DIREITO DE PREFERÊNCIA
PRÉDIOS CONFINANTES
Sumário


I - O artigo 1380º do Código Civil confere o direito de preferência na alienação de determinado prédio ao proprietário de outro prédio com aquele confinante.

II - A exigência da confinância, converge com a finalidade única do instituto do emparcelamento, traduzido no conjunto de operações de remodelação predial destinadas a pôr termo à fragmentação e dispersão dos prédios rústicos, com o fim de melhorar as condições técnicas e económicas da exploração agrícola (artigo 1382.º, do Código Civil).

III - Existindo uma linha de água entre os prédios que constitui uma divisão física e objetiva que impede a sua exploração agrícola contínua como se de um só prédio de área superior se tratasse, os prédios não são confinantes para os efeitos do artigo 1380º do Código Civil.

IV - Constituindo o direito de preferência uma restrição à liberdade contratual, estruturante do nosso direito civil substantivo, não deve ser reconhecido senão nas situações expressamente consagradas na lei ou consentidas no seu espírito – o de maximizar a rentabilidade de explorações agrícolas contínuas.

Texto Integral


ACORDAM NO TRIBUNAL DA RELAÇÃO DE GUIMARÃES

I – RELATÓRIO

J. A. instaurou ação declarativa, sob a forma comum, contra M. M., M. L. e L. D., pedindo que seja declarado o seu direito a preferir na compra e venda do prédio identificado na petição inicial, reconhecendo-se o seu direito de adquirir o prédio em causa pelo preço declarado e ordenando-se o cancelamento dos registos efetuados na sequência da escritura outorgada pelos Réus.

Alegou, para tanto, em síntese, que é herdeiro de A. A. e M .B. e que das heranças abertas por morte destes faz parte um prédio rústico inscrito na matriz sob o artigo ..., confinante com o prédio rústico inscrito na matriz sob o artigo ..., relativamente ao qual os Réus celebraram, em 5.8.16, escritura de compra e venda, sem que ao Autor ou ao seu irmão tivesse sido feita a devida comunicação para preferência.
Acrescentou que o seu prédio tem área inferior à unidade de cultura e que sobre o prédio objeto da venda incide também uma servidão de aqueduto e passagem constituída por escritura pública, a favor do prédio do Autor.
Procedeu ao depósito de € 30.144,00, correspondente ao preço da venda, respetivos impostos e despesas.

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O Réu M. M. contestou, alegando que o prédio em causa estivera diversos anos à venda e fora oferecido para compra aos Autores, que recusaram o negócio, conhecendo todos os elementos do mesmo.

Mais negou a existência do direito de preferência em virtude de existir entre os dois prédios um caminho de consortes, pelo que os mesmos não confinam, além de não se destinar o prédio vendido a cultivo.
Acrescentou que o preço do negócio foi de € 33.000,00, reconvindo pedindo a condenação no pagamento de tal valor, acrescido das despesas em que incorreram os Réus.
Excecionou, ainda, a ilegitimidade, em virtude de na ação não estarem os demais proprietários confinantes.
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D. B., co-herdeiro juntamente com o Autor J. A., deduziu incidente de intervenção espontânea, aderindo e fazendo seu o articulado do Autor.
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Foi proferido despacho saneador, que admitiu liminarmente a reconvenção, deferiu a intervenção espontânea de D. B. e julgou improcedente a exceção de ilegitimidade passiva por ausência dos demais confinantes. Mais conheceu parcialmente do mérito da reconvenção, julgando improcedente o pedido de condenação no pagamento das despesas reclamadas pelo Réu/reconvinte, no valor de € 3.342,56.
De seguida, foi identificado o objeto do litígio e selecionados os temas da prova.
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Falecido o Autor J. A., foi habilitada como sua sucessora H. B., herdeira testamentária.
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Realizada a audiência de julgamento, veio o interveniente D. B. declarar desistir de todos os pedidos formulados.
Notificada, H. B., habilitada na posição do primitivo Autor entretanto falecido, requereu o prosseguimento dos autos, porquanto tratando-se de litisconsórcio necessário tal desistência apenas poderá relevar em sede de custas.
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A final foi proferida sentença que julgou a ação totalmente improcedente e, em consequência, absolveu os Réus dos pedidos e julgou prejudicada a apreciação da reconvenção, deduzida a título subsidiário, em virtude da improcedência da ação.
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Inconformada com a sentença veio a habilitada H. B. interpor recurso terminando com as seguintes conclusões:

Da Impugnação da matéria de facto:

1) A alinea a) dos factos não provados deve ser retirada e passar a ser facto provado que contenha o seguinte:
O prédio dos Autores confronta a nascente com o dos RR e estão separados por muro de pedra solta.

Sem prescindir e sempre, do Direito:

2) A confinância entre os dois prédios existe quer seja por muro de pedra solta quer por levada de rego de água confinando sem dúvida entre si por força do disposto no art. 1387,nº 3 do Código Civil sejam as águas de origem pública ou privada e são sempre particulares por força do disposto no artigo 1386º,nº1 e 1387º,nº1 do mesmo Código.
3) Não obsta ao direito de preferência, verificando-se a confinância entre o prédio alienado e o do preferente, a existência de um desnível entre ambos ou a existência de uma levada de rega de consortes, de dimensões desconhecidas, ou de um muro de vedação.
4) São objectivos da lei ao estabelecer o direito de preferência de terrenos confinantes, assim atingindo ou aproximando-se da unidade de cultura, o emparcelamento para uma melhor e maior rentabilidade agrícola, e, actualmente, ainda a preocupação ambiental.
5) Afastar o direito de preferência pela existência de desnível entre ambos os prédios não passará de uma suposição e interpretação, sem qualquer apoio legal
6) Considera-se que todos os pressupostos para o exercício do direito de preferência foram preenchidos
7) Foram violados pela Sentença entre outros os art.º 1380º, 1386º, 1387º do Código Civil.
Pugna o apelante pela revogação da sentença que deve ser substituída por acórdão que condene os RR, conforme pedido na ação com as legais consequências
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Foram apresentadas contra-alegações, pugnando o Recorrido pela improcedência da apelação e manutenção do decidido.
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Foram colhidos os vistos legais.
Cumpre apreciar e decidir.
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II - DELIMITAÇÃO DO OBJETO DO RECURSO

As questões decidendas a apreciar, delimitadas pelas conclusões do recurso, são as seguintes:

– Da impugnação da decisão sobre a matéria de facto;
– Da verificação dos pressupostos para o exercício do direito de preferência fundado na qualidade de proprietária confinante invocado pela Autora.
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III - FUNDAMENTAÇÃO

3.1. Os factos

3.2.1. Factos Provados

Na 1ª instância foi dada como provada a seguinte factualidade:

1. J. A., entretanto falecido, e D. B., são os únicos herdeiros de A. A. e M .B., falecidos em 1989 e 2005, respetivamente.
2. Integra a herança do referido casal o prédio rústico composto de cultura arvense, 50 uveiras, 30 videiras em cordão, 5 macieiras, pinhal, denominado “Souto … ou Souto da …”, sito no lugar de ..., ..., inscrito na matriz predial rústica da união de freguesias de ..., sob o artigo ... (antigo …), e descrito na Conservatória de Registo Predial sob o número …, em nome do referido A. A..
3. No dia 5.8.2016, a Ré L. D. vendeu ao Réu M. M., pelo preço de € 28.000,00, o prédio rústico composto de pastagem, eucaliptal, mata de carvalhos, com a área de 11.200 m2, denominado “Touça das …”, sito no lugar de ..., ..., inscrito na matriz predial rústica da união de freguesias de ..., sob o artigo ... e descrito na Conservatória de Registo Predial sob o número …, em nome de M. M. e mulher.
4. Por escritura pública celebrada em 1979, o referido A. A. comprara à anterior proprietária do prédio referido em 3. determinados dias de água para irrigação do prédio referido em 2.
5. A Ré L. D. divulgou na povoação da ..., durante vários anos, a sua intenção de venda do prédio referido em 3., juntamente com outros prédios, do que o primitivo Autor J. A. e D. B. tiveram conhecimento.
6. Os prédios referidos em 2. e 3. encontram-se desnivelados, estando este último num plano superior, e têm entre si – nas vertentes nascente e poente, respetivamente - uma levada de rega, que serve diversos consortes há vários anos, cuja limpeza se encontra a cargo da Junta de Freguesia.
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3.1.2. Factos Não Provados

