HOMICÍDIO
NEGLIGÊNCIA CONSCIENTE
Sumário

1.– A negligência é um juízo de censura ao agente por não ter agido de outro modo, conforme podia e devia. O traço fundamental situa-se, na omissão de um dever objectivo de cuidado ou diligência – isto é, não ter o agente usado a diligência exigida segundo as circunstâncias concretas do caso, de modo a obstar ao evento.

2.– Torna-se ainda necessário que a produção de tal evento seja previsível (uma previsibilidade determinada de acordo com as regras da experiência comum, ou de certo tipo profissional de pessoas) e só a omissão desse dever impeça a sua previsão.

3.– No caso concreto, ao atropelar mortalmente a vítima na passadeira a esta destinada, não só era espectável que o arguido agisse de outro modo, como estava vinculado por força da legislação rodoviária, a reduzir a velocidade à aproximação da passadeira, devidamente sinalizada e a parar para deixar passar o peão (vítima) que nela atravessava a via.

4.– Estamos perante um caso de negligência consciente, nos termos previstos no artº 15º al. a) do cód. penal e não de negligência inconsciente como decidiu o tribunal “a quo”, porquanto o arguido, ainda que conhecedor das regras do código da estrada, sabendo da existência da passadeira e respectiva sinalização, bem visível e da obrigatoriedade de reduzir a velocidade à aproximação, para parar e ceder a passagem à vítima que transitava na passadeira, por desatenção grosseira não parou.
5.– O tipo objectivo de ilícito dos crimes materiais negligentes é constituído por três elementos:
a)- A violação de um dever objectivo de cuidado;
b)- A possibilidade objectiva de prever o preenchimento do tipo;
c)- E a produção do resultado típico quando este surja como consequência da criação ou potenciação pelo agente, de um risco proibido de ocorrência do resultado.

6.– A punição do crime de homicídio por negligência p. e p. pelo artº 137º do cód. penal, cometido pelo arguido, não se compadece com uma pena de multa, (como decidiu o tribunal recorrido) impondo-se uma pena de prisão, ainda que suspensa na sua execução, nos termos do artº 50º do cód. penal.

(Sumário elaborado pelo relator)

Texto Integral

Acordam, em conferência, os Juízes da 3ª Secção Criminal do
Tribunal da Relação de Lisboa.


RELATÓRIO


No âmbito do processo nº 45/17.1PHSXL, que correu termos no Juízo Local Criminal do Seixal, em processo comum singular, foi o arguido A... N... L..., julgado e condenado por aquele Tribunal nos seguintes termos:

«Em face do exposto, o Tribunal julga a acusação parcialmente procedente e, em conformidade, decide:
a)- Absolver o Arguido A... N... L... da prática de um crime de homicídio negligente, previsto e punido pelo artigo 137º, nº 2, do Código Penal;
b)- Condenar o Arguido A... N... L... pela prática, em 25.08.2017, em autoria imediata, de um crime de homicídio por negligência previsto e punido pelo artigo 137º, nº 1, do Código Penal, na pena de 260 (duzentos e sessenta) dias de multa, à taxa diária de 5,00 EUR (cinco euros), perfazendo o montante total de 1.300,00EUR (mil e trezentos euros);
c)- Condenar o Arguido A... N... L... na pena acessória de proibição de conduzir veículos com motor pelo período de 6 (seis) meses;
d)- Condenar o Arguido no pagamento das custas processuais, fixando-se a taxa de justiça em 3 (três) UC's.
- Julga o pedido de indemnização civil deduzido pela Demandante “Centro Hospitalar Universitário Lisboa Norte, E.P.E” totalmente procedente e, em consequência decide:
e)- Condenar a Demandada “Seguradoras Unidas, S.A.” a pagar à Demandante “Centro Hospitalar Universitário Lisboa Norte, E.P.E.” a quantia de 26.407,52 EUR (vinte e seis mil quatrocentos e sete euros e cinquenta e dois cêntimos), a título de indemnização por conta das despesas hospitalares;
f)- Condenar a Demandada “Seguradoras Unidas, S.A.” a pagar à Demandante “Centro Hospitalar Universitário Lisboa Norte, E.P.E.” juros de mora sobre a quantia referida em e), calculados à taxa legal em vigor para as dívidas de natureza civil, desde a data da sua notificação para deduzir contestação até efetivo e integral pagamento.
g)- Condenar a Demandada “Seguradoras Unidas, S.A.” no pagamento das custas processuais devidas pelo pedido de indemnização civil deduzido pela Demandante “Centro Hospitalar Universitário Lisboa Norte, E.P.E.”.
- E julga o pedido de indemnização civil deduzido pelo Demandante “Instituto da Segurança Social, I. P.” parcialmente procedente e, em consequência, decide:
h)- Condenar a Demandada “Seguradoras Unidas, S.A.” a pagar ao Demandante “Instituto de Segurança Social, I. P.” a quantia de 3.877,57 EUR (três mil oitocentos e setenta e sete euros e cinquenta e sete cêntimos), a título de pensões de sobrevivências pagas por este;
i)- Condenar a Demandada “Seguradoras Unidas, S. A.” a pagar ao Demandante “Instituto de Segurança Social, I. P.” juros de mora calculados à taxa legal em vigor para as dívidas de natureza civil, contabilizados até efetivo e integral pagamento nos seguintes termos: a) sobre a quantia de 2.524,85 EUR desde a data da notificação para contestar; b) sobre a quantia de 670,36 EUR desde a data da notificação da Demandada do requerimento junto a fls. 186 a 187; c) da quantia de 682,36 EUR desde a data da notificação da Demandada do requerimento junto com a referência 23133551.
j)- Absolver a Demandada “Seguradoras Unidas, S.A.” do demais peticionado.
k)- Condenar a Demandada “Seguradoras Unidas, S.A.” e o Demandante “Instituto de Segurança Social, I. P.” nas custas processuais devidas pelo pedido de indemnização civil deduzido por este, na proporção do respetivo decaimento. A Demandada “Seguradoras Unidas, S.A.” é responsabilizada por 75% e o Demandante “Instituto da Segurança Social, I. P.” por 25%.

Mais vai o Arguido advertido de que deve entregar a sua carta de condução na secretaria deste Tribunal ou em qualquer posto policial, no prazo de 10 (dez) dias, a contar do trânsito em julgado da presente sentença (cf. artigo 68º, nº 3, do Código Penal e artigo 500º, nº 2, do Código de Processo Penal), sob pena de incorrer em crime de desobediência.
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Inconformado com a sentença, veio o Ministério Público a interpor o recurso de fls. 315 a 326, tendo apresentado as seguintes conclusões:

