JULGADOS DE PAZ
SENTENÇA
NULIDADE POR FALTA DE FUNDAMENTAÇÃO
AUSÊNCIA DE ANÁLISE CRÍTICA DA PROVA
Sumário


I- Atento o disposto no art. 60º da Lei dos Julgados de Paz (L.J.P.) e no art. 615º do C.P.C. ex vi art. 63º da L.J.P à decisão do Julgado de Paz podem ser imputados vícios que conduzem à sua nulidade.

II- A sentença proferida pelos Julgados de Paz obedece ao disposto no art. 60º da Lei dos Julgados de Paz, devendo conter designadamente uma sucinta fundamentação de facto e de direito (sendo-lhe aplicável ex vi art. 63º o disposto no art. 607º nº 4 e 5 do C.P.C.).

III- É nula por falta de fundamentação a sentença do Julgado de Paz que, em face da deduzida excepção de ilegitimidade activa e passiva, se limita a dizer que as partes são legítimas acrescentando apenas que a demandada não logrou provar a referida ilegitimidade.

IV- É igualmente nula por falta de fundamentação a sentença do Julgado de Paz que se limita a fixar os factos provados e não provados remetendo apenas para os articulados, documentos, declarações das parte e prova testemunhal quanto aos primeiros e para a ausência de prova quanto aos segundos sem fazer qualquer análise crítica da prova.

Texto Integral


Acordam no Tribunal da Relação de Guimarães

I – Relatório

M. P. instaurou no Julgado de Paz de ... acção declarativa de condenação contra Herança aberta por óbito de A. P., que também usava o nome de A. P., e mulher M. C., representada por J. A., M. O., S. P., M. A. e A. A., pedindo:

- Que se declarem divididos em substância, desde há mais de 20 anos, os edifícios indicados no artigo 3º do requerimento inicial;
- Que se declare que se autonomizou por usucapião o edifício com a composição, área e confrontações indicadas na alínea a) do artigo 3º do requerimento inicial;
- Que se reconheça a demandante como dona e legítima proprietária do edifício identificado na alínea a) do artigo 3º do requerimento inicial, ordenando-se o registo a seu favor e que, da descrição ...-... da Conservatória do Registo Predial ..., seja desanexado o edifício descrito na alínea a) do artigo 3º do requerimento inicial; e
- Que os demandados sejam condenados a reconhecer que o edifício identificado na alínea a) do artigo 3º do requerimento inicial é composto de dois pisos e tem de superfície coberta 71,50 m2.

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A. A. apresentou contestação, na qual, além do mais, deduziu excepção de ilegitimidade activa referindo que a demandante alegou que o prédio urbano identificado na alínea a) do artigo 3.º do requerimento inicial pertencia aos seus pais e que lhe foi doado pela mãe após o óbito do pai, mas não alegou que tenha existido partilha entre os herdeiros do pai – a viúva e duas filhas – pelo que a presença da irmã da requerente na acção seria essencial para assegurar a referida legitimidade. Mais deduziu excepção de ilegitimidade passiva alegando que a ré herança não é proprietária do prédio em causa sendo-o A. A. na sequência de partilhas efectuadas.
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Aí foi proferida sentença que julgou a acção totalmente procedente.
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Desta decisão veio o demandado A. A. interpor recurso para o Juízo Local Cível de Peso da Régua onde foi proferida a seguinte sentença:

“Considerando os motivos expostos, concedo provimento ao presente recurso e, em consequência, por se encontrar ferida de nulidade por omissão de pronúncia e por falta de especificação dos fundamentos de facto, nos termos do disposto no artigo 615.º, n.º 1, respectivamente, alíneas b) e d), do Código de Processo Civil, revogo a sentença objecto de recurso. (…)”.
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Não se conformando com esta sentença veio a demandante M. P. dela interpor recurso de apelação formulando as seguintes Conclusões:

“I. A ação foi intentada nos Julgados de Paz de ...;
II. A ação foi julgada totalmente procedente;
III. O demandado interpôs recurso para a 1.ª instância, tendo esta dado provimento ao mesmo por considerar a sentença ferida de nulidade por
IV. Ora, o tribunal a quo concluiu pela nulidade da sentença por falta de pronúncia acerca da legitimidade das partes;
V. No entanto, na sentença proferida pelos Julgados de Paz pode ler-se que «as partes são dotadas de personalidade e capacidade jurídica e são legítimas (considerando o tribunal que a parte demandada contestante não logrou provar a existência de ilegitimidade ativa e passiva, conforme alega na contestação apresentada)».
VI. Deste modo, não se admite, salvo o devido respeito, que exista omissão de pronúncia, quando existe claramente uma referência (e fundamento) relativa à legitimidade das partes;
VII. Poder-se-á admitir que o juiz de paz fez uma exposição breve, mas a pronúncia consta efetivamente da sentença;
VIII. Aliás, não só consta da sentença como está devidamente fundamentada;
IX. Pelo que não se entende o que levou o tribunal a quo a concluir pela falta de pronúncia;
X. Além do mais, o tribunal a quo considera que a sentença é nula por «falta de especificação dos fundamentos de facto e de direito»;
XI. Ora, primeiramente é preciso ter em consideração que existem diversas diferenças entre um tribunal judicial e um tribunal extrajudicial, sendo uma delas os requisitos de uma sentença;
XII. De acordo com o n.º 3 do art.º 607.º do CPC, o juiz deve proceder aos fundamentos, devendo «discriminar os factos que considera provados e indicar, interpretar e aplicar as normas jurídicas correspondentes, concluindo pela decisão final»;
XIII. O n.º 4 do mesmo artigo estipula que «(…) o juiz declara quais os factos que julga provados e quais os que julga não provados, analisando criticamente as provas, indicando as ilações tiradas dos factos instrumentais e especificando os demais fundamentos que foram decisivos para a sua convicção (…)».
XIV. Por outro lado, na elaboração de uma sentença de uma ação intentada nos Julgados de paz, o juiz de paz deverá reger-se pelo disposto no art.º 60.º da Lei n.º 78/2001, de 13 de Julho (lei que regula a competência, organização e funcionamento dos julgados de paz);
XV. A alínea c) do n.º 1 do referido artigo estatui que da sentença deverá constar «uma sucinta fundamentação» (negrito e sublinhado nossos);
XVI. Deste modo, ao passo que numa sentença proferida por um tribunal judicial é exigida uma fundamentação detalhada e exaustiva, nas sentenças proferidas pelos Julgados de Paz tal não é exigido;
XVII. De facto, na sentença proferida pelos Julgados Paz, o juiz de paz pronunciou-se acerca de todas as questões suscitadas pelas partes;
XVIII. Ainda que sucintamente, a sentença versa sobre todos os fundamentos de facto e de direito;
XIX. Fundamentou, inclusive, os factos não provados por ausência de prova.
XX. Não existe, contrariamente ao alegado pelo tribunal a quo, a obrigatoriedade de especificar o raciocínio que elaborou na análise da prova produzida;
XXI. Tal obrigatoriedade existe, efetivamente, nas sentenças dos tribunais judiciais, porém a Lei 78/2001, de 13 de Julho não o exige para os Julgados de Paz;
XXII. Assim sendo, o tribunal a quo apreciou a sentença como se de um tribunal de 1.ª instância se tratasse, esquecendo-se que existem especificidades que distinguem ambas;
XXIII. Ora, ao passo que os tribunais judiciais se deverão reger pelo CPC, os Julgados de Paz regem-se pela Lei 78/2001, de 13 de Julho;
XXIV. Aliás, o art.º 60.º da referida Lei nem remete para o CPC, aplicando-se assim o disposto no artigo;
XXV. Face a todo o exposto, o tribunal a quo decidiu erroneamente acerca da nulidade da sentença, violando assim os princípios que decorrem dos Julgados de Paz, bem como o disposto na al. c) do n.º 1 do art.º 60.º da Lei 78/2001, de 13 de Julho;
XXVI. Pelo que a sentença ora recorrida deverá ser revogada.”

Pugna pela anulação da decisão recorrida mantendo-se a decisão por ela revogada.
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Foram apresentadas contra-alegações.
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O Tribunal a quo não admitiu o recurso por entender que a sentença não era recorrível.
A demandante apresentou reclamação desta decisão que foi atendida nesta Relação por decisão de 12/12/2019 que admitiu o recurso como sendo de apelação, a subir imediatamente, nos próprios autos e com efeito meramente devolutivo.
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Foram colhidos os vistos legais.

