PLANO DE RECUPERAÇÃO
HOMOLOGAÇÃO
TÍTULO CAMBIÁRIO
NORMA IMPERATIVA
GARANTIA
AVALISTA
Sumário

I. É aplicável ao plano de recuperação aprovado em sede de PER o disposto no artigo 217.º, n.º 4, do CIRE, porquanto não existe um distanciamento em termos de conteúdo, finalidade e efeitos do plano de recuperação gizado no PER ou no processo de insolvência (quando, neste processo, não seja meramente liquidatário do passivo da empresa) que evidencie incompatibilidades que justifiquem, sem mais, que não seja aplicável ao PER o referido preceito legal, que regula os efeitos das providências aprovadas no plano de recuperação na insolvência em relação às obrigações dos codevedores ou terceiros garantes da obrigação.
II. Decorre do regime jurídico do aval, enquanto obrigação de garantia da obrigação cartular titulada pela letra ou pela livrança, a inexistência de fundamento válido que justifique o afastamento da aplicação do artigo 217.º, n.º 4, do CIRE, ao plano de recuperação no âmbito do PER quando o mesmo tenha introduzido modificações na estrutura da obrigação do devedor principal, seja quanto à existência e montante dos direitos dos credores, seja apenas quanto aos prazos de cumprimento da obrigação subjacente.
III. A cláusula inserida no plano que não leva em consideração a natureza jurídica do aval consagrado na LULL, nomeadamente nos seus artigos 30.º, 32.º, 47.º e 77.º, introduzindo dilações temporais quanto à exigibilidade de pagamento aos avalistas, condicionando o direito de ação dos portadores dos títulos cambiários (livranças avalizadas) ao cumprimento do plano (reembolso aprovado nos termos do plano) à revelia daqueles normativos de cariz imperativo, constitui violação não negligenciável do conteúdo do plano determinante da sua não homologação, nos termos dos artigos 215.º e 217.º, n.º 4, do CIRE ex vi dos artigos 17.º-A, n.º 3 e 17.º-F, n.º 7, do mesmo diploma legal.

Texto Integral

Acordam na 1.ª Secção do Tribunal da Relação de Lisboa

I – RELATÓRIO
No Processo Especial de Revitalização (doravante, PER), em 12-12-2019 (Ref.ª 143286679 – fls. 252-261), foi homologado o plano de recuperação de J…., LDª.
No que ora releva para este recurso, a sentença homologatória analisou os pedidos de não homologação apresentados por dois credores bancários (Banco Santander Totta, SA e Banco BIC Português, SA), que alegaram que, a cláusula inserida no plano de recuperação que prevê que «As instituições de crédito ficam inibidas de accionar os avalistas, que manterão essa qualidade, enquanto o presente plano estiver a ser cumprido», é contrária ao disposto no artigo 217.º, n.º 4, do CIRE.
O tribunal a quo, porém, louvando-se no acórdão do STJ de 29-01-2019 (P. n.º 1563/16.4T8AMT.P1.S2, em www.dgsi.pt) entendeu que não afetando o plano de recuperação a existência ou o montante dos créditos daquelas instituições bancárias, mas apenas o tempo de cumprimento, e não contendendo tal medida de modo excessivo ou desequilibrado com os interesses daqueles credores, não havia motivo para a recusa da homologação.
Inconformado, o credor BANCO BIC PORTUGUÊS, SA interpôs recurso, apresentando as seguintes conclusões:
1. No âmbito dos presentes autos a devedora apresentou plano de recuperação que contém cláusula com o seguinte teor: "As instituições de crédito ficam inibidas de acionar os avalistas, que manterão essa qualidade, enquanto o presente plano estiver a ser cumprido".
2. A ora recorrente votou contra o plano apresentado e requereu a sua não homologação requerendo subsidiariamente que tal cláusula se considerasse, pelo menos, como não escrita, por violar frontalmente o disposto no n° 4 do art° 217°, aplicável ao PER ex vi do n° 3 do art°. I 7° - A, todos do CIRE.
3. A Sentença de que se recorre homologou o plano de insolvência entendendo que, uma vez que há homologação do plano e seu cumprimento, os garantes não podem ser chamados a cumprir, na medida em que não há ainda incumprimento (pressuposto do accionamento do garante), entendendo ainda que, no caso concreto, não fará sentido aplicar o n° 4 do art°. 217° do CIRE ao PER (que seria apenas aplicável em caso de planos de insolvência), porquanto, as alterações que o plano impõe aos credores não serão excessivamente onerosas e a respectiva aplicação oneraria em demasiado os garantes, directamente ligados à mutuária.
4. Entende a recorrente que um dos pressupostos de que parte a Sentença a quo está errado, a saber: o pressuposto de que com a homologação do plano de recuperação o seu cumprimento não há incumprimento que motive o acionamento dos garantes/avalistas.
5. Entende a recorrente que esse incumprimento que motiva o acionamento dos garantes existe e é prévio à apresentação a PER.
6. Na verdade, a recorrente reclamou créditos no âmbito dos autos e foi-lhe reconhecido um crédito no montante total 250.867,69€, referente a três operações de crédito distintas, todas as operações de crédito estão garantidas e caucionadas por livranças devidamente avalizadas.
7. As três operações de crédito, à data em que a recorrente reclamou créditos, já se encontravam com, pelo menos, uma prestação vencida e não paga.
8. Nos termos contratuais, assiste o direito à recorrente de resolver os contratos de mútuo e proceder ao preenchimento das livranças, por incumprimento, entre outras situações, nos seguintes casos:
a. No caso de se encontrar vencida e não paga algumas das prestações acordadas,
b. Bem como no caso de a mutuária requerer ou ser objecto de processo especial de revitalização ou insolvência.
9. Nestes termos, no presente caso, nos termos contratuais, sempre poderia a ora recorrente proceder ao preenchimento das livranças avalizadas e executá-las, na medida em que se estaria perante situações de incumprimento das obrigações assumidas.
10. Entende ainda a Sentença recorrida, que a realidade sociológica portuguesa permite concluir que quem, usualmente, garante as obrigações das sociedades são os seus acionistas e/ou sócios, o que é um facto.
11. No entanto, daí não se deve retirar que não deve haver dupla penalização dos garantes ao accioná-los, mas antes, atentar no facto de que foram esses mesmos garantes (acionistas e/ou sócios) que negociaram os contratos de mútuo/obrigações contraídas e têm plena consciência que a apresentação da sociedade mutuária a PER faz nascer incumprimento e preenchimento da livrança por si avalizada.
