ACÇÃO DE DIVISÃO DE COISA COMUM
VENDA DA TOTALIDADE DO BEM
EXERCÍCIO DO DIREITO DE PREFERÊNCIA POR COMPROPRIETÁRIO
Sumário

I - Por a situação não estar compreendida no artigo 1409.º do Código Civil, os comproprietários não gozam do direito de preferência na venda da totalidade do bem indiviso a realizar na acção de divisão de coisa comum na qual os comproprietários não acordaram a adjudicação do bem e que avançou para venda.
II - Querendo exercer o direito de preferência, o interessado deve apresentar a caução prevista nos artigos 823.º/3 e 824.º/1 do Código de Processo Civil, obrigatoriamente, com a declaração para exercício da preferência.
III - O justo impedimento exige que tenha sobrevindo um facto e que esse facto seja inesperado e invencível actuando o agente com não mais que a diligência razoável, o que não ocorre quando o interessado, sabendo da possibilidade de ter de praticar um acto em determinado momento, confia na hipótese inversa e não acautela essa necessidade.

Texto Integral

Recurso de Apelação
ECLI:PT:TRP:2020:111.18.6T8PVZ.B.P1

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Sumário:
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Acordam os Juízes da 3.ª Secção do Tribunal da Relação do Porto:

I. Relatório:
B…, solteira, com residência na Povoa de Varzim instaurou acção especial de divisão de coisa comum contra C…, solteiro, residente em …, Vila do Conde.
Foi proferida decisão a fixar as quotas dos consortes em ½ para cada um e a julgar indivisível o imóvel comum, e após designada data para a realização da conferência de interessados com os fins a que alude o artigo 929.º, n.º 2, do Código de Processo Civil.
Nesta, não tendo os comproprietários acordado a adjudicação do imóvel, foi ordenado que os autos prosseguissem para a fase da venda judicial.
Oportunamente foi decidido realizar a venda «mediante proposta em carta fechada» e «pelo valor de € 178.500,00 (85% do valor base mais alto indicado, € 210.000,00) – cfr. artigos 837.º e 812.º do C.P.Civil».
No dia da abertura de propostas, sucedeu o que está registado na respectiva acta:
«[Pelo Mmo. Juiz] foi aberta a única proposta existente apresentada pelo Proponente D…, a qual consistia na compra pelo valor de € 179,011,00 (…), relativamente ao imóvel objecto do presente processo. Juntou cheque visado sacado sob a conta n.º …, do …, cheque esse com o n.º …, no valor de € 9.000,00, (…), que o Mm.º Juiz de Direito, depois de analisar e dar conhecimento aos presentes, determinou a sua junção aos presentes autos.
Dado o cumprimento ao disposto do art.º 821.º do C. P. Civil, foi determinada a deliberação sobre a proposta apresentada tendo pela ilustre Mandatária presente dito nada ter a requerer.
Tendo solicitado a palavra e no uso da mesma a ilustre Mandatária do Requerido, C… foi dito que o mesmo pretende, nos termos do art.º 819.º do C.P.Civil, exercer o seu direito, a preferência para aquisição, com base na preferência legal prevista no art.º 1409.º do C.Civil.
A pedido das partes, foi interrompida a presente diligência para conversações entre si.
Retomada a diligência, pela ilustre Mandatária do Requerido, C… foi pedida a palavra e sendo-lhe concedida disse que o Requerido, C… foi informado neste acto da única proposta apresentada e aceite por este Tribunal, tendo nos termos do art.º 823.º, n.º 1 do C. P. Civil exercido o direito de preferência. Em virtude de apenas nesse preciso momento lhe ter sido comunicado a existência de uma proposta e consequente aceitação da mesma por parte do Tribunal nasceu apenas também nesse momento a possibilidade do Requerido poder exercer o direito de preferência previsto no já citado art.º 823.º, n.º 1 do C. P. Civil, bem como no art.º 1409.º do C. Civil. Assim e como até esse momento o Requerido não tinha como saber se iriam existir propostas e se essas iriam ser aceites em Tribunal, o seu direito de preferência efectivamente existia, mas, não estava ainda na sua expectativa de vir a ser exercido. Se o Requerido não sabia nem tinha como saber se iria exercer tal direito, não pode em tempo útil munir-se das formas de pagamento que o art.º 824.º do C. P. Civil exige por remissão do art.º 823.º, n.º 3 do mesmo diploma., requerendo desde já a V. Ex.ª que autorize ou conceda o prazo de 10 dias para que seja entregue montante correspondente a 5% do valor da proposta aceite para que assim a sua preferência possa efectuar-se.
