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CONTRATO DE SEGURO
FURTO
RISCO
CIRCUNSTÂNCIAS AGRAVANTES
COMUNICAÇÃO
Sumário
I - De acordo com o disposto no art. 93.º do Regime Jurídico do Contrato de Seguro, existe prazo para o segurado comunicar ao segurador as circunstâncias que agravem o seguro. II - As circunstâncias a comunicar são as suscetíveis de ter impacto na existência ou condições do contrato, portanto, as essenciais. Pode ser facto imputável ao tomador do seguro ou ao segurado (p. ex., no seguro de furto ou roubo de habitação a resolução de contrato de vigilância com a respectiva prestadora do serviço de vigilância), ou facto que lhes não seja imputável (p. ex., no mesmo seguro, o anúncio do fim dos patrulhamentos da PSP na zona onde a habitação esteja localizada). Já não constitui agravamento do seguro que obrigue àquela comunicação guardar as chaves nas proximidades do veículo seguro, seja em arbustos, em vaso de flores ou noutro local, quando não se demonstre que essa circunstância foi causal do furto do veículo. III – Causal do furto é o facto típico, ilícito e criminoso cometido por terceiro.
Texto Integral
Processo n.º 1643/18.1T8PVZ.P1
Acordam os juízes abaixo-assinados da quinta secção, cível, do Tribunal da Relação do Porto: RELATÓRIO
AUTORA: B..., LDª, com sede na Rua …, …. RÉ: C… - COMPANHIA DE SEGUROS, SA, com sede na Av. …, n.º .., Lisboa.
Por via da presente ação declarativa pretende a A. obter a condenação da Ré a pagar-lhe a quantia de €75.937, 10, com juros de mora vencidos desde 13.5.2015.
Para tanto invocou ter celebrado com a Ré um contrato de seguro que, entre o mais, cobria o furto ou roubo de veículo automóvel da A., havendo este sido furtado da via pública.
Contestando, a Ré admite a existência do contrato de seguro com a cobertura facultativa invocada pela A.
Mais alegou tratar-se de falta de prudência serem deixadas num arbusto as chaves de um Mercedes …, o que desvirtua a noção de aleatoriedade associada ao contrato de seguro, cifrando-se num agravamento do risco. Refere, ainda, que não teria celebrado o contrato de seguro caso soubesse que as chaves seriam colocadas em arbusto, podendo ser visualizadas por alguém.
Realizado julgamento veio a ser proferida sentença, datada de 21.8.2019, julgando a ação procedente e condenando a Ré a pagar à A. a quantia de €75.937, 10, com juros de mora, à taxa de 4%, desde 15.5.2018 e até integral pagamento.
Foram os seguintes os factos aí dados como provados e não provados. 1 – Está registada a favor da A. a aquisição do veículo com a matrícula .. – OX - ... 2 – A A. outorgou com a R., em 24/07/2016, um contrato de seguro de responsabilidade civil e danos próprios do ramo automóvel, titulado pela apólice nº ............, conforme fls. 63, seguro esse que tinha por objecto e visava a cobertura de diversos riscos respeitantes à utilização de tal viatura automóvel. 3 - O referido seguro estava em vigor à data dos factos. 4 - A referida apólice de seguro cobria diversos riscos, em sede de danos próprios, como sejam fenómenos da natureza, incêndio, raio ou explosão e furto ou roubo, sem franquia para o caso de furto. 5 – O contrato de seguro celebrado é regido pelas condições gerais, especiais e particulares que constam dos autos a fls. 17 a 67, cujo teor aqui se considera reproduzido e, em particular, as seguintes: Cláusula 58ª O seguro abrangido por esta cobertura garante a indemnização dos prejuízos devidos a dano causado ao veículo seguro, em virtude de furto ou roubo. Cláusula 59ª Furto ou roubo: Desaparecimento, destruição ou deterioração do veículo seguro por motivo de furto, roubo ou furto de uso (tentado ou consumado). Cláusula 60ª () 3. Furto ou roubo cometido por pessoas que coabitem ou dependam economicamente do tomador do seguro / segurado, pessoas que se encontrem ao seu serviço, ou por quem, em geral, aqueles sejam civilmente responsáveis. Cláusula 61ª: Para além do que consta na cláusula 42ª do seguro facultativo, considera-se ainda o seguinte: 1. Caso o tomador do seguro queira usar dos direitos que esta cobertura lhe confere apresentará, no prazo de oito dias, queixa às autoridades competentes e promoverá todas as diligências ao seu alcance conducentes à descoberta do veículo seguro. 