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CONTRA-ORDENAÇÃO
DECISÃO ADMINISTRATIVA
ELEMENTO SUBJECTIVO DA INFRACÇÃO
Sumário
I - A decisão condenatória administrativa deve obedecer aos requisitos previstos no Artº 58º do RGCOC.
II - A condenação por contraordenação negligente exige, para além do mais, a narração e demonstração factual objectiva e subjectiva da violação do dever de cuidado, própria da negligência.
III - Porém, as exigências de fundamentação da decisão da autoridade administrativa - no respeitante às contraordenações - terão de ser menos profundas que as relativas aos processos criminais, não se podendo transformar as decisões das autoridades administrativas em verdadeiras sentenças criminais, não sendo de exigir, pois, o rigor formal nem a precisão descritiva que se exige numa sentença judicial.
IV - Está suficientemente descrito o elemento subjectivo quando a decisão condenatória pela prática de contraordenação menciona que a arguida não agiu com a diligência necessária para cumprir as suas obrigações legais, sendo certo que, quem exerce uma determinada actividade encontra-se obrigado a diligenciar pelo conhecimento das regras quer tutelam a mesma, uma vez que tal informação ou autoformação é pressuposto ou exigível a um normal e diligente empresarial, e a conclusão de facto de que a arguida agiu negligentemente, modalidade de culpa legalmente admitida para a infracção em questão.
Texto Integral
Acordam, em conferência, os Juízes da Secção Criminal do Tribunal da Relação de Guimarães
I. RELATÓRIO
1. Por decisão da autoridade administrativa (Inspecção-Geral da Agricultura, do Mar, do Ambiente e do Ordenamento do Território), de 05/02/2018, constante de fls. 286/293 Vº, foi a arguida “Sucata ..., Lda.” condenada pela prática:
- De uma contra-ordenação ambiental grave, p. e p. pelo nº 2 do Artº 19º, nos nºs. 4, 5 e 6 do Artº 20º, e nos nºs. 1, 3, 5 e 6 Artº 18º e al. g), do nº 2, do Artº 24º, do Dec.-Lei nº 196/2003, de 23 de Agosto, com as alterações introduzidas pelo Dec.-Lei nº 64/2008, de 8 de Abril, e pelo Dec.-Lei nº 73/2011, de 17 de Junho, na coima de € 12.000,00; e
- De uma contra-ordenação ambiental grave, p. e p. pelos nºs. 2 e 4 do Artº 3º, e Artº 18º do Regulamento (CE) nº 103/2006, do Parlamento Europeu e do Conselho, de 14/06/2006, e al. d), do nº 2, do Artº 9º, do Dec.-Lei nº 45/2008, de 11 de Março, na coima de € 12.000,00.
E, em cúmulo jurídico das mencionadas coimas, foi a arguida condenada na coima única de € 18.000,00.
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2. Não se conformando com tal condenação, dela interpôs a arguida impugnação judicial, nos termos constantes de fls. 297/305.
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3. Remetidos os autos ao Ministério Público de Valença, em 03/07/2018 foram os mesmos presentes a Juízo, nos termos e para os efeitos do disposto no Artº 62º, nº 1, do Regime Geral das Contra-Ordenações, aprovado pelo Decreto-Lei nº 433/82, de 27 de Outubro (doravante RGCO), tendo sido distribuídos ao Juízo de Competência Genérica de Valença, Juiz 2, do Tribunal Judicial da Comarca de Viana do Castelo, sob o número 453/18.0T8VLN.
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4. Admitido o recurso, por despacho de 01/10/2018 foi designada data para a audiência de discussão e julgamento.
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5. Nessa sequência, realizou-se a audiência de discussão e julgamento e, após várias vicissitudes processuais que ora não interessa considerar, em 08/10/2019 a Mmª Juíza proferiu a sentença que consta de fls. 435/437, publicamente lida e depositada nessa mesma data, em cujo âmbito julgou procedente o recurso e, em consequência, revogou a aludida decisão administrativa, em virtude de, em síntese, a mesma enfermar de nulidade, por dela não constar nenhum facto que permita concluir pela imputação à arguida do elemento subjectivo do ilícito contra-ordenacional.
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6. Inconformada com tal decisão, dela veio a Digna Magistrada do Ministério Púbico interpor o presente recurso, que consta de fls. 440/456, cuja motivação é rematada pelas seguintes conclusões e petitório (transcrição 1):
“1. Por sentença proferida, no dia 8 de Outubro de 2019 (fls. 434 a 437), o Tribunal a quo, decidiu revogar a decisão proferida pela Inspeção-Geral da Agricultura, do Mar, do ambiente e do Ordenamento do Território, no processo de contraordenação nº CO/001345/12, que condenara Sucata ..., Ldª., pela prática uma contraordenação ambiental grave prevista e punida pelo artigo 33º alínea n) do nº 2 do artigo 67º do DL n.º178/2006, de 05 de Setembro, com as alterações introduzidas pelo DL nº 73/2011, de 7 de Junho; uma contraordenação ambiental grave, p. e p. pelo nº 2 do artigo 19º, nº 4, nº 5 e Nº 6 do artigo 20º e nº1, nº 3, nº 5 e nº 6 do artigo 18º alínea g) do nº 2 do artigo 24º do DL nº 196/2003, de 23 de Agosto, com as alterações introduzidas pelo DL nº 64/2008, de 08 Abril e pelo DL nº 73/2011, de 17 Junho, e de uma contraordenação ambiental grave, p. e p. pelo nº 2 e nº 4 do artigo 3º e artigo 18º do Regulamento (CE) n.º103/2006, do Parlamento Europeu e do Conselho, de 14.06.2006 e alínea d) do n.º2 do artigo 9º do DL nº 45/2008, de 11 de Março.
2. A questão que, desde logo, suscitamos é a de saber se a decisão proferida pela Inspeção-Geral da Agricultura, do Mar, do ambiente e do Ordenamento do Território, que consta a fls. 286 a 293, padece de alguma nulidade, designadamente aquela a que se faz referência na sentença ora colocada em crise (violação do disposto no artigo 58º, n.º1 do RGCO).
