CONTRATO PROMESSA
CLÁUSULA RESOLUTIVA
INCUMPRIMENTO DEFINITIVO
ABUSO DE DIREITO
Sumário


I- A omissão de qualquer das formalidades previstas no nº 3 do artigo 410º do Código Civil não pode ser invocada por terceiros ou conhecida oficiosamente.

II- Nem a falta de registo nem o incumprimento de obrigações fiscais constituem causas de nulidade do contrato-promessa a que as partes não pretenderam atribuir eficácia real.

III- Não tem natureza resolutiva a cláusula do contrato-promessa que se limita a estabelecer a obrigação de restituição ao promitente-vendedor do imóvel e dos móveis que integram o seu recheio no caso de o promitente-comprar incumprir o pagamento de duas prestações mensais consecutivas, sendo certo que no valor das prestações acordadas, estava incluída uma percentagem correspondente à contrapartida pela habitação do imóvel.

IV- Demonstrando-se que o promitente-vendedor não consegue transmitir ao promitente-comprador o imóvel nos termos prometidos, ou seja, sem quaisquer ónus, hipotecas, penhoras ou outros encargos, tem necessariamente de se concluir pela resolução do contrato-promessa com fundamento no seu incumprimento definitivo.

V- Como houve tradição do imóvel e o promitente-comprador é titular de um crédito no montante de € 111.220,00, resultante do não cumprimento imputável ao promitente-vendedor, goza do direito de retenção sobre a coisa objecto do contrato-prometido, em conformidade com o disposto no artigo 755º, nº 1, al. f), do Código Civil.

VI Verifica-se abuso do direito se o promitente-vendedor, a três meses da data prevista para a celebração do contrato definitivo, pede a devolução do imóvel perante o atraso no pagamento da quantia de € 1.250,00, quando a sua anterior conduta, ao longo de mais de seis anos, criou a confiança no promitente-comprador de que não seriam esses atrasos a impossibilitar o cumprimento do contrato ou a fundamentar um pedido de devolução do imóvel, o promitente-vendedor já havia recebido mais de um terço do preço de € 145.000,00 e que no valor das prestações acordadas estava incluída uma percentagem correspondente à contrapartida pela habitação do imóvel.

Texto Integral


Acordam no Tribunal da Relação de Guimarães:

I – RELATÓRIO

1.1. P. C. intentou acção declarativa, sob a forma de processo comum, contra R. C. e Caixa ..., formulando os seguintes pedidos:

«a) declarado resolvido o contrato promessa de compra e venda celebrado a 15 de Setembro de 2010 e respectivos aditamentos;
b) o 1.º Réu R. C. condenado a pagar ao Autor a quantia de 116.620,00 € (cento e dezasseis mil seiscentos e vinte euros), acrescida de juros de mora à taxa legal em vigor, desde a citação até integral pagamento;
c) reconhecido ao Autor o direito de retenção sobre o prédio identificado em 1º para garantia do seu crédito e juros vincendos e
d) os Réus condenados a reconhecer tal direito de retenção sobre o referido prédio».

Para fundamentar a sua pretensão, alegou ter celebrado, em 15.09.2010, com o 1º Réu um contrato-promessa relativo a um imóvel, sobre o qual incide hipoteca a favor da 2ª Ré, pelo preço de € 145.000,00, a pagar faseadamente nos termos acordados e posteriormente alterado por aditamento de 15.05.2015; em Outubro de 2010 o Autor passou a habitar no imóvel e, entretanto, já pagou ao Réu, a título de sinal, a quantia global de € 55.810,00 e a quantia de € 16.800,00 a título de juros.
Em 13.03.2017 remeteu ao Réu comunicação a informar de que a escritura do contrato definitivo se realizaria no mês de Abril, o que reiterou em nova missiva de 04.04.2017, sem que tenha obtido qualquer resposta; tendo marcado a dita escritura para o dia 15.05.2017, o Réu não compareceu, pelo que o Autor perdeu o interesse no cumprimento do contrato, ademais que o Réu está impossibilitado de vender o imóvel livre de ónus e encargos, posto que por dificuldades financeiras não consegue cumprir com a Ré Caixa ... e não consegue cancelar os registos da hipoteca e da penhora que incidem sobre tal imóvel.
Por carta de 18.05.2017, comunicou ao Autor a referida perda de interesse, pelo que pugna pela resolução do contrato e pela devolução em dobro da quantia paga a título de sinal, mais requerendo o reconhecimento do direito de retenção sobre o imóvel e para garantia desse crédito.

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A Ré Caixa ... contestou, impugnando a factualidade alegada, designadamente o contrato-promessa e os alegados pagamentos, e excepcionando a nulidade, por omissão de requisitos legais, do contrato-promessa, de tudo o que concluiu pela improcedência da causa e pela sua absolvição dos pedidos.
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O Réu R. C. assumiu a outorga do contrato-promessa, mas alegou sucessivos e repetidos atrasos no pagamento da quantia de € 1.650,00, correspondente a duas mensalidades em mora, o que levou o Réu a resolver o contrato por carta de 15.02.2017, sendo certo que não ocorreu qualquer incumprimento da sua parte, pelo que concluiu pela improcedência da acção.
Deduziu reconvenção, alegando o direito a fazer suas as quantias pagas pelo Autor a título de sinal, num total de € 53.380,00, bem como a quantia de € 36.450,00, paga a título de reforço do sinal, e a quantia de € 16.930,00 entregue pelo Autor ao Réu desde 15.05.2015 a 15.02.2017. Invocou o acordado para requerer o pagamento da quantia de € 900,00 mensais por cada mês de atraso na entrega do imóvel.

Terminou peticionando:

«a)- A presente acção ser julgada totalmente improcedente, por não provada, com as legais consequências;
b)- Julgar-se procedente, por provada, a deduzida Reconvenção e, via dela, condenar-se o Autor/Reconvindo a ver resolvido o contrato promessa de compra e venda e respectivo aditamento objecto dos autos e, em consequência:
b.1)- Reconhecer- se o direito do Réu/Reconvinte em fazer suas as quantias recebidas do Autor/Reconvindo a título de sinal, no montante global de 53.380,00 (cinquenta e três mil trezentos e oitenta euros) com as proveniências descritas nos artigos 89º a 91º da reconvenção supra;
b.2)- O mesmo Reconvindo condenado a proceder à entrega do prédio urbano melhor descritos nos artigos 1º da Inicial e 64º da reconvenção supra;
b.3)- E, ainda, o Reconvindo condenado no pagamento ao Reconvinte da indemnização no valor mensal de € 900,00 (novecentos euros) por cada mês de atraso na entrega do imóvel ao Reconvinte desde o dia 21/02/2017 até efectiva entrega e que, nesta data, perfaz o montante global de € 8.100,00 (oito mil e cem euros)».
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Replicou o Autor, alegando que o fundamento da resolução pretendida pelo Réu é improcedente porquanto o nº 2 da cláusula 5ª do contrato-promessa não é uma cláusula que preveja um fundamento para a resolução do contrato, antes prevendo a obrigação de entrega do imóvel “no caso de incumprimento do pagamento de dois meses consecutivos” das prestações previstas na alínea b) da cláusula 1ª do contrato, o que é diverso da resolução do contrato-promessa.
Mais impugnou a factualidade alegada pelo Réu e invocou que a dita resolução comunicada pelo Réu sempre seria abusiva, dado este ter agido em venire contra factum proprium ao resolver o contrato depois de ter relevado outros atrasos no pagamento das prestações acordadas, revelando compreensão perante os mesmos e incutindo ao Autor confiança de que o contrato prometido seria celebrado, isto mesmo depois da alteração ao contrato inicial.
Mais alegou que, ao contrário do sustentado pela 2ª Ré, a nulidade por esta esgrimida está prevista para protecção dos promitentes-compradores só podendo ser invocada por estes.
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1.2. Dispensada a audiência prévia, foi elaborado despacho-saneador, definido o objecto do litígio e enunciados os temas da prova.

A requerimento do Autor, veio a ser convocada audiência prévia para apreciação da reclamação por este aduzida, a qual foi julgada improcedente.