Cumpre apreciar e decidir.
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Tendo em atenção que o objecto do recurso é delimitado pelas conclusões da recorrente (art. 635º nº 3 e 4 e 639º nº 1 e 3 do C.P.C.), sem prejuízo da apreciação de eventuais questões de conhecimento oficioso, observado que seja, se necessário, o disposto no art. 3º nº 3 do C.P.C., a questão a decidir é saber se a decisão do Julgado de Paz é nula por falta de fundamentação ou omissão de pronúncia.
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II – Fundamentação

Foram considerados provados os seguintes factos:

1.Sob o capítulo “Tramitação” da decisão objecto de recurso consta, para além do mais, o seguinte:
“As partes são dotadas de personalidade e capacidade jurídica e são legítimas (considerando o tribunal que a parte demandada contestante não logrou provar a existência de ilegitimidade activa e passiva, conforme alega na contestação apresentada)”
2.Da decisão objecto de recurso consta a seguinte fundamentação de facto:
a) “Para a convicção do Tribunal foi tomado em consideração os articulados processuais, os documentos anexos aos autos, as declarações das partes e a prova testemunhal arrolada por ambas as partes, determinando-se, assim, provados os seguintes factos:
a. No dia - de março de 1998 e no dia - de dezembro de 2005, no Lugar do …, freguesia de ..., concelho de Peso da Régua, onde tinham a sua residência habitual, faleceram, respectivamente, A. P. e M. C., deixando como seus únicos herdeiros, os quais chamados na qualidade de parte demandada.
b. No Lugar de ..., freguesia de ..., concelho de Peso da Régua, situam-se os seguintes imóveis:
i. Prédio urbano, composto de edifício de dois andares, com a superfície coberta de 71,50 m2, a confrontar de norte e poente com caminho público, de sul com M. S. e de nascente com A. P., inscrito na respectiva matriz sob o artigo ....
ii. Prédio urbano, composto de edifício de dois andares, com a superfície coberta de 45 m2, a confrontar de norte e nascente com caminho público, de sul com M. S. e de poente com A. P., inscrito na respectiva matriz sob o artigo ….
c. Ambos os imóveis encontram-se descritos na Conservatória do Registo Predial ... sob o número ...-..., a favor dos falecidos A. P. e mulher M. C..
d. Em 22 de fevereiro de 1967, foi elaborada uma declaração (contrato promessa de compra e venda) com assinaturas reconhecidas no cartório de Peso da Régua, na qual os falecidos A. P. e mulher M. C. declaram que o prédio sito no Lugar do ..., inscrito sob o artigo urbano ..., não lhes pertence, tendo já metade sido adjudicada a Maria (mãe da demandante) e filhos, constante no inventário que procedeu por óbito de M. A. e A. S. (mãe da demandante) e filhos, constante no inventário que procedeu por óbito de M. A. e A. S., encontrando-se Maria já na posse de outra metade, por compra que esta lhes fez e para a qual pagou da quantia de dez mil escudos.
e. No ano que não se consegue precisar, os falecidos A. P. e mulher e os pais da demandante, M. A. e Maria, edificaram cada um, a suas expensas, dois edifícios melhor identificados supra.
f. Desde a data da sua construção até ao presente momento, que M. A. e a sua família residiram naquele edifício, sendo desde o seu nascimento que é a residência da irmã da demandante, de nome P. M..
g. O edifício supra edificado na alínea a) sempre esteve na posse dos pais da demandante e agora dos filhos dos mesmos, entrando imediatamente na sua posse, passando a exercer sobre o mesmo uma posse pública, pacífica, contínua e de boa fé, usando e fruindo a parcela individualizada, autónoma e distinta, como se de coisa sua exclusivamente se tratasse, respeitando rigorosamente as suas estremas e divisórias com total exclusividade, autonomia e independência.
h. Após o falecimento da mãe da demandante e decorrente de partilhas verbais, a demandante adquiriu aos seus irmãos as suas partes no identificado edifício.
i. Foram feitas obras de reconstrução no edifício pela demandante.
j. Até ao presente momento, foi sempre conhecimento da parte demandada, pais e agora filhos da residência por parte dos pais da demandante e dos seus filhos, não tendo havido qualquer oposição por parte dos mesmos.
k. A parte demandada, seja pais, sejam filhos, nunca residiram no edifício ora reclamado pela demandante.
l. No processo de inventário já é mencionado o bem em causa como proprietária da parte demandante.
b) Determinaram-se os seguintes factos como não provados, atenta a ausência de prova:
a. Que os pais da demandante tenham ficado a dever dinheiro aos pais dos herdeiros aqui chamados ou a pessoas terceiras.
b. Que o edifício que a demandante se arroga como proprietária sempre tinha sido dos falecidos A. P. e mulher M. C., e dos agora herdeiros dos mesmos (atente-se a estranheza do tribunal na situação do direito que se arroga a parte demandada nunca ter sido exercido ou exigido, continuando a família da demandante, desde a sua construção até ao presente, a residirem nessa habitação).
c. Quem pagava os impostos à data dos pais da parte demandante e dos pais da parte demandada, bem como nas datas posteriores.
d. Que as assinaturas apostas na declaração supra mencionada não sejam dos falecidos A. P. e mulher M. C..”
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Insurge-se a demandante contra a sentença recorrida defendendo que, contrariamente ao decidido, a decisão do Julgado de Paz não é nula por omissão de pronúncia e/ou por falta de fundamentação.