3. A este respeito dispõe o artigo 58º, nº 1 do RGCO: “A decisão que aplica a coima ou as sanções acessórias deve conter: a) a identificação dos arguidos; b) a descrição dos factos imputados, com indicação das provas obtidas; c) a indicação das normas segundo as quais se pune e a fundamentação da decisão; d) a coima e as sanções acessórias.”.
4. Exige-se que na narração acusatória constem os factos relativos à culpabilidade, onde se reconheça o conhecimento (representação) e a vontade de realização do facto material típico do tipo objetivo (elementos objetivos, naturalísticos ou normativos) de uma infracção.
5. Veja-se a este respeito a anotação ao artigo 58º do RGCO - in Contraordenações, Anotações ao Regime Geral, 3ª Edição, 2006, Vislis Editores – onde se pode ler que “Os requisitos previstos neste artigo para a decisão condenatória contraordenacional visam assegurar ao arguido a possibilidade de exercício efetivo dos seus direitos de defesa, que só poderá existir com um conhecimento perfeito dos factos que lhe são imputados, das normas legais em que se enquadram e condições em que pode impugnar judicialmente aquela decisão. Por isso as exigências aqui feitas deverão considerar-se satisfeitas quando as indicações contidas na decisão sejam suficientes para permitir ao arguido o exercício desses direitos.”
6. A lei não define qual o âmbito ou rigor da fundamentação que aqui se impõe, porém, a jurisprudência tem entendido que não se impõe uma fundamentação com o rigor e a exigência que se impõe no artigo 374º, nº 2 do Código de Processo Penal, por várias razões, desde logo, por se tratar de decisão administrativa, que não se confunde com a sentença penal, como o ilícito contraordenacional não se confunde com o ilícito penal, pois, são realidades distintas (a sentença penal reveste uma maior solenidade, atenta a supremacia dos interesses em causa) e, ainda, porque aquela decisão, quando impugnada «converte-se em acusação, passando o processo assumir uma natureza judicial – artigo 62º, nº 1 do RGCO. Ora, não faz qualquer sentido que a decisão administrativa, que em caso de impugnação se converte em acusação, tenha que obedecer a um rigorismo de fundamentação semelhante ao da sentença penal.
Mais.
7. Seria até incongruente que a fundamentação exigida no artigo em causa tivesse a amplitude prevista no artigo 374º, nº 2 do Código de Processo Penal, relativamente à fundamentação da sentença, quando naquele se estabelecem os elementos que deve conter a decisão administrativa, essa exigência não faria sentido se ao dever de fundamentar que aí se prevê se atribuísse o alcance que resulta do artigo 374º, nº 2 do Código de Processo Penal, retirando, dessa forma, sentido à exigência contida no artigo 58º, nº 1, alíneas b) e c) do RGCO.
8. As condutas ou comportamentos contraordenacionais, em si mesmos, são axiologicamente neutros e, daí que, a coima represente um mal que de nenhum modo se liga à personalidade do agente, antes servindo como mera “admonição”, como especial advertência ou reprimenda conducente à observância de certas proibições ou imposições legais.
9. A génese e teleologia do procedimento contraordenacional, a fundamentação, tal como está estabelecida no artigo 58º do RGCO, será, pois, suficiente desde que justifique as razões pelas quais, atentos os factos descritos, as provas obtidas e as normas violadas, é aplicada esta ou aquela sanção ao arguido, de modo que este, lendo a decisão, se possa aperceber, de acordo com os critérios da normalidade de entendimento, as razões pelas quais é condenado e, consequentemente, impugnar tais fundamentos.
10. Por outras palavras, exige-se uma fundamentação mínima indispensável ao exercício de defesa do arguido, sob pena de manifesta violação do artigo 32º, n.º10 da CRP.
11. Na sentença ora colocada em crise, mais concretamente a fls.435/verso, pode ler-se o seguinte: ”Tal conduz, inapelavelmente, à nulidade daquela decisão, por via dos art.ºs 58º, nº 1, al. a), do R.G.C.O., e 374º, nº 2, e 379º, nº 1, al. a), do C.P. Penal, estes supletivamente aplicáveis, nulidade essa que, sendo de conhecimento oficioso arrasta também a inutilização dos termos posteriores do processo no que à ora arguida/recorrente concerne (cf. art.º 122º do C.P. Penal, supletivamente aplicável)”.
12. Como já referimos o normativo vertido no artigo 58º, nº 1, alínea a) do RGCO refere que a decisão tem que identificar os arguidos. Mas será que, na decisão administrativa em apreço, não se identificou a arguida? No que a esta matéria diz respeito, afigura-se-nos que a mesma está identificada e bem identificada, pelo que, não se poderá concluir pela nulidade da mesma, por violação do disposto no mencionado normativo, como resulta da sentença.
13. Na sentença ora colocada em crise, entende-se, ainda, que a decisão proferida pela Inspeção-Geral da Agricultura, do Mar, do ambiente e do Ordenamento do Território, percorrida na sua totalidade, em lado algum, contempla factos que permitam imputar a prática das mencionadas infrações à arguida, mais concretamente, os factos relativos ao elemento subjetivo.
14. Se analisarmos, atentamente, a decisão administrativa, mais concretamente a fls. 291/verso, no segmento Culpa, pode ler-se o seguinte: “No que toca à culpa com que a arguida atuou, considera-se que esta não agiu com a diligência necessária para cumprir com as suas obrigações legais, não se descortinando qualquer facto que retire a censurabilidade às infrações por si praticadas (…)”. Apesar da referência ao elemento subjetivo das concretas contraordenações imputadas à arguida não prima pelo rigor formal, afigura-se-nos, ainda assim, que a descrição contida na decisão administrativa é suficiente para que esta pudesse exercer, como efetivamente exerceu, o seu direito de defesa, não se verificando alegada nulidade, por violação do artigo 58º, n.º1, alínea b) do RGCO.