12. Assim, essa proximidade à sociedade mutuária e devedora deve implicar uma maior consciencialização e responsabilização do garante.
13. As condições para pagamentos dos créditos aprovadas no presente PER e impostas aos credores, pelo menos ao aqui credor que votou contra o PER, divergem, em muito, das condições inicialmente contratadas para cada mútuo, quer em termos de tempo, taxas de juro e demais condições, sendo mais penalizadoras em termos de reembolso, o que a Sentença a ano não pode desconhecer.
14. Esquece ainda a Sentença de que o que a cláusula sub judice afasta é o acionamento do avalista, e o aval, como é sabido, constitui uma obrigação solidária. O avalista, devedor solidário, é um verdadeiro devedor do credor. Uma vez que estamos perante uma dívida solidária, rege o art. 519° do C.C., nos termos do qual, o credor tem o direito de exigir de qualquer dos devedores toda a prestação, podendo exigir a sua totalidade judicialmente, ao contrário do que sucederia no âmbito da fiança, com beneficio de excussão prévia, a que poderiam ser aplicados alguns argumentos da Sentença recorrida.
15. É certo ainda que, ao contrário do defendido na Sentença homologatória, o art° 217.°, n.° 4 do CIRE, é aplicável ao PER por força do estatuído no n° 3 do artigo 17.°-A também do CIRE e não só aos processos de insolvência, que acabem por aprovar planos de insolvência.
16. Um plano de insolvência ou um plano de recuperação, a grande maioria das vezes, centra-se na recuperação da empresa e tal objetivo não é ignorado pelo CIRE. Assim, quando o próprio CIRE, no n° 3 do art°. 17°-A, refere que ao PER se plicam todas as normas previstas no código, não pretende certamente excluir o n° 4 do art°. 217°, referente aos planos de insolvência — tanto o PER, como o plano de insolvência, têm como objectivo salvar uma empresa, não devendo distinguir-se onde o legislador não pretendeu distinguir ou excluir onde o legislador não excluiu.
17. Entende-se que o legislador, propositadamente, visou que o credor, independentemente da posição assumida no processo, após a homologação do plano de recuperação, mantivesse incólume os direitos de que dispunha contra os condevedores e garantes.
18. O plano, votado e homologado, apenas vincula os credores em relação à sociedade cuja revitalização visa promover, não sendo vinculativo em relação aos terceiros, sejam estes garantes ou condevedores daquela sociedade, os quais não são abrangidos pelo processo de revitalização e pelo que nele foi deliberado.
19. E é certo que se tem vindo a consolidar a posição que defende uma interpretação não limitativa, que afasta dos condevedores ou terceiros garantes o benefício de qualquer medida aprovada no processo de revitalização, ao contrário do que defende a Sentença.
20. O n.° 4 do citado normativo é também aplicável, com as necessárias adaptações aos PER, por interpretação extensiva que o artigo 17.° - A do CIRE não arreda, antes consente.
21. Acresce que o n° 1 do artigo 17.°-E obsta à instauração de quaisquer ações para cobrança de dívidas contra a empresa e, durante todo o tempo em que perdurarem as negociações, suspende, quanto à empresa, as ações em curso com idêntica finalidade, extinguindo-se aquelas logo que seja aprovado e homologado plano de recuperação, salvo quando este preveja a sua continuação.
22. Repare-se que nada é dito, porém, relativamente aos garantes dos credores da empresa sujeita a PER, se fosse intenção do legislador colar os efeitos do PER ao acionamento dos garantes, certamente o teria previsto expressamente. O Legislador não o fez e manteve o n° 4 do art°. 217° para ele remetendo através do n° 3 do art°. 17° - A do CIRE.
23. Assim, deveria ter concluído a Sentença a quo que os credores, deveriam manter intactos os direitos que detêm sobre os terceiros garantes, podendo exigir deles tudo aquilo por que respondem, independentemente da natureza acessória da obrigação que hajam assumido.
A devedora respondeu ao recurso, pugnando pela confirmação da sentença homologatória.
O recurso foi admitido por despacho de 06-02-2020.
Foram colhidos os vistos.
II- FUNDAMENTAÇÃO
A- Objeto do recurso
Delimitado o objeto do recurso pelas conclusões apresentadas, sem prejuízo das questões que sejam de conhecimento oficioso e daquelas cuja decisão fique prejudicada pela solução dada a outras (artigos 635.º, n.ºs 3 e 4, 639.º, n.º 1 e 608.º, n.º 2, do CPC), não estando o tribunal obrigado a apreciar todos os argumentos apresentados pelas partes para sustentar os seus pontos de vista, sendo o julgador livre na interpretação e aplicação do direito (artigo 5.º, n.º 3, do CPC), a principal questão que o recurso coloca é a da aplicação do artigo 217.º, n.º 4, do CIRE, ao plano de recuperação alcançado no PER.
B- De Facto
Os factos relevantes para apreciação do objeto do recurso constam do antecedente Relatório, colhendo-se ainda dos autos o seguinte:
1. Na versão final do plano de recuperação no ponto IV, C.1. referente a Medidas Propostas, Dívidas a Instituições de Créditos (doc. fls.221-233), consta o seguinte:
«No que respeita às dívidas a Instituições de Créditos propõe-se o seguinte:
Pagamento de 100% da dívida reclamada no prazo de 60 prestações mensais e progressivas, com capitalização dos juros e encargos vencidos, até à data do trânsito em julgado da homologação do plano, sendo a progressividade a seguinte:
(…)
As instituições de crédito ficam inibidas de acionar os avalistas, que manterão essa qualidade, enquanto o presente plano estiver a ser cumprido.»;
2. Consta da lista de créditos provisória convertida em definitiva o reconhecimento dos seguintes créditos do BANCO BIC PORTUGUÊS, SA: (i) capital e juros no montante de €100.158,18; (ii) capital e juros no montante de €62.698,97; (iii) capital e juros no montante de capital e juros no montante €88.009,54; tudo no montante global de €250.876,69, todos garantidos e caucionados por livranças avalizadas (doc. fls. 190-199);
3. O BANCO BIC PORTUGUÊS, SA votou desfavoravelmente o plano (doc. de fls. 240-241v).
C- De Direito
1.  O objeto do recurso prende-se com a aplicação do artigo 217.º, n.º 4, do CIRE, à cláusula inserta no plano de recuperação aprovado em sede de PER, com o seguinte teor: «As instituições de crédito ficam inibidas de acionar os avalistas, que manterão essa qualidade, enquanto o presente plano estiver a ser cumprido».