Vejamos.

Os Julgados de Paz foram criados pela Lei nº 78/2001 de 13 de Julho (L.J.P.), diploma este que veio a ser alterado pela Lei nº 54/2013 de 31 de Julho., diploma ao qual pertencerão os restantes normativos a citar sem menção de origem.
São tribunais, mas não são tribunais judiciais (art. 209º da C.R.P.).
A sua actuação é vocacionada para permitir a participação cívica dos interessados e para estimular a justa composição dos litígios por acordo das partes e os seus procedimentos estão concebidos e orientados por princípios de simplicidade, adequação, informalidade, oralidade e absoluta economia processual (art. 2º).
A sua competência é exclusiva para as acções declarativas (art. 6º nº 1), de valor não superior a € 15.000,00 (art. 8º) e para as acções e pedidos previstos no art. 9º.

Dispõe o art. 60º:

1 - A sentença é proferida na audiência de julgamento e reduzida a escrito, dela constando:
a)A identificação das partes;
b) O objeto do litígio;
c) Uma sucinta fundamentação;
d) A decisão propriamente dita;
e) O local e a data em que foi proferida;
f) A identificação e a assinatura do juiz de paz que a proferiu. (…)

As decisões têm o mesmo valor ou relevância que as sentenças proferidas por tribunal da 1ª instância (art. 61º).
Quando o valor do processo for superior a metade do valor da alçada do tribunal de 1ª instância (€ 2.500,00) estas sentenças podem ser impugnadas por meio de recurso para o juízo competente do tribunal de comarca onde o Julgado de Paz esteja sediado (art. 62º).
Por fim, nos termos do art. 63º é subsidiariamente aplicável, no que não seja incompatível com esta lei e no respeito pelos princípios gerais do processo nos Julgados de Paz, o disposto no C.P.C., com excepção das normas referentes ao aí elencado.
Tendo em atenção o disposto no acima referido art. 60º e no art. 615º do C.P.C. ex vi art. 63º entendemos que à decisão do Julgado de Paz podem ser imputados vícios que conduzem à sua nulidade. Estes vícios estão típica e taxativamente previstos no referido art. 615º do C.P.C. e reconduzem-se a vícios formais da decisão decorrentes de erro de actividade ou de procedimento - error in procedendo - referente à disciplina legal e que impedem o pronunciamento de mérito.
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Começa a demandante por dizer que não se verifica omissão de pronúncia por parte do Julgado de Paz no que concerne à excepção de ilegitimidade activa e passiva deduzida na contestação uma vez que na sentença constam os seguintes dizeres:

Quid iuris?