15. Veja-se a este respeito os seguintes arestos: Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra, de 12 de Julho de 2011, Processo nº 990/10.5T2OBR.C1, relatado pelo Exmo. Sr. Desembargador Alberto Mira, onde se pode ler o seguinte “Em razão da génese e teleologia do procedimento contraordenacional, a fundamentação, tal como está estabelecida no artigo 58º do Regime Geral de Contraordenações e Coimas, será suficiente desde que justifique as razões pelas quais – atentos os factos descritos, as provas obtidas e as normas violadas (artigo 58º, n.º1, alínea b) e c) – é aplicada esta ou aquela sanção ao arguido, de modo que este , lendo a decisão, se possa aperceber, de acordo com os critérios da normalidade de entendimento, as razões pelas quais é condenado e, consequentemente, impugnar tais factos.”
Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra, de 2 de Março de 2011, Processo n.º583/09.0T2BR.C1, relatado pelo Exmo. Sr. Desembargador Paulo Guerra, onde se pode ler o seguinte “As contraordenações não respeitam à tutela de bens jurídicos ético-penalmente relevantes, mas apenas e tão-só à tutela de meras conveniências de organização social e económica e à defesa de interesses da mais variada gama, que ao Estado incumbe regular através de uma atuação de pendor intervencionista, que nos últimos anos se vem acentuando com progressiva visibilidade, impondo regras de conduta dos mais variados domínios de relevo para a organização e bem-estar social. Estas normas ditas de mera ordenação social (que não devem validar a afirmação de que estaremos perante um «direito de bagatelas penais»), não têm a ressonância ética das normas penais mas não deixam de ter a sua tutela assegurada através da descrição legal de ilícitos que tomam o nome de contraordenações, cuja violação é punível com a aplicação de coimas, a que podem, em determinados casos, acrescer sanções acessórias. A execução da vertente sancionatória pressupõe um processo previamente determinado, de pendor não tão marcadamente garantístico como o processo penal (que por força da gravosa natureza das sanções que por seu intermédio podem ser aplicadas, exige a observância de apertadas garantias de defesa), mas que assegure, ainda assim, os direitos de audiência e de defesa (artigo 32º, n.º10 da CRP e artigo 50º do RGCO). Para essa finalidade, o legislador adotou um procedimento consideravelmente mais simplificado e menos formal do que o processo penal, cujo quadro geral consta dos artigos 33º e seguintes do RGCO.”
Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães, de 11 de Janeiro de 2016, Processo nº 1812/12.8EAPRT.G2, relatado pelo Exmo. Sr. Desembargador João Lee Ferreira, onde se pode ler o seguinte “No âmbito do processo contraordenacional a jurisprudência tem sido unânime em considerar que a decisão administrativa, embora apresente alguma homologia com a sentença condenatória penal, tem uma estrutura semelhante a esta última, se bem que mais concisa, possui um nível de exigência e de compreensão inferior, devido à sua menor incidência na liberdade das pessoas.”
Isto posto.
16. E, na nossa modesta opinião, a decisão administrativa respeita todos os requisitos formais, designadamente os exigidos no normativo vertido no artigo 58º, nº 1, alíneas a) a d) do RGCO.
17. Face ao exposto, deverá a decisão ora recorrida ser revogada, uma vez que a decisão administrativa não evidencia nenhuma nulidade nem padece de qualquer outro vício, devendo a Tribunal a quo decidir sobre o mérito da mesma, por já se ter realizado a audiência de discussão e julgamento, com a correspondente produção de prova.
18. Caso assim não se entenda, dever-se-á determinar o reenvio do processo para a autoridade administrativa a fim da decisão administrativa ser expurgada de qualquer nulidade.
Nestes termos e melhores de Direito, deve ser dado provimento ao presente recurso, revogando-se a sentença recorrida, e, em consequência, determinando-se o reenvio do processo para que o Tribunal a quo se pronuncie quanto ao mérito da decisão administrativa, caso assim não se entenda, dever-se-á determinar o reenvio do processo à autoridade administrativa a fim de esta expurgar de qualquer nulidade a sua decisão, como é de DIREITO e JUSTIÇA. “.
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7. Na resposta ao recurso, a arguida pugna pela sua improcedência, e pela manutenção da decisão recorrida, terminando a sua douta peça processual, constante de fls. 457/462, com as seguintes conclusões (transcrição):
“I - A pretensão do Recorrente não merece – com o devido respeito – o menor provimento, pois que a douta sentença proferida em primeira instância não é passível da censura que o Recorrente lhe dirige.
II - Pelo contrário, a douta decisão mostra-se muito bem fundamentada.
III - Trata-se da decisão que se impunha face à factualidade provada e ao enquadramento jurídico aplicável, não sendo compaginável outra interpretação que não aquela que o Tribunal a quo plasmou na douta sentença.
IV - A decisão proferida consubstancia a única solução que consagra a justa e rigorosa interpretação e aplicação ao caso sub judice das normas legais.
V - Dos factos dados como “Provados” na decisão administrativa não resulta por parte da arguida a prática de qualquer infracção, mais a mais das que lhe são imputadas.
VI - A sentença recorrida teve por referência os factos considerados provados na decisão administrativa, sendo da submissão dos factos ao direito que resulta a condenação.
VII - Dos factos constantes da decisão administrativa não resulta qualquer infracção por parte da arguida.
VIII - Do projecto de decisão, que integra a decisão da IGAMAOT, e que, vista a total remissão da deliberação se transformou no conteúdo da decisão, não contém todos os elementos necessários e exigidos pelo artigo 58º do RGCOC.
IX - Dos enunciados factos provados e necessários não definem a integração dos elementos da tipicidade, nem as referências necessárias à indicação do nexo de imputação a título de dolo ou de negligência.
X - Da decisão administrativa, no segmento da culpa, apenas consta que a arguida não agiu com a diligência necessária para cumprir com as suas obrigações legais, mas da decisão, designadamente da factualidade dada como provada não constam quaisquer factos que permitam estabelecer a imputação da contra-ordenação.