«1.– Nos presentes autos, para além do mais, foi condenado o arguido A... L... , como autor material de um crime de homicídio por negligência, p. p. pelo artigo 137º, nº 1 do cód. penal, na pena de 260 dias de multa, à taxa diária de € 5,00, perfazendo o montante total de € 1.300,00, bem com numa pena acessória de proibição de conduzir veículos motorizados pelo período de 6 meses;
2.– O presente recurso incide na qualificação jurídica dos factos dados como provados; sobre a escolha da pena principal de multa, bem como sobre a medida concreta da pena acessória de proibição de condução de veículos motorizados aplicadas na douta sentença ao arguido A... N... L... , que se reputam de inadequadas por excessivamente benévolas;
3.– Com efeito, discordamos com o raciocínio jurídico a quo, quando a Mma Juiz qualificou a atuação do arguido como negligência inconsciente e leve (não foi qualificada como grosseira ou grave), porquanto entendeu que não ficou demonstrado que este se tenha apercebido da possibilidade de atropelar a vítima;
4.– Outrossim, considerou a Mma Juiz que o arguido, agiu, pois, sem representar como possível a ocorrência do evento fatal (cfr. artigo 15º, alínea b), do Código Penal), bem como que o mesmo não agiu com negligência grosseira, pois no seu entendimento, a referida atuação não constituiu um grau superior de violação do dever, ou seja, no caso em concreto, que se estivesse perante um comportamento particularmente perigoso e um resultado de verificação altamente provável à luz da conduta adotada, não se verificando, por isso, a circunstância agravante da negligência prevista no nº 2, do artigo 137º, do Código Penal;
5.– Na opinião da recorrente, a factualidade julgada procedente por provada nos presentes autos é subsumível ao conceito de negligência grosseira e, por conseguinte, a pena aplicável ao arguido terá que ser uma pena de prisão, na medida em que o homicídio por negligência grosseira não comporta, em alternativa, à pena de prisão, a pena de multa, nos termos do disposto no art. 137º, nº 1 e 2 do cód. penal;
6.– In casu, o facto do arguido, nas circunstâncias de tempo e lugar em causa, ter se aproximado do local destinado à travessia de peões de forma desatenta, sem se certificar se, no local destinado para o e feito circulavam peões, bem como, no momento em que A... C... P... se encontrava a atravessar a passadeira, o mesmo não ter imobilizado, nem abrandado a marcha do veículo, colhendo-o, com a parte frontal do veículo, revelam que este conduzia o seu veículo com uma profunda indiferença, descuido e desprezo pelas consequências que pudessem advir dessas violações de regras estradais, designadamente, pela morte ou lesões físicas que pudesse causar a qualquer peão que se encontrasse a proceder à travessia da faixa de rodagem numa passadeira;
7.– A inevitabilidade, a predisposição para a ocorrência de um sinistro rodoviário quando não são observadas as regras estradais supra mencionadas são indissociáveis da marcha de qualquer viatura por parte de um condutor, é indiscutível;
8.– A falta de conformação com a produção de um acidente de viação por parte de um condutor que não respeita as regras básicas de atenção e cuidado aquando da aproximação de uma passadeira, no sentido de permitir a travessia em segurança de peões, sabendo que a existência da referida passadeira leva a que os peões tenham confiança em que, no momento, em que se encontrarem a proceder à sua travessia não sejam colhidos pelos veículos que circulem na faixa de rodagem, consubstancia uma conduta que viola grosseiramente os mais elementares deveres de cuidado;
9.– Não podemos ainda olvidar que, não existiu qualquer outra concausa na produção do resultado morte que mitigasse a culpa e o grau de ilicitude do arguido;
10.– Mesmo que se considerasse negligência inconsciente não deixaria de ser uma negligência grave ou grosseira;
11.– Mesmo que, por mera hipótese académica, considerássemos que a presente factualidade seria suscetível de consubstanciar a prática de um crime de homicídio negligente sem ser na sua vertente grosseira ou grave (art. 137º, nº 1), não seria adequada às exigências gerais e especiais da punição a escolha pela pena de multa (a imposição de uma «mera» sanção patrimonial), em detrimento da pena de prisão, nos termos do disposto no art. 70º do cód. penal. Com efeito, a pena de multa deverá ser reservada para situações de pequena gravidade e não para este tipo de situações em que a censurabilidade das condutas é de molde a causar perturbação social;
12.– Cumpre ponderar o grau de ilicitude dos factos o qual se mostra elevado, em função dos bens jurídicos tutelados, as respetivas consequências, de elevada gravidade;
13.– Mais se pondera o grau de violação dos deveres impostos, as exigências de prevenção geral que se mostram elevadas face ao elevadíssimo número de acidentes rodoviários ocorridos em Portugal responsáveis por inúmeros feridos graves e mortos, consabido que a sinistralidade estradal com consequências gravosas tem persistido, entre nós;
14.– Revelam-se também prementes as necessidades de se efetuar uma resposta punitiva que promova uma eficaz recuperação do arguido, prevenindo a prática de comportamentos da mesma natureza, de modo a que passe a comportar-se de forma responsável, designadamente no que tange à vida humana, fazendo-lhe sentir a anti juridicidade e gravidade da sua conduta.
15.– Pondera-se ainda o facto do arguido se mostrar social e familiarmente inserido, e a ausência de antecedentes criminais.
16.– Ponderadas estas circunstâncias e, bem assim, o limite máximo consentido pelo grau de culpa e os princípios político-criminais da proporcionalidade e necessidade, consideramos justo e adequado que o arguido seja condenado, pela prática de um crime de homicídio por negligência previsto e punido pelo artigo 137º nº 1 e nº 2 do Código Penal na pena não inferior a 13 meses de prisão;
17.– Considerando que o Código Penal traça, confessadamente, um sistema punitivo que arranca do pensamento fundamental de que as penas devem ser executadas com um sentido pedagógico e de ressocialização, objetivo que a existência da própria prisão parece comprometer, entendemos, não obstante as considerações acima tecidas acerca da gravidade dos factos imputados ao arguido, ser ainda possível fazer um juízo de prognose favorável no sentido de que a simples censura do facto e a ameaça de prisão realizam de forma adequada e suficiente as finalidades da punição e que o arguido não mais praticará factos ilícitos, termos em que se considera ser adequada a aplicação de suspensão da execução da pena de 13 meses de prisão, por igual período, ao abrigo do preceituado no artigo 50º nº 1 e 5 do Código Penal;
18.– No que tange à pena acessória de proibição de conduzir veículos motorizados, pelos mesmos motivos supra expostos, entendemos que a pena acessória aplicada de proibição de conduzir veículos motorizados pelo período de 6 meses é manifestamente insuficiente e desadequada face à gravidade da conduta e suas consequências;
19.– Com efeito, entendemos que será adequado aplicar uma pena acessória de proibição de conduzir ao arguido em período não inferior a 10 meses;
Nestes termos, deve o presente recurso ser julgado procedente por provado e, em consequência disso, revogada e substituída a douta sentença proferida pela Mmª Juiz a quo por outra que determine a condenação do arguido A... L... , como autor material e na forma consumada, pela prática de um crime de homicídio por negligência grosseira, p. p. pelo art. 137º, nº 1 e 2 do cód. penal, numa pena de prisão não inferior a 13 meses, suspensa na sua execução por igual período, nos termos do disposto no artigo 50º, nº 1 e 5 do cód. penal, bem como revogar e substituir a pena acessória de proibição de conduzir veículos motorizados aplicada ao arguido, por uma pena acessória não inferior a 10 meses de proibição de conduzir veículos motorizados, assim se fazendo Justiça».
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Tendo sido dado cumprimento ao disposto no artº 413º nº 1 do cód. procº penal, respondeu o arguido, A... N... L... , nos termos de fls. 333 a 338 defendendo a improcedência do recurso e concluído:

«1.– O presente recurso está centrado na impugnação da decisão sobre: “a qualificação jurídica dos factos dados como provados; sobre a escolha da pena principal de multa, bem como sobre a medida concreta da pena acessória de proibição de condução de veículos motorizados aplicadas na douta sentença ao arguido A... N... L... , que se reputam de inadequadas por excessivamente benévolas”.
2.– Versando, segundo o Ministério Público, sobre matéria de direito. Considerando o Ministério Publico, na pessoa da sua digna magistrada, que a questão que se coloca é a de saber se a factualidade julgada como provada nos presentes autos, que é incontroversa, consubstancia ou não uma situação de negligência grosseira.
3.– Ora, salvo o devido respeito, entendemos que a douta decisão do tribunal a quo em qualificar a atuação do arguido como negligência inconsciente e leve (não foi qualificada como grosseira ou grave), foi a acertada e que desde já louvamos, porquanto entendeu o douto tribunal que não ficou demonstrado que este se tenha apercebido da possibilidade de atropelar a vítima, tendo considerado a Mmº Juiz que o arguido, agiu, pois, sem representar como possível a ocorrência do evento fatal (cfr. artigo 15º, alínea b), do Código Penal), bem como que o mesmo não agiu com negligência grosseira, pois no seu entendimento, a referida atuação não constituiu um grau superior de violação do dever, ou seja, no caso em concreto, que se estivesse perante um comportamento particularmente perigoso e um resultado de verificação altamente provável à luz da conduta adotada.
4.– Tendo o tribunal a quo, considerado e bem, que dos factos dados como provados, não resulta que a violação do dever de cuidado perpetrada pelo arguido tenha sido especialmente leviana ou descuidada, plasmando qualidades particularmente censuráveis de irresponsabilidade e insensatez, não se verificando, por isso, a circunstância agravante da negligência prevista no nº 2, do artigo 137º, do Código Penal.
5.– Posição com a qual concordamos na integra e que tem apoio na jurisprudência dominante, pois de facto os factos dados como provados e o que resultou na da prova produzida em audiência de discussão e julgamento, nunca se poderiam subsumir no crime de negligencia grosseira, p. e p. no nº 2 do art. 137º do Código penal.
6.– E tal conclusão apoia-se no acórdão do STJ de 29.04.1998 8 (SJ199804290001493), que em resumo indica que: "II. A negligência simples consiste na violação do dever objectivo de cuidado ou dever de diligência, aferido por um homem médio. III - A negligência só deve ser qualificada de grosseira quando for grave a violação do dever de cuidado, de atenção e de prudência, grave omissão das cautelas necessárias para evitar a realização do facto antijurídico, ou seja, quando não se observou o cuidado exigido de forma pouco habitual ou não se observou o que, no caso concreto, resultaria evidente para qualquer pessoa”.
7.–Tal como no acórdão 3840/03 do Tribunal da Relação de Coimbra, de 21.01.2004, que em resumo indica: "A negligência grosseira deve ser aferida não só a nível da culpa, mas também do ilícito, posto que o comportamento do agente deve ser visto e analisado, por um lado, através da atitude particularmente censurável de leviandade ou descuido do agente e, por outro lado, a partir da perigosidade do próprio comportamento e da probabilidade do resultado à luz da conduta adoptada". "Só o comportamento particularmente censurável, postergador de cuidados básicos ou revelador de elevado grau de irreflexão ou insensatez e gerador de perigo quase certo, deve ser tido como integrador da negligência grosseira", "pois, esta forma qualificada da culpa negligente deve ser aferida não só a nível da culpa, mas também do ilícito, posto que o comportamento do agente deve ser visto e analisado, por um lado, através da atitude particularmente censurável de leviandade ou descuido do agente e, por outro lado, a partir da perigosidade do próprio comportamento e da probabilidade de verificação do resultado à luz da conduta adoptada (Cfr. Figueiredo Dias, Temas Básicos da Doutrina Penal (2001), 380/381.)." "Como escrevemos no acórdão desta Relação de 99.01.13, publicado na CJ, XXIV, I, 43, o art.137º, nº 2, do Código Penal, ao aludir a negligência grosseira pretende abranger aqueles casos em que, de forma mais flagrante e notória, se omitem os cuidados mais elementares (básicos) que devem ser observados, ou aquelas situações em que o agente se comporta com elevado grau de imprudência, revelando grande irreflexão e insensatez. Por outro lado, como no referido acórdão também consignámos, na determinação desta forma qualificada da culpa negligente, consabido que a negligência consiste na violação de um dever objetivo de cuidado, deverá averiguar-se a medida da divergência entre a conduta do agente e a conduta exigível e que devia ter sido assumida, partindo das regras de cuidado que devem ser tomadas em cada caso concreto. É evidente que quanto maior for a medida da divergência mais facilmente se poderá concluir pela ocorrência de negligência grosseira.”
8.–Realçando-se ainda que a violação de regra de trânsito qualificada como contra- ordenação grave, como é o caso dos autos -, não basta, só por si, para caracterizar o comportamento negligente daí resultante como qualificado, (Cfr. Germano Marques da Silva, Crimes Rodoviários (1996), 51/52, o qual defende que nem mesmo as contra-ordenações qualificadas no Código da Estrada de muito graves correspondem à culpa grosseira nem devem servir de critério para qualificar de grosseira a violação das regras de circulação rodoviária).
9.–Sendo que no caso vertente não existem elementos de prova que permitam concluir que o arguido se comportou de forma particularmente censurável, pois que desconhece-se a exata medida da divergência entre a conduta daquele e a conduta exigível, isto é, apenas sabemos que aquele violou as regras consagradas no Código da Estrada, sem que saibamos a medida em que postergou aquelas, tanto mais que não se apurou a velocidade a que o mesmo circulava, sendo certo que o legislador ao criar um tipo qualificado de homicídio negligente, não teve em vista abranger comportamentos que, conquanto negligentes, não constituem um grau essencialmente aumentado ou expandido de negligência, (Cfr. Figueiredo Dias, ibidem, ibidem.).
10.–Assim sendo, há que concluir que ao arguido apenas é imputável o crime de homicídio por negligência do art. 137º, nº 1, do Código Penal. Crime pelo qual foi devidamente censurado e sancionado.
11.–Sendo que a determinação da medida concreta das penas principal e acessória não nos merece qualquer censura, e as quais desde já louvamos. Pois, Tal como indica o venerando Juiz Conselheiro José Souto Moura, no seu trabalho sobre a jurisprudência do S.T.J sobre a fundamentação e critérios da escolha e medida da pena, in www.stj.pt - 2018/01 – Souto Moura escolha medida pena:
“Como se sabe, o artº 70º do cód. penal estabelece, com clareza, uma preferência pelas penas não detentivas, sempre que tal se mostre possível. Diz aquele preceito que, ‘Se ao crime forem aplicáveis, em alternativa, pena privativa e pena não privativa da liberdade, o tribunal dá preferência à segunda sempre que esta realizar de forma adequada e suficiente as finalidades da punição’. Na medida em que o artº 70º do cód. penal, elege como critério da escolha da pena a melhor prossecução das finalidades da punição, na aplicação deste preceito importa, naturalmente, ter em atenção o disposto no artº 40º do mesmo cód. penal. O qual, como se verá adiante, atribui à pena, sempre, um fim utilitário, pelo menos de acordo com a leitura largamente maioritária que é feita do preceito. Assim sendo, a culpa, ou o grau de culpa, não são realidades a ponderar especificamente na tarefa de escolher a espécie da pena, antes têm o seu campo de incidência, privilegiado, na escolha da medida da pena. Daí que importe ver, se a opção pela pena de prisão se mostra necessária, adequada e proporcionada, ao serviço dos 3 objectivos da prevenção geral e especial”.
12.–Pelo que neste sentido, e também concordando com a fundamentação na douta sentença, quanto á escolha da medida das penas, que desde já subscrevemos, entendemos não existir nenhum reparo ou alteração a fazer. Sendo, que as exigências de prevenção no caso em apreço, ficam devidamente satisfeitas e de forma adequada e suficiente somente com a aplicação de pena de multa de 260 (duzentos e sessenta) dias, assim como a pena acessória de proibição de condução de veículos com motor pelo período de 6 (seis) meses.
13.–Pelo exposto, decidiu e muito bem o tribunal a quo, quer na qualificação jurídica dos factos dados como provados, quer na escolha das penas e das suas medidas, não nos merecendo nenhum reparo quanto a essas questões.
Termos em que deve a sentença objecto de recurso ser confirmada, negando-se provimento ao recurso interposto. Fazendo-se, assim, a habitual e necessária Justiça».
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Neste Tribunal a Exmª Procuradora-Geral Adjunta emitiu o Douto Parecer de fls. 348/349, no qual defendeu a procedência do recurso interposto pelo Ministério Público.
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O recurso foi tempestivo, legítimo e correctamente admitido.