Nos termos do art. 615º do C.P.C.“1. É nula a sentença quando: (…) d) O juiz deixe de pronunciar-se sobre questões que devesse apreciar ou conheça de questões que não podia tomar conhecimento; (…)”
O vício de omissão ou de excesso de pronúncia incide sobre as questões a resolver nos termos e para os efeitos do disposto no art. 608º nº 2 do C.P.C. - O juiz deve resolver todas as questões que as partes tenham submetido à sua apreciação, excetuadas aquelas cuja decisão esteja prejudicada pela solução dada a outras, não pode ocupar-se senão das questões suscitadas pelas partes, salvo se a lei lhe permitir ou impuser o conhecimento oficioso de outras.
E questões são “(…) todas as pretensões processuais formuladas pelas partes que requerem decisão do juiz, bem como os pressupostos processuais de ordem geral e os pressupostos específicos de qualquer acto (processual) especial, quando realmente debatidos pelas partes (…)” (Antunes Varela, in R.L.J., Ano 122, p. 112). São “todos os pedidos deduzidos, todas as causas de pedir e excepções invocadas e todas as excepções de que oficiosamente lhe cabe conhecer” (Lebre de Freitas, Montalvão Machado e Rui Pinto, in Código de Processo Civil Anotado, 2º, 2ª ed., p. 704).
Assim, tais questões não se confundem com argumentos, razões (de facto ou de direito) ou motivos invocados pelas partes em defesa ou reforço das suas posições.
Para que a nulidade ocorra é necessário que se verifique omissão absoluta de conhecimento relativamente a cada questão não prejudicada e não uma fundamentação deficiente.
Neste sentido, vide, entre outros, Ac. do S.T.J. de 28/02/2013 (João Bernando), in www.dgsi.pt, como todos os acórdãos que se venham a ser citados sem outra indicação de origem.
Revertendo ao caso em apreço verificamos que, no que concerne à questão referente à ilegitimidade activa e passiva, houve pronúncia por parte do julgador de paz no sentido de a ré não ter o ter demonstrado pelo que se nos afigura que a decisão em causa não é nula com este fundamento. Questão distinta é saber se o alegado consubstancia fundamentação ainda que sucinta, o que apreciará infra.
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Nos termos da alínea b) do citado art. 615º do C.P.C. é igualmente nula a sentença quando Não especifique os fundamentos de facto e de direito que justificam a decisão.
Dispõe o acima citado art. 60º que da sentença deve constar uma fundamentação sucinta. O mesmo resulta também do art. 154º do C.P.C. ex vi art. 63º e do art. 205º nº 1 da C.R.P..
Esta exigência de fundamentação é de facto e de direito aplicando-se, a nosso ver, nesta parte, ainda que modo sucinto, o disposto no art. 607º nº 4 (menção dos factos provados e não provados e análise crítica das provas) e nº 5 (livre apreciação das provas pelo julgador excepto nos casos aí previstos) do C.P.C..
A este propósito refere Cardona Ferreira, in Julgados de Paz, Organização, Competência e Funcionamento, 4ª Ed, Revista e Actualizada, Almedina, p. 241: “A sucinta fundamentação é, essencialmente, Facto e Direito; o que é preciso é, como dissemos, descrever os factos determinantes provados e, genericamente, porquê, e não provados, que seriam relevantes e porquê; e indicar as normas fundamentais aplicáveis e qual o seu comando.”
A razão de ser desta imposição é a mesma da das decisões judiciais. Pode ler-se no Ac. do S.T.J. de 09/12/1987 (Manso Preto) “I - A motivação da sentença impõe-se por duas razões: uma substancial, pois cumpre ao juiz demonstrar que da norma abstracta formulada pelo legislador soube extrair a disciplina ajustada ao caso concreto; e outra de ordem prática, uma vez que as partes precisam de ser elucidadas a respeito dos motivos da decisão. II - Sobretudo a parte vencida tem o direito de saber por que razão lhe foi desfavorável a sentença; e tem mesmo necessidade de o saber para impugnar, quando seja admissível recurso, o fundamento ou fundamentos perante o tribunal superior, que carece também de conhecer as razões determinantes da decisão para as poder apreciar no julgamento do recurso. (…)”.
Não pode, porém, confundir-se a falta absoluta de fundamentação com a fundamentação insuficiente, errada ou medíocre, sendo que só a primeira constitui a causa de nulidade da sentença. Disso dão nota A. Varela, M. Bezerra e S. Nora, in Manual de Processo Civil, 2ª ed., 1985, p. 670/672, ao escreverem “Para que a sentença careça de fundamentação, não basta que a justificação da decisão seja deficiente, incompleta, não convincente; é preciso que haja falta absoluta, embora esta se possa referir só aos fundamentos de facto ou só aos fundamentos de direito”. E refere-se no Ac. do S.T.J. de 28/05/2015 (Granja da Fonseca): “A insuficiência ou mediocridade da motivação é espécie diferente: afecta o valor doutrinal da sentença, sujeita-a ao risco de ser alterada ou revogada em recurso, mas não produz a nulidade.”
Revertendo ao caso em apreço entendemos que assiste razão ao tribunal recorrido ao concluir que a decisão do Julgado de Paz é nula por falta de fundamentação.
No que diz respeito à improcedência da excepção de ilegitimidade activa e passiva verificamos que a mesma não se mostra fundamentada de direito, pois não se consigna se demandante e demandada são ou não titulares da relação material controvertida e respectivas razões (art. 30º do C.P.C. ex vi art. 63º). O que a este propósito se fez constar é conclusivo e não aplicável ao conhecimento do mencionado pressuposto processual.
No mais não consta da decisão do Julgado de Paz qualquer fundamentação de facto. Conforme ficou dito supra, além da fixação dos factos provados e não provados, tinha aquele tribunal de ter consignado, ainda que sucintamente, a análise crítica da prova não bastando, de modo algum, a simples referência aos articulados, documentos, declarações das parte e prova testemunhal quanto aos factos provados e à ausência de prova quanto aos factos não provados. Com efeito, destas referências não resulta o fundamento que possa ser analisado e contraposto em sede de recurso.
A este propósito importa referir que, uma vez que, nos Julgados de Paz, a prova não é gravada (art. 57º da L.J.P.,) a impugnação da matéria de facto que o recorrente pode fazer e a respectiva reapreciação pelo Tribunal da 1ª instância (desde que verificado os ónus previstos no art. 640º do C.P.C.) prender-se-á essencialmente com o direito probatório material, i.e., com as normas que regulam a admissibilidade dos meios de prova, a força probatória de cada um deles e o ónus da prova, e, de modo algum, com a convicção do Julgador de Paz face à prova testemunhal.