Seguidamente pelo que o Mm.º Juiz de Direito proferiu o seguinte despacho:
“Dado cumprimento ao disposto do art.º 823.º, n.º 1 do C. P. Civil, foi pelo interessado, C… exercido o seu direito de preferência, enquanto comproprietário previsto no art.º 1409.º do C. Civil. Por força do estipulado no art.º 823.º, n.º 3 do C. P. Civil, ao preferente aplica-se o disposto no n.º 1 do art. 824.º do C. P. Civil, ou seja, deve ser junto pelo preferente cheque visado num montante correspondente a 5% do valor a anunciar ou garantia bancária no mesmo valor.
(…) resulta da lei que o valor a ser caucionado ou garantido é de 5% do valor anunciado para a venda; ou seja, bem sabe qualquer preferente, como sabe qualquer proponente qual o montante que tem que disponibilizar no acto de abertura das propostas. Infortunísticamente, não o tendo feito o interessado C… precludiu o seu direito. Termos em que se indefere o peticionado. Notifique.”»
Do assim decidido, o requerido interpôs recurso de apelação, terminando as respectivas alegações com as seguintes conclusões:
A. No ponto I dos suas alegações o recorrente descreveu os factos relevantes para a decisão deste recurso, os quais aqui dá por integralmente reproduzidos.
B. Nesta acção especial de divisão de coisa comum, foi deliberada a indivisibilidade em substância do imóvel, pertencente a ambas as partes na proporção de metade para cada uma delas.
C. Não havendo acordo das partes quanto à sua adjudicação, foi agendada data para a respectiva venda através leilão electrónico, primeiro, e, depois, sem causa justificativa, por propostas em carta fechada.
D. Nessa diligência houve apenas uma proposta, a qual foi aceite, por ser a única.
E. O ora recorrente, C…, foi informado naquele acto da única proposta apresentada e aceite pelo tribunal, pelo que, nos termos dos art.ºs 823.º, n.º 1, do CPC e 1409.º, do Código Civil (CC) declarou pretender exercer o seu direito de preferência.
F. Ora, em virtude de apenas nesse preciso momento lhe ter sido comunicada a existência de uma proposta e consequente aceitação da mesma por parte do tribunal, apenas, também nesse momento, se verificou a possibilidade do recorrente estar habilitado a saber que podia exercer esse direito de preferência, o que sempre dependeria de: haver ou não propostas, e qual os montantes de eventuais propostas.
G. Sem ter conhecimento destes elementos, essenciais à formação da sua vontade, jamais o recorrente poderia decidir se teria, ou não, possibilidade de exercer o direito de preferência.
H. Efectivamente, o recorrente não tinha como saber se iriam existir propostas e se essas iriam ser aceites em tribunal; assim, o seu direito de preferência existia, efectivamente, como hipótese/faculdade legal, mas não estava ainda na sua expectativa, a real possibilidade de vir ou não a ser exercido.
I. Não sabendo o recorrente, porque não tinha como saber, se iria exercer tal direito, não ia, obviamente, munido de quaisquer das formas de pagamento previstas no artigo 824.º nº 1, do CPC, por remissão do art.º 823.º, n.º 3 do mesmo diploma.
J. Razão por que o recorrente solicitou ao tribunal o prazo de 10 dias para entregar o montante correspondente a 5% do valor da proposta aceite, exercendo, deste modo o direito de preferência que lhe assiste.
K. Incompreensivelmente, o tribunal a quo negou conceder-lhe tal prazo.
L. Dispõe o artº 823º nº 3 do CPC, quanto ao exercício do direito de preferência: 3 - Aplica-se ao preferente, devidamente adaptado, o disposto no n.º 1 do artigo seguinte.
M. Como consequência directa, a interpretação do que dispõe o nº 1 do artº 824º do CPC, que deve entender-se, devidamente adaptada, quanto ao preferente.
N. Como emerge da concatenação do nº 3 do art.º 823º com nº 1 do art.º 824º, a junção do cheque visado no montante de 5% do valor anunciado, no momento da proposta, é inaplicável aos preferentes, que nada estão a propor, estão antes a exercer o direito de preferência que a lei lhes concede, em função do concreto negócio que se lhes apresenta.
O. Se a oferta tivesse sido, por exemplo, de 220.000,00€, o recorrente já não poderia exercer o direito de preferência porque não podia assumir tal encargo; mas se não tivesse havido proposta, o recorrente, tendo direito de preferência, nada poderia fazer a não ser aguardar nova marcação de venda judicial, enfim, se ..., se ...
P. Por isso que o nº 1 do artº 824º é aplicável ao preferente, mas devidamente adaptado!
Q. O que foi, totalmente ignorado pelo juiz a quo, que declarou precludido o direito do exercício de preferência ao recorrente.
R. Afectando gravemente os interesses deste, sem que nada o justifique, e pondo em causa a sua casa de morada de família, a sua habitação!