Colhidos os vistos, cumpre decidir.
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FUNDAMENTOS

O âmbito do recurso é delimitado pelas conclusões, extraídas pelo recorrente, da respectiva motivação (1), que, no caso "sub judice", se circunscreve às seguintes questões:
a)- Qualificação jurídica dos factos, no sentido de apurar se a conduta negligente se deve enquadrar na categoria da negligência grosseira a que se reporta o artº 137º nº 2 do cód. penal;
b)- Medida das penas, principal e acessória, que o recorrente pretende ver agravadas.

FACTOS PROVADOS

O Tribunal “a quo” deu como provados os seguintes factos:
1.No dia 25 de Agosto de 2017, cerca das 12:39horas, o Arguido A... N... L... conduzia o veículo ligeiro de passageiros marca “Renault”, modelo “Clio”, de matrícula 60-2- -- , na Avenida ... Natural ... - A..., Sentido A... - Quinta M....
2.Nessas circunstâncias de tempo e lugar, A... C... P... , que circulava apeado, iniciou a travessia da faixa de rodagem no local destinado ao atravessamento de peões (passadeira), da direita para a esquerda atento o sentido de marcha do veículo de matrícula 60-2- -- .
3.Quando A... C... P... se encontrava a atravessar a passadeira, o Arguido A... N... L... não imobilizou nem abrandou a marcha do veículo, colhendo, com a parte frontal do veículo A... C... P... .
4.Com o embate, A... C... P... bateu com a cabeça no vidro frontal do veículo 60-2- -- e foi projetado para o chão, a cerca de 12,3 metros do local do impacto.
5.A passadeira para peões está devidamente assinalada no solo e por sinal vertical.
6.O local é constituído por duas vias de trânsito, cada uma destinada a um sentido, com largura total de 9,9 metros, ladeadas por passeio, o qual, no local onde A... C... P... se encontrava tem largura de 2,1metros.
7.A velocidade máxima permitida é de 50km/hr.
8.O tempo estava bom e o pavimento seco.
9.A... C... P... foi transportado para o Hospital de Santa Maria em Lisboa, no dia 25.08.2017, local onde faleceu no dia 01.09.2017.
10.Como consequência direta e necessária do embate no veículo de matrícula 60-2- --, A... C... P... sofreu lesão traumática crânio-encefálica.
11.As lesões físicas descritas foram causa direta e necessária da morte de A... C... P... e consequência direta e adequada do embate provocado pelo Arguido.
12.O Arguido, nas circunstâncias supra descritas aproximou-se do local destinado à travessia de peões, conduzindo o veículo de forma desatenta, sem se certificar se no local destinado para o efeito circulavam peões, designadamente A... C... P..., de forma a garantir a sua segurança e a segurança daqueles que pudessem atravessar o local.
13.Ao não abrandar e parar o veículo no local destinado à passagem de peões, devidamente assinalado, fê-lo com manifesta falta de cuidado, omitindo o dever de cuidado que, de acordo com as suas probabilidades e circunstâncias, deveria ter tido e do qual era capaz, no sentido de evitar o atropelamento, dando assim causa ao mesmo, com desrespeito por regras elementares de condução, cujo cumprimento bem sabia ser-lhe exigível.
14.O exercício da condução da forma descrita, olvidando os mais elementares deveres de precaução e cautela, determinou que o arguido não evitasse o acentuado perigo que desencadeou e o grave resultado que adequadamente causou - a morte de A... C... P... -, apesar de esse perigo ser pessoalmente evitável, como o seria pela generalidade das pessoas com as qualidades e as capacidades do arguido.
15.O arguido atuou bem sabendo que deveria conduzir com cautela e que ao agir do modo descrito punha em risco a circulação rodoviária e a integridade física dos peões.

Do pedido de indemnização civil deduzido pelo “Instituto da Segurança Social, I.P.”

16.O “Instituto de Segurança Social, I.P.”, através do Centro Nacional de Pensões, pagou, relativamente ao beneficiário A... C... P... , a quantia de 1.263,96 EUR (mil duzentos e sessenta e três euros e noventa e seis cêntimos) a V... S... M... C..., a título de subsídio por morte.
17.O “Instituto de Segurança Social, I.P.”, através do Centro Nacional de Pensões pagou, relativamente ao beneficiário A... C... P... , a quantia de 3.877,57 EUR (três mil oitocentos e setenta e sete euros e cinquenta e sete cêntimos), a título de pensões de sobrevivência a Laurinda C... A... P... N....
18.Laurinda C… A… era casada com A... C... P... à data do óbito deste.

Do pedido de indemnização civil deduzido pelo “Centro Hospitalar Universitário Lisboa Norte, E.P.E."

19.Em consequência do mencionado em 10), a Demandante “Centro Hospitalar Universitário Lisboa Norte, E.P.E.” prestou, no exercício da sua atividade, assistência hospitalar a A... C... P..., no serviço de medicina intensiva de 25.08.2017 a 01.09.2018, em episódio de internamento (GDH 20 - Craniotomia por traumatismo- grau de severidade 4).
20.Em consequência do mencionado em 21), a Demandante “Centro Hospitalar Universitário Lisboa Norte, E.P.E.” emitiu a fatura nº 20181/0000015659, em 21.11.2018, no valor de 26.407,52 EUR (vinte e seis mil quatrocentos e sete euros e cinquenta e dois cêntimos).
21.À data do sinistro, a responsabilidade civil por danos causados a terceiros emergentes da circulação do veículo com a matrícula 60-2- -- , encontrava-se transferida para a Demandada “Seguradoras Unidas, S.A.”, por contrato de seguro titulado pela apólice nº 0004079595.

Mais ficou provado que:
22.Após embater em A... C... P... , o Arguido ainda seguiu com o seu veículo alguns metros.
23.A... C... P... foi observado em consulta de Neurocirurgia, no Hospital Garcia de Orta, em 2014, data em que foi diagnosticado com lesão extra-axial do ângulo ponto cerebeloso esquerdo, provável schw anoma vestibular, tendo-lhe sido proposta cirurgia várias vezes, mas tendo aquele recusado.