XI - A decisão administrativa não contém factos suficientes que permitam o preenchimento da tipicidade das infracções imputadas à arguida.
XII - Como resulta dos próprios termos da al. b), do artigo 58º do RGCO é necessário incluir na decisão a descrição factual e a indicação das normas violadas, não bastando uma mera remissão para qualquer outra peça processual, mesmo que se trate de Auto de Notícia.
XIII - A indicação dos factos imputados com menção das provas obtidas é uma exigência do art. 58°, nº 1, do RGCO, em tributo aos mais elementares princípios que devem reger um direito de carácter sancionatório e que têm a ver sobretudo com garantias mínimas relacionadas desde logo com o direito de defesa, por muito sumário e expedito que se apresente o processo contra-ordenacional, pois, a própria Constituição estende a este tipo de processos essas garantias (art. 32°, nº 10).
XIV - Entre essas garantias mínimas de defesa, avulta, a de “serem conhecidos os factos que são imputados ao arguido, pois sem que os mesmos estejam estabelecidos não é possível avaliar a justiça da condenação, fica inviabilizado o direito ao recurso e não há salvaguarda do ne bis in idem” - cf. Ac. do STJ de 21-09-2006, Proc. nº 3200/06.
XV - O pleno exercício do direito constitucional à defesa plasmado no art. 32º, nº 2, da CRP, e o princípio nulla poena sine culpa, pressupõem que quer a notificação destinada a dar cumprimento ao direito de audição, quer a própria decisão administrativa, contenham os factos respeitantes aos pressupostos da punição e à sua intensidade.
XVI - Inexistindo qualquer imputação quanto ao preenchimento, por parte do arguido, do elemento do tipo subjectivo da contra-ordenação, e sendo a verificação desse elemento indispensável para que se afirme o cometimento da contra-ordenação, conclui-se que os factos constantes quer da notificação destinada a dar cumprimento ao direito de audição, quer da própria decisão administrativa, são insusceptíveis de constituir a prática de uma contra-ordenação.
XVII - A moderna tendência para a personalização não se compadece com uma estrita indagação da culpa dentro dos férreos moldes das antigas presunções de dolo - FIGUEIREDO DIAS, RLJ nº 105º, pág.142. No mesmo sentido, citamos o Ac. Relação do Porto de 02 de Julho de 2008, in www.dgsi.pt.
XVIII - No tocante aos factos relativos à imputação subjectiva da conduta da arguida, a decisão da autoridade administrativa ora em análise é manifestamente infundada, por total ausência de descrição de factos relativos aos elementos subjectivos da infracção, factos esses, obviamente, relevantes para a condenação.
XIX - A sanção para o incumprimento da al. b) do nº 1 do referido art. 58º do RGCO é a nulidade da decisão impugnada, nos termos dos arts. 283°, nº 3, 374°, nº 2, e 379°, nº 1, al. a), do CPP, aplicável subsidiariamente.
XX - Deste modo, não estando integrados os elementos da tipicidade da contraordenação referida pela decisão administrativa a consequência terá de ser a absolvição.
XXI - A douta Sentença recorrida deve manter-se nos seus precisos termos.”.
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8. Neste Tribunal da Relação, a Exma. Procuradora-Geral Adjunta pronunciou-se, também, pela improcedência do recurso, nos termos do douto parecer que consta de fls. 465/472. 8.1. Cumprido o disposto no Artº 417º, nº 2, do C.P.Penal (2), não foi apresentada qualquer resposta.
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II. FUNDAMENTAÇÃO 1. É hoje pacífico o entendimento de que o âmbito do recurso é delimitado pelas conclusões extraídas pelo recorrente da respectiva motivação, sendo apenas as questões aí sumariadas as que o tribunal de recurso tem de apreciar, sem prejuízo das de conhecimento oficioso, designadamente dos vícios indicados no Artº 410º, nº 2, do C.P.Penal (3).
Assim sendo, no caso vertente, a questão que importa decidir é a de saber se a decisão da autoridade administrativa é ou não omissa quanto à descrição dos factos que estabelecem os elementos subjectivos da infracção e, concomitantemente, determinar se tal decisão da autoridade administrativa enferma ou não da nulidade apontada pela Mmª Juíza do tribunal a quo.
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2. Porém, para uma melhor compreensão do que está em causa, atentemos antes de mais no teor integral da sentença ora posta em crise pela Digna Magistrada recorrente (transcrição):
“SENTENÇA
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“SUCATA ..., LDª.” interpôs recurso da decisão da Inspeção-Geral da Agricultura, do Mar, do Ambiente e do Ordenamento do Território, que o condenou na coima única de €18.000,00, pela prática de uma contra-ordenação ambiental grave prevista e punida pelo art. 33º al. n) do nº2 do art. 67º do DL nº178/2006. De 05.09, com as alterações introduzidas pelo DL nº73/2011, de 7.06; uma contra-ordenação ambiental grave, prevista e punida pelo nº2 do art. 19º, nos nºs. 4, 5 e 6 do art. 20º e os nºs. 1, 3, 5 e 6 do art. 18º al. g) do nº2 do art. 24º do DL nº196/2003, de 23.08, com as alterações introduzidas pelo DL nº64/2008, de 08.04 e pelo DL nº73/2011. De 17.06 e de uma contra-ordenação ambiental grave, prevista e punida pelos nºs. 2 e 4 do art. 3º e art. 18º do Regulamento (CE) nº103/2006, do Parlamento Europeu e do Conselho, de 14.06.2006 e al. d) do nº2 do art. 9º do DL nº45/2008, de 11.03.
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Admitido o recurso foi designada data para a realização da audiência de julgamento.