2. Caso o furto, roubo ou furto de uso dê origem ao desaparecimento do veículo seguro, o segurador obriga-se ao pagamento da indemnização devida, decorridos que sejam 60 dias sobre a data da participação da ocorrência à autoridade competente e ao segurador, se ao fim desse período o mesmo não tiver sido encontrado. Cobertura de acidentes pessoais ocupantes de viatura: Cláusula 4ª: 1. São sempre excluídos do âmbito da presente cobertura os acidentes decorrentes de: a) Actos ou omissões dolosos ou gravemente negligentes praticados pelo tomador do seguro, pessoas seguras, beneficiários, ou por pessoas por quem sejam civilmente responsáveis. Discutida a causa, resultam provados os seguintes factos: 6 - O capital seguro para efeitos de danos próprios decorrentes dos riscos identificados, era de 75.937,10 euros para o período em causa nestes autos. 7 – No dia 12/03/218 o veículo .. – OX - .. foi estacionado no parque de estacionamento público denominado D…, localizado junto à Praia E… em …. 8 – Este parque de estacionamento é um parque público com estacionamento em espinha, que ladeia a referida praia, junto ao qual atravessa o passeio marítimo de … (do lado da orla marítima) e a EN …, mais conhecida como Avenida … e que liga … a … (do lado oposto – no qual circulam veículos nos dois sentidos de marcha). 9 – Nessa altura estavam no local F…, o filho G… e a mãe H…. 10 – Pretendendo F… e a mãe dirigir-se daquele local a Lisboa de táxi, e uma vez que o filho pretendia ir fazer surf, depois de este se equipar e guardar os seus pertences dentro do veículo, o G… escondeu as chaves do veículo num local próximo de onde estava estacionado, tendo procurado fazê-lo sem ser visto por quem quer que fosse. 11 – O objectivo de ambos era o de o G… poder ter acesso ao veículo para se vestir quando saísse da água. 12 – Não viram ninguém no local quando foram escondidas as chaves do veículo. 13 – As chaves foram escondidas junto a um arbusto, na terra, próximo do local de estacionamento. 14 – Se tivessem pensado que estavam a ser vistos, jamais teriam deixado a chave naquele local. 15 – O fato utilizado pelo G… para a prática do surf não possibilita a guarda da chave. 16 – Quando o G… saiu da água e chegou ao local de estacionamento, o veículo havia desaparecido, bem como as suas chaves, contra a vontade da A.. 17 – No mesmo dia, o G…, a mãe e avó deslocaram-se à esquadra da PSP para participar o desaparecimento do veículo. 18 – No dia seguinte efectuou a participação do sinistro à R.. 19 – Por carta de 25/05/2018, a R. declinou a responsabilidade pelo furto ocorrido.
Não se provou que: 1 - A situação descrita tivesse sido uma situação singular. 2 – Caso a R. soubesse que o condutor do veículo deixaria as chaves do mesmo escondidas perto do local de estacionamento para ir praticar surf, não celebraria o contrato de seguro.
Visando a revogação da sentença e a sua absolvição, veio a Ré apresentar recurso que concluiu do seguinte modo: 1. Existe prova nos autos, quer documental quer testemunhal, que conduz a uma decisão relativamente à matéria de facto diversa da dada pelo tribunal de primeira instância quanto à questão de saber se a ré celebraria o contrato de seguro se soubesse que as chaves deste veículo iam, de forma habitual, ser deixadas num espaço público, perto do local em que o veículo ficasse estacionado. 2. Em termos de direito, entende também a recorrente que ocorreu uma situação de agravamento de risco que torna inexigível o ressarcimento do dano decorrente do furto. 3. Quando o contrato de seguro em causa foi contratado, o legal representante da tomadora do seguro, I…, sabia que o veículo ia ser utilizado em condições propiciadoras do seu furto. 4. O legal representante da autora sabia, quando contratou a cobertura de furto ou roubo do veículo seguro, que o mesmo iria ser estacionado, em inúmeras ocasiões, ao pé da praia, com as chaves fora do veículo, deixadas na via pública e em local em que se supusesse não serem vistas por ninguém, com a falibilidade que tal suposição comporta. 5. Questionado se depois de ter acontecido o furto do seu veículo ainda entende que as chaves devem ser deixadas numa situação de vulnerabilidade como sucedeu in casu, o mesmo respondeu afirmativamente. 6. Esconder a chave do veículo, perto do seu local de estacionamento, é uma prática corrente entre surfistas. 7. Quem souber desta prática e estiver com más intenções, facilmente consegue furtar um veículo. Basta estar atento à chegada de um surfista e vigiar o local em que o mesmo esconde a chave para depois a ir lá buscar e levar o carro consigo. 8. Quando esse veículo é um Mercedes-Benz da Classe …, como o dos autos, ainda mais apelativa é a situação. 