Das condições pessoais do Arguido:
24.O Arguido reside com a companheira.
25.O Arguido tem um filho, com 31 (trinta e um) anos de idade.
26.O Arguido é eletromecânico, estando atualmente desempregado.
27.A companheira do Arguido encontra-se atualmente desempregada, auferindo cerca de 600,00 EUR (seiscentos euros) mensais, a título de subsídio de desemprego.
28.O Arguido não paga renda de casa ou prestação bancária por conta da habitação onde reside.
29.O Arguido paga entre 20,00 EUR (vinte euros) a 30,00 EUR (trinta euros) mensais, por conta de despesas medicamentosas.
30.O Arguido tem como habilitações literárias o 12º (décimo segundo) ano de escolaridade.
31.O Arguido tem carta de condução há cerca de 36 (trinta e seis) anos.
32.O Arguido não tem contraordenações estradais averbadas.
33.O Arguido não tem antecedentes criminais.
*

Factos não provados
Com relevância para a decisão, não se encontram provados quaisquer outros factos para além dos acima indicados ou que estejam em contradição com os mesmos, designadamente os que a seguir se enunciam:
a)- O vertido em 23) agravou a lesão decorrente do sinistro e aludida em 10).
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Motivação da matéria de facto pelo Tribunal “a quo”
«A convicção do Tribunal assentou na análise crítica e concatenada dos elementos probatórios produzidos nos presentes autos, que, à exceção dos que configuram prova “tarifada”, foram apreciados segundo as regras da experiência comum e a livre convicção do julgador (cfr. artigo 127º, do Código de Processo Penal).
Note-se que, a liberdade do convencimento, que conforma o modelo da livre apreciação da prova, não deverá ser confundida com a apreciação arbitrária da prova, sendo antes um critério de justiça que não prescinde da verdade histórica das situações. Assim, cada prova produzida deverá ser valorada com a segurança oferecida pela mesma (quando considerada isoladamente), bem como deverá ser ponderada com o confronto com os demais elementos probatórios validamente carreados para os autos, de forma a que a decisão sobre a prova seja uma decisão justa, suficientemente segura em termos de corroboração factual e coerente com a realidade e o normal acontecer dos factos.
Destarte, o princípio da livre apreciação da prova deve ser reconduzível a critérios objetivos, racionais e que estejam de acordo com as regras comuns da lógica, da razão, das máximas da experiência e dos conhecimentos científicos. Cumpre, ainda, salientar, que a tarefa do julgador na decisão da matéria de facto está necessariamente condicionada pelos limites do conhecimento humano.
Acresce que, o grau de convicção do Tribunal não é em grau absoluto, na medida em que a verdade a que se chega no processo não é uma verdade obtida a qualquer custo, mas uma verdade processual ou prática, com inerentes limitações temporais, legais e constitucionais.
Por outro lado, o Tribunal tem, ainda, o dever de conciliar a verdade material com o princípio constitucionalmente consagrado da presunção da inocência (cfr. artigo 32º nº 2, da Constituição da República Portuguesa), que estabelece que no caso de dúvida razoável o Tribunal deve absolver o arguido. Note-se que, a dúvida que leva o Tribunal a decidir “pro reo” tem de ser uma dúvida positiva, uma dúvida racional que ilida a certeza contrária ou, por outras palavras, uma dúvida que impeça a convicção do Tribunal.
Nesta senda, a convicção de que determinados factos aconteceram deverá ancorar-se na ponderação conjugada dos vários elementos probatórios produzidos em audiência de julgamento, chegando o Tribunal à conclusão, sem dúvida razoável, que eles aconteceram, não havendo outra explicação lógica e plausível para os mesmos.
Feito este breve enquadramento sobre os princípios que regem a prova e a sua apreciação em processo penal, reportemo-nos aos presentes autos e à análise crítica da prova produzida.
No caso sub judice, o Tribunal estribou a sua convicção na articulação das regras da experiência comum com o teor do auto de notícia junto a fls. 2 a 2v, no aditamento junto a fls. 9, no assento de óbito junto a fls. 4, nas cópias dos cartões de cidadão juntas a fls. 5 a 6v, na participação do acidente junta a fls. 7 a 8, no croqui junto a fls. 9 e 10, na folha de suporte TESTE ORATEC III junta a fls. 11, nas fotografias juntas a fls. 12 a 18/69 a 75/252 a 258, nos relatórios médicos juntos a fls. 34 a 36, na informação prestada pela ANSR junta a fls. 55, no relatório de exame químico toxicológico junto a fls. 59, da informação prestada pela “Tranquilidade” junta a fls. 96 a 99, do relatório de autópsia médico-legal junta a fls. 108 a 110v, das certidões emitidas pelo “Instituto da Segurança Social, I. P.” juntas a fls. 143, 144, 187 e 188 e com a referência 23133551, da fatura junta a fls. 156/161, das condições particulares da apólice juntas a fls. 176v a 177v, do relatório clínico junto a fs. 181, do certificado de registo criminal junto a fls. 183, da lista exaustiva de episódios junta a fls. 197 a 199, do processo clínico junto a fls. 203 a 230, do relatório de alta junto a fls. 232 e 233, do atestado junto a fls. 235/240, do parecer da PSP junto aos autos a fls. 148 e 249, das declarações prestadas pelo Arguido e do depoimento das testemunhas (Jorge … D…, Laurinda C…, Jorge … B…, Maria J… D…, Evanir A… e Joana L…).

Concretizando.

No que concerne às circunstâncias de tempo e local do sinistro, bem como à viatura conduzida pelo Arguido e o sentido em que a mesma se deslocava, i.e. ao facto vertido no ponto 1), o Tribunal fundou a sua convicção, essencialmente, no teor das declarações prestadas pelo Arguido, em sede de audiência de discussão e julgamento, o qual descreveu, de forma coincidente com a acusação, o veículo e sentido em que o mesmo se deslocava.
Mais teve o Tribunal em consideração, para considerar esta factualidade como provada, o teor do auto de notícia junto a fls. 2 e da participação do acidente junta a fls. 7 e 8 - nos quais é descrito o local e tempo em que ocorreu o sinistro e a descrição do veículo conduzido pelo Arguido.
Relativamente à dinâmica do sinistro, cumpre, antes do mais, referir que os acidentes de viação, atenta a rapidez em que ocorrem, bem como as consequências pessoais graves, associadas à componente emocional inerente a estes eventos trágicos, acarretam, as mais das vezes, visões parciais dos factos, imprecisões ou contradições, as quais não são, necessariamente, decorrentes de má-fé. Concomitantemente, só a ponderação e concatenação de todo o conjunto da prova produzida nos presentes autos permitiu a reconstituição da dinâmica do acidente e, por conseguinte, formar a convicção do Tribunal.
Destarte, para considerar os factos consignados nos pontos nºs 2), 3), 4), 12) e 22), o Tribunal atendeu, desde logo, ao teor do auto de notícia junto a fls. 2 a 3 e a participação do acidente junta a fls. 7 a 8 - nos quais é referida, designadamente, a via na qual ocorreu o sinistro em causa nos presentes autos e a identificação das pessoas e veículo automóvel intervenientes no mesmo - e bem assim ao croqui junto a fls. 9 e 10 (cujo teor foi corroborado pela testemunha Jorge M… B…, agente da P.S.P. que o elaborou) - do qual resulta, nomeadamente, a posição da vítima e do veículo no momento em que os agentes da P.S.P. chegaram ao local.
Especialmente esclarecedoras foram, outrossim, as fotografias juntas aos autos a fls. 12 a 18/69 a 75/252 a 258, mormente no que tange à posição e estado final, quer do veículo interveniente nos autos, quer da própria vítima. Na verdade, destas fotografias (captadas pela P.S.P. no local do sinistro) resulta que a parte danificada no veículo se situa no vidro da frente (o denominado para-brisas), entre o meio do veículo e o lado esquerdo (ou seja, o do condutor), bem como no capô do veículo, do lado da frente, sensivelmente ao meio do veículo. Ora, extrai-se, assim, das fotografias juntas aos autos, que o ponto de colisão entre o veículo e o peão ocorreu na parte central do veículo, porquanto é nesse local que se encontram os danos na viatura, causados pelo embate.
Refira-se que a testemunha Jorge M… B… - o qual prestou um depoimento que se afigurou como credível, atenta a isenção e objetividade pautada no mesmo - descreveu, de forma coincidente com as fotografias, os danos verificados no veículo em causa, confirmando que os mesmos são aqueles que constam da fotografia de fls. 74 (quando confrontado com esta).
Por outro lado, não poderá deixar de se considerar que o ponto de colisão ocorreu sensivelmente ao meio da via de trânsito (mais concretamente, ao meio da passadeira). Com efeito, tendo o ponto de colisão ocorrido no meio do veículo, teria que o embate, atentas as regras da experiência comum, ocorrido, outrossim, no meio da via. Ademais, o Arguido nas declarações prestadas em sede de audiência de discussão e julgamento, admitiu que o peão já ia “mais ou menos” a meio da passadeira, tendo o embate ocorrido a meio da passadeira, na parte da frente do veículo. Quando confrontado com a fotografia de fls. 70 o Arguido confirmou, ainda, a localização do ponto de conflito indicada naquela fotografia.
Ora, tendo o embate ocorrido sensivelmente a meio da passadeira e atentas as características da via consignadas como provadas (cfr. ponto nº 6), da matéria de facto provada), não poderá deixar de se concluir, atentas as regras de experiência comum, que no momento em que o peão, A... C... P... , iniciou a travessia da passadeira, o Arguido já estaria a circular na via, sem que tenha imobilizado ou abrandado o veículo por si conduzido, porquanto caso o tivesse efetuado não teria ocorrido o embate. Note-se, pois, que o peão aquando do embate já teria percorrido uma tal distância do passeio que, permitia ser percecionável pelo condutor do veículo, i.e. pelo Arguido, e a qual não é compatível com a versão de que o mesmo iniciou a marcha na travessia para peões de forma inesperada e repentina. Assim e por inexistir qualquer obstáculo que tivesse impedido o Arguido de ver o peão a atravessar a via, sempre se conclui que o Arguido só não viu este peão por seguir desatento e sem cuidar de ver toda a estrada na sua extensão.
Acresce que, atentas as regras da experiência comum, a extensão dos danos causados no veículo automóvel e acima referidos não são de molde a concluir que o embate se deu a uma velocidade compatível com a paragem ou abrandamento do veículo, já que o impacto necessário (entre o veículo e o peão) a provocar tais danos não é compatível com aquele produzido caso o veículo estivesse imobilizado (e iniciasse naquele momento a marcha) ou estivesse a circular a uma velocidade bastante reduzida.
Refira-se, ainda que, não obstante o Arguido, em sede de audiência de discussão e julgamento, tivesse negado os factos consignados como provados e apresentado uma versão distinta da dinâmica do acidente daquela descrita na acusação, certo é que a versão veiculada pelo mesmo não é compatível com os demais elementos de prova carreados para os autos e acima aludidos.
O Arguido referiu que ao aproximar-se da passadeira verificou que também estava um peão a aproximar-se e que imobilizou o veículo junto ao traço existente antes da mesma. Todavia, segundo o Arguido, o peão não iniciou a travessia da passadeira, porquanto se virou para a esquerda (para o passeio) para falar com outro peão que vinha a cerca de trinta metros, pelo que atenta a atitude da vítima, o Arguido engrenou a mudança e iniciou a marcha, e quando olhou para a frente ouviu um estrondo, foi quando se apercebeu que o peão já estava em cima do veículo, não tendo a reação de travar de imediato. Mencionou ainda que, nunca visualizou o peão a atravessar a passadeira porquanto quando engrenou a mudança estava a olhar para esta (que tinha uma “folga”) e depois quando olhou para a frente foi quando embateu, tendo o seu veículo apenas imprimido a velocidade de cerca de 3-4km/hora.
Ora, conforme acima aludido, não só os danos causados no veículo e o ponto de conflito, em conjugação com as regras da experiência comum, demonstram que o peão não iniciou repentinamente a travessia na passadeira no momento em que o veículo automóvel iniciou a marcha, como a velocidade do veículo não poderia ser de apenas 3-4km/hora, aquando do embate.
Atente-se, ainda, que a testemunha Jorge M… B…, agente da P.S.P., afiançou ao Tribunal que, de acordo com a sua experiência profissional, considera que o veículo conduzido pelo Arguido deveria circular a cerca de 30-40km/h e que mesmo que o veículo estivesse parado e que tivesse ocorrido um arranque “brusco” os danos não seriam da extensão dos verificados nos autos.
Por outro lado, o teor do parecer elaborado pela P.S.P. e junto aos autos a fls. 248 e 249, contraria a versão carreada para os autos pelo Arguido, dando, antes, sustentabilidade à factualidade consignada como provada. Com efeito, é pugnado no aludido relatório que a “probabilidade de o veículo ter iniciado a marcha na linha inicial de passagem para peões é pouco credível, já que a distância entre a linha inicial e o ponto de conflito é cerca de 3 metros, logo o espaço é reduzido para que o veiculo atingisse uma velocidade tal que provocasse os danos que se vieram a verificar em consequência do acidente (...) considero os danos provados em consequência do acidente a viatura estaria a circular a uma velocidade inadequada para as características da via, já que a visibilidade era bastante boa e não existiam obstáculos urbanos que impedissem a visibilidade do condutor sobre os peões que pretendiam efectuar o atravessamento da via na passagem para peões, tendo em conta a hora a que ocorreu o atropelamento, e que o condutor não se encontrava totalmente concentrado no acto da condução, já que o peão é visível pelo menos a cerca de 20 metros e não se verificou qualquer manobra de evasão nomeadamente tentativa de imobilizar o veiculo através da travagem do mesmo (...) ”.