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Questão Prévia:
Percorrendo a decisão em crise, verifica-se que em lado algum se encontram descritos factos imputados à ora arguida/recorrente, que permitam atribuir-lhe a prática da infração citada, ou qualquer outra – cfr. “V – Da prova coligida resulta PROVADO QUE:” (fls. 288v e ss.), ou seja, dela não constam, com efeito, os factos que permitam estabelecer a imputação subjetiva da contra-ordenação à ora arguida/recorrente.
Tal conduz, inapelavelmente, à nulidade daquela decisão, por via dos art.ºs 58.º, n.º 1, al. a), do R.G.C.O., e 374.º, n.º 2, e 379.º, n.º 1, al. a), do C.P. Penal, estes supletivamente aplicáveis, nulidade essa que, sendo de conhecimento oficioso arrasta também a inutilização dos termos posteriores do processo no que à ora arguida/recorrente concerne (cf. art.º 122.º do C.P. Penal, supletivamente aplicável).
Assim sendo, é imperioso que constem dos factos imputados à arguida/recorrente na decisão administrativa, as “ocorrências da vida real”, quaisquer eventos materiais e concretos, mas também relativos ao mundo imaterial (anímico, volitivo, intelectual), uma vez que é esta globalidade que constitui os fundamentos de facto da decisão.
Para que sejam asseguradas ao arguido/recorrente as garantias mínimas do direito de defesa é essencial que o mesmo seja conhecedor de toda a factualidade que lhe é imputada e que seja suscetível de integrar a prática de um ilícito contra-ordenacional – nesse sentido vide Ac. do STJ, de 10.01.2007e de 29.01.2007, e do TRE de 08.05.2012, todos in www.dgsi.pt
A consequência da falta dos elementos essenciais que constituem a centralidade da própria decisão – sem o que nem pode ser considerada decisão em sentido processual e material – tem de ser encontrada no sistema de normas aplicável, se não direta, quando não exista norma que especificamente se lhe refira, por remissão ou aplicação supletiva, sendo que o artigo 41º do RGCO, a propósito do direito subsidiário manda aplicar devidamente adaptados os preceitos reguladores do processo criminal.
Deste modo, a decisão da autoridade administrativa que aplique uma coima e que não contenha os elementos que a lei impõe é nula, por aplicação do disposto no art. 374º, nº1, al. a) do CPP, sendo tal nulidade de conhecimento oficioso, o que decorre da redação do art. 379º, nº2 do C.P.P. quando consagra que “as nulidades da sentença devem ser arguidas ou conhecidas em recurso” – nesse sentido vide entre outros, os Acs. do STJ de 31.05.2001, de 08.11.2001 e de 14.05.2003, todos publicados no Boletim Interno do STJ, nºs. 51, 55 e 71, respetivamente e ainda do STJ o Ac. de 02.02.2005, in CJ, tomo I, p. 188.
Ora, analisando agora o caso sub judice, verifica-se que na decisão administrativa condenatória, nenhum facto é imputado à arguida que permita concluir pela imputação subjetiva do ilícito contra-ordenacional, a título de dolo ou de negligência, tal como é exigido no nº1 do artigo 8º do RGCO.
Por outro lado, como é referido no Ac. do TRC de 04.10.2006, in www.dgsi.pt: “no processo de impugnação judicial de decisão da autoridade administrativa que impôs uma coima, o juiz pode apurar novos factos sem vinculação ao texto da decisão impugnada, apenas com o limite de não poder alterar substancialmente os factos constantes dessa decisão”.
Assim, não é possível agora, acrescentar novos factos relativos ao elemento subjetivo, porquanto tal significaria alterar substancialmente os factos constantes daquela decisão.
Ora, face à insuficiência dos factos constantes da decisão administrativa, suscetíveis de integrar o elemento subjetivo, como elemento indispensável à natureza e integração de um ilícito contra-ordenacional, não resta senão concluir que a mesma é nula, por violação do disposto na al. a) do nº1 do art. 374º do CPP aplicável ex vi art. 41º do RGCO, e em consequência, deve a arguida/recorrente ser absolvida.
Face à conclusão que antecede, fica prejudicado o conhecimento das outras questões suscitadas pela arguida/recorrente.
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DECISÃO:
Pelo exposto, o Tribunal julga procedente o presente recurso e, em consequência decide revogar a decisão proferida pela Inspeção-Geral da Agricultura, do Mar, do ambiente e do Ordenamento do Território, no processo de contra-ordenação nºCO/001345/12, que condenara Sucata ..., Ldª., pela prática uma contra-ordenação ambiental grave prevista e punida pelo art. 33º al. n) do nº2 do art. 67º do DL nº178/2006. De 05.09, com as alterações introduzidas pelo DL nº73/2011, de 7.06; uma contra-ordenação ambiental grave, prevista e punida pelo nº2 do art. 19º, nos nºs. 4, 5 e 6 do art. 20º e os nºs. 1, 3, 5 e 6 do art. 18º al. g) do nº2 do art. 24º do DL nº196/2003, de 23.08, com as alterações introduzidas pelo DL nº64/2008, de 08.04 e pelo DL nº73/2011. De 17.06 e de uma contra-ordenação ambiental grave, prevista e punida pelos nºs. 2 e 4 do art. 3º e art. 18º do Regulamento (CE) nº103/2006, do Parlamento Europeu e do Conselho, de 14.06.2006 e al. d) do nº2 do art. 9º do DL nº45/2008, de 11.03.
(...)”.
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3. Isto posto, há que analisar, então, se a decisão da autoridade administrativa enferma da nulidade que lhe foi apontada na sentença recorrida, por omissão de descrição dos elementos subjectivos da infracção.
Vejamos.
De acordo com o Artº 1º do RGCOC, “Constitui contra-ordenação todo o facto ilícito e censurável que preencha um tipo legal no qual se comine uma coima.”.
Prescrevendo, por seu turno, o Artº 8º, nº 1, do mesmo regime geral, que “Só é punível o facto praticado com dolo ou, nos casos especialmente previstos na lei, com negligência.”.