9. Este veículo um dia iria ser furtado. Só não se sabia quando e onde. 10. O mediador de seguros J…, pessoa que mediou no contrato de seguro em discussão, foi confrontado com o tipo de reação que teria se soubesse que o veículo seguro com a cobertuta de furto ou roubo ia ser utilizado nas sobreditas circunstâncias. Não querendo comprometer a sua cliente ora autora, este agente de seguros acabou por referir que se soubesse que era prática corrente este tipo de comportamento de deixar a chave fora do veículo enquanto se pratica surf, que comunicaria à companhia de seguros para que ela tomasse a decisão que entendesse adequada. 11. Também sobre este assunto foi ouvido K…, gestor de sinistros da ré, que foi perentório em declarar que a seguradora nunca aceitaria celebrar o contrato com a cobertura de furto se soubesse que o veículo iria ser utilizado nas cirunstâncias descritas nos autos, nem que fosse apenas por uma única vez. 12. Os factos notórios não carecem de demonstração ou prova. A recusa de um seguro por parte de qualquer seguradora se soubesse que o veículo ia ser conduzido desta forma, pelo menos no que respeita à cobertura de furto ou roubo, é facto notório. 13. O próprio tribunal de primeira instância considera que a narrativa subjacente ao furto constitui uma história invulgarmente negligente, que alguém viu o G… a esconder a chave "porque, quando saiu do mar, antes da mãe e avó terem regressado, o veículo havia desaparecido e a chave não estava no local onde havia sido deixada", e reconheceu estar-se perante uma negligência grosseira do condutor do veículo. 4. É, assim, entendimento da recorrente, no seguimento do teor da própria comunicação endereçada pela ré à autora, datada de 25/05/2018 e que consta a fls. ... dos autos, que a matéria do ponto n.º 2 dos factos não provados deve transitar para o elenco dos factos provados, dando-se, assim, por demonstrado que caso a ré soubesse que o condutor do veículo deixaria as chaves do mesmo escondidas perto do local de estacionamento para ir praticar surf, não celebraria o contrato de seguro. 15. Uma vez assente esta alteração à decisão incidente sobre a matéria de facto, passa-se a expor as discordâncias relativamente à decisão de direito. 16. A factualidade em causa envolve um grau de temeridade extremamente elevado. Com efeito, deixar as chaves de um Mercedes … enfiadas num arbusto, na via pública, sem qualquer controlo por parte do proprietário ou condutor, é algo que denota uma imensa falta de prudência e sensatez. 17. Nos termos do art. 1.º do anexo ao DL n.º 72/2008, de 16/04, que aprovou o egime jurídico do Contrato de Seguro (RJCS), o conteúdo típico do contrato de seguro é definido nos seguintes moldes: Por efeito do contrato de seguro, o segurador cobre um risco determinado do tomador do seguro ou de outrem, obrigando-se a realizar a prestação convencionada em caso de ocorrência do evento aleatório previsto no contrato, e o tomador do seguro obriga-se a pagar o prémio correspondente. 18. Destacam-se, com interesse para a apreciação do presente caso, as noções de risco e de aleatoriedade. O risco constitui um elemento essencial do contrato de seguro, o qual se traduz na possibilidade de ocorrência de um evento futuro e incerto, de natureza fortuita, com consequências desfavoráveis para o segurado, e que deve existir quer aquando da sua celebração quer durante a sua vigência. 19. O sinistro significa a materialização do risco e só pode ser entendido como evento fortuito, súbito e inesperado, sob pena de subversão de todo o sistema segurador de danos em coisas, seja qual for a modalidade de seguro em causa. 20. A aleatoriedade do sinistro significa que o mesmo pode ou não ocorrer. 21. A essencialidade do risco tem expressão legal no art. 44.º do RJCS. Dispõe o n.º 1 deste artigo que "salvo nos casos legalmente previstos, o contrato de seguro é nulo se, aquando da celebração, o segurador, o tomador do seguro ou o segurado tiver conhecimento de que o risco cessou". Por outro lado, refere o n.º 2 que "o segurador não cobre sinistros anteriores à data da celebração do contrato quando o tomador do seguro ou o segurado deles tivesse conhecimento nessa data". 22. A assegurabilidade do risco pode ser aferida por diversos critérios, sendo um deles o da aleatoriedade. Um risco não será assegurável se não for aleatório. 23. Nesta linha de pensamento, surge a questão da ocorrência de circunstâncias que alteram, de forma essencial, a aleatoriedade do risco. Essas circunstâncias podem consistir num agravamento do risco e a sua relevância pode pôr em causa a exigência, ao segurador, da correspetiva prestação indemnizatória. 