Cumpre ainda anotar que, não obstante a testemunha Jorge M... F... D..., sobrinho da vítima, tivesse afiançado no seu depoimento que o veículo conduzido pelo Arguido esteve imobilizado antes do sinistro, certo é que o depoimento desta testemunha não mereceu a credibilidade do Tribunal, não só atentas as contradições pautadas no decurso do mesmo, mas, outrossim, atendendo a que a versão relatada pela testemunha se mostra pouco plausível. Com efeito, a testemunha menciona que o veículo se encontrava imobilizado há cerca de vinte minutos, o que se mostra pouco verosímil, atentas não só as características da via - mormente “poder ser” uma via movimentada, tal como descreveu a testemunha Jorge M… B… -, como pelo facto da própria testemunha descrever que se encontravam mais três veículos atrás do veículo do Arguido, os quais não buzinaram durante aquele período, não se encontrando outras pessoas a atravessar a faixa de rodagem, nem havendo sinais luminosos de trânsito (i.e. semáforos). Por outro lado, sem deixar de se considerar que a rápida dinâmica dos acontecimentos e o decurso do tempo podem naturalmente interferir na memória da testemunha, designadamente sobre os concretos acontecimentos e a sua exata sucessão, certo é que ao relatar os mesmos a testemunha entrou em contradições, as quais abalam o seu depoimento (v.g. descreveu, num primeiro momento, que o seu tio, i.e. a vítima, foi logo projetada após o embate e o veículo ainda circulou, tendo, posteriormente mencionado que visualizou o veículo a circular e só quando este parou é que a vítima foi projetada - não obstante ter mencionado, outrossim, não ter visualizado o embate, já que só terá olhado para trás depois de ter ouvido o estrondo do embate).

Por sua vez, a testemunha Evanir A…, ex-colega de trabalho do Arguido, descreveu que o veículo conduzido por este “parou” antes a passadeira. Sucede que, o seu depoimento não foi de molde a lograr a convencer o Tribunal da sua veracidade, uma vez que a testemunha não denotou objetividade e equidistância no seu depoimento. Com efeito, não se mostra coerente que testemunha tenha visualizado o veículo conduzido pelo Arguido a parar (pese embora tenha referido que se encontrava outro veículo à sua frente), mas não tenha reparado em mais nenhum facto relevante para os autos, mormente a presença de peões ou mesmo o embate.

Destarte, considerando toda a prova carreada para os autos, a qual foi analisada conjuntamente, o Tribunal formou a convicção que o acidente ocorreu nos termos descritos na acusação pública.

No que tange à configuração da via, as suas medidas, o estado do tempo e do piso, à velocidade permitida para o local, à sinalização da passadeira para peões, i.e. à factualidade elencada nos pontos nºs 5), 6), 7) e 8), o Tribunal formou a sua convicção com base na participação de acidente junta a fls. 7 a 8, do croqui junto a fls. 9 e 10 e das fotografias juntas a fls. 12 a 18/69 a 75/252 a 258.

No que concerne às consequências que advieram para a vítima A... C... P... e ao facto deste ter sido transportado para o “Hospital de Santa Maria” e assistido pelo “Centro Hospitalar Universitário Lisboa Norte, E.P.E.”, i.e. à factualidade ínsita nos pontos nºs 9), 10), 11) e 19), o Tribunal atendeu, desde logo ao auto de notícia junto a fls. 2 a 3, ao assento de óbito junto a fls. 4, à participação de acidente junta a fls. 7 a 8, nos relatórios médicos juntos a fls. 34 a 36, do processo clínico junto a fls. 203 a 230 e do relatório de alta junto a fls. 232 e 233.

Ademais e no que concerne especificamente às consequências do acidente, o Tribunal atendeu ao relatório de autópsia médico-legal junta a fls. 108 a 110, na qual se conclui que “1.- A morte de A... C... P... foi devido as lesões traumáticas crânio-encefálicas, compatíveis com informação circunstancial de atropelamento. 2. Esta constitui causa de morte não natural, - violenta de etiologia médico-legal acidental”.

Refira-se que, a perícia presume-se subtraída à livre apreciação do julgador, só sendo livremente valorada se o julgador divergir do juízo contido no parecer pericial (cfr. artigo 163º, do Código de Processo Penal). No caso em dissídio não se vê motivo para pôr em crise a perícia realizada, explanada no relatório de autópsia médico-legal junta a fls. 108 a 110.

No que concerne aos elementos subjetivos, i.e. à factualidade elencada nos pontos nºs 13), 14) e 15), os mesmos resultaram da conjugação da conduta objetiva do Arguido e que se deu como provada com as regras da experiência comum e da normalidade da vida.

Em relação aos pagamentos efetuados pelo “Instituto da Segurança Social, I.P.”, i.e. aos factos vertidos nos pontos nºs 16) e 17), o Tribunal teve em consideração o teor das certidões emitidas pelo “Instituto da Segurança Social, I. P.” juntas a fls. 143, 144, 187 e 188 e com a referência 23133551.

A relação estabelecida entre Laurinda C… e A... C... P... , i.e. à factualidade descrita sob o ponto nº 18), resulta do teor do assento de óbito junto a fls. 4.

Relativamente à fatura emitida pelo “Centro Hospitalar Universitário Lisboa Norte, E.P.E.”, i.e. ao facto consignado no ponto nº 20), o Tribunal atendeu à fatura junta aos autos a fls. fatura junta a fls. 156/161, em conjugação com o teor do depoimento prestado pela testemunha Maria J... D..., a qual trabalha nos serviços financeiros do “Centro Hospitalar Lisboa Norte, E.P.E”, a qual confirmou a fatura, que a mesma não se encontra ainda paga e reconheceu a assinatura aposta na mesma.

No que se refere ao contrato de seguro celebrado com a Demandada “Seguradoras Unidas, S.A.”, i.e. ao facto vertido no ponto nº 21), o Tribunal atendeu ao teor das condições particulares da apólice juntas a fls. 176v a 177v.

Relativamente à factualidade ínsita no ponto nº 23), ou seja, à lesão que foi diagnosticada a A... C... P... em 2014, o Tribunal atendeu ao do atestado junto a fls. 235/240.

No que respeita à condição social, económica e pessoal do Arguido, i.e. aos factos vertidos nos pontos nºs 24), 25), 26), 27), 28), 29), 30) e 31), foram tidas em conta as declarações do mesmo, que quanto às mesmas se afiguraram espontâneas e sinceras, não vislumbrando o Tribunal qualquer razão para que as mesmas fossem postas em causa.

A respeito da inexistência contraordenações estradais averbadas, i.e. factualidade elencada no ponto nº 32), foi determinante o teor da informação prestada pela ANSR junta a fls. 55.

A prova da ausência de antecedentes criminais do Arguido, i.e. factualidade elencada no ponto nº 33), assentou na análise do respetivo certificado de registo criminal junto a fls. 183.

No que concerne à factualidade consignada por não provada, o Tribunal considerou que não foi carreada para os autos prova suficiente para sustentar a convicção sobre a sua verificação.