S. Para o recorrente, salvo o devido respeito, o momento da junção dos 5% não tem que ser aquando da abertura da proposta; há-de entender-se, adaptando, que esse momento, não constitui para o preferente um prazo legal peremptório e improrrogável.
T. A consequência de ficar precludido o direito de preferência do recorrente só poderia ocorrer, se o mesmo não depositasse os 5% no prazo de 10 dias que solicitou ao tribunal.
U. Mas, o que apenas por mera hipótese se admite, sempre se deveria ter colocado a possibilidade de se ter considerado a ocorrência de uma situação passível de constituir justo impedimento da prática do acto - o pagamento imediato de 5% do valor anunciado.
V. Dispõe, a este propósito, o n.º 1 do art.º 140.º, do CPC, que "considera-se justo impedimento o evento não imputável à parte nem aos seus representantes ou mandatários, que obste à prática atempada do acto".
W. Actualmente, basta para que estejamos perante o justo impedimento, que o facto que impede a prática do acto não seja imputável à parte ou ao mandatário, por não ter tido culpa na sua produção, o que não obsta a possibilidade de a parte ou o mandatário ter tido participação na ocorrência, desde que, nos termos gerais, tal não envolva um juízo de censurabilidade.
X. O cerne do conceito de justo impedimento é agora a normal imprevisibilidade do acontecimento para a sua não imputabilidade à parte ou ao mandatário.
Y. Foi exactamente esse o caso que aqui se relatou, pelas razões e fundamentos acima descritos.
Z. O evento previsível de poder vir a exercer o direito de preferência estava dependente de haver ou não propostas de compra e do valor delas, o que exclui a imputabilidade de o recorrente não estar, imediatamente, preparado com um cheque visado, como também demonstrou, pedindo para tanto, e tão somente, a concessão de um prazo de dez dias.
AA. Estava em causa a observância de um ónus processual, que o recorrente desconhecia se ia ou não exercer, e muito menos em que montante.
BB. Deste modo, o justo impedimento terá que ser aqui ponderado, já que a omissão do recorrente não resultou de qualquer negligência simples ou grosseira, dele ou da mandatária.
CC. O que deve relevar decisivamente para a verificação do «justo impedimento» é a inexistência de culpa da parte, seu representante ou mandatário na ultrapassagem do prazo, sem prejuízo de, como acima se sustentou, considerar-se que este prazo não era aplicável ao preferente.
DD. No caso concreto, só quando é apresentada uma proposta de aquisição, é que o preferente pode formar a sua vontade no sentido de exercer ou não esse direito.
EE. Do que resulta, desde logo, a não obrigação de pagar imediatamente 5% de um preço que antes desconhecia.
FF. O acto decisório recorrido é, assim, merecedor de censura e deve ser substituído por outro que conceda ao recorrente o aludido prazo de 10 dias, sem qualquer preclusão do seu direito de preferência.
Nestes termos e nos mais de Direito, que V. Exas. Venerandos Desembargadores suprirão, pede o recorrente a procedência deste recurso, substituindo-se o despacho recorrido por outro que conceda ao requerente o prazo de dez dias para que o recorrente/preferente entregue o cheque visado no montante correspondente a 5% do valor anunciado. Pede ainda que se julgue não precludido o direito do recorrente ao exercício do seu direito de preferência nestes autos.
A recorrida respondeu a estas alegações defendendo a falta de razão dos fundamentos do recurso e pugnando pela manutenção do julgado.
Após os vistos legais, cumpre decidir.

II. Questões a decidir:
As conclusões das alegações de recurso demandam desta Relação que decida se na venda a terceiro da totalidade do bem a realizar em acção de divisão da coisa comum que prosseguiu para venda, o comproprietário tem direito de preferência e, na afirmativa, se o comproprietário que pretende exercer a preferência tem de apresentar com a declaração de preferência a caução prevista no artigo 824.º do Código de Processo Civil.

III. Os factos:
Para a decisão a proferir relevam os factos processuais descritos no relatório que antecede.

IV. O mérito do recurso:
Na situação apreciada e decidida pelo tribunal a quo, uma vez instaurada acção de divisão da coisa comum de bem indivisível não tendo havido nela acordo entre os comproprietários para se adjudicar o bem a um deles e se inteirarem os restantes em dinheiro, houve a necessidade de o bem ser vendido a terceiros para depois se proceder à distribuição do produto da venda pelos comproprietários na proporção da sua quota.
Apresentada uma proposta de aquisição do bem, um dos comproprietários pretendeu exercer o direito de preferência na venda do bem ao terceiro que apresentou a única proposta e de valor superior ao valor anunciado para a venda, requerendo para o efeito a concessão do prazo de 10 dias para entregar «montante correspondente a 5% do valor da proposta aceite para que assim a sua preferência possa efectuar-se».