24. Dispõe o art. 93.º, n.º 1 do RJCS que "o tomador do seguro ou o segurado tem o dever de, durante a execução do contrato, no prazo de 14 dias a contar do conhecimento do facto, comunicar ao segurador todas as circunstâncias que agravem o risco, desde que estas, caso fossem conhecidas pelo segurador aquando da celebração do contrato, tivessem podido influir na decisão de contratar ou nas condições do contrato". Estatui o n.º 2 do art. 93.º que "no prazo de 30 dias a contar do momento em que tenha conhecimento do agravamento do risco, o segurador pode: a) Apresentar ao tomador do seguro proposta de modificação do contrato, que este deve aceitar ou recusar em igual prazo, findo o qual se entende aprovada a modificação proposta; b) Resolver o contrato, demonstrando que, em caso algum, celebra contratos que cubram riscos com as características resultantes desse agravamento do risco". 25. Transpondo este enquadramento para o caso em análise, verifica-se que, caso a ré seguradora soubesse que o veículo ia ser utilizado de forma a que, quando fosse estacionado na via pública, as suas chaves iriam ser deixadas fora do veículo, no arruamento, colocadas num arbusto, podendo ser visualizadas por alguém, antes, durante ou após a sua colocação, nunca teria aceitado cobrir o risco de furto. 26. É que as características essenciais do contrato de seguro, relativas à imprevisibilidade, fortuitidade e aleatoriedade, saem de tal forma enfraquecidas com um ato desta jaez que se deixa de estar perante um risco para se passar a estar perante uma certeza. 27. Na já invocada comunicação de 25 de Maio de 2018, referida no ponto 19 dos factos provados, a ré declarou perante a autora que, ""deixar" a chave em local público, assumindo-se conscientemente a possibilidade desta ser localizada por um qualquer transeunte, é unanimemente considerado um acto negligente e culposo, agravando o risco que a nossa Companhia aceitou subscrever para garantir o veículo referido, situação que jamais teria ocorrido se por mera hipótese se admitisse ser possível os actos praticados." 28. Dispõe o art. 94.º do RJCS o seguinte: "1 - Se antes da cessação ou da alteração do contrato nos termos previstos no artigo anterior ocorrer o sinistro cuja verificação ou consequência tenha sido influenciada pelo agravamento do risco, o segurador: a) Cobre o risco, efectuando a prestação convencionada, se o agravamento tiver sido correcta e tempestivamente comunicado antes do sinistro ou antes de decorrido o prazo previsto no n.º 1 do artigo anterior; b) Cobre parcialmente o risco, reduzindo-se a sua prestação na proporção entre o prémio efectivamente cobrado e aquele que seria devido em função das reais circunstâncias do risco, se o agravamento não tiver sido correcta e tempestivamente comunicado antes do sinistro; c) Pode recusar a cobertura em caso de comportamento doloso do tomador do segurado ou do segurado com o propósito de obter uma vantagem, mantendo direito aos prémios vencidos. 2 - Na situação prevista nas alíneas a) e b) do número anterior, sendo o agravamento do risco resultante de facto do tomador do seguro ou do segurado, o segurador não está obrigado ao pagamento da prestação se demonstrar que, em caso algum, celebra contratos que cubram riscos com as características resultantes desse agravamento do risco." 29. Nunca a autora comunicou nem comunicaria à ré tal agravamento do risco porque saberia de antemão que o bom senso ditaria que aquela se opusesse a comportamentos desse género sob pena de ter que resolver o contrato. 30. Se a ré soubesse que as chaves do veículo iam, por uma única vez que fosse, ser deixadas na via pública quando o veículo ficasse aparcado, nunca teria aceitado cobrir o risco de furto uma vez que a probabilidade do veículo vir a ser subtraído era de tal forma elevada que desaconselharia qualquer seguradora a aceitar cobrir esse risco, sobretudo quando se está perante um Mercedes de alta cilindrada - cfr., a este propósito, as declarações da testemunha K…, acima transcritas, para além da missiva de 25/05/2018 a que já se fez referência. 31. Face ao que antecede, a utilização dada ao veículo agravou de tal forma o risco que não é exigível, legalmente, uma vez ocorrido o sinistro, que a ré seguradora cumpra com a sua prestação dado que, se soubesse de antemão que esse iria ser o uso dado ao veículo, não teria aceitado cobrir o risco de furto. 32. A douta sentença recorrida violou, entre outras disposições legais, os arts. 1.º e 94.º, n.º 2 do RJCS aprovado pelo DL n.º 72/2008, de 16/04.