Com efeito, dos documentos juntos aos autos, mormente dos relatórios médicos juntos a fls. 34 a 36, do relatório clínico junto a fs. 181, do processo clínico junto a fls. 203 a 230, do relatório de alta junto a fls. 232 e 233, não decorre que a patologia diagnosticada ao Arguido em 2014 e vertida no ponto nº 23) dos factos provados tivesse agravado a lesão decorrente do sinistro e consignada no ponto nº 10), da matéria de facto provada. Tal não decorre igualmente do relatório de autópsia médico-legal junta a fls. 108 a 110v.

Por outro lado, a testemunha Joana L…, médica especialista em medicina física e de reabilitação, não obstante tivesse mencionado que a lesão de que o Arguido padecia anteriormente pudesse ter agravado o seu estado, referiu, outrossim, que não pode ter a certeza de tal, bem como não é especialista na área em causa – neurocirurgia».
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DO DIREITO

Como atrás aludimos, os recursos são delimitados pelas conclusões, extraídas da respectiva motivação. No caso concreto, o Ministério Público, aqui recorrente, vem basicamente impugnar a qualificação jurídica dos factos, entendendo que houve negligência grosseira e por consequência a condenação pelo homicídio, deverá ser feita com referência ao nº 2 do arº 137º do cód. penal. Também, de acordo com a mesma linha de raciocínio, a pena principal deverá ser de prisão e não de multa e a pena acessória de proibição de conduzir veículos com motor, deverá ser mais elevada.
Para um correcto enquadramento jurídico dos factos importa destacar aqui a factualidade relevante para efeitos de qualificação.

Provou-se que:
- “No dia 25 de Agosto de 2017, cerca das 12:39horas, o Arguido A... N... L... conduzia o veículo ligeiro de passageiros (…) na Avª Baía Natural do Seixal, Amora, (…)” (1).
- “Nessas circunstâncias de tempo e lugar, A... C... P... , que circulava apeado, iniciou a travessia da faixa de rodagem no local destinado ao atravessamento de peões (passadeira), da direita para a esquerda (…)” (2).
- “Quando A... C... P... se encontrava a atravessar a passadeira, o Arguido A... N... L... não imobilizou nem abrandou a marcha do veículo, colhendo, com a parte frontal do veículo A... C... P... ”, (3).
- “Com o embate, A... C... P... bateu com a cabeça no vidro frontal do veículo 60-2- -- e foi projetado para o chão, a cerca de 12,3 metros do local do impacto”, (4).
- “A passadeira para peões está devidamente assinalada no solo e por sinal vertical”, (5).
(…)
- “O tempo estava bom e o pavimento seco”, (8).
- “A... C... P... foi transportado para o Hospital de Santa Maria em Lisboa, no dia 25.08.2017, local onde faleceu no dia 01.09.2017”, (9).
(…)
- “O Arguido, nas circunstâncias supra descritas aproximou-se do local destinado à travessia de peões, conduzindo o veículo de forma desatenta, sem se certificar se no local destinado para o efeito circulavam peões, (…)”, (12).
- “Ao não abrandar e parar o veículo no local destinado à passagem de peões, devidamente assinalado, fê-lo com manifesta falta de cuidado, (…), (13).
- “O exercício da condução da forma descrita, olvidando os mais elementares deveres de precaução e cautela, determinou que o arguido não evitasse o acentuado perigo que desencadeou e o grave resultado que adequadamente causou - a morte de A... C... P... (…)”, (14).
- “O arguido atuou bem sabendo que deveria conduzir com cautela e que ao agir do modo descrito punha em risco a circulação rodoviária e a integridade física dos peões”, (15).
- “Após embater em A... C... P... , o Arguido ainda seguiu com o seu veículo alguns metros”, (22).

Que tipo de negligência podem configurar estes factos, é o que se impõe apurar.
O tribunal recorrido optou pelo enquadramento da conduta do arguido na chamada negligência inconsciente, imputando-lhe o crime previsto no nº 1 do artº 137º do cód. penal, quanto à vítima A_ …, que veio a morrer.

Nos termos do artº 15º do cód. penal:
- «Age com negligência quem, por não proceder com o cuidado a que, segundo as circunstâncias, está obrigado e de que é capaz:
a)- Representar como possível a realização de um facto que preenche um tipo de crime, mas actuar sem se conformar com essa realização; ou
b)- Não chegar sequer a representar a possibilidade de realização do facto.»

A morte da vítima seria evitada, se o arguido tivesse agido com o cuidado a que estava obrigado e de que era capaz, reduzindo a velocidade à aproximação da passadeira, que estava devidamente sinalizada, (na vertical e chão) e, parando a fim de deixar o peão concluir a sua travessia, tal como as regras de trânsito lhe impunham e que o mesmo bem conhecia.

O atropelamento deu-se quando a vítima ia a meio da passadeira, sendo atingida com a parte frontal central da viatura e projectada a 12,3 metros do local do impacto, revelando assim que o arguido nem sequer reduziu a velocidade, que pelo efeito causado deveria ser também inadequada ao local.

A negligência é um juízo de censura ao agente por não ter agido de outro modo, conforme podia e devia. O traço fundamental situa-se, pois na omissão de um dever objectivo de cuidado ou diligência (não ter o agente usado aquela diligência exigida segundo as circunstâncias concretas para evitar o evento).

Necessário ainda se torna que a produção do evento seja previsível (uma previsibilidade determinada de acordo com as regras da experiência dos homens, ou de certo tipo profissional de homens – neste caso os condutores de veículos automóveis ou motorizados) e só a omissão desse dever impeça a sua previsão ou a justa previsão.

Beleza dos Santos (R.L.J. 67/162, 70/225) sustentava que a par dos deveres concretos havia um dever geral de atenção, de cuidado, de previdências quanto ao «respeito pelos interesses alheios».

Mas como se determina esse dever geral? Não havendo disposição que o defina deverá irá buscar-se à sua razão de ser que é a razão social. Para saber se, em tais condições, é culposa uma conduta, deve-se aferir a mesma pelo conceito social sobre as condições de razoabilidade em que o agente procedeu, consideradas as circunstâncias da pessoa, do tempo, do modo e do lugar.

E uma questão inevitável se coloca:
Segundo o conceito das pessoas medianamente prudentes, era razoável que o arguido procedesse de outro modo para respeito dos interesses alheios? Se o era, então a conduta é negligente. Caso contrário, se o não era, usou da conduta que usaria qualquer pessoa medianamente prudente em condições iguais e a conduta não seria culposa, (cfr. neste sentido Prof. Cavaleiro Ferreira in “Cód. Penal”. nota II, 87 e Prof. Figueiredo Dias in “O problema da consciência da ilicitude em direito penal” pág. 127).
No caso, não só era espectável que agisse de outro modo, como estava vinculado por força da legislação rodoviária a reduzir à aproximação da passadeira, devidamente sinalizada e a parar para deixar passar o peão (vítima) que nela atravessava a via.

Nos termos do artigo 24º, nº 1 do Código da Estrada:
- “O condutor deve regular a velocidade de modo que, atendendo às características e estado da via e do veículo, à carga transportada, às condições meteorológicas ou ambientais, à intensidade do trânsito e a quaisquer outras circunstâncias relevantes, possa, em condições de segurança, executar as manobras cuja necessidade seja de prever e, especialmente, fazer parar o veículo no espaço livre e visível à sua frente”.

Por sua vez, dispõe o artigo 25º, nº 1, alínea a) do Código da Estrada que:
“1.– Sem prejuízo dos limites máximos de velocidade fixados, o condutor deve moderar especialmente a velocidade:
- a) “Á aproximação de passagens assinaladas na faixa de rodagem para a travessia de peões”.
(…)

Mais dispõe o artigo 6º, sob a epígrafe “Sinais” que:
–“1 - Os sinais de trânsito são fixados em regulamento onde, de harmonia com as convenções internacionais em vigor, se especificam as formas, as cores, as inscrições, os símbolos e as dimensões, bem como os respetivos significados e os sistemas de colocação”.

O artigo 145º, do Código da Estrada dispõe que:
–“No exercício da condução, consideram-se graves as seguintes contra-ordenações:
(…)
i)- A não cedência de passagem aos peões pelo condutor que mudou de direcção dentro das localidades, bem como o desrespeito pelo trânsito dos mesmos nas passagens para o efeito assinaladas”.
Por sua vez, o artigo 19º do Decreto Regulamentar nº 22-A/98, descreve os sinais de PERIGO como sendo:
“A16a – passagem de peões: indicação da aproximação de uma passagem de peões;
A16b – travessia de peões: indicaçao de que podem ser encontrfos peões a a atravessar a faixa de rodagem”.
Mo caso concreto existiam sinais verticais, (que permite a visão à distância) e a passadeira estava devidamente assinalada no chão. Por outro lado, provou-se que a vítima foi projectada a 12,3 metros de distância, (4) e o “arguido ainda seguiu com o seu veículo alguns metros”, (22). Isto revela uma velocidade excessiva e inadequada ao local, bem como o total desrespeito pela sinalização.

A argumentação da srª juíza recorrida, ao não considerar verificada a negligência grosseira, não merece o menor acolhimento, evidenciando mesmo um raciocínio desfasado da realidade concreta e que atenta contra as regras de experiência comum.

Quando a realização de um facto for representada como uma consequência possível da conduta, haverá dolo se o agente actua conformando-se com aquela realização. Assim, na conformação ou não conformação com o resultado é que reside a diferença entre o dolo eventual e a negligência consciente.

No respeitante à negligência inconsciente, “a Lei, para evitar a produção de resultados antijurídicos, proíbe a prática de condutas idóneas para os produzirem, querendo que eles sejam representados pelo agente; ou permite tais condutas, mas rodeadas dos necessários cuidados, para que os eventos típicos se não realizem. Esta permissão de condutas perigosas é geralmente devida a imperativos do desenvolvimento científico, técnico ou económico. É o caso dos meios de transporte, das armas, da electricidade, etc., meios em si perigosos, mas cujo uso é permitido mediante cuidados adequados a evitar desastres pessoais e danos. Quando estes cuidados são acatados, o risco esbate-se; na omissão dos mesmos se radica o fundamento da negligência - cfr. Maia Gonçalves, Cód. Penal, pág. 593.