O tribunal a quo proferiu decisão na qual admitiu implicitamente que o comproprietário goza do direito de preferência que pretendeu exercer, mas recusou a concessão de prazo para a entrega da caução prevista no artigo 824.º do Código de Processo Civil e, consequentemente, considerou precludido o direito de preferência.
Contra esta decisão insurge-se o comproprietário que pretende exercer a preferência, questionando naturalmente apenas a não concessão do prazo requerido. A recorrida na sua resposta às alegações coloca, com pertinência, a questão da própria existência do direito de preferência que pode prejudicar a questão do momento em que deve ser apresentada a caução.
Cumpre por isso – o que aliás sucederia mesmo que a recorrida não tivesse colocado a questão – apreciar a questão fundamental: se o comproprietário tem o direito de preferência que reclama.
O direito legal de preferência do comproprietário, invocado no caso, encontra-se previsto no artigo 1409.º do Código Civil, cuja redacção é a seguinte:
«1. O comproprietário goza do direito de preferência e tem o primeiro lugar entre os preferentes legais no caso de venda, ou dação em cumprimento, a estranhos da quota de qualquer dos seus consortes.
2. É aplicável à preferência do comproprietário, com as adaptações convenientes, o disposto nos artigos 416.º a 418.º
3. Sendo dois ou mais os preferentes, a quota alienada é adjudicada a todos, na proporção das suas quotas
A interpretação deste normativo e do artigo 1566.º do Código Civil de 1867 que constitui a sua fonte foi feita de modo aprofundado no Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 17-12-1997, in Colectânea de Jurisprudência – Acórdãos do Supremo Tribunal de Justiça, Ano V, Tomo III, pág. 166, e in Boletim do Ministério da Justiça n.º 472, p. 437, nos seguintes termos:
«A questão que se coloca é a de interpretar o preceituado no art. 1409º, nº 1, do Cód. Civil em ordem a determinar se ao comproprietário assiste ou não direito de preferência na venda a estranho da totalidade da coisa comum a que se proceda mediante arrematação em hasta pública, em acção de divisão de coisa comum. […] Esta norma teve por fonte o art. 1566º do Cód. Civil de 1867. «Não podem os comproprietários de coisa indivisível ou indivisa vender a estranhos a sua respectiva parte, se o consorte a quiser, tanto portanto (...)».
No início deste século [século XX] ainda houve alguma jurisprudência que admitiu o direito de preferência na venda a terceiro da totalidade da coisa comum indivisível.
Mas, pelo menos a partir de 1916, estabeleceu-se forte corrente jurisprudencial no sentido de negar o direito de preferência em tal hipótese (..). E por Assento de 21 de Julho de 1931 este Tribunal decidiu: O direito de preferência, de que no acto da praça, com fundamento nos arts. 848º, nº 7, do Cód. de Proc. Civil (..) e 1566.º do Código Civil podem usar os comproprietários, é inadmissível quando se tratar de arrematação de todo o prédio comum, e não simplesmente da parte pertencente a outro consorte».
Pinto Loureiro, na obra que se vem citando [in Manual dos Direitos de Preferência, Vol. I, p. 210 e nota (1)], sustentou a bondade da doutrina do assento, mesmo depois da revogação do Cód. de Proc. Civil de 1876, atendendo a duas razões. A primeira é a de a lei civil, o art. 1566º do Cód. Civil de 1867, se referir muito claramente à venda de parte da coisa ("respectiva parte") o que exclui a venda da sua totalidade. A segunda é a consideração de o fundamento da concessão do direito de preferência ser a utilidade pública de pôr termo à compropriedade. A preferência destina-se a "tornar singular a propriedade comum". Ora, esta razão não colhe quando se procede à alienação do todo, assim cessando a compropriedade e o fundamento da preferência. (..)
Alguns anos mais tarde, já na vigência do actual Código Civil, o tema foi retomado por Batista Lopes [in Do Contrato de Compra e Venda, p. 304], mantendo a posição acima referida: «(..) quando seja vendido o prédio por inteiro (por exemplo, em execução ou em caso de acção de divisão de coisa comum, em que a coisa é vendida por ser indivisível ou os interessados não concordarem na adjudicação a algum ou alguns deles - Cód. de Proc. Civil (art. 1060º) - nenhuma preferência é concedida aos proprietários (..)».
Na verdade, nota-se que onde o Código de 1867 se referia à venda a estranhos por comproprietário da "sua respectiva parte" o actual fala da venda a estranhos "de quota".