Realizada a audiência final, proferiu-se sentença a decidir:

«1. – julgar a acção parcialmente procedente e, em consequência:
a). declaro resolvido o contrato promessa de compra e venda referido em I.6 a I.14, por causa imputável ao Réu R. C.;
b). condeno o Réu, R. C., a pagar ao Autor a quantia de € 111.220,00 (cento e onze mil, duzentos e vinte euros), acrescido de juros moratórios, vencidos e vincendos, calculados desde 18 de Setembro de 2017 e até integral pagamento às taxas sucessivamente emergentes do disposto no artigo 559º do C. Civil;
c). declaro que o Autor goza do direito de retenção sobre o prédio referido em I.1 para garantia do seu crédito mencionado em b). e, em consequência, condeno os Réus R. C. e Caixa ... a reconhecerem tal direito;
2. – julgar o pedido reconvencional totalmente improcedente, dele absolvendo o Autor».
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1.3. Inconformada, a Ré Caixa ... interpôs recurso de apelação da sentença, formulando as seguintes conclusões, que se transcrevem:

«1- Vem o presente recurso interposto da sentença que, julgou parcialmente procedente a acção, condenando a aqui a recorrente Caixa ... a reconhecer que o Autor goza de direito de retenção sobre o prédio urbano melhor identificado nos autos, para garantia do crédito de € 111.200,00.
2- Não se conforma a recorrente com a douta sentença proferida, por entender não ter existido uma correta interpretação da matéria de facto e a sua subsunção ao direito aplicado.
3- Antes de mais, se dirá que, os documentos a que o autor e o tribunal recorrido chama “contrato-promessa” é um escrito particular, que não foi submetido a registo (410.º, 3 CC), permitindo esta informalidade de procedimentos, sucessivamente, o incumprimento de obrigações fiscais, tais como a liquidação de imposto de selo e IMT em prejuízo de todos nós.
4- Obrigações fiscais cujo cumprimento sem surpresa, não foi comprovado nestes autos, pelo que deverá ser nulo o contrato apresentado aos autos, nulidade que ante V. Exas. Venerandos Desembargadores, se requer seja declarada.
5- Admitindo a validade do contrato, o que não se aceita, resultou da prova carreada para os autos que:
a) A 15 de Setembro de 2010, por contrato promessa de compra e venda, o 1º Réu declarou prometer vender ao Autor e pais do Autor, então menor, em representação deste, prometeram comprar a fracção melhor identificada nos autos (ponto 6 dos factos provados).
b) Mais declararam que a escritura seria realizada decorridos 36 meses, a contar do dia 1 de Outubro de 2010, em dia e hora a designar pelo Autor.
c) A 15 de Maio de 2015, decidiram o Autor e 1º Réu proceder ao aditamento ao contrato promessa de compra e venda, tendo acordado que a escritura do contrato definitivo deveria ser outorgada decorridos dois anos, prazo este a contar do dia 15 de Maio de 2015, devendo o segundo outorgante proceder à sua marcação, por comunicação escrita ao primeiro outorgante (facto 10 dos factos provados).
d) À data do aditamento do contrato faltava pagar € 106.550,00 (145.000-38.450,00) (facto 16 dos factos provados).
e) Desde Maio de 2015 a Maio de 2017, o Autor entregou um total de € 22.100,00.
f) A título de sinal e por conta do preço, o Autor pagou um total de € 55.610,00, pelo que em 8 de Maio de 2017 faltava pagar o valor de € 89.390,00. (facto 17 dos factos provados).
g) Por missiva datada de 15 de Fevereiro de 2017, enviada no dia 16 seguinte e recepcionada pelo próprio Autor, no dia 21 de Fevereiro de 2017, através da sua então mandatária, o Réu, comunicou-lhe resolver o contrato promessa com base em incumprimento contratual, nos termos da cláusula 5º, nº 2 do mencionado contrato, face ao reiterado incumprimento do mesmo (…) designadamente por estar actualmente em mora o pagamento de duas mensalidades consecutivas, no valor de € 1.650,00 (facto 35 dos factos provados).
h) Desde o início da vigência do contrato, o Autor não procedeu ao pagamento atempado, nos prazos fixados, de várias prestações acordadas (facto 37 dos factos provados).
6- O contrato promessa desde o seu início que não teve o bom e pontual pagamento por parte do Autor, o que forçou um aditamento do mesmo, com o intuito de alterar o montante de pagamento a título de sinal e prazos para a realização da escritura.
7- Conforme se lê na douta sentença recorrida, da prova testemunhal, mais concretamente o depoimento da testemunha A. C., pai do Autor, resultou que o aditamento surgiu para adiamento da data da escritura, por o Autor não ter capacidade financeira para realizar o contrato definitivo e pagar o preço, tendo sido foi efetuado um pedido de empréstimo junto do Banco …, o qual não foi concedido nas condições pretendidas.
8- Resultou da mesma prova corroborada com prova documental, que houve atrasos no pagamento das prestações acordadas no contrato promessa e respectivo aditamento, sendo que não raras vezes eram depositados apenas € 300,00 ou € 400,00 e também não raras vezes não era feita qualquer depósito, como são exemplos os meses de Janeiro, Fevereiro, Março, Junho, Agosto e Dezembro de 2011, Janeiro, Março e Maio e Novembro de 2014, Janeiro a abril de 2015 e Janeiro de 2017.
9- Resulta claro o atraso reiterado por parte do Autor no cumprimento do contrato, desde o seu início.
10- E na verdade, as partes preveniram a possibilidade de ocorrer uma situação de incumprimento definitivo, porquanto estipularam o que bem entenderem no contrato, no que respeita a deveres e obrigações a impenderem a sobre ambos.
11- Tendo ficado consignado na sua cláusula 5º, nº 2 que “ … no caso de incumprimento do estabelecido na al. b) da cláusula primeira deste contrato ou no caso de incumprimento no pagamento de dois meses consecutivos das supra referidas prestações, fica o promitente- comprador obrigado a entregar o imóvel e os móveis no estado em que presentemente se encontram, responsabilizando-se este pelo pagamento de qualquer reparação ou despesas provenientes do mau uso de equipamentos descritos, substituir os que se inutilizaram, deterioraram ou perderam, bem como ao pagamento de uma indemnização de € 900,00 (novecentos euros) por cada mês de atraso na entrega do imóvel e dos bens ao promitente vendedor.”
12- O escopo principal de tal cláusula, foi assegurar que a falta de cumprimento do contrato, de acordo com o plano de pagamento acordado implicaria a recuperação da propriedade do imóvel pelo Réu.
13- Tal cláusula tem total acolhimento no contexto em que é inserida, por ter existido traditio, e por o contrato conter um plano de pagamento bastante alargado.
14- Tendo sido exatamente para prevenir situações de incumprimento reiterado, como resultou dos autos que foi incluída no contrato a referida cláusula.
15- Nem se diga que o montante em dívida, equivalente a duas prestações, era de pequena importância, não justificando o efeito resolutivo do contrato.
16- Quando na verdade durante toda a vida do contrato, houve constantes atrasos no pagamento das prestações acordadas, sendo que ao Réu competia pagar mensal e atempadamente as prestações do mútuo à aqui recorrente, credora hipotecária, sendo necessariamente tal montante fundamental para que isso sucedesse.
17- Na verdade, não parece razoável que se imponha ao promitente vendedor ter de aceitar sucessivos atrasos e incumprimento por parte do promitente comprador, não podendo resolver o contrato, ou fazendo-o, considerar-se abuso de direito e, ao promitente comprador se aceite o seu incumprimento, ou pagamento com sucessivos atrasos e não obstante, aceitar a resolução do contrato por falta de interesse, imediatamente após o recebimento da carta de resolução contratual por parte do Réu.
18- Porquanto conforme se extrai da prova produzida:
vi. Em 15/02/2017 - o réu resolve o contrato por incumprimento (facto 35 dos factos provados).
vii. 14/03/2017 – o Autor procede ao depósito na conta do Réu junto da 2º Ré do valor que originou a resolução (facto 39 e 40 dos factos provados).
viii. 13/03/2017- O Autor envia uma carta ao Réu a informar que o contrato definitivo/escritura publica de compra e venda se realizaria no mês de Abril (facto 21 dos factos provados).
ix. A 4/4/2017 reiterou a missiva anterior (facto 25 dos factos provados).
x. A 18/05/2017, o Autor comunicou ao Réu que “rescindia o contrato promessa deixando de ter interesse na prestação (facto 33 dos factos provados).
19- Aliás o promitente-comprador continua a fruir do imóvel, para sua habitação, o que não deixa de se revelar como contrário à alegada perda do interesse contratual.
20- Não configura um abuso de direito, a resolução operada pelo Réu, quando lançou mão da cláusula inserta no contrato que obriga o Autor a entregar o imóvel na falta de cumprimento de duas prestações do plano prestacional.
21- Ao abrigo do disposto no art. 405º do C.C têm as partes liberdade para modelar o direito de resolução do contrato.
22- Integra o direito de resolução convencional, previsto e regulado nos termos do disposto no art. 432º e ss do CC, o acordo mediante o qual se atribui a uma das partes a faculdade de se resolver o contrato em caso de incumprimento das obrigações a que se encontra adstrita a parte contrária.
23-Com este propósito foi inserida a cláusula 5º no contrato promessa, que encerra em si, sem dúvida uma cláusula resolutiva, aliás o que facilmente se compreende num contrato em que existiu traditio rei.
24- Neste sentido, poderá ler-se no Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça, de 17/11/2015, “I - Por cláusula resolutiva expressa deve entender-se aquele em que as partes convencionam que, se ocorrer determinado facto, uma delas terá direito de, assim o entender, resolver o contrato. II – Trata-se de um verdadeiro direito convencional de resolução em que a parte legitimada ou beneficiada por tal cláusula, fica por via dela, a dispor do direito potestativo de resolver o contrato. Mediante declaração unilateral receptícia à outra parte, verificado que seja o pressuposto de inadimplência estipulado. (…) “
25- Bem como defende o Supremo Tribunal de Justiça de 16/11/2017, “ IV- É de qualificar como cláusula resolutiva expressa a convenção inserida num contrato promessa de compra e venda segundo a qual se consideraria a situação de incumprimento definitivo o promitente comprador que, depois de faltar ao pagamento de pelo menos três prestações consecutivas, deixasse decorrer três meses para efetuar o pagamento de todo o preço, facultando ao promitente vendedor a declaração de resolução. Verificado o condicionalismo contratualmente fixado pelas partes, deve considerar-se legitimamente exercitada a resolução do contrato-promessa de compra e venda comunicada pelo promitente vendedor.
26- Considerando-se legítima a resolução operada pelo Réu, e consequentemente a entrega do imóvel por parte do Autor ao Réu, inexiste fundamento para o invocado direito de retenção o imóvel objeto do alegado contrato promessa - não havendo lugar à aplicação do disposto nos artigos 759.º, n.º 1, f) e 759.º, n.º 2, todos do Código Civil.
27- Na medida em que, contrariamente ao que se exige na al. f) do art. 755º do CC, não estamos perante um crédito resultante do não cumprimento imputável à outra parte contratante.
28- Desta feita, violou a douta sentença, o disposto nos arts. 405º, 410º, 436º e 759º do C.C.