Ora, da conjugação dos transcritos preceitos legais decorre, sem margem para dúvidas, que não pode existir responsabilidade contra-ordenacional sem culpa, o que significa que o princípio da culpa tem plena vigência no direito de mera ordenação social.
Porém, como bem assinala o Prof. Augusto Silva Dias, in “Direito das Contra-Ordenações”, Almedina, Reimpressão, 2019, págs. 65/66, o princípio da culpa no direito das contra-ordenações conhece uma maior flexibilidade dogmática e probatória relativamente ao direito penal.
Com efeito - sustenta o mencionado Autor - “Para esta flexibilidade concorre a circunstância de o parâmetro normativo no Direito das Contra-Ordenações ser constituído pelo papel social: no centro da imputação subjectiva e da censura estão as representações, procedimentos e comportamentos típicos do papel em cada sector da actividade económica e social: o empresário, o contribuinte, o condutor, o intermediário financeiro, etc., diligentes e criteriosos. O papel é densificado mediante o conjunto de deveres, práticas e usos que regulam o exercício de cada sector de actividade e se espera que cada participante cumpra ou adopte (...). No plano da imputação subjectiva, em particular na negligência, o papel fornece o padrão de cuidado cujo incumprimento constitui o desvalor da acção. No plano da culpa, a censura tem o sentido de uma admonição ou reprimenda social, de um “... mandato ou especial advertência conducente à observância de certas proibições ou imposições legislativas” (...) e o conteúdo ou objecto da censura é o desempenho defeituoso do papel, ou seja, o desvio relativamente ao procedimento-padrão no sector da actividade em causa (...) . A intensidade da reprimenda variará consoante esse desvio seja maior ou menor” (sublinhado nosso].
“(…) existem, desde sempre, razões de ordem substancial que impõem a distinção entre crimes e contra-ordenações, entre as quais avulta a natureza do ilícito e da sanção (vide FIGUEIREDO DIAS, em “Temas Básicos da Doutrina Penal”, pág. 144-152, da ed. de 2001, da Coimbra Editora).
A diferente natureza do ilícito condiciona, desde logo, a eventual incidência dos princípios da culpa, da proporcionalidade e da sociabilidade.
É que “no caso dos crimes estamos perante condutas cujos elementos constitutivos, no seu conjunto, suportam imediatamente uma valoração – social, moral, cultural – na qual se contém já a valoração da ilicitude. No caso das contra-ordenações, pelo contrário, não se verifica uma correspondência imediata da conduta a uma valoração mais ampla daquele tipo; pelo que, se, não obstante ser assim, se verifica que o direito valora algumas destas condutas como ilícitas, tal só pode acontecer porque o substrato da valoração jurídica não é aqui constituído apenas pela conduta como tal, antes por esta acrescida de um elemento novo: a proibição legal.” (FIGUEIREDO DIAS, na ob. cit., pág. 146).
Da autonomia do ilícito de mera ordenação social resulta uma autonomia dogmática do direito das contra-ordenações, que se manifesta em matérias como a culpa, a sanção e o próprio concurso de infracções (vide, neste sentido, Figueiredo Dias na ob. cit., pág. 150).
Não se trata aqui “de uma culpa, como a jurídico-penal, baseada numa censura ética, dirigida à pessoa do agente e à sua atitude interna, mas apenas de uma imputação do facto à responsabilidade social do seu autor; dito de outra forma, da adscrição social de uma responsabilidade que se reconhece exercer ainda uma função positiva e adjuvante das finalidades admonitórias da coima” (FIGUEIREDO DIAS em “O movimento da descriminalização e o ilícito de mera ordenação social”, in “Jornadas de Direito Criminal: O Novo Código Penal Português e Legislação Complementar”, I, pág. 331, da ed. de 1983, do Centro de Estudos Judiciários).
(...)
Estas diferenças não são nada despiciendas e deverão obstar a qualquer tentação de exportação imponderada dos princípios constitucionais penais em matéria de penas criminais para a área do ilícito de mera ordenação social."
Ora, no caso vertente, as infracções pelas quais a arguida foi condenada estabelecem a punibilidade a título de negligência (cfr. Artº 24º, nº 4, do Dec.-Lei nº 196/2003, de 23 de Agosto, na redacção então em vigor, e Artº 9º, nº 4, do Dec.-Lei nº 45/2008, de 11 de Março), e a decisão da autoridade administrativa sancionou efectivamente a arguida com base nas molduras cominadas às contra-ordenações em causa, a título de negligência (4).
No que aos requisitos da decisão condenatória administrativa diz respeito, há que atentar no que prescreve o Artº 58º do RGCOC, sob a epígrafe “Decisão condenatória”:
“1 – A decisão que aplica a coima ou as sanções acessórias deve conter:
a) A identificação dos arguidos;
b) A descrição dos factos imputados com indicação das provas obtidas;
c) A indicação das normas segundo as quais se pune e a fundamentação da decisão;
d) A coima e as sanções acessórias.
(...).
O estabelecimento destes requisitos, no que tange à decisão administrativa condenatória, prende-se com a necessidade de, em observância do comando previsto no nº 1 do Artº 32º da Constituição da República Portuguesa, assegurar ao coimado o exercício efectivo do direito de defesa. Por isso, devem ter-se por verificados estes requisitos quando as indicações constantes da decisão bastem para permitir ao arguido o exercício da defesa - Simas Santos e Lopes de Sousa, in “Contra-Ordenações, Anotações ao Regime Geral”, 5ª Edição, 2009, Vislis, Editores, pág. 454).