A A. contra-alegou, pugnando pela manutenção do decidido e formulando as seguintes conclusões: 1. Pretende a ré subtrair-se ao pagamento da indemnização em que foi condenada, vem alegar circunstâncias que pretende ver enquadradas nos artigos 93.º e 94º do Regime Geral do Contrato de Seguro. 2. Com efeito, assenta a sua tese no entendimento de que existiu uma situação de agravamento de risco, que lhe devia ter sido oportunamente comunicada, e não tendo sido, torna-se inexigível o ressarcimento do furto ocorrido. 3. Para poder extrair tal efeito, previsto no nº 2 do artigo 94 do RGCS, pretende a recorrente que seja proferida nova decisão sobre a matéria de facto, dando-se como provado que a mesma não celebraria o contrato de seguro caso soubesse da utilização que foi feita das chaves do veículo. 4. Entende, pois, a Ré, ora recorrente que o Tribunal a quo errou no julgamento que fez da matéria de facto, designadamente, ao ter dado como não provado que “caso a R soubesse que o condutor do veículo deixaria as chaves do mesmo escondidas perto do local de estacionamento para ir praticar surf, não celebraria o contrato de seguro” – ponto 2 dos factos não provados. Salvo o devido respeito, não lhe assiste razão. 5. Nenhum elemento de prova se encontra produzido nos autos, documental ou testemunhal, que pudesse ter levado o Tribunal a quo a julgar de forma diversa o ponto dois dos factos não provados – constando aliás da sentença que «não se encontra minimamente demonstrado» 6. Sendo inequívoco que nenhuma das testemunhas cujos depoimentos foram transcritos pela recorrente seria suscetível de produzir prova bastante sobre esta matéria. 7. É aliás por saber que não foi produzida qualquer prova que a Ré procura qualificar o referido facto – ponto dois dos factos não provados – como um facto notório, que dispensaria alegação e prova, o que, salvo o devido respeito, não tem qualquer sentido. 8. Um facto é notório quando o juiz o conhece como tal, colocado na posição do cidadão comum, regularmente informado, sem necessitar de recorrer a operações lógicas e cognitivas, nem a juízos presuntivos (A. dos Reis, CPC Anot, 3º-259, Castro Mendes, "Do Conceito de Prova", 711 e Vaz Serra, Provas, BMJ 110º-61). 9. Não se podem considerar como notório um facto tão específico, relativo a um contrato de natureza privada celebrado apenas entre ambas as partes. 10. Não seria possível saber se a Ré contrataria ou não o seguro nas referidas circunstâncias sem se produzir prova, razão pela qual, aliás, foi esta questão expressamente incluída nos temas de prova. 11. Contudo não logrou a recorrente demonstrar que em caso algum aceitaria celebrar contratos com o referido tipo de risco, tendo inevitavelmente sido este facto dado como não provado. 12. Antes pelo contrário, sufraga-se inteiramente o entendimento plasmando na douta sentença recorrida segundo o qual «os termos em que o contrato de seguro celebrado são a prova inequívoca que a Ré celebra contratos de seguro que cobrem o risco de furto ainda que exista negligência grosseira do segurado de quem dele dependa». 13. Por outro lado, resultaram provados os diversos cuidados observados pelo utilizador da viatura para evitar que um tal sinistro pudesse ocorrer - cfr. nºs 10, 12 e 13 dos factos provados. 14. Ficou também provado que a Ré apresentou à Autora uma cotação/proposta para a celebração de um contrato de seguro, e que esta aceitou, aderindo ao contrato cujas cláusulas e condições foram inteiramente definidas pela ré. 15. Ao definir as suas condições do seguro, a recorrente quis, por exemplo, prever a exclusão da sua responsabilidade na Cobertura de Acidentes Pessoais – Ocupantes da Viatura, em casos de “Atos ou omissões dolosos ou gravemente negligentes praticados pelo tomador do seguro, pessoas seguras, beneficiários, ou por pessoas por quem sejam civilmente responsáveis”, tal como vem previsto na cláusula 4ª, nº1, alínea a) da cobertura complementar que integra as condições do seguro - cfr. nº5 dos factos provados. 16. Diversamente, a ré, ora recorrente, não só não quis, como objetivamente não introduziu exclusão de semelhante teor na cobertura de Furto ou Roubo. 17. Em toda a sua linha de defesa a argumentação, a recorrente pretende atribuir ao comportamento do utilizador do veículo segurado uma natureza culposa negligente e de retirar a natureza fortuita do evento, sendo com base neste elemento que se pretende considerar excluída da obrigação de cobrir o furto. 18. Contudo, se a Ré pretendia fazer valer como cláusula de exclusão da sua responsabilidade por sinistros subsumíveis à coberta de Furto ou Roubo, a prática de actos ou omissões negligentes praticados pelo tomador do seguro, pessoas seguras, beneficiários, ou por pessoas por quem sejam civilmente responsáveis, devia tê-lo previsto expressamente, tal como fez noutras coberturas, tendo aqui optado por não o fazer. 