementar consciência humana que a violência deve ser erradicada de qualquer relacionamento saudável entre os seres humanos e não deve ser assumida como uma forma “normal”, “adequada” de relação em qualquer cultura, não podendo existir crenças legitimadoras, associadas a papéis de género», nem pela forma e o modo como os actos decorreram ou as suas consequências «ser do conhecimento do arguido as nefastas consequências, para o bem-estar da sua namorada, do comportamento que adotou e relativamente ao qual não evidencia uma postura crítica, antes desvalorizando-o» nem tão pouco pelo «comportamento adoptado em audiência, revelador da sua imaturidade, associado às dificuldades de dominar os seus impulsos, nomeadamente em situações que envolvam afetos e emoções» a que se fez apelo no acórdão recorrido que podem legitimamente levar o tribunal a decidir pela não aplicação da atenuação especial.
Essencial é, apenas e exclusivamente, a verificação de sérias razões para crer que da aplicação do regime ao arguido resultem vantagens para a reinserção social do jovem
Ora, como resultou provado, o arguido tinha, na data dos factos, 16 anos de idade.
É certo que, como se afirma no acórdão recorrido, o arguido, naquela data, já tinha tido contacto com o sistema Tutelar Educativo, ao que tudo indica, por causa de alguns comportamentos agressivos para com os colegas de escola, o que é revelador de uma personalidade rebelde e com tendência para a agressividade. Porém, como igualmente, ficou provado, após esse contacto, registado no âmbito de processo tutelar educativo que decorreu entre 2016 e 2018, o comportamento do arguido revelou-se normativo, tendo prosseguido a escolaridade numa turma de PIEF integrada na escola EB, pelo que, terá de se concluir que o arguido terá sabido interiorizar o desvalor das suas condutas e pautar o seu comportamento futuro de forma normativa.
O arguido não tem antecedentes criminais.
Confessou na sua essencialidade a prática dos factos (as declarações do arguido que reconheceu a autoria dos factos que lhe são imputados e respectivo circunstancialismo espácio-temporal nos termos que resultaram provados, conforme consta da fundamentação do acórdão.
Encontra-se integrado no agregado familiar de origem, composto pelos seus progenitores e por 2 (dois) irmãos mais novos, numa dinâmica coesa, com laços de união e entreajuda entre os membros, mantendo convívio com membros da família alargada.
Verbaliza a vontade de frequentar um curso que lhe dê equivalência ao 12º ano de escolaridade ou, alternativamente, o início de actividade profissional num stand de automóveis ou em actividade hoteleira.
Não desenvolve qualquer actividade e subsiste com o apoio do agregado de origem.
Tudo visto e ponderado afigura-se-nos que os autos têm elementos probatórios suficientes, certos e seguros, para que o tribunal ficasse convencido de que sérias razões existem para crer que da atenuação resultem vantagens para a reinserção social do arguido.
Daí que se conceda provimento ao pedido do arguido no sentido de lhe ser aplicado o disposto no art.° 4.° do Dec.-Lei n.º 401/82, de 23 de Setembro.
Das penas concretas a aplicar ao arguido
O crime de violência doméstica, previsto e punido pelo artigo 152º, n.º 1, alínea b), do Código Penal, é punido, em abstracto, com a uma moldura penal de um a cinco anos de prisão.
O crime de abuso sexual de criança, previsto e punido pelo artigo 171º, n.ºs 1 e 2, do Código Penal, é punido, em abstracto, com a uma moldura penal de três a dez anos de prisão
Sendo de aplicar o regime especial para jovens, há que atenuar especialmente a pena a aplicar, nos termos preceituados no artigo 73.º nº 1, als. a e b) do Código Penal, observando-se no caso concreto o seguinte: o limite máximo da pena de prisão é reduzido de um terço (al.a) e o limite mínimo da pena de prisão é reduzido a um quinto se for igual ou superior a três anos e ao mínimo legal se for inferior (cit. al.b).
Deste modo, o crime de violência doméstica, previsto e punido, pelo artigo 152º, n.º 1, alínea b), do Código Penal, passa a ser punido com uma moldura penal abstracta de 1 (um) mês a 3 (três) anos e 4 (quatro) meses de prisão
E crime de abuso sexual de criança, previsto e punido, pelo artigo 171, n.ºs 1 e 2, do Código Penal, passa a ser punido em abstracto com a uma moldura penal mínima de 7 (sete) meses e 6 (seis) dias e máxima de 6 (seis) anos e 8 (oito) meses de prisão.