«A negligência ou mera culpa consiste na omissão da diligência que era exigível ao agente, mas pode assumir diversas formas, em função da intensidade ou grau da ilicitude ou da culpa. Assim, diz-se que há negligência consciente quando o agente previu a verificação do facto ilícito como possível, mas por leviandade, precipitação, desleixo ou incúria acreditou na sua não verificação, e só por isso não tomou as providências necessárias para o evitar. E diz-se que há negligência inconsciente quando o agente não chega sequer, por imprevidência, descuido, imperícia ou inaptidão, a conceber a possibilidade de o facto se verificar, podendo e devendo prevê-lo e evitar a sua verificação, se tivesse usado da diligência devida.»

«Segundo outra terminologia, a negligência (culpa em sentido restrito) pode ser levíssima, leve ou grave. Será levíssima quando o agente tenha omitido os deveres de cuidado que só uma pessoa excepcionalmente diligente e prudente teria observado; será leve quando o agente deixar de observar os deveres de cuidado que uma pessoa normalmente diligente teria adoptado; será grave quando tiverem sido omitidos os deveres de cuidado que só uma pessoa especialmente descuidada e incauta deixaria de respeitar», (cfr. Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 13.12.2007, disponível in www.dgsi.pt/stj.)

No caso em apreço estamos perante uma negligência consciente, nos termos previstos no artº 15º al. a) do cód. penal, porquanto o arguido, ainda que conhecedor das regras do código da estrada, sabendo da existência da passadeira e da respectiva sinalização que era bem visível e nenhum obstáculo se provou existir, e sabendo da obrigatoriedade de reduzir a velocidade à aproximação e parar para ceder a passagem à vítima que transitava na passadeira, por desatenção grosseira não parou, mesmo sendo previsível que da sua conduta poderia resultar um acidente grave, como de resto se verificou. Negligenciou de forma incompreensível e não justificada a existência do sinal vertical e da passadeira bem visível no chão.

A negligência inconsciente é aqui de afastar pois tal implicava que o arguido não chegasse sequer a representar como possível o resultado da sua conduta, o que na situação descrita era de todo improvável.

Mesmo que se considerasse negligência inconsciente não deixaria de ser uma negligência grave e/ou grosseira.

Conforme se defendeu no acórdão do STJ:
1.–A negligência grosseira não excluiu a negligência inconsciente que consiste em não se chegar sequer a representar a possibilidade de realização do facto.
2.–A negligência grosseira acompanhada da negligência inconsciente significa um menor grau de culpa em relação à simples negligência grosseira». Ac. do STJ, de 06/05/93, proc. nº 44236.

Mas a situação analisada enquadra claramente a previsão do artº 15º al. a) do cód. penal, sendo em nosso entendimento uma negligência grosseira, porquanto estamos perante um comportamento que ultrapassou claramente a simples falta de cuidado, que segundo as circunstâncias estava obrigado, evidenciando uma conduta insensata, irreflectida, esquecendo elementares precauções exigidas pela prudência e ignorando que na estrada circulavam outros condutores e era atravessada por peões no local especificamente indicado para o efeito – a passadeira.

A conduta do arguido A... L... integra assim a autoria material de um homicídio por negligência, p. e p. pelo artº 137º nº 2 do cód. penal, cometido na pessoa da vítima A… C… P…, uma vez que todos os elementos objectivos e subjectivos do crime em referência se encontram indubitavelmente verificados (2). Por acórdão de 16.11.2016, proferido no processo nº 985/15.2GCALM.L1, por este colectivo e secção, assim nos pronunciámos em situação em tudo idêntica..

A propósito da negligência grosseira, se pronunciou o acórdão do STJ de 27/05/93, proc. nº 43559 (3) :
–«A negligência grosseira a que alude o artº 137º, nº 2 do cód. penal é uma negligência qualificada que consiste num comportamento de clara irreflexão ou ligeireza, ou na falta de precauções exigidas pela mais elementar prudência ou das cautelas aconselhadas pela previsão mais elementar que devem ser observadas nos actos correntes da vida. Consiste no esquecimento das precauções exigidas pela mais vulgar prudência, ou na omissão das precauções ou cautelas mais elementares.»

A negligência é um tipo especial de punibilidade que oferece uma estrutura própria quer ao nível do ilícito quer ao nível da culpa.
O tipo objectivo de ilícito dos crimes materiais negligentes é constituído por três elementos:
a)- A violação de um dever objectivo de cuidado;
b)- A possibilidade objectiva de prever o preenchimento do tipo;
c)- E a produção do resultado típico quando este surja como consequência da criação ou potenciação pelo agente, de um risco proibido de ocorrência do resultado.

A violação pelo agente do cuidado objectivamente devido, é concretizada com apelo às capacidades da sua observância pelo “homem médio”, como já atrás referimos.

A violação de normas jurídicas de comportamento, contidas em leis ou regulamentos, são indícios, por excelência, de contrariedade ao cuidado objectivamente devido.

A não observância do cuidado objectivamente devido não torna perfeito, por si própria, o tipo de ilícito negligente, antes importa que ela conduza a uma representação imperfeita ou a uma não representação da realização do tipo.

«Na negligência consciente o tipo subjectivo residirá na deficiente ponderação do risco de produção do facto, na inconsciente ausência de pulsão para a representação do facto». - Prof. Figueiredo Dias, Direito Penal, Tomo I, pág.656.

Para que exista culpa negligente, com preenchimento do tipo-de-culpa, necessário é ainda que o agente possa, de acordo com as suas capacidades pessoais, cumprir o dever de cuidado a que se encontra obrigado.

Enquanto na negligência consciente o agente representou como possível o resultado ocorrido, mas confiou, não devendo confiar, que ele não se verificaria, na negligência inconsciente o agente infringe o dever de cuidado imposto pelas circunstâncias, não pensando sequer na possibilidade do preenchimento do tipo pela sua conduta.

A conclusão de que o resultado teve como causa a acção negligente, só poderá ser afirmada quando se verifique, num primeiro passo, a causalidade natural - o resultado tem de ter como causa natural a acção - e, em seguida, uma causalidade jurídica, o nexo de imputação objectiva.

No caso concreto o arguido sabia perfeitamente que estava obrigado a reduzir a velocidade à aproximação da passadeira e a parar para deixar a vítima concluir a travessia, mas ignorou tal exigência legal sem justificação.

Para além de termos como verificada a violação de um dever objectivo de cuidado por parte do arguido, resulta da factualidade provada que tinha ainda a possibilidade objectiva de prever o preenchimento do tipo.

A produção do resultado típico, ou seja, a morte de uma vítima resulta como consequência da criação pelo arguido, de um risco proibido de ocorrência do resultado, para a qual não se provou terem nem a vítima mortal nem qualquer circunstância externa, contribuído seja de que modo for.

O legislador, apesar de ter definido a negligência na parte geral do Código Penal, não definiu nem naquela parte, nem na parte especial do Código, a negligência grosseira, deixando a definição conceitual para a doutrina e a jurisprudência.

O Prof. Figueiredo Dias, tem defendido que a negligência grosseira constitui um grau essencialmente aumentado ou expandido de negligência e, fazendo apelo a Roxin, defende que o conceito implica uma especial intensificação da negligência não só ao nível de culpa, mas também ao nível de tipo de ilícito (4). - Citado no Ac. Trib. Rel Coimbra de 17.10.2012 e publicado em www.dgsi.pt/trc..

O Prof. José Faria Costa, defende que para se definir a negligência como grosseira, se deve atender a uma especial intensificação do juízo de ilicitude e da culpa. À luz do seu pensamento (5), a negligência grosseira existirá na verdade, sempre que, por força de um alto e inqualificável teor de imprevisão, ou por força de uma profunda ausência de cuidado elementar, foram desrespeitadas as mais evidentes regras de cuidado elementar, foram desrespeitadas as mais evidentes regras de cuidado de perigo para com o “outro”.

Perante o grau particularmente aumentado de negligência, é nosso entendimento de que a factualidade provada deverá ser enquadrada na previsão do artº 137º nº 1 e 2 do cód. penal.
***

Importa agora determinar a medida concreta das penas, principal e acessória, face à alteração de qualificação operada.

O tribunal recorrido na determinação da medida concreta da pena ponderou de forma resumida as seguintes circunstâncias agravantes e atenuantes:
«Para determinar a pena a aplicar in casu ao Arguido, o Tribunal considerou as exigências de prevenção geral, que se reputam de prementes, atentos os elevados índices de sinistralidade automóvel, que advém as mais das vezes de infrações à legislação estradal. Impõem-se, por essa razão, uma forte ação de prevenção geral, de forma a desincentivar a condução descuidada, desatenta ou imprudente, que torna as nossas estradas perigosas e temíveis, recorrendo-se assim à severidade dos Tribunais para prevenir estas condutas e consciencializar a comunidade para o seu desvalor e reforçando as expetativas comunitárias na validade da norma violada.
Atendeu, outrossim, o Tribunal às exigências de prevenção especial que no caso em apreço não são prementes, considerando, desde logo, que o Arguido, que conta atualmente com 62 anos de idade e 36 anos de titularidade da carta de condução, não tem antecedentes criminais, nem contraordenações estradais averbadas. Ademais, o Arguido encontra-se familiar e socialmente inserido».

Estas as circunstâncias mais relevantes a ter em conta e que permitem determinar a pena concreta a aplicar pelo crime de homicídio por negligência grosseira p. e p. pelo art 137º nº 1 e 2 do cód. penal.

Importa ainda realçar em desfavor do arguido, que este nem sequer confessou de forma livre e espontânea os factos; em julgamento, contra as evidências periciais, fotográficas e testemunhais, tentou a desculpabilização com argumentos absurdos e inverosímeis.

Desde já importa realçar que a medida das penas, acessória e principal, (multa) aplicadas pelo tribunal recorrido, ainda que a qualificação jurídica se mantivesse, são quanto a nós, excessivamente baixas para a gravidade dos factos em análise, os quais impunham (mesmo pelo artº 137º nº 1 do cód. penal) no mínimo, pena de prisão e nunca de multa. Este tem sido o entendimento geral da jurisprudência, quer ao nível das Relações quer do Supremo Tribunal de Justiça.