Posteriormente, Antunes Varela, ao anotar uma hipótese de invocação da preferência por arrendatário comercial, opinou, em nota. que embora o art. 1409º do Cód. Civil se refira "à venda a estranhos da quota de qualquer dos seus consortes, tudo indica que o espírito da lei abarca ainda a hipótese de alienação de toda a coisa comum, feita a um ou alguns dos consortes que pretendam a sua aquisição. Não pertence a esta espécie a hipótese em julgamento já que a venda não foi feita a um ou algum dos consortes e não está em causa pretensão do arrendatário a preferir.
Há alguns anos, em caso iniciado na Comarca de Viana do Castelo, o Tribunal da Relação do Porto, primeiro, e este Tribunal, depois (..), retomaram a jurisprudência do princípio do século afirmando o direito de os comproprietários poderem exercer na arrematação, em acção de divisão de coisa comum, o direito de preferência que lhes confere o art. 1409º, nº 1, do Cód. Civil, sempre que qualquer estranho à comunhão arremate, no todo ou em parte, o direito de propriedade sobre a coisa comum.
São três os fins principais que justificam a concessão ao comproprietário do direito de preferência no caso de venda, ou dação em cumprimento a estranhos da quota de qualquer dos seus consortes, a saber: a) fomentar a propriedade plena que facilita a exploração mais equilibrada e mais pacifica dos bens; b) não sendo possível alcançar a propriedade exclusiva, diminuir o número dos consortes; e) impedir o ingresso, na contitularidade do direito, de pessoas com quem os consortes, por qualquer razão, o não queiram exercer [apud Pires de Lima e Antunes Varela, in Código Civil Anotado, Coimbra Editora, 2.ª edição, Volume III, p. 367.].
Ora, nenhuma destas justificações colhe no caso de venda, em hasta pública a que se proceda em acção de divisão de coisa comum, a estranho, da totalidade do prédio: neste caso obteve-se a propriedade plena, desaparece a contitularidade, deixa de haver possibilidade de conflitos entre uma pluralidade de comproprietários.
O art. 1409º do Cód. Civil não tem por fim defender a permanência da coisa na propriedade de um dos anteriores proprietários. O direito de remição é que tem por finalidade evitar que os bens saiam da propriedade de determinado círculo familiar. As finalidades do direito de preferência atribuído aos comproprietários. São inteiramente diferentes.
E, sobretudo, a atribuição do direito de preferência ao comproprietário na venda do prédio por inteiro, em hasta pública a que se proceda em acção de divisão de coisa comum, mostra-se incorrecta e inconveniente pelos prejuízos que é susceptível de causar aos outros comproprietários (em especial aos de menor poder económico e que, por isso, não estejam em condições de oferecer preço elevado).
Na verdade, não se reconhecendo o direito de preferência nesta hipótese, o comproprietário interessado na aquisição da totalidade do prédio (..) terá que lançar na hasta pública o que fará subir o preço até ao melhor em beneficio de todos os demais comproprietários, mesmo daqueles que por razões económicas (ou por estas aliadas à pequenez das suas quotas) se encontrem de facto impossibilitadas de oferecer o preço justo ou o melhor.
Pelo contrário, reconhecendo-se o direito de preferência aos comproprietários, na aludida hipótese, aquele que esteja interessado na aquisição abster-se-á de lançar, esperando que os estranhos ofereçam preço baixo (como tantas vezes acontece nas vendas judiciais) e, até, possibilitando conluios, com grande prejuízo dos outros comproprietários mais débeis.
Repare-se que na venda, ou na dação em cumprimento, de quota o comproprietário não alienante é estranho à negociação e acordo entre o alienante e o terceiro adquirente. Por isto justifica-se que o comproprietário não alienante possa preferir. Já na venda em hasta pública a que se proceda em acção de divisão de coisa comum todos os comproprietários são admitidos a lançar e, assim não tem justificação que, depois disso, ainda possam vir exercer preferência.
Por estas razões entende-se ter melhor justificação a interpretação tradicional do art. 1409º, nº 1, do Cód. Civil a qual nega ao comproprietário direito de preferência na venda a estranho da coisa, por inteiro, a que e proceda mediante arrematação em hasta pública que tenha lugar em acção de divisão de coisa comum
Mais tarde, por Acórdão de 10-07-2008, Prazeres Beleza, in www.dgsi.pt, o Supremo Tribunal de Justiça reiterou aquele entendimento, assinalando então o seguinte:
«[…] traduzindo-se na atribuição ao preferente, por lei, da faculdade de, em igualdade de condições, se substituir ao adquirente de uma coisa, em certas formas de alienação, o direito legal de preferência afecta significativamente o poder de disposição que integra o direito de propriedade, já que retira ao proprietário o direito de escolha do outro contraente. A sua criação resulta, portanto, da verificação da existência de razões de interesse público que se sobrepõem àquela liberdade de escolha, enquanto integrante dos poderes do proprietário.