A questão, como é sabido, não recebe uma resposta unívoca na jurisprudência e na doutrina, seja na perspetiva da homologação o plano de recuperação em sede de PER, como sucede no caso presente, seja na perspetiva da suspensão da execução intentada contra os avalistas no âmbito da pendência do PER, situação que igualmente convoca a interpretação do artigo 217.º, n.º 4, do CIRE, conjugado com o regime do artigo 88.º do CIRE.
No presente recurso, a questão colocada reporta-se à primeira vertente, ou seja, à aplicação do artigo 217.º, n.º 4, do CIRE, ao plano aprovado em sede de PER, sendo que a questão sempre terá de ser ponderada em face do regime da concreta garantia em causa nos autos, no caso, a existência de créditos em incumprimento garantidos e caucionados por livranças subscritas pela devedora, ora apelada, e avalizadas por terceiros.
A sentença recorrida homologou o plano de recuperação louvando-se nos fundamentos acolhidos no acórdão do STJ de 29-01-2019 (P. n.º 1563/16.4T8AMT.P1.S2, em www.dgsi.pt).
O STJ ponderou nesse acórdão a aplicação do artigo 217.º, n.º 4, do CIRE, a um plano de recuperação aprovado num PER onde foi inserida uma cláusula similar à do presente PER que dispunha do seguinte modo: «Durante o prazo de execução do Plano, desde que não se verifique a ocorrência de algum incumprimento, os credores obrigam-se a não acionar os avalistas ou fiadores de qualquer uma das dívidas inseridas no Plano de Revitalização».
Em suma, concluiu o STJ que: (i) com a aprovação do plano de recuperação que estabelece uma moratória em termos de cumprimento da obrigação, a condição necessária para o garante ser chamado a cumprir em vez do devedor principal ainda não se verifica; (ii) não se verificando o incumprimento da obrigação, nem afetação quantitativa do crédito, a execução da obrigação modificada deve aproveitar aos garantes, sobretudo se a dilação temporal relativa ao cumprimento da obrigação não foi irrazoavelmente excessiva ou desequilibrada face à capacidade económico-financeira dos sujeitos envolvidos (credor e garantes); (iii) a eficácia vinculativa  do plano de recuperação não tem de se confinar, de forma absoluta, ao devedor principal e credor(es) ignorando completamente os que prestam garantias pessoais, tanto mais que o princípio da relatividade dos contratos consagrado no artigo 406.º, n.º 2, do Código Civil não é um princípio absoluto e hermético.
O acórdão em causa revogou o aresto proferido pela Relação do Porto em 19-03-2018, em cujo sumário se lê o seguinte:
«I- Do confronto da norma revogada (art.º 63.º do CPEREF) com a que lhe sucedeu (n.º 4 do art.º 217.º do CIRE), conclui-se que o legislador, deliberadamente, visou que o credor, independentemente da posição assumida no processo, após a homologação do plano de recuperação mantivesse incólume os direitos de que dispunha contra os condevedores e garantes.
II - É nula, por violação de norma imperativa (n.º 4 do art.º 217.º do CIRE), a cláusula integrante do Plano de Recuperação, com o seguinte teor: «Durante o prazo de execução do Plano, desde que não se verifique a ocorrência de algum incumprimento, os credores obrigam-se a não accionar os avalistas ou fiadores de qualquer uma das dívidas inseridas no Plano de Revitalização».
III - Atento o disposto no art.º 292.º do CC, haverá que suprimir a cláusula viciada, mantendo a homologação do plano na parte restante.»
Os dois acórdãos têm a virtualidade colocar em perspetiva as diferentes posições que a jurisprudência e a doutrina tem vindo a defender quanto à questão em discussão e que se resumem a saber se as medidas adotadas no PER no que concerne a condicionamentos quanto ao tempo de cumprimento da obrigação incumprida, estabelecendo moratórias, se estendem ou não aos codevedores e garantes.
Quanto à modificação da obrigação incumprida referente à existência e montante dos direitos dos credores, ainda que a questão se possa colocar no que concerne à aplicação do artigo 217.º, n.º 4, do CIRE, ao plano de revitalização alcançado no PER, julgamos que a maioria da jurisprudência e doutrina defende a aplicação do preceito quando haja modificação quanto à existência ou montante do crédito, sendo que nestes autos, tal discussão irreleva para a apreciação do recurso, porquanto a cláusula em apreço não modificou ou extinguiu a existência e montante dos créditos.
Por conseguinte, a questão em apreço encontra-se exatamente delimitada e consiste em saber se a moratória quanto ao cumprimento das obrigações vencidas e em incumprimento por parte das devedora principal (empresa que iniciou o PER), enquanto o plano se encontrar em cumprimento, também aproveita aos garantes (avalistas) que avalizaram livranças subscritas pela devedora no âmbito da relação subjacente ou causal.
Na análise desta questão, importa, antes de mais, resolver uma questão primeira que é a da aplicação do artigo 217.º, n.º 4, do CIRE ao processo de revitalização, uma vez que o referido normativo encontra-se inserido no Capítulo IIII que regula a execução do plano de insolvência e seus efeitos, o qual, por sua vez, faz parte do Título IX, que regula o plano de insolvência, ou seja, o normativo está gizado para o plano de insolvência e não para o plano de recuperação em sede de PER.
Não nos suscita qualquer dúvida que o artigo 217.º, n.º 4, do CIRE é aplicável em sede de PER.
O artigo 17º-F, n.º 7, do CIRE, inserido no conjunto normativo referente à homologação ou recusa de homologação do plano de recuperação conducente à revitalização da empresa, estipula são aplicáveis «com as necessárias adaptações, as regras previstas no título IX, em especial o disposto nos artigos 194.º a 197.º, no n.º 1 do artigo 198.º e nos artigos 200.º a 202.º, 215.º e 216.º.»
Também o artigo 17.º-A, n.º 3, na redação dada pelo Decreto-Lei n.º 79/2017, de 30-06, veio aditar à redação inicial o segmento que estipula que se aplicam ao processo de revitalização «todas as regras previstas no presente código que não sejam incompatíveis com a sua natureza.»