Inversamente, foram dados como não provadas os seguintes factos:

a) Os prédios referidos em 2. e 3. confrontam entre si, designadamente no lado nascente do prédio referido em 2. e poente do prédio referido em 3. – tendo-se provado antes o descrito em 6..
b) Os Réus ou alguém por si comunicou antecipadamente ao primitivo Autor J. A. ou a D. B. a celebração do negócio referido em 3. e seus elementos como preço e identificação do comprador – tendo-se provado apenas o descrito em 5..
c) O preço real do negócio referido em 3. foi de € 33.000,00.
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3.2. O Direito

3.2.1. Da modificabilidade da decisão sobre a matéria de facto

Nos termos do artigo 662º, do Código de Processo Civil, a Relação deve alterar a decisão proferida sobre a matéria de facto, se os factos tidos como assentes, a prova produzida ou um documento superveniente impuserem decisão diversa.

Em sede de impugnação da matéria de facto, consigna o art. 640º, n.º 1 do CPC que, «quando seja impugnada a decisão sobre a matéria de facto, deve o recorrente obrigatoriamente especificar, sob pena de rejeição:

a)- os concretos pontos de facto que considera incorrectamente julgados;
b)- os concretos meios probatórios, constantes do processo ou de registo ou gravação nele realizada, que impunham decisão sobre os pontos da matéria de facto impugnados diversa da recorrida;
c)- a decisão que, no seu entender, dever ser proferida sobre as questões de facto impugnadas.»

Por outro lado, ainda, dispõe o n.º 2 do mesmo art. 640º que:

a)- quando os meios probatórios invocados como fundamento do erro na apreciação das provas tenham sido gravados, incumbe ao recorrente, sob pena de imediata rejeição do recurso na respectiva parte, indicar com exactidão as passagens da gravação em que se funda o seu recurso, sem prejuízo de proceder à transcrição dos excertos que considere relevantes.
A Recorrente considera que a confinância dos prédios resultou provada.
No seu entender houve erro na apreciação da prova porquanto da observação das fotografias juntas ao relatório pericial e dos depoimentos prestados pelas testemunhas A. F. e M. A., resulta claramente que o que separa as propriedades é um muro de pedra antigo e não o rego de água.
A Srª Juiz na motivação depois de minuciosamente ter analisado os depoimentos das testemunhas, diz que não resultou demonstrada a confrontação entre os prédios em causa por entre eles passar uma levada de água.
E di-lo baseando-se também no depoimento das testemunhas indicadas pela Recorrente, A. F. e M. A..

Na sua fundamentação a Srª Juiz explicou que:

Sobre a concreta configuração dos prédios e do limite dos mesmos, atentámos no relatório pericial junto a fls. 101 e ss., datado de 27.3.18, do qual resulta, por descrição do Sr. Perito e ilustração com fotografias aéreas e fotogramas tirados pelo Sr. Perito, o descrito em 6., sendo que tal factualidade foi igualmente perpassando dos diversos depoimentos testemunhais, com maior ou menor precisão ou clareza consoante os casos.
De facto, mesmo as testemunhas indicadas pelos Autores e apesar do seu evidente “compromisso” com a posição processual destes, admitiram que na zona de confrontação dos dois prédios existe uma levada de rega, cuja água serve vários consortes e vem sendo limpa e mantida pela Junta de Freguesia há vários anos.
A testemunha A. F. limitou-se a afirmar a sua convicção pessoal de que a “confrontação” dos dois prédios se situava no muro de pedra e não no rego de água, afirmando que “as confrontações (da matriz) não falam do rego”, sendo certo que não soube justificar de outro modo essa convicção e revelou desconhecer, aliás, as demais confrontações.
A testemunha M. A. revelou conhecer bem os terrenos em causa mas também não logrou objetivar a afirmação de que o limite dos dois prédios se fazia pelo muro e não pela levada de água que ali corre longitudinalmente. Chegou a referir-se, aliás, à venda da “bouça” pela sua tia (I. F.) a um vizinho como sendo a venda do terreno para cima do rego e da parede.
A generalidade das testemunhas indicadas pelos Réus, revelando conhecer bem o local e terrenos em causa (com exceção da testemunha L.G.) confirmou, de forma clara e consentânea com as regras da experiência comum, que as margens da levada, que corre longitudinalmente aos referidos prédios, se mantêm limpas pela Junta de Freguesia e sem qualquer cultivo (Autores cultivavam do tanque para baixo), designadamente no espaço que vai da levada ao muro de pedra solta que circunda o prédio referido em 3., sendo que diversas testemunhas se referiram àquele trato de terreno como “público” ou “baldio”, tendo a testemunha A. M. afirmado ter pastoreado em tempos, naquele local, os seus animais e a testemunha A. Martins referido que o tanque existente no prédio dos Autores foi construído pela Junta de Freguesia e pela Câmara Municipal.
Mais uma vez, desta versão dissentiu a testemunha M. A. que afirmou, sem concretização bastante e sem respaldo em qualquer outro meio de prova, que também nesse “corredor” junto da levada, e entre esta e o muro, se cultivava, em tempos idos, produtos hortícolas, por parte dos donos do terreno que depois pertenceu aos seus sobrinhos.
Ora, considerando o que ficou dito relativamente ao facto vertido em 6. e as regras gerais de distribuição do ónus da prova, resultou não provado o descrito em a), não tendo resultado demonstrada, como aos autores incumbia, a contiguidade dos dois prédios.
Para tanto seria necessário concluir, desde logo, que a levada de rega e o trato de terreno entre esta e o muro que circunda o prédio vendido integra o prédio dos Autores o que, com clareza e segurança, não sucede, porquanto os Autores não demonstraram, direta ou indiretamente, que os limites do seu prédio se estendem até ao dito muro, que até ali adquiriram todo o terreno, derivada ou originariamente. De facto, não se pode bastar o Tribunal com asserções genéricas e proclamatórias, sem arrimo objetivo e factual, mormente no que respeita a factualidade essencial e estruturante do direito invocado, sendo certo que as “confrontações” constantes da matriz e do registo, além de não fazerem, como se disse, prova plena de tal configuração, são, in casu, divergentes quanto às vertentes nascente e poente do prédio dos Autores e Réus, respetivamente.
Por outro lado, importava que resultasse da prova que os prédios são, factualmente, confinantes, sem limites ou barreiras que impeçam essa contiguidade, o que, em face do vertido em 6., não sucede, sendo certo que não logrou o Tribunal apurar a concreta natureza da água que corre na levada, designadamente se resulta de águas pluviais ou de nascente, onde nasce, que percurso faz e onde desagua, apesar dos variados indícios de que se tratam de águas públicas (serve um número indeterminado de consortes, deriva para um tanque construído pela Junta de Freguesia e pela Câmara, as margens da levada são limpas e cuidadas pela Junta, etc.)".
A Recorrente não fornece argumentos válidos ou provas bastantes que abonem uma diferente convicção, limitando-se a contrapor a sua convicção com base no depoimento das testemunhas cuja razão de ciência foi devidamente sindicada pelo tribunal recorrido.
Com efeito, a Recorrente ao sindicar a decisão de facto omitiu o devido confronto da decisão impugnada e dos seus concretos fundamentos.
Tal como se impõe que o Tribunal faça a análise crítica das provas (de todas as provas que se tenham revelado decisivas), também o recorrente, ao enunciar os concretos meios de prova que devem conduzir a uma decisão diversa, deve fundar tal pretensão numa análise (crítica) dos meios de prova, não bastando reproduzir um ou outro segmento descontextualizado dos depoimentos.
Como é sabido, a prova de um facto não resulta, regra geral, de um só depoimento ou parte dele, mas da conjugação de todos os meios de prova e da sua valoração tendo em conta critérios de bom senso, razoabilidade e sensatez, recorrendo às regras da experiência e aos parâmetros do homem médio.
Neste contexto, compreende-se que se reclame da parte do recorrente a explicitação da sua discordância fundada nos concretos meios probatórios ou pontos de facto que considera incorrectamente julgados, ónus que não se compadece com a mera alusão a depoimentos parcelares e sincopados, sem indicação concreta das insuficiências, discrepâncias ou deficiências de apreciação da prova produzida, em confronto com o resultado que pelo Tribunal foi declarado.
Exige-se, pois, o confronto desses elementos com os restantes que serviram de suporte para a formulação da convicção do Tribunal, apontando as eventuais disparidades e contradições que infirmem a decisão impugnada.
Salvo o devido respeito, a Recorrente ignora completamente a extensa fundamentação da decisão da primeira instância, o escrutínio da razão de ciência que nela se faz e a clara explicação das razões que estiveram na base da convicção do julgador.
Termos em que improcede a impugnação da decisão de facto.
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3.2.2. Do mérito da sentença