A verdade, todavia, é que essas razões de interesse público acabam, em regra, por se reconduzir à protecção da mesma plenitude do direito de propriedade, considerada, agora, do ponto de vista da situação resultante do acto de alienação.
Com efeito, deixando de lado o direito de preferência atribuído a proprietários de terrenos confinantes de área inferior à unidade de cultura (cfr. artigo 1380º do Código Civil), cuja razão é a de permitir uma mais eficiente exploração agrícola, o exercício dos direitos legais de preferência leva à concentração numa só pessoa, ou num número mais restrito de pessoas, dos poderes que integram o direito de propriedade plena sobre uma determinada coisa.
Assim, nos casos da preferência conferida ao proprietário do prédio onerado com uma servidão de passagem (artigo 1555º do Código Civil), com o direito de superfície (artigo 1535º do Código Civil) ou com um arrendamento, o objectivo é o de reunir numa mesma pessoa as faculdades que, contidas no direito de propriedade plena, se encontravam repartidas entre diversos titulares: entre o proprietário e o titular do direito real menor, nas duas primeiras hipóteses, entre aquele e o arrendatário na terceira (não interessando agora a discussão quanto à natureza do seu direito, já que o arrendamento onera o direito de propriedade de forma quase tão intensa como os direitos reais menores).
Tratando-se de compropriedade, como agora sucede, a atribuição do direito de preferência aos comproprietários, em caso de venda ou dação em cumprimento a terceiros (artigo 1409º do Código Civil), tem em vista a redução progressiva do número de proprietários, de acordo com a ideia de que a propriedade singular permite o melhor aproveitamento da coisa, desde logo porque elimina diversos conflitos que frequentemente se travam entre comproprietários.
Entende-se que não tem apoio, nem na letra do nº 1 do artigo 1409º do Código Civil, nem na sua razão de ser, a extensão do direito de preferência aos comproprietários, em caso de alienação da totalidade do prédio a terceiros.»
Cremos que esta é a correcta interpretação do preceito que confere ao comproprietário direito de preferência na venda a estranhos da quota de qualquer dos seus consortes[1]. Ousamos acrescentar mais dois argumentos que, salvo melhor opinião, reforçam esse entendimento.
O preceito legal em causa tem fonte histórica no artigo 1566º do Cód. Civil de 1867 e na pendência dessa norma suscitou-se a polémica sobre a sua interpretação, tendo sido proferido pelo Supremo Tribunal de Justiça um assento que fixou a interpretação segundo a qual quando se tratasse de arrematação da totalidade do prédio comum os comproprietários não tinham direito de preferência. Parece pois razoável supor que se o legislador de 1966 pretendesse consagrar solução diversa daquela que até então se encontrava fixada de forma vinculativa por assento, teria dado ao artigo 1409.º do Código Civil uma redacção distinta, não coincidente com a redacção pretérita. Por esse motivo, cremos estar arredada a possibilidade de fazer qualquer interpretação extensiva da norma.
Por outro lado, o n.º 3 do preceito, segundo o qual, sendo dois ou mais os preferentes, a quota alienada é adjudicada a todos, na proporção das suas quotas, só é compatível precisamente com a hipótese de se estar perante a venda de uma das quotas, não da totalidade do prédio.
Afinal de contas, a sua aplicação nos casos da venda da totalidade do prédio numa acção de divisão de coisa comum conduziria a que, caso os comproprietários pretendessem todos exercer a preferência, cada um deles acabaria por adquirir a mesma quota no bem de que já era titular (!), ou seja, acabaria por se manter sempre a situação de indivisão a que se pretendia por cobro com a acção de divisão de coisa comum! O que conduziria afinal de seguida à instauração de uma nova acção de divisão de coisa comum e à repetição nesta dos actos praticados na anterior, numa insustentável situação de eterno retorno. Acresce que esta previsão deixa claro que a função social da norma não é outra senão a de impedir que passem a ter a qualidade de comproprietários pessoas estranhas à situação de compropriedade existente e não a de dar aos comproprietários preferência na venda da totalidade do bem.
Desse modo, qualquer tentativa de interpretar o artigo 1409.º do Código Civil como consagrando o direito de preferência na arrematação em hasta pública da totalidade do prédio constitui a nosso ver uma tarefa de criação normativa e uma eleição jurisprudencial dos interesses a proteger que, fora do espaço do suprimento das lacunas, está vedada à jurisprudência.
Em suma, na situação a que se reportam os autos, o requerido não tinha mesmo o direito de preferência que pretendeu exercer, pelo que a sua pretensão devia ter sido indeferida com esse fundamento.