Posto isto, e compulsando a decisão da autoridade administrativa, impugnada pela arguida, verifica-se que na mesma se exarou o seguinte, a fls. 288 Vº / 289 Vº:
“V - Da prova coligida resulta:
PROVADO QUE:
a) No dia 27 de Junho de 2012, pelas 14 horas, foi realizada uma inspecção no estabelecimento denominado "Sucata ..., Lda. - …", sito em …, freguesia ..., concelho de Valença, pertencente a Sucata ..., Lda., com sede em Av. …, de que é sócio-Gerente M. J..
b) A empresa desenvolve a actividade de gestão de veículos em fim de vida (VFV), com vista à recuperação de peças para comercialização.
c) À data da fiscalização, a empresa encontrava-se a laborar.
d) Para o exercício da actividade a empresa possuiu o alvará de licença para realização de operações de gestão de resíduos nº 105/2009/CCDR-N, emitido pela Comissão de Coordenação e Desenvolvimento Regional do Norte, válido até 30-10-2014.
e) Dos cerca de 900 VFV parqueados nas instalações, foram verificados, por amostragem, 7VFV, tendo 5 deles sido adquiridos em França e os outros dois em território nacional.
f) Nove, dos cerca de novecentos, VFV existentes nas instalações da arguida, foram inspeccionados, tendo-se apurado que os mesmos ainda não tinham sido submetidos à operação de descontaminação.
g) Relativamente aos VFV adquiridos em França, foram remetidas à Alfândega de Viana do Castelo as Declarações Aduaneiras de Veículo (DAV), para não pagamento do imposto de circulação rodoviário, uma vez que estes não se destinam a ser matriculados.
h) Estes veículos são importados e não estão descontaminados.
i) No decurso da inspecção, constatou-se que os mesmos possuíam baterias, óleos no motor e nos travões, pelo que são um resíduo perigoso (LER 16 01 04).
j) No ano de 2011, foram enviados para a empresa espanhola X, SAL, 408,899 toneladas de veículos descontaminados (LER 160106).
k) No ano de 2012, foram enviados para o mesmo destinatário o mesmo tipo de resíduo.
I) Não foi evidenciado que tais movimentos de resíduos tivessem sido comunicados à APA, com a antecedência mínima de 5 dias, e não foi apresentado contrato entre ambas as empresas.
m) As águas pluviais que percolam pelos VFV existentes no parque de armazenamento, a um nível inferior ao pavilhão e susceptíveis de contaminação, são descarregadas para um sistema de tratamento, sendo captadas e encaminhadas através de um sistema de tubos subterrâneos para um poço estanque, localizado no parque inferior. Deste poço estanque e através de bomba de imersão aí existente, tais águas são enviadas para o sistema de tratamento e descontaminador.
n) Da mencionada acção de fiscalização resultou a elaboração do Auto de Notícia nº 259/12..
(…).”.
E mais à frente, no ponto VI, título “Do Direito”, subtítulo “Culpa”, a fls. 291º Vº / 292, escreveu-se:
“No que toca à culpa com que a Arguida actuou, considera-se que esta não agiu com a diligência necessária para cumprir as suas obrigações legais, não se descortinando qualquer facto que retire a censurabilidade à infracção por si praticada.
Efectivamente, quem exerce uma determinada actividade encontra-se obrigada a diligenciar pelo conhecimento das regras quer tutelam a mesma, uma vez que tal informação ou autoformação é pressuposto ou exigível a um normal e diligente empresarial”.
Acrescentando-se, no final desse subtítulo:
“Tendo presente o atrás explanado, bem como na análise de facto e de direito anteriormente efectuada, tendo ainda presente toda a documentação constante dos presentes autos, nomeadamente o Auto de Notícia nº 259/2012-IGAMAOT, considera-se ter ficado demonstrado que a Arguida agiu negligentemente, modalidade de culpa legalmente admitida para a infracção em questão.
(…)”.
Como se alcança daquela decisão administrativa, as questões de facto que determinaram a condenação da arguida traduzem-se, basicamente, no seguinte:
- No dia 27 de Junho de 2012, pelas 14 horas, a arguida, que se dedica à actividade de gestão de veículos em fim de vida (VFV), com vista à recuperação de peças para comercialização, tinha parqueados nas suas instalações, sitas em …, freguesia ..., concelho de Valença, cerca de 900 veículos em fim de vida (VFV), com vista à recuperação de peças para comercialização;
- Dessas 900 VFV foram verificados, por amostragem, 7VFV, tendo 5 deles sido adquiridos em França e os outros dois em território nacional;
- Nove, dos cerca de novecentos, VFV existentes nas instalações da arguida, foram inspeccionados, tendo-se apurado que os mesmos ainda não tinham sido submetidos à operação de descontaminação;
- Constatando-se que os mesmos possuíam baterias, óleos no motor e nos travões, constituindo um resíduo perigoso (LER 16 01 04);
- No ano de 2011 a arguida enviou para a empresa espanhola X, SAL, 408,899 toneladas de veículos descontaminados (LER 160106);
- No ano de 2012 a arguida enviou para o mesmo destinatário o mesmo tipo de resíduo;
- Não foi evidenciado que tais movimentos de resíduos tivessem sido comunicados à APA, com a antecedência mínima de 5 dias, e não foi apresentado contrato entre ambas as empresas.
Entendendo o tribunal a quo, na sentença recorrida, que, “Percorrendo a decisão em crise, verifica-se que em lado algum se encontram descritos factos imputados à ora arguida/recorrente, que permitam atribuir-lhe a prática da infração citada, ou qualquer outra (...), ou seja, dela não constam, com efeito, os factos que permitam estabelecer a imputação subjectiva da contra-ordenação à ora arguida/recorrente.”.
E, na verdade, tal asserção do tribunal a quo, no rigor dos princípios, não deixa de corresponder à verdade.
Pois, como se constata, nenhuma das várias alíneas atinentes à factualidade dada como provada pela autoridade administrativa, supra descrita, se refere ao elemento subjectivo do tipo.
Sucede, porém, que a decisão administrativa não é uma sentença, nem tem que obedecer ao formalismo da sentença penal.
Afigurando-se-nos, na esteira, v.g. do Acórdão da Relação do Porto, de 09/04/1999, cujo sumário se encontra disponível inwww.dgsi.pt, que “As exigências de fundamentação da decisão da autoridade administrativa - no respeitante às contra-ordenações - hão-de ser menos profundas que as relativas aos processos criminais; não se podem transformar as decisões das autoridades administrativas em verdadeiras sentenças criminais.”.