Pelo exposto, a decisão do Julgado de Paz deve ser declarada nula com este fundamento devendo o processo ser remetido àquele tribunal para prolação de nova sentença fundamentada nos termos supra referidos.
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Sumário – 663º nº 7 do C.P.C.:

I – Atento o disposto no art. 60º da Lei dos Julgados de Paz (L.J.P.) e no art. 615º do C.P.C. ex vi art. 63º da L.J.P à decisão do Julgado de Paz podem ser imputados vícios que conduzem à sua nulidade.
II - A sentença proferida pelos Julgados de Paz obedece ao disposto no art. 60º da Lei dos Julgados de Paz, devendo conter designadamente uma sucinta fundamentação de facto e de direito (sendo-lhe aplicável ex vi art. 63º o disposto no art. 607º nº 4 e 5 do C.P.C.).
III – É nula por falta de fundamentação a sentença do Julgado de Paz que, em face da deduzida excepção de ilegitimidade activa e passiva, se limita a dizer que as partes são legítimas acrescentando apenas que a demandada não logrou provar a referida ilegitimidade.
IV – É igualmente nula por falta de fundamentação a sentença do Julgado de Paz que se limita a fixar os factos provados e não provados remetendo apenas para os articulados, documentos, declarações das parte e prova testemunhal quanto aos primeiros e para a ausência de prova quanto aos segundos sem fazer qualquer análise crítica da prova.
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III – Decisão

Pelo exposto, acordam os juízes desta Relação em julgar improcedente a apelação e consequentemente confirmam a sentença recorrida que concedeu provimento ao recurso da decisão do Julgado de Paz declarando nula esta decisão por falta de fundamentação devendo o processo ser remetido àquele tribunal para prolação de nova decisão fundamentada nos termos supra referidos.
Custas pela apelante.
Guimarães,12/03/2020

Relatora: Margarida Almeida Fernandes
Adjuntos: Margarida Sousa
Afonso Cabral de Andrade