O homicídio por negligência p. e p. pelo artº 137º nº 2 do cód. penal, é abstractamente punido com pena de prisão até 5 anos.

A medida concreta da pena é uma operação complexa porque se trata de converter em magnitudes penais factos, em traduzir os critérios legais de fixação da pena, numa certa quantidade dela (6).

Ela deve ser aferida nos termos do artº 71º do cód. penal, em função da culpa do arguido, tendo em conta as exigências de prevenção de futuros crimes e atendendo a todas as circunstâncias que não fazendo parte do tipo de ilícito, deponham a seu favor ou contra si.

Com efeito, na determinação da medida da pena, esta tem como primeira referência a culpa e funcionando depois num segundo momento, mas ao mesmo nível, a prevenção. No tocante à culpa, os factos ilícitos são decisivos e devem ser valorados em função do seu efeito externo; a prevenção constitui um fim e deve relevar para a determinação da medida da pena em função da maior ou menor exigência do ponto de vista preventivo.

Na graduação da pena concreta, deve o julgador relevar a sua própria intuição assessorada pelas regras da experiência comum, face ao caso concreto em análise, o critério de uniformidade seguido em situações idênticas e as tendências jurisprudenciais, ponderadas as circunstâncias agravantes e atenuantes provadas; todavia, em caso algum a pena pode ultrapassar a medida da culpa.

Conjugando o disposto nos arts 40º e 70º do cód. penal resulta que a aplicação de penas visa a protecção de bens jurídicos e o reforço da consciência jurídica comunitária na validade da norma infringida (prevenção geral) e a reintegração do agente na sociedade (prevenção especial).

No caso dos autos, todos os factores salientados, mormente a gravidade da sua conduta, a intensidade da negligência e grau de ilicitude, bem como a gravidade das suas consequências, temos por adequado fixar a pena de prisão pelo crime de homicídio negligente p. e p. pelo artº 137º nº 2 do cód. penal, em 2 anos e 6 meses.

Deverá, no entanto, a pena de prisão ser suspensa na sua execução em conformidade com o disposto no artigo 50º do cód. penal:
– “O tribunal suspende a execução da pena de prisão aplicada em medida não superior a cinco anos se, atendendo à personalidade do agente, às condições da sua vida, à sua conduta anterior e posterior ao crime e às circunstâncias deste, concluir que a simples censura do facto e a ameaça da prisão realizam de forma adequada e suficiente as finalidades da punição”.

Sob o ponto de vista formal exige-se que a pena aplicada não exceda cinco anos – o que é o caso.

Já sob o ponto de vista substancial, impõe-se que a verificação de condições atinentes à personalidade do arguido, às suas condições de vida, conduta anterior e posterior aos factos, permitam ao tribunal convictamente concluir que a simples censura do facto e a ameaça da prisão realizam de forma adequada e suficiente as finalidades da punição.

Suspender a execução da respectiva pena, não pode ser vista como um “acto de clemência”, mas sim como uma forma mais eficaz e adequada de ressocializar e reabilitar o condenado. A análise e ponderação de todos estes factores, deve reportar-se sempre ao momento da decisão e não ao momento da prática dos crimes.

A decisão de suspender a pena de prisão assenta numa prognose social favorável ao arguido ou seja, a esperança de que este sentirá a sua condenação como uma advertência e que não cometerá no futuro nenhum crime ou acto susceptível de o enquadrar. O Tribunal deverá correr um risco prudente, uma vez que esperança não é seguramente certeza, mas se tem dúvidas sobre a capacidade do arguido para compreender a oportunidade de ressocialização que lhe é oferecida, a prognose deve ser negativa (7).

Convém salientar a propósito do artº 50º do cód. penal, que na redacção original desta norma, a de 1982, referia-se que o julgador “pode suspender”e não “suspende”,(8) (como actualmente) e apesar de parecer um pequeno detalhe, na realidade não o é. Da actual redacção se conclui claramente, que o legislador pretendeu dar-lhe uma vinculação que até à data não tinha, fazendo recair sobre o julgador a obrigatoriedade de apreciar os respectivos pressupostos e justificar porque aplica ou não tal medida, dando primazia à sua aplicação, preterindo a prisão efectiva, face às consequências que desta possam advir. No entanto, a sua aplicação não é automática, carece da verificação objectiva dos pressupostos que a lei consagra. Não há propriamente um dever de suspender, mas sim um poder vinculado de decretar a suspensão (Vítor Sá Pereira e Alexandre Lafayette, C. P. anotado e comentado, pág. 178).

Ou por outras palavras: “trata-se de um poder-dever, ou seja de um poder vinculado do julgador, que terá que decretar a suspensão da execução da pena de prisão, na modalidade que se afigurar mais conveniente para a realização daquelas finalidades, sempre que se verifiquem os apontados pressupostos” – Maia Gonçalves, C.P. Português, 18ª edição, pág. 215.

Segundo a douta opinião do Prof. Figueiredo Dias (9), a suspensão da execução da pena de prisão, prevista no artº 50º do cód. penal, é “a mais importante das penas de substituição, por dispor de mais largo âmbito”.

Da norma citada decorre com clareza que um dos pressupostos da suspensão da execução da pena de prisão é a circunstância de a simples censura do facto e a ameaça da pena realizarem de forma adequada e suficiente as finalidades da punição. “É a chamada prognose favorável do comportamento futuro do arguido, que o tribunal retirará da personalidade do agente e das circunstâncias do facto submetido a julgamento”(10).

Conforme decidiu o Acórdão do S.T.J. (11), é preciso que a “suspensão da execução da pena de prisão não colida com as finalidades da punição. Numa perspectiva de prevenção especial, deverá mesmo favorecer a reinserção social do condenado; por outro lado, tendo em conta as necessidades de prevenção geral, importa que a comunidade não encare, no caso, a suspensão, como sinal de impunidade, retirando toda a sua confiança ao sistema repressivo penal”.

No caso concreto, estamos perante uma situação que em tudo aconselha a suspensão da execução da pena, não obstante as consequências gravosas da conduta, traduzidas no resultado morte de uma pessoa.

Como é sabido, no tocante à privação da liberdade, mais concretamente de aplicação da pena de prisão efectiva, esta só é admissível quando se mostrar indispensável, isto é, quando o desiderato que visa prosseguir não puder ser obtido de outra forma menos gravosa (princípio da necessidade ou da exigibilidade), quando se revelar o meio adequado para alcançar os fins ou finalidades que a lei penal visa com a sua cominação (princípio da adequação ou da idoneidade) e quando se mostrar quantitativamente justa, ou seja, não se situe nem aquém nem além do que importa para obtenção do resultado devido (princípio da proporcionalidade ou da racionalidade) (12).

A opção pela suspensão da execução da pena de prisão, por igual período de tempo (2 anos e 6 meses), parece-nos satisfazer no caso concreto as finalidades da punição e a mais adequada ressocialização do condenado, visando o evitar de situações futuras similares e uma maior auto-responsabilidade e prudência na condução de veículos automóveis.

Finalmente, quanto à pena acessória de proibição de conduzir veículos com motor, entendemos, por tudo quanto se expôs e sem necessidade de mais considerandos, que a agravação da mesma se impõe, pois os 6 meses impostos pelo Tribunal recorrido são manifestamente insuficientes, face à gravidade da conduta e suas consequências, pelo que se fixa a proibição de conduzir veículos automóveis em 12 meses. O recurso é de proceder.
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DECISÃO

Nestes termos, acordam os Juízes da 3ª Secção Criminal do Tribunal da Relação de Lisboa em conceder provimento ao recurso interposto pelo Ministério Público e decidem:

a)- Revogar a sentença recorrida nos termos descritos e, condenar o arguido A... N... L... como autor material, por um crime de homicídio por negligência, p. e p. pelo artº 137º nº 1 e 2 do cód. penal, cometido na pessoa de A______-, na pena de dois (2) anos e seis (6) meses de prisão;
b)- Suspender a execução da pena de prisão pelo período de dois (2) anos e seis (6) meses, nos termos do artº 50º nº 5 do cód. penal.
c)- Condenar o arguido A... N... L... na pena acessória de proibição de conduzir veículos com motor pelo período de 12 meses, nos termos do artº 69º nº 1 al. a) do cód. penal.
d)- Condenar ainda o arguido nas custas do processo cuja taxa se fixa em 4 UC (quatro unidades de conta).
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Lisboa 18 de Dezembro de 2019



(A. Augusto Lourenço)
(João Lee Ferreira)



(1)--Cfr. Ac. STJ de 19/6/1996, BMJ 458, 98.
(2)--Por acórdão de 16.11.2016, proferido no processo nº 985/15.2GCALM.L1, por este colectivo e secção, assim nos pronunciámos em situação em tudo idêntica..
(3)--Citado por Simas Santos e Leal Henriques in “Jurisprudência Penal”, pág. 47. :
(4)--Citado no Ac. Trib. Rel Coimbra de 17.10.2012 e publicado em www.dgsi.pt/trc..
(5)--Idem nº 4.,
(6)--Cfr. Ac. STJ de 06.02.2013 disponível in www.dgsi.pt/stj.
(7)--Neste sentido cfr. Jescheck, in “Tratado de Derecho Penal” Parte I, pág. 1153..
(8)--Para além de ter subido o limite de 3 para 5 anos, em relação à possibilidade de suspensão.
(9)--In “Direito Penal II”, As Consequências Jurídicas do Crime, 1993, pág. 337.
(10)-- Ac. Relação do Porto de 14.10.2009 in site DGSI..
(11)--Ac. STJ de 18/02/08, Proc. 2837/08 acessível em http://www.dgsi.jstj.
(12)--Cfr. Ac. STJ de 07.04.2010 in Proc. nº 113/04.0GFLLE.E1.S1 - 3ª Secção - Cons. Oliveira Mendes (relator).