TERMOS EM QUE
Revogando-se a douta decisão recorrida, dando provimento ao presente recurso e substituindo a sentença proferida por outra que julgue totalmente improcedente a acção contra aqui recorrente se fará Justiça».
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O Recorrido p. c. apresentou contra-alegações, pugnando pela manutenção do decidido.
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O recurso foi admitido como sendo de apelação, com subida imediata, nos próprios autos e com efeito meramente devolutivo.
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Foram colhidos os vistos legais.
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1.4. QUESTÕES A DECIDIR

Em conformidade com o disposto nos artigos 635º, nºs 2 a 4, e 639º, nº 1, do Código de Processo Civil, o objecto dos recursos é delimitado pelas conclusões neles insertas, salvo as questões de conhecimento oficioso. Por outro lado, os recursos não visam criar decisões sobre matéria nova, sendo o seu âmbito delimitado pelo conteúdo do acto recorrido, não podendo o tribunal ad quem analisar questões que não foram anteriormente colocadas pelas partes ao tribunal a quo. Em matéria de qualificação jurídica dos factos a Relação não está limitada pela iniciativa das partes - artigo 5º, nº 3, do CPC.

Neste enquadramento, são questões a decidir:

i) Nulidade do contrato-promessa por falta de cumprimento de obrigações fiscais e não observância das formalidades exigidas pelo artigo 410º, nº 3, do Código Civil;
ii) “Legitimidade” da resolução operada pelo Réu;
iii) Inexistência de fundamento para o invocado direito de retenção sobre o imóvel objecto do contrato-promessa.
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II – FUNDAMENTOS

2.1. Fundamentos de facto

A decisão recorrida considerou provados os seguintes factos:

1. O Réu é proprietário do prédio urbano destinado à habitação, composto por “Lote 4 – Casa de cave, rés-do-chão, andar e logradouro”, sito no Lugar …, hoje Rua … Guimarães, descrito na Conservatória dos Registos Predial, Comercial e Automóveis de Guimarães sob o n.º … e inscrito na respectiva matriz predial urbana sob o artigo ...º da freguesia de …, concelho de Guimarães – cfr. documentos de fls. 9 verso e seg., cujo teor se dá aqui por integralmente reproduzido.
2. A aquisição desse prédio está inscrita a favor do aqui 1.º Réu pela Ap. 5 de 2006/12/07.
3. Sobre o referido imóvel encontra-se constituída a favor da 2.ª Ré hipoteca voluntária, inscrita inicialmente a favor do banco …, SA, pela Ap. 6 de 2006/12/07, com fundamento num contrato de mútuo, para garantia da quantia de € 125.000,00 e até ao montante máximo de € 201.250,00.
4. Mas, que por cessão do crédito do Banco …, SA, a favor da 2.ª Ré Caixa ..., e registada pela Ap. 1817 de 2011/11/09, passou esta última a ser a beneficiária da referida garantia hipotecária.
5. Encontra-se também registada, a favor da 2.ª Ré, pela Ap. 1674 de 2016/07/19, penhora para garantia da cobrança da quantia exequenda no montante de 27.001,10 €, exigida pela 2.ª Ré ao 1.º Réu no âmbito do processo judicial n.º 1113/16.2T8GMR que corre termos na Comarca de Braga – Guimarães – Instância Central – 1.ª Sec. de Execução – J1.
6. A 15 de Setembro de 2010, por contrato promessa de compra e venda, o 1.º Réu declarou prometer vender ao Autor e os pais do Autor, então menor, em representação deste, prometeram comprar o referido imóvel acima identificado – cfr. documento junto a fls. 12 verso cujo teor se dá aqui por integralmente reproduzido.
7. Para o efeito, declararam as partes que o preço global da venda do imóvel era de € 145.000,00 (cento e quarenta e cinco mil euros) e seria pago faseadamente e do seguinte modo: a). 7.500,00 € (sete mil e quinhentos euros), pago a 15 de Setembro de 2010 no acto da celebração do contrato, e que o 1º Réu declarou ter já recebido a título de sinal, dando quitação; b). 7.500,00 € (sete mil e quinhentos euros) a pagar até 31 de Dezembro de 2010; c). o pagamento, pelo período de 36 meses, de 600,00 € em prestações mensais, sendo € 390,00 “como entregas a abater no valor do preço do imóvel, até à data da escritura pelo promitente comprador ao promitente vendedor” e “os restantes 35% do valor mensal a entregar, no total de 210,00 € (duzentos e dez euros), será considerado como compensação pelo uso da habitação pelo segundo outorgante”; d) o restante pagamento de 115.960,00 € (cento e quinze mil novecentos e sessenta euros) seria pago no acto da escritura – cfr. documento de fls. 12 verso e seg., cujo teor se dá aqui por integralmente reproduzido.
8. Mais declararam que a escritura seria realizada decorridos 36 meses, a contar do dia 1 de Outubro de 2010, em dia, hora e local a designar pelo segundo outorgante, devendo para o efeito avisar, por qualquer meio, o primeiro, com a antecedência mínima de cinco dias.
9. Por documento não datado, as partes declararam alterar o intróito do referido contrato promessa, o qual passou a ter a seguinte redacção: “Que por este contrato, promete vender, livre de quaisquer ónus, hipotecas ou quaisquer outros encargos e/ou responsabilidades, completamente devoluto de pessoas, e sobre o mesmo não existe qualquer litígio, ao promitente comprador, ou a quem este indicar, prometendo este vender àquele e este, promete comprar-lhe o supra identificado prédio, promessa que fica sujeita às seguintes cláusulas:”.
10. Contudo, a 15 de Maio de 2015, decidiram Autor e 1º Réu proceder a um aditamento ao referido contrato promessa de compra e venda, onde declararam que “o preço da prometida venda será de 145.000,00 € (cento e quarenta e cinco mil euros) a pagar da seguinte forma: a). 7.500,00 € (sete mil e quinhentos euros) pago no acto da celebração do contrato original que o primeiro já recebeu a título de sinal e dos quais confere ampla e integral quitação; b). 7.500,00 € (sete mil e quinhentos euros) pago até ao dia 31 de Dezembro de 2010 que o primeiro já recebeu a título de reforço de sinal e dos quais confere ampla e integral quitação; c). 21.450,00 € (vinte e um mil quatrocentos e cinquenta euros) pago até 30 de Abril de 2015, correspondente a 65% do valor mensal entregue de € 600,00, desde Outubro de 2010, que o primeiro já recebeu a título de reforço de sinal e dos quais confere ampla e integral quitação; d). 2.000,00 € (dois mil euros) pago no acto da celebração desta alteração ao contrato original que que o primeiro já recebeu a título de reforço de sinal e dos quais confere ampla e integral quitação.” – cfr. documento de fls. 15 verso e seg., cujo teor se dá aqui por integralmente reproduzido.
11. Mais tendo declarado: “e). 1.500,00 € (mil e quinhentos euros) a pagar até ao dia 30 de Junho de 2015; f). 1.500,00 € (mil e quinhentos euros) a pagar até ao dia 30 de Julho de 2015; g). 5.000,00 € (cinco mil euros) a pagar até ao dia 30 de Junho de 2016; h). “no período de 2 anos, a contar da data da assinatura desta alteração ao contrato, será efectuado o pagamento mensal de 600,00 € (seiscentos euros), correspondendo: 1) – 65% do valor mensal a entregar, no total de 390,00 € (trezentos e noventa euros) como entregas a abater ao valor do preço do imóvel, até à data da escritura pelo promitente vendedor ao promitente comprador; 2) – os restantes 35% do valor mensal a entregar, no total de 210,00 € (duzentos e dez euros) será considerado como compensação pelo uso da habitação pelo segundo outorgante; h). o restante pagamento no valor de 89.190,00 € (oitenta e nove mil cento e noventa euros) será efectuado no acto da escritura” – cfr. documento de fls. 15 verso, cujo teor se dá aqui por integralmente reproduzido.
12. Mais acordaram as partes – conforme cláusula terceira do aditamento – que: “A escritura de que este contrato é promessa, deverá ser outorgada decorridos dois anos, prazo este a contar do dia 15 de Maio de 2015, devendo o Segundo Outorgante proceder à sua marcação, por comunicação escrita, ao Primeiro Outorgante.” – cfr. documento de fls. 15 verso e seg., cujo teor se dá aqui por integralmente reproduzido.
13. Declararam e fizeram constar a palavra “Eliminada” na cláusula quarta – cfr. documento de fls. 15 verso e seg., cujo tero se dá aqui por integralmente reproduzido.
14. E declararam e aceitaram, conforme cláusula “sexta” que ao Autor, ali promitente-comprador, “desde Outubro de 2010 que lhe foi entregue as chaves do imóvel e que passou aí a residir” – cfr. documento de fls. 15 verso e seg., cujo teor se dá aqui por integralmente reproduzido.
15. À data do aditamento ao contrato faltava pagar € 106.550,00 (145.000,00 – 38.450,00).
16. Desde 16 de Maio de 2015 até 8 de Maio de 2017, o Autor entregou ao Réu um total de € 22.100,00 (vinte e dois mil e cem euros).
17. A título de sinal e por conta do preço, o Autor pagou ao Réu um total de € 55.610,00 (cinquenta e cinco mil, seiscentos e dez euros) pelo que, em 8 de Maio de 2017, faltava pagar, do preço da prometida venda, o valor de € 89.390,00 (oitenta e nove mil, trezentos e noventa euros).
18. Desde de Outubro de 2010 que o 1.º Réu entregou as chaves do referido imóvel ao Autor, pelo que desde essa data passou a ser a sua habitação e da sua família, situação que aliás vem ocorrendo até aos dias de hoje.
19. O Autor e a sua família passaram a deter a fruição do mesmo, usando-o, limpando-o, abrindo e fechando as portas, ali habitando, recebendo amigos e visitas, recebendo a sua correspondência, pagando as contas de luz e gás.
20. Nunca com o objectivo da revenda ou como negócio.
21. A 13 de Março de 2017, procedeu o Autor ao envio ao 1.º Réu de uma carta a informar de que o contrato definitivo/escritura pública de compra e venda se realizaria no mês de Abril.
22. Mais enviou, em anexo, um requerimento de registo provisório de aquisição, solicitando a sua devolução em três dias mais solicitando a entrega de cópias do cartão de cidadão actualizado, caderneta predial, licença de habitabilidade e certificado energético – cfr. documento de fls.36 verso e seg. cujo teor se dá aqui por integralmente reproduzido.
23. Carta de conteúdo semelhante que o Autor enviou para a Ilustre Mandatária do 1.º Réu – Dr.ª I. C., com domicílio profissional da Praça … Porto – cfr. documento de fls. 40 verso e seg., cujo teor se dá aqui por integralmente reproduzido
24. Nunca o 1.º Réu respondeu ao Autor, nem tão pouco procedeu ao envio dos documentos solicitado.
25. Razão pela qual, o Autor a 4 de Abril de 2017 reiterou a missiva anterior – cfr. documento de fls. 43 verso, cujo teor se dá aqui dá por integralmente reproduzido.
26. Mais uma vez continuou o 1º Réu sem responder ao Autor e sem enviar os documentos necessários à realização da escritura de compra e venda.
27. Numa última tentativa, procedeu ao Autor à marcação da escritura de compra e venda para o dia 15 de Maio de 2017, pelas onze horas e trinta minutos, no Cartório Notarial da Dr.ª P. S., sito na Avenida …, freguesia de …, concelho de Guimarães.
28. Agendamento que o Autor comunicou ao 1.º Réu por carta registada com aviso de recepção, enviada a 05 de Maio de 2017 e recepcionada a 08 de Maio de 2017 – cfr. documento de fls. 46 verso e seg., cujo teor se dá por integralmente reproduzido.
29. Assim como, igualmente comunicou à Advogada do 1.º Réu Dr.ª I. C., com domicílio profissional da Praça … Porto, também por carta registada com aviso de recepção, enviada a 05 de Maio de 2017 e recepcionada a 08 de Maio de 2017 – cfr. documento de fls. 50 verso, cujo teor se dá por integralmente reproduzido.
30. Acontece que, no dia, hora e local agendados para a realização da escritura de compra e venda do imóvel prometido vender, o 1.º Réu não compareceu, nem se fez sequer representar – cfr. certificado de fls. 57 verso, cujo teor se dá por integralmente reproduzido.
31. Aquando da celebração da escritura, o Réu receberia apenas o montante em falta € 89.390,00 (oitenta e nove mil, trezentos e noventa euros), sendo que o valor que em dívida ao credor hipotecário em Maio de 2015 era de € 97.732,99 (noventa e sete mil, setecentos e trinta e dois euros e noventa e nove cêntimos).
32. Ou seja, o 1.º Réu teria de pagar, na data da escritura, mais € 8.342,99 (oito mil, trezentos e quarenta e dois euros e noventa e nove cêntimos) à Caixa ... por forma a diligenciar para que esta procedesse à emissão do distrate da hipoteca e mais de € 27.001,01 para o cancelamento da penhora.
33. Por carta enviada ao Réu a 18 de Maio de 2017, o Autor comunicou-lhe que rescindia “o contrato promessa, deixando de ter interesse na sua prestação” – cfr. documento n.º 13 cujo teor se dá por integralmente reproduzido.
34. O aditamento ao contrato promessa efectuado em 2015/05/15 foi feito atentas as sucessivas dificuldades do Autor em proceder quer ao pagamento atempado das prestações, quer ao pagamento do preço remanescente em dívida e à outorga a escritura definitiva dentro dos prazos inicialmente fixados.
35. Por missiva datada de 15 de Fevereiro de 2017, enviada no dia 16 seguinte e recepcionada, pelo próprio Autor, no dia 21 de Fevereiro de 2017, através da sua então Mandatária, o Réu, comunicou-lhe “resolver o referido contrato promessa com base em incumprimento contratual, nos termos da cláusula 5ª, nº. 2 do mencionado contrato” face ao “reiterado incumprimento do mesmo (…), designadamente por estar actualmente em mora o pagamento de mais de duas mensalidades consecutivas, no valor vencido de € 1.650,00 (mil seiscentos e cinquenta euros)” – cfr. documento de fls. 93 verso e seg., cujo teor se dá aqui por integralmente reproduzido.
36. E, bem assim, solicitou que o Autor procedesse à entrega ao Réu do imóvel “devoluto de pessoas e bens, no prazo máximo de 30 dias, a contar da recepção da presente missiva”.
37. Desde o início de vigência do contrato, o Autor não procedeu ao pagamento atempado, nos prazos fixados, de várias prestações acordadas.
38. Quer por conta da aludida quantia de € 5.000,00 (cinco mil euros) a pagar até ao dia 30 de Junho de 2016, quer por conta das prestações que mensalmente se venceram entre o dia 1 de Julho de 2016 e o dia 1 de Fevereiro de 2017, no montante mensal de € 600,00 (seiscentos euros) cada uma e fixadas na alínea h). da cláusula primeira do contrato promessa, na redacção que lhe foi dada pelo supra referido aditamento, o Autor somente entregou ao Réu as seguintes quantias: a). € 500,00 (quinhentos euros) em 05/07/2016; b). € 1.000,00 (mil euros) em 29/07/2016; c). € 800,00 (oitocentos euros) em 19/08/2016; d). € 500,00 (quinhentos euros) em 03/09/2016; e). € 700,00 (setecentos euros) em 15/09/2016; f). € 300,00 (trezentos euros) em 17/09/2016; g). € 400,00 (quatrocentos euros) em 27/09/2016; h). € 500,00 (quinhentos euros) em 11/10/2016; i). € 300,00 (trezentos euros) em 24/10/2016; j). € 300,00 (trezentos euros) em 27/10/2016; k). € 600,00 (seiscentos euros) em 11/11/2016; l). € 500,00 (quinhentos euros) em 25/11/2016; m). € 600,00 (seiscentos euros) em 02/12/2016; n). € 250,00 (duzentos e cinquenta euros) em 16/12/2016; o). € 200,00 (duzentos euros) em 21/12/2016, e € 1.200,00 (quinhentos euros) em 10/02/2017.
39. Em 15 de Fevereiro de 2017, encontrava-se em dívida por parte do Autor o montante global de € 1.250,00 (mil duzentos e cinquenta euros), correspondente a parte da prestação referente ao Dezembro de 2016 (cinquenta euros) e à totalidade das prestações relativas aos meses de Janeiro e Fevereiro de 2017, todas já vencidas.
40. O Autor efectuou em 14 de Março de 2017 um depósito na conta n.º …0 titulada pelo Réu junto da Caixa …, da quantia de € 1.650,00 (mil seiscentos e cinquenta euros) – cfr. talão de depósito de fls. 35 verso cujo teor se dá aqui por integralmente reproduzido.
41. Pelo menos desde 2012 que o Autor tinha conhecimento da existência da hipoteca mencionada em 4.
42. Desde data não concretamente apurada, mas pelo menos em 13 de Março de 2017, o Autor tinha conhecimento da penhora mencionada em 5.
43. O Réu tem pendentes contra si, pelo menos, as seguintes acções executivas: a). processo n.º 1113/16.2T8GMR, iniciado a 19-02-2016, sendo Exequente Caixa ..., no valor de € 27.001,10, contra a qual foi deduzida oposição, já julgada improcedente por decisão transitada em julgado em 11 de Dezembro de 2017; b). processo n.º 5044/16.8T8GMR, iniciado a 13/09/2016, sendo Exequente Banco ... - Instituição Financeira de Crédito, S. A. no valor de 15.855,23, à qual não foi deduzida qualquer oposição e na qual não consta que o Exequente tenha recebido qualquer quantia; c). processo n.º 6018/16.6T8GMR, iniciado a 27/10/2016, sendo Exequente Condomínio do Edifício ..., sito na Avenida …, no valor de € 8.379,58, à qual foi deduzida oposição por embargos, os quais não foram admitidos, por extemporâneos, por decisão já transitada em julgado; d). processo n.º 676/17.0T8GMR, intentado a 02/02/2017, sendo Exequente M. G. no valor de € 3.989,04, à qual não foi deduzida qualquer oposição.
44. O Réu, por várias vezes, relevou atrasos de pagamento nas prestações por parte do Autor, demostrando compreender tais atrasos por parte do Autor, incutindo-lhe confiança, inclusive depois da alteração do mesmo, de que o contrato prometido seria celebrado.
45. Em consequência do referido em I.31, I.32 e I.43 o Réu não consegue vender ao Autor o imóvel prometido vender livre de ónus ou encargos.
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2.1.1. Factos não provados