Assim, pelo menos após 01-07-2017, dada de entrada em vigor do referido Decreto-Lei n.º 79/2017, a aplicação ao PER do artigo 217.º, n.º 4, do CIRE, aplica-se subsidiariamente dada a remissão consignada no referido n.º 3 do artigo 17.º-A.
Sendo que, na verdade, a redação do n.º 7 do artigo 17.º-F era meramente exemplificativa, pelo que também já antes de 01-07-2017, a lei permitia essa aplicação subsidiária.
A questão, porém, é se a referida norma do artigo 217.º, n.º 4, do CIRE, atenta a sua finalidade deve ser aplicável ao PER, uma vez que é o critério da compatibilidade finalística o decisivo para o legislador e, por isso, é esse o que deve nortear o intérprete na aplicação do normativo ao plano de recuperação aprovado no âmbito do processo de revitalização.
Antes das alterações introduzidas ao CIRE pela Lei n.º 16/2012, de 20-04 (em vigor desde 20-05-2012), que instituiu o processo especial de revitalização, aditando ao CIRE os artigos 17º.-A a 17.º-J, reformulando ainda a redação do artigo 1.º do mesmo Código, o paradigma do processo de insolvência era a liquidação do património do devedor insolvente e a repartição do produto pelos credores.
Com essa alteração ocorreu uma inversão desse paradigma, passando para a primeira linha, em termos de finalidade do processo de insolvência, a recuperação da empresa compreendida na massa insolvente. Nesse pressuposto, o plano de recuperação, que não seja um mero plano de liquidação, destina-se «a prover à recuperação do devedor» (artigo 192.º, n.º 3, do CIRE) mediante a adoção de várias medidas com incidência no passivo do devedor que podem passar, como estipula o artigo 196.º, n.º 1, alíneas a) a e), do CIRE, por extinguir total ou parcialmente créditos sobre a insolvência, incidindo sobre o capital e juros, condicionamento dos reembolsos de todos os créditos ou parte deles à disponibilidade do devedor, modificação de prazos de vencimento ou de taxas de juros, constituição de garantias, cessão de bens aos credores, entre outras, uma vez que o elenco inscrito na norma é meramente exemplificativo.
Por sua vez, o plano de recuperação aprovado no âmbito do PER contém um conjunto de medidas destinado à sociedade que visa a recuperação e à reestruturação do passivo do devedor, podendo nomeadamente prever uma redução das prestações mensais, condicionantes ao cumprimento, dilatando os prazos de pagamento com a introdução de moratórias, redução de juros, e ainda, eventualmente, um perdão de parte do capital das dívidas (artigos 17.º-A, n.º 1, 17.º-F, n.º 1, e 196.º  do CIRE).
É certo que, formalmente, o plano de insolvência e o plano de recuperação, aprovado no âmbito de um processo especial de revitalização, são realidades jurídicas distintas, embora, na prática, como já tem sido notado em alguns arestos, a diferenciação não se reconduz tanto ao conteúdo e objetivos, que são essencialmente semelhantes (adoção de um conjunto de providências que se destinam a satisfazer os direitos dos credores pela forma que se entenda necessária para permitir a efetiva recuperação e viabilidade económica do devedor), mas antes à circunstância de se inserirem em processos distintos (processo de insolvência ou processo de revitalização), sendo que, no primeiro caso, o plano incide sobre um devedor já declarado insolvente, incidindo, no segundo caso, sobre um devedor que está em situação económica difícil ou em situação de insolvência meramente iminente, designadamente por falta de liquidez ou por não conseguir obter crédito.
No que concerne ao âmbito e efeitos do plano, cabe referir que o processo de insolvência tem caráter universal nele intervindo todos os credores e a todos vinculando (artigo 1.º, n.º 1, 128.º, n.ºs 1 e 5, do CIRE).
O PER não comunga dessa universalidade no que concerne à obrigatoriedade de todos os credores participarem ou reclamarem os seus créditos (cfr. artigo 17.º-D, n.ºs 1 e 7, do CIRE).
Porém, a decisão homologatória do plano de recuperação vincula a empresa e os credores, «mesmo [aqueles] que não hajam reclamado os seus créditos ou participado nas negociações, relativamente aos créditos constituídos à data em que foi proferida a decisão prevista no n.º 4 do artigo 17.-C», ou seja, despacho que nomeia o administrador judicial provisório (cfr. artigo 17.º-F, n.º 10). Donde se extraí que, no que diz respeito aos efeitos do plano de recuperação e providência adotadas, obriga todos os credores do devedor da mesma forma.
Não existe, pois, um distanciamento em termos de conteúdo, finalidade e efeitos do plano de recuperação gizado no PER ou no processo e insolvência (quando, neste processo, não seja meramente liquidatário do passivo da empresa) que evidencie incompatibilidades que justifiquem, sem mais, que não seja aplicável ao PER o regime do artigo 217.º do CIRE, que regula a execução do plano e os seus efeitos, mormente o n.º 4 do preceito, que se reporta aos efeitos das providências aprovadas no plano de recuperação na insolvência no que concerne às obrigações dos codevedores ou terceiros garantes da obrigação.
2. Chegados a esta conclusão, impõe-se agora analisar a previsão normativa do referido comando legal, em ordem a identificar os seus pressupostos ou requisitos da sua aplicação.
O artigo 217.º, n.º 4, do CIRE, estipula do seguinte modo:
“As providências previstas no plano de insolvência com incidência no passivo do devedor não afetam a existência nem o montante dos direitos dos credores da insolvência contra os codevedores ou os terceiros garantes da obrigação, mas estes sujeitos apenas poderão agir contra o devedor em via de regresso nos termos em que o credor da insolvência pudesse exercer contra ele os seus direitos.»
Este preceito foi introduzido no CIRE de forma inovatória já que o correspondente artigo 63.º do CPEREF dispunha de modo diverso, prescrevendo do seguinte modo: «As providências de recuperação a que se refere o artigo anterior não afectam a existência nem o montante dos direitos dos credores contra os co-obrigados ou os terceiros garantes da obrigação, salvo se os titulares dos créditos tiverem aceitado ou aprovado as providências tomadas e, neste caso, na medida da extinção ou modificação dos respectivos créditos.»