19. Não se olvidando dando que este contrato consistiu num contrato de adesão, pois a vinculação da segurada fez-se através da subscrição de um quadro contratual preestabelecido pela seguradora e consubstanciado nas condições da apólice. 20. Sendo que “as declarações gerais e especiais constantes da apólice de seguro integram declarações negociais, estando, como tal, sujeitas, em matéria de interpretação, aos princípios estabelecidos nos art.ºs 236.º e 238.º, ambos do Código Civil, prevalecendo, em caso de dúvida, o sentido mais favorável a quem beneficia do contrato de seguro, como contrato de adesão que é.” (Ac. Tribunal da Relação do Porto, proferido em 06.03.2018, no âmbito do processo Nº 202/17.0T8FLG.P1). 21. Com a celebração do contrato de seguro provado nos autos, obrigou-se a Ré a garantir o pagamento do capital seguro da cobertura de Furto ou Roubo em caso de verificação do risco coberto. 22. Foi provado que o sinistro que fundamentou a participação pela ora recorrida à recorrente, no sentido de ser acionada a respetiva apólice de seguro teve, por fundamento um furto tal qual se encontra configurado nas condições especiais do contrato. 23. Não poderia assim a Autora ver as suas expectativas contratuais frustradas, tendo em conta inexistir previsão contratual para a exclusão do Furto das coberturas contratadas e cuja garantia cabia à Ré, ora apelante. 24. A douta Sentença proferida não merece qualquer reparo ou censura, uma vez que reflete de forma clara, fundamentada e inteligível a aplicação do Direito à matéria factual que resultou efetivamente provada. 25. É, pois, com invocação de tudo quanto emerge da douta sentença recorrida que se há de concluir pela improcedência do presente recurso de apelação.
Foram colhidos vistos.
Questões a decidir tendo em conta o objeto do recurso delimitado pela recorrente nas conclusões das suas alegações (artigos 635º, nºs 3 e 4 e 639º, nºs 1 e 3, ambos do Código de Processo Civil, na redação aplicável a estes autos), por ordem lógica e sem prejuízo da apreciação de questões de conhecimento oficioso, observado que seja, quando necessário, o disposto no artigo 3º, nº 3, do Código de Processo Civil:
I - Da alteração da matéria de facto (ponto 2 dos factos não provados).
II - Da exclusão da indemnização pela verificação do furto.
Fundamentos de facto
Iniciando a exposição pela conclusão, diremos que os factos se encontram correctamente julgados e, ainda que se desse como provado o ponto 2.º dos factos não provados, nem por isso a solução seria distinta. Isto porque as regras dos arts. 93.º e 94.º da do DL 72/2008, de 16.4 (RJCS), como veremos, não têm como pressuposto situações como a dos autos.
No que tange à factualidade propriamente dita, pretende a Ré se extraia dos depoimentos de I…, G…, F…, J… e K… a prova de que não celebraria o contrato de seguro caso soubesse que o condutor deixaria escondidas as chaves do mesmo perto do local de estacionamento para ir praticar surf.
Todavia, não se nos afigura ser de dar como provado tal facto.
Os três primeiros referem ser uso habitual de quem pratica surf deixar escondidas as chaves do veículo nas imediações deste, mas nem por isso dos depoimentos de J… e de K… resulta que a Ré não contrataria se, por hipótese, aquela questão lhe houvesse sido colocada.
Na verdade, o primeiro – mediador de seguros - não respondeu diretamente a esta questão, dizendo que comunicaria tal circunstância à companhia de seguros, e o segundo – funcionário da Ré – apesar de naturalmente o ter afirmado, não explica por que razão, sendo o contrato de seguro um contrato de adesão e estando prevista a exclusão da responsabilidade pelo furto em caso de dolo também não estava excluída a negligência grosseira, isto caso se entenda ser de negligência grosseira a situação dos autos.
Tendo em conta estas considerações, também não consideramos ser um facto notório aquele que cabia à Ré provar. Razão por que se mantêm os factos provados e não provados já fixados em sentença de primeira instância.
Fundamentos de direito
O contrato de seguro é regulado pelas estipulações da respetiva apólice, que não sejam proibidas por lei e, subsidiariamente, pelas disposições do RJCS e, subsidiariamente, pelas disposições da lei comercial e civil (cfr. artigos 4º e 11º do RJCS).
No caso presente, estamos perante um seguro de danos nos termos do disposto no artigo 123º do RJCS, “o seguro de danos pode respeitar a coisas, bens imateriais, créditos e quaisquer outros direitos patrimoniais”, tratando-se de danos próprios relativos a veículo automóvel.
A lei não define o contrato de seguro, remetendo o art. 1º do RJCS para a ideia de risco, afirmando-se que por meio do contrato o segurador cobre um risco determinado do tomador do seguro ou de outrem, obrigando-se a realizar a prestação convencionada em caso de ocorrência do evento aleatório previsto no contrato, e o tomador do seguro obriga-se a pagar o prémio correspondente.