Passando agora a determinação da medida concreta das penas a aplicar ao arguido há que ter em conta que as mesma tem que ser aferida de acordo com os critérios presentes no artigo 71° do Código Penal, devendo, a fixação da pena, ser feita em função da culpa do agente e das exigências de prevenção, atendendo-se a todas as circunstâncias que, não fazendo parte do tipo de crime, depuserem a favor do agente ou contra ele.
Os critérios para aferir a medida concreta da pena são, pois, a culpa e a prevenção. O primeiro fornece o limite máximo da pena que ao caso cabe aplicar, o qual não pode nunca ser excedido, sob pena de se denegar o fundamento último de toda e qualquer punição criminal e que é a dignidade humana, conforme disposto no artigo 40°, n° 2, do Código Penal. Sendo, depois, razões de prevenção geral, de integração, e especial, de socialização, que condicionam a medida final e concreta da pena.
Assim, e seguindo a doutrina do Professor Figueiredo Dias (na obra Direito Penal Português - As consequências Jurídicas do Crime, 1994, pág. 154), importa encontrar uma medida óptima de tutela dos bens jurídicos e das expectativas comunitárias.
Abaixo dessa medida é possível encontrar outros pontos em que aquela tutela é ainda efectiva e consistente. Isto até se atingir um limiar mínimo, abaixo do qual já não é comunitariamente suportável a fixação da pena sem se pôr irremediavelmente em causa a sua função tutelar. Entre aquela medida óptima de tutela dos bens jurídicos e este limiar mínimo actuam pontos de vista de prevenção especial de socialização, sendo eles que vão determinar, em último termo, a medida da pena.
A culpa, por seu turno, constitui um limite inultrapassável de todas e quaisquer considerações preventivas, sendo certo que, se entende que no juízo de culpa deve predominar a culpa pelo facto, de acordo com o decidido no Acórdão da Relação de Coimbra de 17.01.96 (CJ, XXI, t. 1, p. 40), segundo o qual "parte-se, assim, de uma concepção de culpa, referida ao facto, em que a personalidade do agente só releva para a culpa na medida em que se exprime no ilícito típico e o fundamenta" e "o juízo de culpa é sempre um juízo de desvalor sobre o agente em razão do seu comportamento num certo momento, qual seja o do cometimento do ilícito típico".
Posto isto, ter-se-ão em conta, as circunstâncias pessoais e gerais supra mencionadas:
O modo de execução dos ilícitos penais por parte do arguido que se traduziu, no que respeita ao crime de violência doméstica em agredir fisicamente a ofendida, com bofetadas, puxões de cabelos, pontapés e murros no rosto, atingindo-a no nariz e provocando-lhe ferimentos que lhe determinaram 10 dias de doença, sem incapacidade para o trabalho, em injuriá-la, na via pública, chamando-lhe «puta e só queres levar na cona» e, em ameaçá-la que se iria vingar e de que a matava, causando-lhe, naturalmente receio.
Quanto ao crime de abuso sexual de crianças dentro da ilicitude própria deste crime e da gravidade que reveste sempre o atentado à autodeterminação sexual de uma criança, no caso concreto dos autos, os factos não têm contornos de uma ilicitude especialmente intensa, atenta o contexto em que os mesmos ocorrerem. O arguido e a ofendida iniciaram uma relação de namoro e, ao fim de 1 ano de namoro, mantiveram relações sexuais de cópula completa que perdurou por mais cerca de 5 meses, num total de 26 vezes, as quais vieram a terminar com o fim do namoro.
O dolo do agente foi directo e no contexto dos crimes cometidos de média intensidade.
O arguido não tem antecedentes criminais.
Tinha na data dos factos 16 anos de idade.
Confessou na sua essencialidade a prática dos factos.
Embora se encontre, actualmente desocupado, verbalizou vontade de frequentar um curso que lhe dê equivalência ao 12º ano de escolaridade ou, alternativamente, o início de actividade profissional em stand de automóveis ou em actividade hoteleira, o que abona a seu favor, pois demonstra ter objectivos para o futuro.
As necessidades de prevenção especial não se mostram elevadas, tendo em conta que o arguido não tem antecedentes criminais e encontra-se integrado no agregado familiar de origem, composto pelos seus progenitores e por 2 (dois) irmãos mais novos, numa dinâmica coesa, com laços de união e entreajuda entre os membros, mantendo convívio com membros da família alargada.
As necessidades de prevenção geral são elevadas dada a crescente frequência com que estes crimes se cometem e a extrema necessidade de acautelar a autodeterminação sexual de crianças e a segurança física do corpo das vítimas, a sua integridade psíquica e a sua dignidade como pessoas humanas, multiplicando-se, cada vez mais, os casos de violência no namoro.