O Tribunal a quo considerou não provado:

1. O Autor entregou mensalmente ao 1º Réu desde Setembro de 2010 a Abril de 2017 (oitenta prestações) a quantia mensal de € 210,00 a título de juros, num valor total de € 16.800,00 (dezasseis mil e oitocentos euros).
2. O Autor fez obras e melhoramentos, mobilou e equipou com electrodomésticos a habitação prometida comprar.
3. O referido em I.22 foi feito perante a possibilidade da penhora do imóvel supra identificado no Processo n.º 5044/16.8T8GMR, da Instância Central Guimarães, 1ª Secção de Execução, J2, em que é Exequente Banco ... Instituição Financeira de Crédito SA e Executado o 1º Réu na importância de 15.855,23 €.
4. Em 15 de Fevereiro de 2017 encontrava-se em dívida por parte do Autor o montante global de € 1.650,00 (mil seiscentos e cinquenta euros), correspondente a parte da prestação referente ao Dezembro de 2016 (quatrocentos euros) e à totalidade das prestações relativas aos meses de Janeiro e Fevereiro de 2017 (mil e duzentos euros = seiscentos euros X dois meses), todas já vencidas.
5. O 1.º Réu teria de pagar, na data da escritura, mais € 6.132,99 (seis mil, centro e trinta e dois euros e noventa e nove cêntimos) à Caixa ... por forma a diligenciar para que esta procedesse à emissão do distrate da hipoteca.
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2.2. Do objecto do recurso

2.2.1. Da nulidade do contrato-promessa

Nas conclusões 3ª e 4ª das suas alegações de recurso, a Recorrente alega que «os documentos a que o autor e o tribunal recorrido chama “contrato-promessa” é um escrito particular, que não foi submetido a registo (410.º, 3 CC), permitindo esta informalidade de procedimentos, sucessivamente, o incumprimento de obrigações fiscais (…), pelo que deverá ser nulo o contrato».

Os factos dados como assentes permitem a conclusão de que o Autor e o 1º Réu celebraram entre si, em 15 de Setembro de 2010, um contrato-promessa de compra e venda, tendo por objecto mediato o imóvel identificado no ponto 1 dos factos assentes.
Verifica-se, tal como alega a Recorrente, que o contrato-promessa foi celebrado por escrito particular e que não foi objecto de registo.

Dispõe o artigo 410º, nº 3, do Código Civil, na sua actual versão (introduzida pelo Decreto-Lei nº 116/2008, de 4 de Julho):

«3 - No caso de promessa respeitante à celebração de contrato oneroso de transmissão ou constituição de direito real sobre edifício, ou fracção autónoma dele, já construído, em construção ou a construir, o documento referido no número anterior deve conter o reconhecimento presencial das assinaturas do promitente ou promitentes e a certificação, pela entidade que realiza aquele reconhecimento, da existência da respectiva licença de utilização ou de construção; contudo, o contraente que promete transmitir ou constituir o direito só pode invocar a omissão destes requisitos quando a mesma tenha sido culposamente causada pela outra parte».
A exigência de tais requisitos formais foi maioritariamente entendida como destinada a proteger, em primeira linha, o interesse do promitente da aquisição e, em segunda, o interesse público no combate a edificações clandestinas, este circunscrito à certificação da existência da licença respectiva de utilização ou de construção.
O preceito é claro ao estatuir que o promitente-vendedor apenas pode invocar a omissão daqueles requisitos quando a mesma tenha sido culposamente causada pela outra parte, ou seja, o promitente-comprador. Fora desse específico caso, tal contraente não pode invocar a omissão das formalidades. Há, assim, uma limitação atinente à legitimidade substancial activa para invocar a inobservância dos requisitos de forma prescritos na lei.
No que respeita à sua invocação por terceiros, o Assento nº 15/94, actualmente com valor de Acórdão de Uniformização de Jurisprudência, publicado no Diário da República, I Série, de 28.06.1994, decidiu: «No domínio do nº 3 do artigo 410º do Código Civil (…), a omissão das formalidades previstas neste número não pode ser invocada por terceiros». E, por sua vez, o Assento nº 3/95, publicado no Diário da República, I Série, de 01.02.1996, fixou a seguinte jurisprudência: «No domínio do nº 3 do artigo 410º do Código Civil (…), a omissão das formalidades previstas neste número não pode ser conhecida oficiosamente pelo tribunal».
Para além de a falta de registo do contrato-promessa não constar do artigo 410º, nº 3, do Código Civil como causa de invalidade, o facto de ter revestido a forma de escrito particular é insusceptível de conduzir à declaração da sua nulidade mediante invocação feita pela Ré Caixa .... Nenhuma razão séria justifica que a falta dos requisitos formais prescritos no manifesto interesse do promitente-comprador possa ser invocada por terceiros.
Nessa parte, face à doutrina dos Acórdãos uniformizadores citados, que se mantém, é perfeitamente pacífico que se trata de uma nulidade atípica ou mista (1), consagrada com vista à protecção do promitente-comprador e que por isso não pode ser invocada por terceiros, nem oficiosamente conhecida. A omissão de qualquer das formalidades previstas no nº 3 do artigo 410º do Código Civil em caso algum pode ser invocada por terceiros.

Quanto ao alegado incumprimento de obrigações fiscais constituir causa de nulidade do contrato-promessa, não explica a Recorrente donde retira o fundamento legal para sustentar a sua afirmação.
E não indica tal fundamento, designadamente a norma jurídica que devia ter sido aplicada, como era seu ónus no âmbito de um meio de impugnação de uma decisão como é o recurso (art. 639º, nºs 1 e 2, do CPC), por não existir.
Para o elenco das invalidades, entre as quais figura a nulidade, vigora o princípio da legalidade, ou seja, a sujeição a numerus clausus, não podendo os factores de invalidades ser sequer criados ou excluídos por estipulação negocial (2).
Inexiste qualquer norma que comine a nulidade de um contrato-promessa de compra e venda de um imóvel com base no incumprimento de obrigações fiscais, designadamente a falta de liquidação do imposto do selo ou do imposto municipal sobre a transmissão onerosa de imóveis (IMT).
A eventual responsabilidade tributária é absolutamente independente da validade formal ou substancial do contrato-promessa.

Termos em que improcede esta primeira questão.
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2.2.2. Da resolução do contrato-promessa pelo 1º Réu

Nas conclusões 5ª a 19ª e 21ª a 25ª das suas alegações, a Recorrente sustenta que é «legítima a resolução operada pelo Réu».
Nos articulados o Autor imputou ao Réu R. C. o incumprimento do contrato-promessa, enquanto o 1º Réu, ao invés, invocou que foi o Autor que o incumpriu.
Na sentença entendeu-se que o nº 2 da cláusula quinta do contrato-promessa «não constitui uma verdadeira cláusula resolutiva», uma vez que dela não decorre qualquer possibilidade de resolver o contrato mas apenas a obrigação de entrega do imóvel ao 1º Réu. Conclui que «o Réu não tinha fundamento para resolver o contrato pelo facto de estar em dívida a quantia de € 1.250,00», razão pela qual julgou improcedente a reconvenção.
Entendemos que inexiste fundamento para alterar a bem estruturada sentença, a qual está em conformidade com o regime legal aplicável.

O Réu, por carta enviada pela sua então mandatária em 15.02.2017, comunicou ao Autor que resolvia «o referido contrato promessa com base em incumprimento contratual, nos termos da cláusula 5ª, nº. 2 do mencionado contrato» face ao «reiterado incumprimento do mesmo (…), «designadamente por estar actualmente em mora o pagamento de mais de duas mensalidades consecutivas, no valor vencido de € 1.650,00 (mil seiscentos e cinquenta euros)».
São dois os factos que foram invocados pelo Réu na declaração de resolução do contrato-promessa: o teor da «cláusula 5ª, nº 2, do mencionado contrato» e a mora no «pagamento de mais de duas mensalidades consecutivas, no valor vencido de € 1.650,00».
Na altura em que o 1º Réu declarou a resolução do contrato-promessa, o Autor devia a quantia de € 1.250,00 (e não de € 1.650,00 como o 1º Réu alegara), correspondente a parte da prestação referente ao mês de Dezembro de 2016 (cinquenta euros) e à totalidade das prestações relativas aos meses de Janeiro (€ 600,00) e Fevereiro (€ 600,00) de 2017, todas já vencidas.
Estava por isso preenchida a previsão da cláusula 5ª, nº 2 (3), na parte em que se estabelecia que no «caso de incumprimento no pagamento de dois meses consecutivos das supra referidas prestações, fica o promitente-comprador obrigado a entregar de imediato o imóvel e os móveis, no estado em que presentemente se encontram, responsabilizando-se este pelo pagamento de qualquer reparação ou despesas provenientes do mau uso dos equipamentos descritos, substituir os que se inutilizarem, deteriorarem ou perderem, bem como ao pagamento de uma indemnização de 900,00 € (novecentos euros) por cada mês de atraso na entrega do imóvel e dos bens ao promitente vendedor».