Este elemento histórico, na verdade, e no que ora está em causa, apenas indica que o legislador da lei pretérita, ao contrário do legislador do CIRE, não fez depender o exercício ou direito de ação do credor em relação aos codevedores e garantes da postura que o credor adotou em relação à votação do plano.
No âmbito do CPEREF o credor ao aprovar a providência ficava imediatamente impedido de atuar contra os coobrigados e garantes na exata medida ou modificação do direito.
Na lei vigente, o direito de ação do credor contra os terceiros codevedores e garantes não depende, pelo menos na literalidade da norma, do seu sentido de voto.
A alteração legislativa parece evidenciar que escopo do artigo 217.º, n.º 4, do CIRE, é essencialmente a obtenção da aprovação de um plano de recuperação de forma que compatibilize os interesses dos credores e do devedor, mantendo o credor, independentemente da posição que adote quanto à votação do plano, incólume os direitos que dispunha contra os codevedores e terceiros garantes podendo deles tudo exigir em conformidade como regime obrigacional que resulta das obrigações assumidas e das garantias que prestaram.
Se assim é quando esteja em causa a existência e montante do direito de crédito, dado o elemento literal do preceito e o escopo acima referido, a questão coloca-se em relação à modificação dos prazos de cumprimento ou moratórias de pagamento porquanto o artigo 217º, n.º 4, do CIRE (tal como o antecedente artigo 63.º do CPEREF) não dispõe expressamente sobre esta questão.
Alguma doutrina e jurisprudência tem defendido que o artigo 217.º, n.º 4, do CIRE, não é aplicável quando apenas estejam em causa modificações do direito de crédito relativas ao tempo de cumprimento da obrigação, sendo o expoente máximo dessa tese o referido acórdão do STJ no qual a sentença recorrida se baseou.
Entendimento que segue a posição doutrinária expressa por Catarina Serra (de resto, subscritora do aresto como 1.ª Adjunta) na sua obra Lições de Direito da Insolvência (Almedina, abril, 2008, p. 446-453) onde defende que, ao contrário do que sucedia no domínio do CPEREF, o artigo 217.º, n.º 4, do CIRE, concede uma tutela excecional aos credores, limitada aos casos de extinção do crédito e de redução do seu montante, não prevendo a literalidade do preceito que tal tutela se estenda aos casos de condicionamentos do reembolso, à modificação do prazo de vencimento ou à moratória.
Acrescentando, ainda, e agora numa perspetiva que atende aos efeitos práticos de interpretação diversa, que impedir que as modificações supra referidas se estendam aos terceiros garantes seria o mesmo que consentir num venire contra factum proprium (na suposição que os credores votaram favoravelmente o plano) e, simultaneamente, possibilitar que o credor se desinteresse de imediato do PER, concentrando-se na perseguição do garante, realçando que a interpretação que defende não se revela intolerável ou excessivamente oneroso para o credor, porquanto não está em causa o retirar à garantia a sua finalidade natural (garantia de cumprimento e segurança do comércio jurídico), devendo, antes, ser contextualizada no âmbito da recuperação do devedor, situação que adquire respaldo na relatividade do princípio da liberdade contratual (artigo 406.º, n.º 2, do Código Civil), ao abrigo do qual são admissíveis as modificações às formas de satisfação e cumprimento do crédito.
Esta interpretação, contudo, não tem tido grande adesão na jurisprudência e doutrina, afigurando-nos que maioritariamente é defendido precisamente o inverso.
Efetivamente, a maioria da jurisprudência tem aplicado o artigo 217.º, n.º 4, do CIRE extensivamente às situações de moratória quanto ao cumprimento da obrigação, referenciando a «identidade de razão» dessa situação com aquelas especificamente previstas na norma referentes à existência e montante dos direitos dos credores.
A razão de ser radica no facto de não haver motivo sensivelmente diferente para distinguir entre modificação do direito de crédito em relação à existência e montante do mesmo e a mera alteração dos prazos de cumprimento da obrigação. Estaria, assim, no espírito e na finalidade da norma também abranger esta última situação, ainda que a estrita literalidade do preceito tenha ficado aquém, impondo-se, por isso, uma interpretação extensiva da norma (artigo 9.º do Código Civil).
Na doutrina destaca-se o pensamento de Carvalho Fernandes e João Labareda (Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas Anotado, QJ, 3.ª edição, p, 793-794, na anotação 14 ao artigo 127.º do CIRE) que, embora reconheçam que a solução não decorre da literalidade do preceito, o espírito que lhe preside e os fins que o determinaram não podem conduzir a soluções diversas, concluindo que não se vislumbra que haja razões determinantes que impliquem maior proteção dos credores quando se esteja perante uma extinção total ou parcial da dívida ou um simples reescalonamento do seu pagamento.
Realçando também os efeitos perversos dessa interpretação, contrários aos interesses do credor e do devedor, já que, por um lado, criar-se-ia um obstáculo à aprovação de planos de reescalonamento da dívida por parte de credores com garantias pessoais e, por outro lado, os credores seriam induzidos a preferir o perdão à recalendarização, o que redundaria em prejuízo para os garantes, a que ainda acresce uma constatação de natureza prática, já que frequentemente os dois tipos de medidas (perdão total ou parcial do direito de crédito, por um lado, e moratórias quanto ao cumprimento, por outro) são adotadas em simultâneo no mesmo plano, afigurando-se algo estranho que a tutela do credor saísse reforçada precisamente quanto mais é prejudicado o interesse do garante.
Afigura-se-nos correto este entendimento, mas sobretudo é incontornável que a interpretação extensiva da previsão do artigo 217.º, n.º 4, do CIRE, aos casos em que o plano estabelece uma moratória quanto aos prazos de cumprimento da obrigação, não se pode desligar do regime jurídico da garantia que, no caso, seja aplicável.
Esse será efetivamente, em nosso entender, o critério definitivo que, perante cada caso concreto, há que ponderar aquando da prolação da decisão de homologação, ou de recusa dessa homologação, do plano de recuperação aprovado num PER que tenha consignado cláusulas como aquela que se apresenta na situação em análise.
O que nos remete para a questão do regime jurídico da garantia em causa nestes autos, ou seja, o aval da obrigação cartular titulada por livranças.
A livrança é um título de crédito à ordem cujo conteúdo envolve, além do mais, a promessa pura e simples por uma pessoa de pagar a outra determinada quantia (artigo 75.º da Lei Uniforme sobre Letras e Livranças - LULL).