Assim, ponderados os factores supra descritos, considera-se adequada a aplicação ao arguido, pela prática de um crime de violência doméstica, previsto e punido, pelo artigo 152, n.º 1, alínea b), do Código Penal a pena de 1 (um) ano e 3 (três) meses de prisão.
E, pela prática de cada um dos 26 crimes de abuso sexual de criança, previsto e punido, pelo artigo 171, n.ºs 1 e 2, a pena de 1 ano e 9 (nove) meses de prisão.
Nos termos do disposto no artigo 77° do Código Penal, deve operar-se o cúmulo jurídico das penas parcelares acima referidas, tendo a pena aplicável, como limite máximo a soma das penas concretamente aplicadas aos vários crimes e como limite mínimo a mais elevada das penas concretamente aplicadas.
Assim e ponderando de novo o conjunto dos factos e a personalidade do arguido, nos temos do art.77º, considera-se como adequada e justa a pena única de 4 (quatro) anos de prisão.
Da suspensão da execução da pena.
Dispõe o artigo 50.º n.º 1 do Código Penal que, «O tribunal suspende a execução da pena de prisão aplicada em medida não superior a 5 anos se, atendendo à personalidade do agente, às condições da sua vida, à sua conduta anterior e posterior ao crime e às circunstâncias deste, concluir que a simples censura do facto e a ameaça da prisão realizam de forma adequada e suficiente as finalidades da punição».
A suspensão da execução da pena de prisão tem como pressuposto formal a pena de prisão aplicada não ser superior a 5 anos.
A este pressuposto acresce ainda um pressuposto material que implica, nas palavras de Figueiredo Dias (IN «CONSEQUÊNCIAS JURÍDICAS DO CRIME», AEQUITAS, 1993, P. 242 E 243), que «...o tribunal, atendendo à personalidade do agente e às circunstâncias do facto, conclua por um prognóstico favorável relativamente ao comportamento do delinquente: que a simples censura do facto e a ameaça da pena (...) bastarão para afastar o delinquente da criminalidade. Para a formulação de tal juízo – ao qual não pode bastar nunca a consideração ou só a personalidade, ou só das circunstâncias de facto – o tribunal atenderá especialmente às condições de vida do agente e à sua conduta anterior e posterior ao facto.»
Nos presentes autos as necessidades de prevenção especial não são especialmente elevadas uma vez que o arguido não tem antecedentes criminais e mostra-se familiarmente inserido
Há a considerar, igualmente, o contexto em que foram praticados os factos e a idade do arguido, naquela data, 16 anos de idade.
Deste modo, atendendo à personalidade do agente, às condições da sua vida, à sua conduta anterior e posterior ao crime e às circunstâncias deste, conclui-se que a ameaça da pena de prisão por um período relativamente longo realiza de forma adequada e suficiente as finalidades da punição.
Pelo que fica exposto, julga-se adequado suspender a execução da pena única a aplicar ao arguido pelo período de 3 (três) anos, acompanhada de regime de prova, nos termos do art.º 50º, nºs 1, 2 e 5, do Código Penal.
Procede, assim, nos termos expostos, o recurso interposto pelo arguido, devendo, pois, ser alterado o acórdão recorrido em conformidade.
III - Decisão:
Face ao exposto, acorda-se em julgar parcialmente procedente o recurso interposto pelo arguido M_______ e, em consequência, decide-se:
- Pela prática, em autoria material, na forma consumada de um crime de violência doméstica, previsto e punido, pelo artigo 152, n.º 1, alínea b), do Código Penal, condenar o arguido na pena de 1 (um) ano e 3 (três) meses de prisão;
- Pela prática, em autoria material, na forma consumada e em concurso efectivo, de 26 (vinte e seis) crimes de abuso sexual de criança, previsto e punido, pelo artigo 171, n.ºs 1 e 2, do Código Penal, condenar o arguido na pena de 1 (um) ano e 9 (nove) meses de prisão, por cada um deles.
- Em cúmulo jurídico, condenar o arguido M_______ na pena única de 4 (quatro) anos de prisão que se declara suspensa na sua execução pelo período de 3 (três) anos com regime de prova.
- Em tudo o mais mantém-se a acórdão proferido.
Sem custas dado a procedência do recurso não sendo de relevar para efeito de custas a parte não procedente.
Texto processado e integralmente revisto pela relatora, a primeira signatária
Lisboa, 22 de Abril de 2020
Ana Costa Paramés
Graça Santos Silva