A questão única a decidir é se os prédios em causa são confinantes.
O artigo 1380º do Código Civil confere o direito de preferência na alienação de determinado prédio ao proprietário de outro prédio com aquele confinante.
Esta norma insere-se num conjunto de outras que visou pôr cobro à excessiva fragmentação da propriedade rústica, atendendo aos inconvenientes de ordem económica que dela resultam, designadamente a baixa produtividade de prédios de reduzida área. (1)
Pretende-se favorecer a função social da propriedade, enquanto fator de produção, promovendo uma afetação eficiente da mesma.
No entanto, como se evidencia no acórdão desta Relação de 15 de março de 2018, "este favorecimento tem em conta unicamente a derivada do emparcelamento rústico, sendo este o único critério apontado pela lei e que também funciona como limite ao direito de preferência".
Não se visa, portanto, aumentar o património dos proprietários de terrenos rústicos com a aquisição de outros prédios dessa natureza, isto é, que os titulares de prédios rústicos se tornem proprietários de mais prédios, que possam ser explorados autonomamente ou de forma descontínua, mas sim que aumentem a área dos que já possuem, por uma espécie de incorporação ou anexação dos terrenos rústicos confinantes.
Daí a exigência de que os prédios sejam efetivamente confinantes, em termos físicos e de facto, para existir direito de preferência, não bastando que se trate de prédios vizinhos. O que releva é a continuidade dos terrenos e, desta, a vantagem económica daí decorrente.
Como de forma clara se expressou no acórdão do STJ, de 09 de Julho de 2014 (2) "para vermos se há confinância o objetivo é vermos se os terrenos podem ser juntos, ou seja, se podem ser considerados como um único terreno. Esta unidade deve ser vista em termos naturalísticos: se para efeitos práticos não existe nenhuma diferença entre o trânsito de pessoas e de alfaias agrícolas dentro de um dos terrenos e idêntico trânsito entre eles".
Esclarece-se no aludido aresto que se poderá objetar "que existem outras realidades económicas, como a existência de pontes ou caminhos de acesso tão relevantes como a confinância nos termos em que a vimos definindo. Existir existem, mas não é delas que trata o art.º 1380º .
Conclui-se então que "por essas razões é que não se podem considerar como prédios confinantes aqueles que apenas se tocam num ponto, ou os que são separados por um curso de água. Em qualquer destas hipóteses, embora venha a ser possível o trânsito entre os terrenos, nunca será feito de forma tão “natural” como se fosse o mesmo terreno. E, pelas mesmas razões, a existência de muros, desníveis, ou canais de irrigação, porque estes não impedem a continuidade natural dos prédios, não obsta à consideração de estarmos perante prédios confinantes".

No caso presente ficou demonstrado que entre os prédios existe uma levada de água, que serve vários consortes (e não apenas os prédios em causa), que vem sendo limpa e cuidada (leito e margens) pela Junta de Freguesia, tendo, ainda, os dois prédios entre si, nessas vertentes, um desnível, ficando o prédio vendido num plano superior.