Pela aposição da assinatura na livrança, o subscritor, emitente desta, obriga-se a pagá-la na data do vencimento, responsabilizando-se da mesma forma que o aceitante de uma letra (artigo 78.º da LULL), ou seja, obriga-se a pagar como obrigado principal na época de vencimento.
Como prescreve o artigo 77.º da LULL são aplicáveis às livranças as disposições relativas ao aval prescritas nos artigos 30.º a 32.º da LULL.
O aval, nos termos do artigo 30.º da LULL, é o ato pelo qual um terceiro ou um signatário da letra ou de uma livrança garante o pagamento desse título, por parte de um dos respetivos subscritores.
A função do aval é uma função de garantia (pessoal) das obrigações cartulares, inserida ao lado da obrigação de um certo subscritor cambiário, a cobri-la ou caucioná-la, sendo o dador de aval, nos termos do artigo 32.º, n.º 1, da LULL, responsável da mesma maneira que a pessoa por ele avalizada, o que significa que a medida da responsabilidade do avalista é a do avalizado.
Ou seja, a sua obrigação tem a mesma extensão e conteúdo que a do avalizado.
Porém, o aval é um garantia dada pelo avalista à obrigação cambiária e não em relação à obrigação extracartular ou subjacente, ou seja, a obrigação do avalista adquire a tipicidade das obrigações cambiárias (abstração, autonomia e literalidade).
O aval é irrevogável e não pode estar sujeito a condição, respondendo o avalista por uma obrigação autónoma, própria, direta e pessoal, não com o avalizado, mas perante o credor cambiário, pelo pagamento do título. O avalista garante que o título será pago e não que o avalizado o pagará. Daí que o avalista assuma igual responsabilidade cambiária de igual grau que a do avalizado.
Consequentemente, a obrigação do avalista subsiste independentemente da obrigação do avalizado, como resulta do artigo 32.º da LULL, ao estatuir que: «O dador de aval é responsável da mesma maneira que a pessoa por ele afiançada. A sua obrigação mantém-se, mesmo no caso de a obrigação que ele garantiu ser nula por qualquer razão que não seja um vício de forma»
Para além do vício de forma, apenas o avalista pode opor ao portador a exceção de pagamento, nada mais que se reporte a exceções passíveis de serem opostas pelo devedor principal ao respetivo credor.
Assim, «(…) a responsabilidade do avalista não é subsidiária da do avalizado. Trata-se de uma responsabilidade solidária. O avalista não goza do benefício da excussão prévia, mas responde pelo pagamento da letra solidariamente com os demais subscritores (art. 47º, I). Além de não ser subsidiária, a obrigação do avalista não é, senão imperfeitamente, uma obrigação acessória relativamente à do avalizado. Trata-se de uma obrigação materialmente autónoma, embora dependente da última quanto ao aspecto formal. De facto, a lei estabelece o princípio de que a obrigação do avalista se mantém, ainda que a obrigação garantida seja nula.» (Ferrer Correia, Lições de Direito Comercial, vol. III, Letra de Câmbio, Coimbra, 1966, p. 203 e ss).
Como se consignou no corpo do AUJ proferido em 11-12-2012 (DR, I Série, n.º 14, de 21-01-2013, p. 433 e ss) «o avalista não se obriga perante o avalizado mas sim perante o titular da letra ou livrança, constituindo uma obrigação autónoma e independente respondendo, como obrigado cartular, pelo pagamento da quantia titulada na letra ou livrança», acrescentando-se de seguida, «A circunstância de a relação subjacente se modificar ou possuir contornos de renovação não induz ou faz seguir que esses efeitos se repercutam ou obtenham incidência na relação cambiária. A relação cambiária constituída permanece independente às mutações ou alterações que se processem na relação subjacente, não acompanhado as eventuais transformações temporais e/ou qualidades da obrigação causal», para concluir que a funcionalidade e a estrutura do aval «não são passíveis de ser redutíveis a relações contratuais ou de concertação de vontades» e sendo uma figura jurídico-comercial distinta de outras garantias pessoais, mormente da fiança, o aval «não pode ser reconvertível a um contrato consensualizado entre o avalista e qualquer dos demais obrigados cambiários (…).»
Por força do disposto nos artigos 43º a 48º da LULL., aplicável ex vi do artigo 77º do mesmo diploma, o portador pode exercer o seu direito de ação contra qualquer obrigado cambiário, reclamando o pagamento da livrança não paga, bem como juros, despesas de protesto, avisos dados e outras despesas.
Diz-se no artigo 47º do mesmo diploma que «Os sacadores, aceitantes, endossantes ou avalistas de uma letra são todos solidariamente responsáveis para com o portador».
Esta solidariedade é uma solidariedade imprópria posto que aqueles não se encontram vinculados nos termos em que o estão os devedores na solidariedade passiva (artigo 512º e ss do Código Civil).
A solidariedade dos obrigados cambiários significa apenas que o portador do título pode exigir de qualquer dos responsáveis, individual ou coletivamente, a totalidade da letra ou de livrança, sendo o aceitante ou o subscritor o único obrigado direto, o devedor principal da prestação cambiária e, o sacador, endossante e respetivos avalistas são os obrigados indiretos.
É verdade que o avalista do subscritor da livrança responde perante o portador do título nos termos em que este responde, podendo ser acionado pelo portador, individualmente ou juntamente com os demais subscritores. Mas, como já referido, o avalista não é responsável ou não se obriga ao cumprimento da obrigação constituída pelo avalizado (obrigação subjacente), mas ao pagamento da quantia titulada no título de crédito (obrigação cartular), constituindo esta uma obrigação autónoma e independente daquela.
Ora, estas caraterísticas do regime jurídico do aval evidenciam que a obrigação do avalista é imune a alterações introduzidas por via contratual na estrutura da obrigação subjacente, ainda que até tenham sido aceites ou impostas pela regra das maiorias em sede de aprovação de um plano de recuperação em sede de PER.
Torna-se, pois, mais percetível que o legislador ao redigir o artigo 217.º, n.º 4, do CIRE, se tenha alheado até da questão da votação favorável do plano, uma vez que o direito de ação contra os codevedores e garantes apenas poderá sofrer limitação em função das normas substantivas que regem a contitularidade e as garantias prestadas. Daí que, salvo o devido respeito, não tenha qualquer apoio na lei defender que o devedor principal e o credor tenham a faculdade, ao abrigo do princípio da liberdade contratual, de limitar, ainda que temporariamente, o direito do credor contra o avalista das livranças subscritas pela devedora e avalizadas por terceiro quando a obrigação cartular garantida se encontra em incumprimento.