Na verdade, como assertivamente se refere no Acórdão da Relação de Lisboa, de 20/06/2017, proferido no âmbito do Proc. nº 127/16.7-TNLSB.L1-5, inwww.dgsi.pt, as exigências formais no processamento das contra-ordenações não podem equiparar-se às do processo penal, apresentando aquelas autonomia decorrente da valoração e opção política do legislador em resultado da diversidade ontológica entre o direito de mera ordenação social e o direito penal, da natureza da censura ético-penal correspondente a cada um e da distinta natureza dos órgãos decisores.
Determinante, em relação à decisão administrativa - sublinha-se no mesmo douto aresto - é que a sua leitura permita compreender, de acordo com os critérios da normalidade de entendimento, as razões pelas quais o agente é condenado, de modo a que este possa adequadamente impugnar os fundamentos dessa condenação.
Ora, voltando ao caso vertente, como se viu, verifica-se que na decisão administrativa consta, na parte atinente ao direito, mais concretamente no subcapítulo “Culpa”, a referência à circunstância de a arguida não ter agido com a diligência necessária para cumprir com as suas obrigações legais, considerando-se ter ficado demonstrado que a mesma arguida agiu negligentemente, modalidade de culpa legalmente admitida para as infracções em questão.
É certo que, no rigor dos princípios, esta consubstancia uma conclusão jurídica, não estando descrita na parte atinente aos elementos de facto descritos na decisão em causa.
Porém, como se disse, e ora se reitera, em sede de decisão administrativa não é de exigir o rigor formal nem a precisão descritiva que se exige numa sentença judicial.
Concordando-se inteiramente com a Exma. Procuradora-Geral Adjunta quando, no seu douto parecer, afirma:
“Ao contrário do decidido (...) afigura-se-nos que uma leitura atenta da decisão administrativa proferida leva à conclusão que embora do ponto de vista formal a peça apresentada não esteja completamente perfeita, na medida em que não existe uma sistematização cronológica do que se pretende, pois misturam-se factos que constituem ilícito contra-ordenacional, com outros que o não constituem, o que é certo, é que se aborda de uma forma perfeitamente aceitável o elemento subjectivo, acabando por se considerar que a arguida agiu negligentemente e o porquê dessa conclusão”.
Ademais, há que sublinhar que a arguida, por via da impugnação judicial que oportunamente deduziu, revelou perfeito entendimento dos factos que lhe foram imputados na decisão administrativa, e a que título o foram, o que significa que a fundamentação da decisão, tal como se encontra exarada, foi suficiente para permitir o exercício do direito de defesa, não enfermando, pois, do vício (nulidade) que lhe foi assacado na sentença recorrida.
Sendo certo, aliás, que a própria arguida nem sequer invocou tal questão no seu recurso de impugnação (note-se, até, que no Artº 23º, relativamente à primeira infracção, referiu expressamente não ter agido com dolo ou com negligência...), tendo a mesma sido oficiosamente suscitada e apreciada pelo tribunal a quo.
Nessas circunstâncias, entendemos merecer provimento o recurso interposto pelo Ministério Público, por se considerarem suficientemente descritos na decisão administrativa os factos relativos ao elemento subjectivo das infracções imputadas à arguida, devendo revogar-se a sentença recorrida e determinar-se que, na primeira instância, a mesma Exma. Sra. Juíza profira nova decisão na qual aprecie todas as questões ínsitas no recurso de impugnação interposto pela arguida visando a decisão da autoridade administrativa em causa.
III. DISPOSITIVO
Por tudo o exposto, acordam os Juízes da Secção Criminal deste Tribunal da Relação de Guimarães em conceder provimento ao recurso interposto pelo Ministério Público e, consequentemente, revogam a decisão recorrida e determinam que a mesma Exma. Sra. Juíza profira nova sentença na qual aprecie todas as questões suscitadas pela arguida no recurso que interpôs da decisão da autoridade administrativa, ficando definitivamente decidida, nos moldes supra mencionados, a questão oficiosamente suscitada pela primeira instância atinente à nulidade por omissão de descrição do elemento subjectivo das infracções.
Sem custas.
(Acórdão elaborado pelo relator, e por ele integralmente revisto, com recurso a meios informáticos, contendo as assinaturas electrónicas certificadas dos signatários - Artº 94º, nº 2, do C.P.Penal)
*
Guimarães, 26 de Fevereiro de 2020
António Teixeira (Relator)
Paulo Correia Serafim (Adjunto)
1. Todas as transcrições a seguir efectuadas estão em conformidade com o texto original, ressalvando-se a correcção de erros ou lapsos de escrita manifestos, da formatação do texto e da ortografia utilizada, da responsabilidade do relator. 2. Diploma ao qual pertencem todas as disposições legais a seguir citadas, sem menção da respectiva origem. 3. Cfr., neste sentido, Germano Marques da Silva, in “Direito Processual Penal Português - Do Procedimento (Marcha do Processo) ”, Vol. 3, Universidade Católica Editora, 2015, pág. 334 e sets., e o Acórdão de fixação de jurisprudência do S.T.J. nº 7/95 de 19/10/1995, publicado no DR, Série I-A, de 28/12/1995, em interpretação que ainda hoje mantém actualidade. 4. Não contendo o RGCOC a definição de dolo e de negligência, por força do estatuído no Artº 32º desse mesmo regime, os respectivos conceitos são os que se encontram plasmados nos Artºs. 14º e 15º do Código Penal, respectivamente. Pelo que o elemento subjectivo, na imputação a título de negligência, pressupõe a indicação de que o agente actuou sem o cuidado a que, segundo as circunstâncias, estava obrigado e de que era capaz, actuando sem se conformar com a realização do facto, apesar de o ter representado como possível (negligência consciente - Artº 15º, al. a), do Código Penal), ou não chegando sequer a representar a possibilidade da sua realização (negligência inconsciente - Artº 15º, al. b), do Código Penal).