O risco é, pois, o elemento essencial do contrato, mas é o contrato de seguro que define exactamente que risco é esse, pois só é sinistro «a ocorrência do evento aleatório previsto no contrato»[1] e é definível como a possibilidade de um evento futuro e incerto suscetível de determinar a atribuição patrimonial do segurador, ou seja, o risco pode ser definido como o “evento futuro e incerto cuja materialização constitui o sinistro”[2].
Para Rita Gonçalves Ferreira da Silva[3], o risco carateriza-se por envolver um evento a) futuro (um possível acontecimento futuro, nunca actual ou passado); b) incerto ou aleatório (deve existir uma certa indeterminação quanto à sua concretização ou não, ainda que reportado a um lapso de tempo determinado); c) possível (deve poder acontecer); d) concreto (deve ser possível a sua análise e valoração quantitativa e qualitativa pela seguradora); e) independente da vontade de todas as pessoas (aqueles que contratam um seguro não podem atuar, intencionalmente, para a realização daquele risco, dado que a produzir-se dará lugar ao nascimento de obrigações a cargo do causante).
Por outro lado, o risco acompanha todo o contrato de seguro, desde as informações preliminares (artigos 18º, alínea b), 24º, nº1,da RJCS), na vigência do contrato (artigos 91º, nº1, 92º, nºs1 e 2 e 93º, nºs1, e 2, do RJCS), na presença de um sinistro (artigos 94º, nº1, alíneas a), b) e c) e nº2, do RJCS).
De acordo com o disposto no art. 93.º RJCS, existe prazo para o segurado comunicar ao segurador as circunstâncias que agravem o seguro.
Que circunstâncias são estas?
Segundo Arnaldo Costa Oliveira[4], as circunstâncias a comunicar “são as susceptíveis de ter impacto na existência ou condições do contrato, as, portanto, “essenciais” (…). Pode ser facto imputável ao tomador do seguro ou ao segurado (p. ex., no seguro de furto ou roubo de habitação a resolução de contrato de vigilância com a respectiva prestadora do serviço de vigilância), ou facto que lhes não seja imputável (p. ex., no mesmo seguro, o anúncio do fim dos patrulhamentos da PSP na zona onde a habitação esteja localizada)”.
Por outra parte, “aos obrigados à comunicação de agravamento só é exigível que se apercebam da essencialidade do facto para o segurador em termos médios (n.º 2 do art. 762.º CC), não em termos que são exigíveis a um profissional mediana ou minimamente diligente, razão pela qual alguma doutrina releva a conveniência de o segurador, aquando da celebração do contrato ou em momento posterior, especialmente alertar os obrigados para este dever”[5].
No caso presente, a Ré/Recorrente invoca, manifestando-se expressamente, que a sua responsabilidade tinha cessado, com fundamento no disposto no artigo 93º do RJCS.
Como se referiu, esta disposição legal não é aplicável, por um lado, porque a circunstância em apreço – deixar a chave escondida nos arbustos – não é agravamento do seguro e, por outro, porque mesmo que o fosse, antes de ser comunicado pelo tomador do seguro ou do segurado o agravamento do risco e antes de decorrido o prazo de 30 dias a contar do conhecimento da seguradora de factos que agravam o risco, ocorreu o sinistro.
Não existe obrigação de comunicação do local onde, a cada passo, o condutor do veículo segurado deixa ficar as chaves. A situação é em tudo semelhante às chaves de casa que se deixam no vaso colocado à porta, ou ao esquecimento daquelas num local público. Ou, em caso de seguro de vida ou saúde, sair-se de casa mais ou menos agasalhado em dia de consabidas especiais condições climatéricas.
Caso distinto é, por exemplo, a comunicação, no seguro obrigatório de responsabilidade civil automóvel, relativa à condução frequente do veículo seguro por outrem que não o obrigado ao seguro. Nesse caso, pode o segurador invocar que não segura veículos suscetíveis de ser conduzidos por condutores frequentes com as caraterísticas do novo condutor frequente, ainda que no questionário inicial não tivesse sido solicitada expressamente informação sobre esse aspeto.
Por outra parte, a existir tal obrigação de comunicação ela impenderia sobre o tomador do seguro ou sobre o segurado antes mesmo de o risco se concretizar, o que aqui não sucedeu.
Em situação idêntica (mas de seguro cobrindo aluimento de terras em consequência de intempérie em concurso com agravamento do risco pelo segurado que efetuou movimentação de terras), o STJ entendeu não estar afastada a responsabilidade do segurador extamente por haver concurso das duas situações. Lê-se no ac. STJ, de 12.7.2018, Proc. 825/15.2T8LRA.C1.S2: I - O contrato de seguro de danos que, nos termos das Condições Gerais e Especiais, garante o pagamento dos danos sofridos pelos bens seguros em consequência dos seguintes fenómenos geológicos: aluimentos, deslizamentos, derrocadas e afundamento de terras cobre os prejuízos consequentes ao desmoronamento causado pela movimentação de terras no prédio do réu (causa humana) e pela forte pluviosidade registada (causa natural).