Daqui decorre que entre os prédios existe uma divisão física e objetiva, marcada pela levada de rega que acompanha os respetivos limites e que se situa na zona de desnível.

Convoca a Recorrente, como forma de afastar qualquer óbice à consideração da confinância, o artigo 1387º do Código Civil.
Sustenta que a confinância entre os dois prédios existe por força do disposto no artigo 1387º,nº 3 do Código Civil sejam as águas de origem pública ou privada e são sempre particulares por força do disposto no artigo 1386º,nº1 e 1387º,nº1 do mesmo Código.
É certo que decorre da regulamentação estabelecida no artigo 1387º,nº 3 do Código Civil, que quando a corrente de águas passa entre dois prédios, pertence a cada proprietário o trato compreendido entre a linha marginal e a linha média do leito ou álveo, todavia este normativo respeita apenas a obras para armazenamento ou derivação de águas e com o leito dessas correntes, não, por si só, para efeitos de eventual emparcelamento de prédios rústicos ou para a definição de confinância de prédios (3).
O dispositivo contido no artigo 1387º do Código Civil, insere-se no capítulo respeitante às águas, sua propriedade e regime, distinto do aplicável aos prédios onde se enquadra o instituto do fracionamento e emparcelamento de prédios rústicos que tem apenas em vista melhorar as condições técnicas e económicas da exploração agrícola.
Analisado o regime específico do direito de preferência, a exigência da confinância, converge com a finalidade única do instituto do emparcelamento, traduzido este no conjunto de operações de remodelação predial destinadas a pôr termo à fragmentação e dispersão dos prédios rústicos pertencentes ao mesmo titular, com o fim de melhorar as condições técnicas e económicas da exploração agrícola (artigo 1382.º, do Código Civil).
O emparcelamento de prédios rústicos não se socorre nem convoca para a sua aplicação do disposto no artigo 1387º do Código Civil, relativo à propriedade das águas.
Resultando que o emparcelamento derivado do direito de preferência "apenas respeite a prédios rústicos entre si confinantes, não relativamente a prédios separados entre si por estradas, por rios, ribeiros ou outros meios naturais ou não naturais que impeçam o seu verdadeiro e real emparcelamento/união, conforme previsto no artº 1380º do C. Civil"- como se afirma no acórdão do STJ que se vem seguindo.
Da factualidade apurada não resulta que os dois prédios sejam confinantes, suscetíveis de exploração única e contínua, designadamente com máquinas e utensílios agrícolas, porquanto entre os dois prédios corre uma linha de água, em cujo leito e margens não pode existir qualquer exploração, encontrando-se, ainda, os dois terrenos, desnivelados.
Considerando que o direito de preferência em causa implica uma restrição significativa à liberdade contratual, estruturante do nosso Direito Civil substantivo, não deve ser reconhecido senão nas situações expressamente consagradas na lei ou consentidas no seu espírito – o de maximizar a rentabilidade de explorações agrícolas contínuas (como bem se observa na decisão recorrida).
Em suma, os prédios rústicos dos Autores e Réus não são confinantes para os efeitos do artigo 1380º, Código Civil, não sendo possível a sua exploração agrícola contínua como se de um só prédio de área superior se tratasse.
Não sendo os prédios confinantes, não poderá a Recorrente exercer o direito de preferência, previsto no artigo 1380º do Código Civil.

Termos em que improcede o recurso.
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IV – DECISÃO

Pelo exposto, acordam os juízes desta Relação em julgar improcedente a apelação, confirmando-se a sentença recorrida.
Custas pela Recorrente.
Guimarães, 20 de Fevereiro de 2020

Assinado digitalmente por:
Rel. – Des. Conceição Sampaio
1º Adj. - Des. Fernanda Proença Fernandes
2º Adj. - Des. Alexandra Viana Lopes


1. Neste sentido, Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de uniformização de jurisprudência publicado no Diário da República - 1.ª SERIE, Nº 113, de 17.05.1986, Pág. 1169.
2. Disponível em www.dgsi.pt.
3. Beste sentido, o já citado acórdão do STJ, de 09 de Julho de 2014, disponível em www.dgasi.pt.