O cerne da questão em análise reside em saber se a referida cláusula tem natureza resolutiva.
Em conformidade com o disposto no artigo 432º, nº 1, do Código Civil, a resolução do contrato só é admitida quando a lei ou o próprio contrato preveja fundamento para tal. Portanto, a extinção unilateral do contrato por manifestação de vontade de uma das partes pode ser convencionada pelos contraentes, qualificando-se tal convenção como uma cláusula resolutiva.
Sendo assim, quando for expressa e inequivocamente convencionado, pode determinar-se o efeito resolutivo por decorrência directa da verificação do evento previsto pelas partes.
In casu, nem pelo seu teor nem pelo contexto em que se insere podemos considerar que a cláusula invocada pelo 1º Réu para resolver o contrato tem natureza resolutiva.
Quanto ao seu teor, verifica-se que nenhum dos seus segmentos alude a qualquer forma de destruição da relação contratual.

Depois, o que se prevê expressamente é, isso sim, a obrigação de entrega do imóvel e dos móveis ao Réu («fica o promitente-comprador obrigado a entregar de imediato o imóvel e os móveis») desde que verificada uma de duas situações:

a) «no caso de incumprimento do estabelecido na alínea b) da cláusula primeira deste contrato»;
b) «ou no caso de incumprimento no pagamento de dois meses consecutivos das supra referidas prestações».

Se a aludida cláusula do contrato apenas alude, enquanto consequência do incumprimento de uma das duas hipóteses nele prevenidas, à obrigação de entrega do imóvel e dos móveis ao promitente-vendedor, não é legítimo daí retirar que a consequência jurídica nele prevista é a resolução do contrato. Quer dizer, na parte invocada pelo Réu, em consequência da falta de pagamento de duas prestações consecutivas o promitente-vendedor tinha a faculdade de reaver o imóvel e respectivo recheio.
Acresce que o próprio contexto do aludido segmento da cláusula 5ª, nº 2, aponta nesse sentido, pois, como bem salientou o Tribunal recorrido, no valor das prestações acordadas, estava incluída uma percentagem correspondente à contrapartida pela habitação do imóvel, pelo que tal disposição contratual corresponde a um dos interesses relevantes e autónomos da economia do contrato. Além disso, mostra-se inteiramente pertinente a conclusão de que não «faria sentido que, não estando ainda atingido o prazo contratual para realização da escritura definitiva (a que se refere o ponto 1 dessa cláusula quinta), o não pagamento das referidas duas prestações fosse causa de resolução do contrato sem que as partes a tanto fizessem qualquer referência, ainda que impropriamente expressa».
Finalmente, se nem o teor nem o contexto da cláusula permitem qualificá-la como sendo resolutiva, na ausência de qualquer outro elemento proporcionado pelo contrato ou pela matéria de facto indiciadora dos motivos de tal fixação que extravasem o seu sentido literal, não é possível afirmar que cada uma das partes, ou ambas, pretendesse atribuir à cláusula natureza resolutiva.

Não constituindo uma cláusula resolutiva, resta apreciar se existia fundamento legal para a resolução do contrato, em virtude de estarem em dívida duas prestações mensais consecutivas (€ 600,00 x 2) e ainda parte de uma terceira prestação (que se veio a apurar ser € 50,00), pois foi esse o único fundamento invocado para a resolução tanto na declaração que o 1º Réu fez ao Autor como nos artigos 34º, 35º e 40º da contestação e nos artigos 79º, 83º, 85º e 88º da reconvenção.
Para o efeito, importa ter presente que o direito de resolução dum contrato, enquanto destruição da relação contratual, quando não convencionado pelas partes, depende da verificação de um fundamento legal, correspondendo, nessa medida, ao exercício de um direito potestativo vinculado.
Enquanto fundamento legalmente previsto, a resolução contratual pode ser despoletada perante uma situação de incumprimento do contrato, nos termos do artigo 801º, nº 2, do Código Civil.
A aplicação deste preceito em sede de contrato-promessa assenta no entendimento predominante de que a resolução do contrato pressupõe o incumprimento da obrigação a título definitivo, não se compaginando com a simples mora ou atraso no cumprimento (4).
Na falta de cumprimento em sentido lato podem incluir-se, além da cláusula resolutiva expressa que já afastamos, a impossibilidade de cumprimento, a declaração antecipada de não cumprir, o incumprimento definitivo derivado de termo essencial e o incumprimento oriundo da conversão da situação de mora.
Sucede que o Réu não configurou qualquer uma dessas hipóteses. Apenas invocou a cláusula resolutiva expressa, pelo que as conclusões apresentadas pela Recorrente desde logo não podem exorbitar do concreto fundamento invocado pelo Réu para resolver o contrato, o que, na parte excedente, corresponderia a uma questão nova.
Em todo o caso, a Recorrente alude nas suas conclusões a um incumprimento definitivo do Autor e em mera sede de argumentação subsidiária não queremos deixar de abordar tal invocação.
Face aos próprios termos das conclusões, estão afastadas as hipóteses de recusa categórica de cumprir (o Autor nunca se recusou a celebrar o contrato prometido), a impossibilidade de cumprimento e até o incumprimento definitivo derivado da existência de um termo essencial. Além disso, os factos provados não habilitam a concluir que os contraentes tenham atribuído carácter essencial ao vencimento de duas prestações, ao ponto de dispensarem a interpelação admonitória.
Resta o alegado incumprimento definitivo e deve-se ter presente que recai sobre a parte que invoca o direito à resolução o ónus de alegar e demonstrar o fundamento que justifica a destruição do vínculo contratual.
O retardamento na realização da prestação não equivale ao incumprimento do contrato. O retardamento da prestação origina a mora. «O devedor incorre em mora, quando por causa que lhe seja imputável, não realiza a prestação no tempo devido, continuando a prestação a ser ainda possível» (5). Estabelece a este propósito o artigo 804º, nº 2, do Código Civil, que «o devedor considera-se constituído em mora quando, por causa que lhe seja imputável, a prestação ainda possível, não foi efectuada no tempo devido». Portanto, sendo a prestação ainda possível, o devedor que não cumpre a obrigação no prazo convencionado, por causa que lhe seja imputável, incorre em mora.
O incumprimento definitivo do contrato-promessa tem, na sua origem, um incumprimento transitório – ou mora – traduzido na não realização da prestação, que ainda será possível, no prazo a que o contraente se vinculou. A obrigação só se considera não cumprida se o credor perder o interesse na prestação como consequência da mora; se, existindo mora, o devedor não cumprir no prazo, razoável, que o credor lhe fixar, mediante interpelação; se o devedor fizer uma declaração, clara, inequívoca e peremptória que não cumprirá o contrato.
A mora do devedor não deve eternizar-se, prolongar-se indefinidamente. Constituído o devedor em mora, a lei dá ao credor a faculdade de lhe fixar um prazo razoável para sair dela (6). Se o devedor não cumprir dentro do prazo fixado, a mora considera-se retroactivamente convertida em não cumprimento definitivo, com os inerentes direitos para o credor.
A interpelação admonitória traduz-se na fixação de um prazo razoável para a contraparte cumprir, podendo no acto dessa fixação, determinar a cominação da resolução (automática) do contrato (interpelação cominatória). Co-envolve uma intimação de cumprimento, a fixação de um termo peremptório e uma declaração de que a obrigação padecerá de incumprimento definitivo, se não cumprido dentro do novo prazo então fixado. A razoabilidade do prazo conecta-se com os princípios da boa-fé, da cooperação de ambas as partes e do exercício não abusivo do direito.
No que respeita à perda do interesse do credor, a mesma é apreciada objectivamente, o que significa que o valor da prestação deve ser aferido pelo tribunal em função das utilidades que a prestação teria para o credor, tendo em conta, a justificá-lo, «um critério de razoabilidade própria do comum das pessoas» e a sua correspondência à «realidade das coisas» (7).
Quando tal não ocorra, deve entender-se que o contrato continua a ter interesse para as partes – o interesse do credor mantém-se – apesar da mora, e esta só pode converter-se em incumprimento definitivo se a prestação não vier a ser realizada em “prazo razoavelmente fixado pelo credor”, sob a cominação estabelecida no preceito legal – interpelação admonitória ou cominatória (8).
O 1º Réu não logrou demonstrar quaisquer circunstâncias que, objectivamente apreciadas sob um critério de razoabilidade, revelem a perda do interesse no contrato prometido como consequência da mora. Além de objectivamente não terem sido invocadas quaisquer outras circunstâncias, à data da comunicação da declaração de resolução estava em dívida a quantia de € 1.250,00, o que no quadro do negócio era um valor diminuto, atento o preço da prometida venda e a quantia já adiantada.
Por outro lado, no caso sub judice, o Réu não procedeu a qualquer interpelação admonitória.
Portanto, uma vez que o Autor estava em mora e não foi notificado para realizar a prestação, em prazo razoável, sob pena de, existindo omissão da prestação, se considerar para todos os efeitos não cumprida a obrigação e resolvido o contrato, deve concluir-se que a mora não se converteu em incumprimento definitivo.
Na verdade, é entendimento corrente e pacífico que a resolução apenas poderá ser accionada depois de operada a conversão da situação de mora em incumprimento definitivo, nos termos do artigo 808º, nº 1, 2ª parte, do Código Civil, mediante a fixação de um prazo admonitório razoável que permita à contraparte o cumprimento sob pena de suportar a referida consequência.
Em suma: inexistia incumprimento definitivo do contrato-promessa por parte do Autor, pelo que a declaração feita pelo Réu àquele não operou a resolução do contrato-promessa.
Por conseguinte, nem por esta segunda via, que não foi expressamente invocada pelo Réu na declaração de resolução do contrato, pode proceder a pretensão da Recorrente.
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2.2.3. Do direito de retenção

Nas conclusões 26ª e 27ª das suas alegações, a Recorrente afirma que «inexiste fundamento para o invocado direito de retenção o imóvel objeto do alegado contrato promessa - não havendo lugar à aplicação do disposto nos artigos 759.º, n.º 1, f) e 759.º, n.º 2, todos do Código Civil».