II - O art. 93.º do Regime Geral do Contrato de Seguro não é aplicável porquanto, antes de ser comunicado pelo tomador do seguro ou pelo segurado o agravamento do risco e de decorrido o prazo de trinta dias a contar do conhecimento pela seguradora de factos agravadores do risco, ocorreu o sinistro.
Por outro lado, também é inaplicável o n.º 2 do art. 94.º.
Nos termos do disposto no artigo 94º, o segurador cobre o risco, efetuando a prestação convencionada, se o agravamento do risco tiver sido tempestivamente comunicado antes do sinistro ou antes de decorrido o prazo previsto no nº1 do artigo 93º (alínea a) do nº1), ou o segurador cobre parcialmente o risco, reduzindo a sua prestação na proporção entre o prémio efetivamente cobrado e aquele que seria devido em função das reais circunstâncias do risco, se o agravamento não tiver correta e tempestivamente comunicado antes do sinistro (alínea b) do nº1), pode, ainda, o segurador recusar a cobertura em caso de comportamento doloso do tomador do seguro ou do segurado com o propósito de obter uma vantagem, mantendo direito aos prémios vencidos (alínea c) do nº1).
Se o agravamento do risco for resultante de facto do tomador do seguro ou do segurado, o segurador, no caso das alíneas a) e b), não está obrigado ao pagamento da prestação se demonstrar que, em caso algum, celebra contratos que cubram riscos com as características resultantes desse agravamento do risco (nº2 do artigo 94º citado).
Ora, por um lado, nenhuma das circunstâncias em apreço no normativo é cabível ao caso. Por outro, não pode afirmar-se que o risco de furto se agravou posto desconhecer-se se o responsável pelo furto assistiu à colocação das chaves no local donde desapareceram e se tomou a decisão de furtar por essa circunstância. Do mesmo modo quando o carro fica destrancado ou uma janela fica aberta por esquecimento. Ignora-se se a circunstância agravou o risco ou foi apenas concomitante. O que se sabe é que o furto constitui um facto ilícito típico da responsabilidade de terceiro que não verá a sua responsabilidade diminuída por força da circunstância de as chaves se acharem nas proximidades do veículo.
Ora, seria necessário que se demonstrasse uma causalidade do agravamento do risco para a verificação do sinistro como requisito para o segurador reduzir ou excluir a cobertura[6]. Só assim não será quando o contrato de seguro preveja algo distinto, o que não sucede na situação vertente[7].
Essa causalidade não foi demonstrada e sequer foi demonstrado que a álea própria do negócio ou o risco foram afastados ou reduzidos pela atuação do utilizador do veículo, uma vez que o facto ilícito criminal – o furto – foi levado a cabo em circunstâncias concretas que se ignoram e que apenas se podem supor.
Dispositivo
Pelo exposto, decidem os Juízes deste Tribunal da Relação julgar o recurso improcedente e manter a decisão recorrida.
Custas pela recorrente.
ds
Porto, 27 de Janeiro de 2020
Fernanda Almeida
António Eleutério
Isabel São Pedro Soeiro
_____________________ [1] Pedro Romano Martinez, Lei do Contrato de Seguro Anotada, 2016, p. 39. [2] José Vasques, Contrato de Seguro, 1999, p. 127. [3] Do contrato de seguro de responsabilidade civil geral, 2007, pág.203 [4] Lei do Contrato de Seguro Anotada, cit., p. 336. [5] Ibidem. [6] Ibidem, p. 340 e Joana Galvão Teles, Deveres de Informação das partes, in Temas de Direito dos Seguros, A propósito da nova lei do contrato de seguro, coord. De Maragarida Lima Rego, p. 272: “Outra característica do regime consagrado é a necessidade de verificação de um nexo causal entre o incumprimento negligente do dever pelo tomador do seguro ou segurado e a divergência entre o risco previsto e o risco real, causando um dano ao segurador.” [7] E, de facto, face à solução da lei, para os grandes riscos, as seguradoras não deixam de prever cláusulas específicas que excluem a sua responsabilidade como na situação dos autos, o que aqui não sucedeu. É o que explica o anotador já citado, p. 342: o art. 94.º optou por uma repartição do fardo entre ambas as partes, não obstante a quebra da sinalagma havida, isto sob o pano de fundo da inusual favorabilidade para o tomador de seguro, de modo que vê como provável que nesta matérias, para os seguros de grande risco (n.º2 do art. 13.º), as seguradoras venham a prever soluções da ordem da redução da cobertura em razão do prémio pago.