A questão é mesmo de inoponibilidade desse acordo por parte do avalista ao portador do título cambiário. Nada mais, nem menos do que isso. Donde decorre que o credor do direito não se encontra limitado no direito de acionar de imediato o avalista desde que haja incumprimento do pagamento por parte do devedor principal e ainda que o mesmo se encontre abrangido por um plano de recuperação insolvencial ou, dizemos nós, por identidade de razão, no âmbito de um PER.
A larga maioria da jurisprudência tem alinhado neste sentido e tem sido essa a jurisprudência que o STJ tem vindo a aplicar noutros arestos, mormente no âmbito da oposição à execução instaurada pelo credor contra o avalista estando o devedor principal abrangido por um plano de insolvência.
Vejam-se assim e exemplificativamente:
- Acórdão do STJ, de 04-05-2017 (P. n.º 206/14.5T2STC-A.E1.S1.S1, em www.dgsi.pt), com o seguinte sumário:
«I. O dador de aval de título cambiário é responsável da mesma maneira que a pessoa por ele afiançada.
II. O avalista não pode defender-se com as exceções próprias do avalizado, salvo quanto ao pagamento.
III. A exceção decorrente da aprovação do plano de recuperação da subscritora das livranças é inoponível ao portador das livranças.
(…).»
- Acórdão do STJ de 30-10-2014 (P. n.º 16713.7TBSCF-A.L1-A.S1, em www.dgsi.pt), com o seguinte sumário:
«I. A relação entre portador (exequente) e o avalista (executado) não constituiu uma relação imediata, revelando, isso sim e sempre, uma relação mediata, deste circunstancialismo jurídico-positivo se inferindo que não é tolerado ao avalista, na oposição à execução que venha deduzir, que faça valer quaisquer excepções fundadas nas relações pessoais do avalizado.
II. Deste modo, porque o plano de insolvência está, inexoravelmente, de fora da relação cartular configurada na livrança que se executa, esta ocorrência judicial não é suscetível de se impor na presente execução.»
- Acórdão do STJ, de 26-02-2013 (P. n.º 597/11.0TBSSB-A.L1.S1, em www. dgsi.pt), com o seguinte sumário:
«I. O aval é uma garantia prestada à obrigação cartular do avalizado.
II - O avalista não é sujeito da relação jurídica existente entre o portador e o subscritor da livrança, mas apenas da relação subjacente à obrigação cambiária estabelecida entre ele e o avalizado.
III - A razão de ser do art. 32.º da LULL é constituir o aval um acto cambiário que desencadeia uma obrigação independente e autónoma.
IV - A obrigação do avalista vive e subsiste independentemente da obrigação do avalizado, mantendo-se mesmo que seja nula a obrigação garantida, salvo se a nulidade provier de um vício de forma.
V - Por via dessa autonomia, o avalista não pode defender-se com as excepções que o seu avalizado pode opor ao portador do título, salvo a do pagamento.
VI - A aprovação de um plano de insolvência, com moratória para pagamento da dívida, de que beneficia a sociedade subscritora da livrança, não é invocável pelos avalistas contra quem é instaurada a execução para seu pagamento.»
Esta é, segundo cremos, a jurisprudência que tem vingado maioritariamente também na 2.ª instância, referindo-se que o argumento utilizado, por exemplo, no acórdão da Relação de Évora de 13-03-2014 (P., n.º 1327/13.7TBSTR.E1, em www.dgsi.pt) e no acórdão da Relação de Guimarães de 08-01-2015 (P. n.º 703/14.2TBBRG.G1, em www.dgsi.pt), ao defenderem que, cláusulas como aquela que está em causa nestes autos, não violam o artigo 217.º, n.º 4, do CIRE, nem o artigo 32.º da LULL por se tratar de uma condicionante não intolerável nem excessiva do direito dos avalistas em prol do direito do credor em face do bem maior que será a revitalização do devedor principal, acolhido pela maioria dos credores, argumento que a sentença recorrida também faz seu respaldando-se na jurisprudência do citado acórdão do STJ de 29-01-2019, olvida por completo que a obrigação do avalista se insere no âmbito da relação cambiária e não na relação subjacente e que a eficácia das alterações da obrigação causal apenas se refletem na obrigação do devedor principal, não sendo oponíveis pelo avalista ao credor e portador da garantia, assumindo o avalista uma obrigação/garantia dotada de autonomia, que se mantêm mesmo nos casos em que a obrigação que garantiu seja nula por qualquer razão que não seja um vício de forma (artigo 32.º da LULL).
E ainda que a responsabilidade do avalista seja solidária, no sentido do credor poder executar concomitantemente o património do devedor e do avalista (cfr. artigo 47.º da LULL), estando ambos colocados no mesmo patamar, nada impede que o credor possa exigir apenas do avalista o pagamento da dívida cartular sem necessidade de reclamar primeiramente do devedor principal o pagamento da obrigação.
Não olvidando, ademais, que caraterizando os títulos de crédito a sua circulação, a autonomia da relação cambiária sempre prevaleceria, não beneficiando, de todo, o avalista de quaisquer efeitos produzidos sobre a obrigação subjacente aprovados em sede de PER em relação ao terceiro portador do título, sem possibilidade de deduzir qualquer exceção causal e recusar o cumprimento que lhe fosse exigido pela contraparte imediata.
Sublinhando-se, ainda, que a eficácia externa da decisão de homologação abrange todos os credores participantes ou não nas negociações (artigo 17.º-F, n.º 6, do CIRE), mas não abrange os não credores codevedores e garantes, sendo ineficaz em relação aos mesmos.
Donde o argumento da «realidade sociológica» assente na evidência da prestação de garantias pessoais como o aval, provir, em regra, nas micro ou pequenas empresas dos sócios ou sócios gerentes das mesmas ou familiares destes, não corresponde a um critério elegível pela lei para afastar a aplicação de regras de natureza imperativa que caraterizam o regime jurídico e a natureza do aval.