Esta conclusão torna inútil e prejudica o conhecimento da outra questão suscitada.
De todo o modo, sempre se dirá que também nesse aspecto o requerido não tem razão.
O n.º 3 do artigo 823.º do Código de Processo Civil, relativo ao exercício do direito de preferência, estabelece que se aplica ao preferente, devidamente adaptado, o disposto no n.º 1 do artigo seguinte.
O artigo 824.º do mesmo diploma, concerne à caução e depósito do preço, e prescreve no seu n.º 1, para que remete o anterior, que «os proponentes devem juntar obrigatoriamente com a sua proposta, como caução, um cheque visado, à ordem do agente de execução ou, nos casos em que as diligências de execução são realizadas por oficial de justiça, da secretaria, no montante correspondente a 5 % do valor anunciado ou garantia bancária no mesmo valor».
Como o preferente não é proponente, ele não apresenta uma proposta, apenas se apresenta a declarar que pretende exercer o seu direito de preferência. A aplicação com as necessárias adaptações tem a ver com esse aspecto. Dizendo o 824.º que a caução é apresentada obrigatoriamente com a proposta, isso significa que no caso do preferente a caução é apresentada obrigatoriamente com a declaração para exercício da preferência. Portanto, o preferente deve apresentar a caução no momento em que, uma vez aceite uma proposta, for interpelado para declarar se quer exercer a preferência e declarar que a quer exercer de facto.
Ao contrário do defendido pelo requerido, o valor da caução não está relacionado com o valor da proposta aceite, está sim indexado ao valor anunciado para a venda, isto é, a 85% do valor base fixado ao bem para efeitos da sua venda. O que significa afinal que antes da diligência de abertura de propostas o preferente já conhece perfeitamente o valor que terá de caucionar por cheque visado ou garantia bancária para poder exercer a preferência, estando pois em condições de, actuando com a diligência devida, reunir as condições legais para o exercício pleno do direito de preferência.
É certo que o preferente não sabe se irá ser apresentada alguma proposta e, por conseguinte, se virá a ter preferência na aquisição do bem. Todavia, essa é uma situação comum à dos proponentes. Também estes, ao apresentarem a sua proposta desconhecem se a mesma irá ser aceite, isto é, podem ter apresentado debalde a caução que o artigo 824.º do Código de Processo Civil exige suportando, não obstante, o custo ou encargo com a prestação da caução.
Trata-se, portanto, de um incómodo que qualquer interessado terá de assumir e que constitui um requisito necessário para a aceitação da proposta e/ou exercício da preferência, cuja razão de ser é a de impedir a apresentação de propostas e/ou declarações de desejar exercer a preferência que posteriormente não se concretizam no pagamento do preço, conduzindo à repetição de diligências e à frustração dos objectivos e da celeridade da venda, conforme tantas vezes acontecia quando a lei processual não consagrava a necessidade da caução.
Defende no entanto o requerido que se deve reconhecer a existência de uma situação de justo impedimento à apresentação da caução no momento em que declarou pretender exercer a preferência.
Trata-se, de novo, de uma pretensão improcedente.
Nos termos do artigo 140.º, n.º 1, do Código de Processo Civil, considera-se justo impedimento o evento não imputável à parte nem aos seus representantes ou mandatários, que obste à prática atempada do ato.
Há justo impedimento sempre que sobrevenha um facto que impeça a prática do acto e que não seja imputável à parte a título de culpa, podendo a parte ou o mandatário ter tido participação na ocorrência desde essa intervenção não envolva, nos termos gerais, um juízo de censurabilidade.
No dizer de Lopes do Rego, in Comentários ao Código de Processo Civil, pág. 125, «o que deverá relevar decisivamente para a verificação do “justo impedimento”- mais do que a cabal demonstração da ocorrência de um evento totalmente imprevisível e absolutamente impeditivo da prática atempada do acto - é a inexistência de culpa da parte, seu representante ou mandatário (…) a qual deverá naturalmente ser valorada em consonância com o critério geral estabelecido no nº 2 do art. 487º do CC (…)».
Não é necessário que o evento seja imprevisível, totalmente estranho à actuação do interessado e insuperável por este. Mas para que não lhe seja permitido praticar o acto fora do prazo, com fundamento em justo impedimento, basta que o requerente tenha atuado com negligência, culpa ou imprevidência (cf. Acórdão desta Relação de 22.11.2016, proc. n.º 339/13.5TBVCD-A.P1, in www.dgsi.pt).
Quando o evento é conhecido do interessado ou este tem condições, de acordo com a normalidade das coisas, para o prever, há negligência do interessado sempre que este não adoptar as atitudes de que é capaz e que em condições normais são possíveis e devidas para evitar as consequências do evento.