A aludida conclusão alicerça-se no pressuposto de que o contrato-promessa foi validamente declarado resolvido pelo 1º Réu, enquanto promitente-vendedor.
Como resulta do exposto em 2.2.2., não havia fundamento convencional (cláusula resolutiva) para o 1º Réu declarar resolvido o contrato e inexistia incumprimento definitivo do contrato-promessa por parte do Autor.
Por isso, a declaração feita pelo 1º Réu ao Autor, através da missiva de 15.02.2017, não operou a resolução do contrato-promessa.
Se aquela declaração rescisória tivesse operado a resolução do contrato-promessa, naturalmente que nenhum direito de crédito o Autor teria sobre o 1º Réu e, por isso, não gozaria do direito de retenção estabelecido no artigo 755º, nº 1, al. f), do Código Civil.

Por outro lado, o Autor é inequivocamente titular de um direito de crédito sobre o Réu, resultante do não cumprimento do contrato-promessa imputável a este último, pelo que, tendo obtido a tradição do imóvel, goza do direito de retenção.
Com efeito, no contrato-promessa dos autos o 1º Réu prometeu «vender, livre de quaisquer ónus, hipotecas ou quaisquer outros encargos e/ou responsabilidades, completamente devoluto de pessoas, e sobre o mesmo não existe qualquer litígio, ao promitente comprador, ou a quem este indicar, prometendo este vender àquele e este, promete comprar-lhe o supra identificado prédio, promessa que fica sujeita às seguintes cláusulas: (…)».

Sucede que relativamente ao imóvel que foi prometido vender pelo 1º Réu ao Autor encontram-se registadas, a favor da 2ª Ré:

i) Uma hipoteca voluntária, com fundamento num contrato de mútuo, para garantia da quantia de € 125.000,00 e até ao montante máximo de € 201.250,00;
ii) Uma penhora para garantia da cobrança da quantia exequenda no montante de € 27.001,10, exigida pela 2ª Ré ao 1º Réu no âmbito do processo judicial nº 1113/16.2T8GMR que corre termos na Comarca de Braga – Guimarães – Instância Central – 1.ª Sec. de Execução – J1.

O 1º Réu tem pendentes contra si, pelo menos, as seguintes acções executivas:

a) Processo nº 1113/16.2T8GMR, iniciado a 19.02.2016, sendo Exequente Caixa ..., no valor de € 27.001,10, contra a qual foi deduzida oposição, já julgada improcedente por decisão transitada em julgado em 11 de Dezembro de 2017;
b) Processo nº 5044/16.8T8GMR, iniciado a 13.09.2016, sendo Exequente o Banco ... - Instituição Financeira de Crédito, SA, no valor de € 15.855,23, à qual não foi deduzida qualquer oposição e não consta que o Exequente tenha recebido qualquer quantia;
c) Processo nº 6018/16.6T8GMR, iniciado a 27.10.2016, sendo Exequente Condomínio do Edifício ..., sito na Avenida …, no valor de € 8.379,58, à qual foi deduzida oposição por embargos, os quais não foram admitidos, por extemporâneos, por decisão já transitada em julgado;
d) Processo nº 676/17.0T8GMR, intentado a 02.02.2017, sendo Exequente M. G. no valor de € 3.989,04, à qual não foi deduzida qualquer oposição.
Provou-se nestes autos que, em consequência do atrás referido (pontos I.31, I.32 e I.43 da sentença), o 1º Réu não consegue vender ao Autor o imóvel prometido vender livre de ónus ou encargos.

No âmbito da presente acção, o Autor alicerçou também o pedido de resolução na impossibilidade definitiva de o Réu transmitir o prédio livre de ónus, hipotecas ou quaisquer outros encargos e/ou responsabilidades.
E, tal como ficou demonstrado nos autos, o 1º Réu não consegue transmitir para o Autor o imóvel nos termos prometidos, ou seja, sem quaisquer ónus, hipotecas, penhoras ou outros encargos.
Por isso, não sendo possível o pontual cumprimento do contrato-promessa por parte do 1º Réu, por causa que lhe é imputável, tem necessariamente de se concluir pelo incumprimento definitivo do contrato, com a consequência constante da alínea a) do dispositivo da sentença, ou seja, declarar resolvido o contrato-promessa «por causa imputável ao Réu R. C.».
Mostra-se também fundada a condenação do «Réu R. C., a pagar ao Autor a quantia de € 111.220,00 (cento e onze mil, duzentos e vinte euros), acrescida de juros moratórios, vencidos e vincendos, calculados desde 18 de Setembro de 2017 e até integral pagamento às taxas sucessivamente emergentes do disposto no artigo 559º do C. Civil» - alínea b) do dispositivo.
Com efeito, em conformidade com o disposto no artigo 442º, nº 2, do Código Civil, tendo pago, a título de sinal e por conta do preço, a quantia de € 55.610,00, tem o Autor o direito de exigir o dobro do que prestou, ou seja, a quantia € 111.220,00, a que acrescem juros de mora a contar da data da citação.

Verifica-se ainda que em Outubro de 2010 o 1º Réu entregou as chaves do imóvel ao Autor, que desde então passou a ser a sua habitação e da sua família, situação que aliás vem ocorrendo até aos dias de hoje (pontos nºs 14, 18 e 19 dos factos provados).
Como houve tradição do imóvel e o Autor é titular de um crédito no montante de € 111.220,00, acrescido de juros de mora, sobre o 1º Réu, resultante do não cumprimento imputável ao promitente-vendedor, goza do direito de retenção sobre a coisa objecto do contrato-prometido, em conformidade com o disposto no artigo 755º, nº 1, al. f), do Código Civil. Tal direito de retenção é concedido pela lei como garantia do crédito resultante do não-cumprimento do contrato pelo promitente-vendedor.

Termos em que improcedem as conclusões 26ª e 27ª das alegações do recurso.
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2.2.4. Do abuso do direito

Na conclusão 20ª (e em parte da 17ª) das suas alegações, a Recorrente alega que «não configura um abuso de direito, a resolução operada pelo Réu, quando lançou mão da cláusula inserta no contrato que obriga o Autor a entregar o imóvel na falta de cumprimento de duas prestações do plano prestacional».

Desde logo, a Recorrente mostra-se equivocada sobre o objecto do abuso do direito. Em lado algum o Tribunal recorrido considerou como abuso do direito «a resolução operada pelo Réu» com base na cláusula 5ª, nº 2, do contrato-promessa. Para poder configurar tal tipo de abuso tinha de existir direito (9) e o Tribunal recorrido concluiu que a referida cláusula não conferia ao 1º Réu o direito de resolver o contrato (10) por não ser resolutiva. Portanto, à conduta do 1º Réu não subjaz qualquer direito de resolução, pelo que não é susceptível de ser considerado abusivo o respectivo exercício.
Só por aqui já improcedia a conclusão formulada.

Depois, o que Tribunal a quo apreciou foi algo diferente da resolução: a cláusula 5ª, nº 2, permitia ao promitente-vendedor exigir do promitente-comprador a entrega imediata do imóvel se estivessem em dívida duas prestações e a questão que apreciou foi se o Réu agia em abuso do direito ao accionar tal cláusula para reaver o imóvel.
O Tribunal recorrido concluiu pela verificação do abuso do direito e determinou a «paralisação dos efeitos da referida cláusula quinta do contrato promessa sub iudice, mais se julgando ilícita e inoperante a interpelação feita pelo Réu com vista à devolução do imóvel», com a consequente qualificação «como legítima a manutenção do Autor na detenção do imóvel, posto que validamente obtida por traditio facultada pelo promitente vendedor».
Aliás, apesar de ter sido apreciada a aludida questão do abuso do direito de accionamento da cláusula 5ª, nº 2, do contrato para reaver o imóvel, a realidade é que o 1º Réu invocou essa cláusula com o directo propósito de resolver o contrato-promessa e não propriamente de, a título principal, conseguir a restituição do imóvel. Essa restituição era, isso sim, uma consequência da invocada resolução, tal como foi deduzida na reconvenção. Na versão alegada na reconvenção, que consubstanciava a causa de pedir, o 1º Réu entendia ter direito à «devolução do prédio prometido vender» por ter declarado resolvido o contrato-promessa (v. arts. 85º, 86º e 93º da reconvenção).
Em todo o caso, importa verificar se o Tribunal a quo decidiu correctamente ao concluir pelo abuso do direito.
Nos termos do artigo 334º do Código Civil, «é ilegítimo o exercício de um direito, quando o titular exceda manifestamente os limites impostos pela boa fé, pelos bons costumes ou pelo fim social ou económico desse direito». A lei deixou o instituto aberto à apreciação e preenchimento casuísticos, através da determinação do que sejam os limites da boa fé, dos costumes e do fim do direito. O mesmo se diga das consequências jurídicas do comprovado abuso do direito, cingindo-se a lei a apontar a ilegitimidade do exercício, ou seja, a sua ilicitude, pelo que cabe sempre ao tribunal determinar qual o efeito concreto do exercício abusivo.
Impõe o artigo 762º, nº 2, do Código Civil, «no cumprimento da obrigação, assim como no exercício do direito correspondente, devem as partes proceder de boa fé».
Pautar a conduta pela boa fé é agir com lisura, correcção e lealdade, não defraudando a legítima confiança ou expectativa dos outros, atento o sentido ético-objectivo que lhe é conferido pelo Código Civil.
A manifestação de abuso do direito que releva para os autos é aquela que consubstancia um venire contra factum proprium, isto é, quando alguém exerce uma posição jurídica em contradição com o comportamento pelo mesmo assumido anteriormente. Traduz-se numa contradição entre dois comportamentos do mesmo sujeito, em que o segundo representa uma quebra injustificada da confiança gerada pela prática do primeiro, com óbvio prejuízo para a contraparte. É o caso, por exemplo, da conduta anterior, apreciada objectivamente, legitimar a convicção da contraparte de que o direito não será exercido.