Nem a invocada relatividade do princípio da autonomia contratual (artigo 406.º, n.º 2, do Código), por estarem em causa relações jurídicas totalmente distintas, ou seja, esse princípio poderá ser invocado para a consensualização de medidas inseridas no plano de recuperação, eficazes nas relações entre o devedor e os credores, e mesmo aí de forma muito mitigada porque, no fundo, o que prevalece são as regras de aprovação do plano e a extensão dos efeitos a todos os credores tenham ou não participado nas negociações, tenham ou não votado, e se o fizeram independentemente do sentido de voto (cfr. artigos 17.º-F, n.º 5, alíneas a) e b), e n.º 10, do CIRE), mas nunca para modificar ou condicionar, seja em que sentido for, a responsabilidade do avalista enquanto responsável cambiário.
Por conseguinte, a conclusão a retirar é que decorre do regime jurídico do aval, enquanto obrigação de garantia da obrigação cartular titulada pela letra ou pela livrança, que não existe fundamento legal válido que justifique o afastamento da aplicação do artigo 217.º, n.º 4, do CIRE, ao plano de recuperação no âmbito do PER que tenha introduzido modificações na estrutura da obrigação do devedor principal, seja quanto à existência e montante do direito de crédito, seja apenas quanto aos prazos de cumprimento da obrigação subjacente.
3. Alcançada esta conclusão, impõe-se analisar as suas consequências no que concerne à homologação do plano de recuperação.
Também sobre esta questão descortina-se na jurisprudência alguma variação de decisões que podemos resumir a três vetores:
(i) Alguns defendem que uma cláusula como a que está em causa nos autos é nula por violar norma imperativa (artigo 217.º, n.º 4, do CIRE), mas não contagia a globalidade do acordo, impondo-se a redução do mesmo ao abrigo do artigo 292.º do Código Civil, pelo que o plano deve ser homologado com eliminação da referida cláusula;
(ii) Outros entendem que se trata de uma questão de ineficácia da referida cláusula e que a mesma é inoponível em relação aos credores que votaram contra o plano por extravasar o objeto do mesmo, devendo, ainda assim, ser o plano homologado;
(iii) Outros, ainda, defendem que condicionando a cláusula os direitos do credor em relação aos codevedores e garantes constituiu uma violação não negligenciável de normas legais aplicáveis em relação ao conteúdo do plano e que deve constituir motivo de recusa de homologação.
Tendo-se chegado à conclusão que a cláusula em causa viola o regime jurídico e natureza do aval, composto por normas de natureza imperativa, e que o artigo 217.º, n.º 4, do CIIRE, deve ser interpretado à luz do direito substantivo que rege a garantia em causa, a conclusão a retirar é que este preceito adquire na feição destes autos carácter imperativo e que a sua violação determina a nulidade da referida cláusula.
Ora, o n.º 7 do artigo 17.º-F do CIRE estipula que «o juiz decide se deve homologar o plano de recuperação ou recusar a sua homologação (…) aplicando, com as necessárias adaptações, as regras previstas no título IX, em especial o disposto nos artigos (…) 215.º e 216.º.»
Por sua vez, o artigo 215.º do CIRE regula as situações de não homologação oficiosa quando ocorra «violação não negligenciável de regras procedimentais ou das normas aplicáveis ao conteúdo do plano, qualquer que seja a sua natureza», regendo o artigo 216.º sobre a não homologação a solicitação dos interessados desde que previstos os requisitos enunciados no preceito.
Em nenhum dos casos a lei fala numa homologação parcial do plano ou da eliminação de determinada cláusula ou ainda da declaração de ineficácia de alguma das cláusulas em relação a determinados credores.
O plano é um todo uno e foi votado na sua generalidade em função do equilíbrio das várias medidas nele previstas e dos direitos dos vários credores, sendo que a decisão dos que votaram foi formada em face da globalidade do plano, não sendo de excluir que o resultado fosse diferente se alguma ou alguma das cláusulas não tivessem sido inseridas no mesmo.
Por conseguinte, se o plano contém violação não negligenciável de regras procedimentais ou referentes ao conteúdo do plano, o juiz deve recusar a sua homologação na sua globalidade.
Embora a lei não defina o que se deve entender por «violação não negligenciável», a violação de normas imperativas que acarretam a produção de um resultado que a lei não autoriza, comunga dessa natureza (cfr. Carvalho Fernandes e João Labareda, Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas Anotado, QJ, 3.ª edição, p, 793-794, na anotação 5 ao artigo 215.º do CIRE).
Assim, não se afigura controvertido que uma cláusula como a que foi inserida no plano no âmbito do presente PER se reporta ao conteúdo do plano por afetar diretamente os direitos de ação de determinados credores abrangidos pelas medidas adotadas no PER, se insere nessa tipologia, por acarretar violação de normas imperativas que regulam o regime jurídico do aval.
Nesse pressuposto, a cláusula em causa ao não levar em consideração a natureza jurídica do aval consagrado na LULL, nomeadamente nos artigos 30.º, 32.º, 47.º e 77.º, introduzindo dilações temporais quanto à exigibilidade de pagamento aos avalistas, condicionando o direito de ação dos portadores dos títulos cambiários (livranças avalizadas) ao cumprimento do plano (reembolso aprovado nos termos do plano) à revelia daqueles normativos, constitui violação de preceitos imperativos e, consequentemente, violação não negligenciável do conteúdo do plano determinante da sua não homologação, nos termos dos artigos 215.º e 217.º, n.º 4, do CIRE ex vi dos artigos 17.º-A, n.º 3 e 17.º-F, n.º 7, do mesmo diploma legal.
4. Revertendo, agora, às conclusões do recurso, em face de todo o que foi exposto e conclusões alcançadas, impõe-se a procedência do recurso com a consequente revogação da sentença que homologou o plano de recuperação da apelada, prevalecendo, nesta sede, a decisão de recusa de homologação do referido plano.
Dado o decaimento, as custas ficam a cargo da apelada (artigo 527.º do CPC e artigo 17.º-F, n.º 11, do CIRE), sendo a taxa de justiça do recurso fixada pela tabela referida no n.º 2 do artigo 6.º do RCP.
III- DECISÃO
Nos termos e pelas razões expostas, acordam em julgar procedente a apelação, revogando a sentença recorrida que homologou o plano de recuperação da apelada J…., LD.ª e, consequentemente, recusando a homologação do referido plano.
Custas nos termos sobreditos.

Lisboa, 28-04-2020
Maria Adelaide Domingos
Fátima Reis Silva
Vera Antunes