Por outro lado, não basta qualquer evento. É necessário que o evento constitua um obstáculo à prática do acto até ao momento em que o evento cessa, isto é, que seja tal que impeça o interessado de praticar o acto. Não importa se para o praticar o interessado necessita de exercer alguma diligência acrescida que noutras condições não seria necessária, porquanto esse acréscimo de diligência se justifica pelo benefício da prática do acto fora do prazo e pela colocação em situação de vantagem face à parte contrária.
Portanto, para nos depararmos com uma situação de justo impedimento é necessário que tenha sobrevindo um facto e que esse facto seja inesperado e invencível actuando o agente com não mais que a diligência razoável.
Tendo sido notificado da data da abertura de propostas em carta fechada para venda do bem, o requerido soube de imediato da possibilidade de virem a ser apresentadas propostas para aquisição do bem e, como tal, também da necessidade de querendo exercer a preferência sobre a proposta que viesse a ser aceite (caso o preço e as condições desta lhe agradassem) apresentar uma caução correspondente a 5% do valor anunciado para a venda. Por isso, e radica aí a confusão, não ocorreu aqui nem foi sequer alegado qualquer facto, muito menos qualquer facto imprevisto, impeditivo da apresentação da caução.
O que ocorreu foi que o requerido, antevendo a impossibilidade ou falta de interesse em exercer a preferência, decidiu desacautelar a hipótese inversa, isto é, decidiu por motu próprio e independentemente do mais, correr o risco de querer (poder) exercer a preferência e não estar em condições de o fazer! Não houve pois qualquer facto novo e imprevisto, houve uma imprevisão ou erro de estratégia! O requerido não foi impedido de ter o incómodo que a lei prevê, não o quis ter, decidindo arriscar na possibilidade de ele não ser necessário.
Acresce que o justo impedimento, a existir, teria de ser invocado perante o tribunal a quo, para fundamentar não a concessão de um prazo suplementar para a prática de um acto que não foi praticado no momento certo, mas apenas a admissão da prática do acto - de apresentar a caução - logo que cessasse o impedimento.
Isso é assim porque o justo impedimento não é uma situação legal de prorrogação do prazo. Ele não transfere o último dia do prazo para o último dia do evento impeditivo – cf. Acórdão da Relação de Coimbra de 18.10.2016, no proc. n.º 65/12.2TBRSD.C1, e a decisão sumária da mesma Relação de 14.03.2017, proc. n.º 8/14.9T8MMV-B.C1, ambos in www.dgsi.pt -. O justo impedimento é um fundamento excepcional de admissão da prática do acto apesar de já ter decorrido o respectivo prazo e exige por isso a verificação dos dois requisitos específicos referidos.
Por isso, como refere Abílio Neto, in Breves Notas ao Código de Processo Civil, 2005, pág. 50, «a invocação do justo impedimento, para evitar o efeito extintivo do decurso do prazo, tem de ser feito logo que cesse a causa impeditiva, devendo as provas ser oferecidas no respectivo requerimento, de modo a permitir ao juiz averiguar se o motivo invocado preenche os requisitos legais da imprevisibilidade, da inimputabilidade à parte ou aos seus representantes e se era obstativo, de todo em todo, da prática, em tempo, do ato judicial em causa». No mesmo sentido, por exemplo o Acórdão da Relação de Coimbra de 17.03.2015, in www.dgsi.pt, onde se afirma que «o justo impedimento só pode ser invocado nas situações em que ainda não tenha decorrido o prazo normal para praticar o acto, devendo a parte, logo que cesse o impedimento, praticar o acto alegando simultaneamente o justo impedimento» -.
Concluindo: o recurso é improcedente, devendo ser confirmada, embora não exactamente só pelo mesmo fundamento, a decisão recorrida de não conceder prazo ao requerido para prestar a caução prevista no artigo 824.º do Código de Processo Civil.

V. Dispositivo:
Pelo exposto, acordam os juízes do Tribunal da Relação em julgar o recurso improcedente e, com a ampliação dos fundamentos conforme acima exposto, confirmam a decisão recorrida.
Custas do recurso pelo recorrente.
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Porto, 20 de Fevereiro de 2020.
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Os Juízes Desembargadores
Aristides Rodrigues de Almeida (R.to 539)
Francisca Mota Vieira
Paulo Dias da Silva

[a presente peça processual foi produzida com o uso de meios informáticos e tem assinaturas electrónicas]
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[1] No mesmo sentido, os Acórdãos da Relação de Coimbra de 12-05-2009, Freitas Neto, proc. n.º 1474/05.9TJCBR-A.C1, e da Relação de Guimarães de 02-03-2010, Eva Almeida, proc. n.º 185-D/2002.G1, ambos in www.dgsi.pt.