No caso dos autos, tendo as partes celebrado o contrato-promessa em 15.09.2010, provou-se que desde o início da vigência do contrato o Autor incorreu em mora quanto ao pagamento de várias das prestações acordadas (ponto 37 dos factos provados). Também se demonstrou que o aditamento ao contrato promessa efectuado em 15.05.2015 foi feito atentas as sucessivas dificuldades do Autor em proceder quer ao pagamento atempado das prestações, quer ao pagamento do preço remanescente em dívida e à outorga a escritura definitiva dentro dos prazos inicialmente fixados (ponto 34).
O certo é que «o Réu, por várias vezes, relevou atrasos de pagamento nas prestações por parte do Autor, demostrando compreender tais atrasos por parte do Autor, incutindo-lhe confiança, inclusive depois da alteração do mesmo, de que o contrato prometido seria celebrado» (ponto 44).
Neste quadro de confiança que o 1º Réu incutiu ao Autor e de esforço deste para cumprir com o acordado, mesmo que se interprete a interpelação do 1º Réu ao Autor como autonomizando a pretensão de entrega do imóvel prometido vender relativamente à declarada resolução (quando já vimos que aquilo que o 1º Réu pretendia era a resolução do contrato e a restituição era uma mera consequência daquela), temos por inequívoco que o accionamento da cláusula 5ª, nº 2, para reaver o imóvel, constitui um exercício abusivo da faculdade estabelecida naquela convenção, sobretudo quando se estava a apenas três meses da data prevista para a realização do contrato definitivo, só estava em dívida a quantia de € 1.250,00 (montante que foi prontamente regularizado – v. ponto 40), o Réu já havia recebido uma parte muito substancial (mais de um terço) do preço de € 145.000,00 e que no valor das prestações acordadas estava incluída uma percentagem correspondente à contrapartida pela habitação do imóvel (ou seja, o Autor estava a pagar para habitar o imóvel prometido comprar).
Como bem salientou o Tribunal recorrido, «a pretendida devolução do imóvel perante o atraso no pagamento da quantia de € 1.250,00 afigura-se ostensivamente contrária toda a conduta anterior do Réu perante os sucessivos atrasos do Autor, conduta essa adoptada ao longo de mais de seis anos e que criou a confiança no Autor que não seriam esses atrasos a impossibilitar o cumprimento do contrato e, por decorrência, a fundamentar um pedido de devolução do imóvel onde, note-se, o Autor passou a ter a sua habitação de modo permanente até aos dias de hoje (cfr. ponto I.18 dos factos provados).
E, se assim foi factualmente, também no plano estritamente jurídico se afigura que tal conduta, reiterada ao longo do tempo, foi apta a criar, objectivamente e interpretada face à lei, a legitima convicção no Autor de que o direito decorrente daquela cláusula quinta não seria exercido, porquanto nunca o foi antes, não obstante, em determinados momentos temporais estarem em dívida valores bem mais elevados.
Ademais, tendo em conta que se estava apenas a três meses da data prevista e acordada para realização da escritura de compra e venda, tal conduta é ainda qualificável como claramente violadora da boa-fé, não correspondendo a um proceder correcto, antes se traduzindo numa verdadeira deslealdade (quiçá já pré-ordenada com vista a antecipar e evitar a constatação do seu próprio incumprimento) face à incapacidade de cancelar os registos da hipoteca e da penhora que já então incidiam sobre o imóvel em causa».
Portanto, bem andou o Tribunal recorrido ao determinar a paralisação dos efeitos da referida cláusula 5ª, nº 2, do contrato-promessa, por ter sido exercida de forma ilícita, pelo que é legítima a detenção do imóvel.

Termos em que improcede totalmente a apelação.
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2.3. Sumário

1 – A omissão de qualquer das formalidades previstas no nº 3 do artigo 410º do Código Civil não pode ser invocada por terceiros ou conhecida oficiosamente.
2 – Nem a falta de registo nem o incumprimento de obrigações fiscais constituem causas de nulidade do contrato-promessa a que as partes não pretenderam atribuir eficácia real.
3 – Não tem natureza resolutiva a cláusula do contrato-promessa que se limita a estabelecer a obrigação de restituição ao promitente-vendedor do imóvel e dos móveis que integram o seu recheio no caso de o promitente-comprar incumprir o pagamento de duas prestações mensais consecutivas, sendo certo que no valor das prestações acordadas, estava incluída uma percentagem correspondente à contrapartida pela habitação do imóvel.
4 – Demonstrando-se que o promitente-vendedor não consegue transmitir ao promitente-comprador o imóvel nos termos prometidos, ou seja, sem quaisquer ónus, hipotecas, penhoras ou outros encargos, tem necessariamente de se concluir pela resolução do contrato-promessa com fundamento no seu incumprimento definitivo.
5 – Como houve tradição do imóvel e o promitente-comprador é titular de um crédito no montante de € 111.220,00, resultante do não cumprimento imputável ao promitente-vendedor, goza do direito de retenção sobre a coisa objecto do contrato-prometido, em conformidade com o disposto no artigo 755º, nº 1, al. f), do Código Civil.
6 – Verifica-se abuso do direito se o promitente-vendedor, a três meses da data prevista para a celebração do contrato definitivo, pede a devolução do imóvel perante o atraso no pagamento da quantia de € 1.250,00, quando a sua anterior conduta, ao longo de mais de seis anos, criou a confiança no promitente-comprador de que não seriam esses atrasos a impossibilitar o cumprimento do contrato ou a fundamentar um pedido de devolução do imóvel, o promitente-vendedor já havia recebido mais de um terço do preço de € 145.000,00 e que no valor das prestações acordadas estava incluída uma percentagem correspondente à contrapartida pela habitação do imóvel.
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III – DECISÃO

Assim, nos termos e pelos fundamentos expostos, julgamos improcedente a apelação e mantemos nos seus precisos termos a douta sentença.
Custas pela Recorrente.
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Guimarães, 27.02.2020
(Acórdão assinado digitalmente)

Joaquim Boavida (relator)
Paulo Reis (1º adjunto)
Joaquim Espinheira Baltar (2º adjunto)


1. Fala-se em nulidade atípica quando a lei afasta parte ou a totalidade das regras aplicáveis genericamente para a nulidade.
2. Carlos Ferreira de Almeida, Contratos, vol. V, Almedina, pág. 12.
3. O texto completo da cláusula é o seguinte: «2 - Por outro lado, no caso de incumprimento do estabelecido na alínea b) da cláusula primeira deste contrato ou no caso de incumprimento no pagamento de dois meses consecutivos das supra referidas prestações, fica o promitente-comprador obrigado a entregar de imediato o imóvel e os móveis, no estado em que presentemente se encontram, responsabilizando-se este pelo pagamento de qualquer reparação ou despesas provenientes do mau uso dos equipamentos descritos, substituir os que se inutilizarem, deteriorarem ou perderem, bem como ao pagamento de uma indemnização de 900,00€ (novecentos euros) por cada mês de atraso na entrega do imóvel e dos bens ao promitente vendedor».
4. Inocêncio Galvão Telles, Direito das Obrigações, 1977, págs. 128 a 130; João Calvão da Silva, Sinal e Contrato-Promessa, pág. 107; Antunes Varela, Sobre o Contrato-Promessa, pág. 150 e segs.
5. Antunes Varela, obra citada, pág. 114.
6. Galvão Telles, Direito das Obrigações, 5ª edição, pág. 279.
7. Pessoa Jorge, Ensaio sobre os Pressupostos da Responsabilidade Civil, pág. 20, nota 3; Galvão Telles, Direito das Obrigações, 5ª edição, pág. 279; Ac. do STJ de 21.05.1998, BMJ, 477º, pág. 468.
8. Antunes Varela, obra citada, pág. 532 e segs.
9. Se inexiste o direito nem sequer há objecto sobre que possa versar o abuso. Se a parte não é titular de um direito naturalmente que não pode abusar do seu exercício.
10. A sentença refere expressamente que «a cláusula quinta do contrato promessa em causa nos autos não permitia ao Réu obter a resolução do contrato».