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CONDUÇÃO SEM HABILITAÇÃO LEGAL
Sumário
Se um automóvel se encontra a ser rebocado na via pública por outro , tendo o motor desligado e as rodas no chão, aquele que, sem título de condução, sentado no banco do condutor, segura o volante, definindo a trajectória do veículo, e acciona, quando necessário, os órgãos de travagem comete o crime de condução sem habilitação legal.
Texto Integral
Acordam no Tribunal da Relação do Porto
Nos autos de processo comum singular n.º …/02.7GNPRT, do .º Juízo do Tribunal Judicial de Valongo, acusado pelo M.º P.º, foi o arguido B………., solteiro, nascido a ..-..-1976, em ………., Porto, porteiro, filho de C………. e de D………., residente no ………., Bloco .., entrada .., casa .., Porto, condenado:
a) Como autor material de um crime de condução ilegal, p. e p. pelo art.º 3º, n.º 1 e 2, do Decreto Lei 2/98, de 03-01, na pena de 60 (sessenta) dias de multa à taxa diária de € 4,00 (quatro euros), o que perfaz a quantia global de € 240,00 (duzentos e quarenta euros);
b) Como autor material de uma contra-ordenação p. e p. pelo art.º 85º, n.º 1, al. a), e 4, do Cód. da Estrada, na coima de €100,00 (cem euros);
Inconformado, o arguido interpôs recurso, tendo extraído da sua motivação as seguintes conclusões:
1. Porque houve incorrecta aplicação dos dispositivos legais já que os comportamentos factuais do recorrente não consubstanciam qualquer dos crimes de que foi condenado (o recorrente não tinha direcção efectiva do veículo e apresentou o seu documento de identificação);
2. Se assim não se entender quanto ao crime por falta de apresentação de documentos, tal ilícito nunca ocorreria se o recorrente não fosse condenado pelo crime de condução de veículo sem habilitação legal, pois não seria obrigado a apresentar quaisquer documentos.
3. O Ministério Público não fez prova dos factos constantes da douta acusação.
4. Se assim não se entendesse, aplicar-se-ia sempre o princípio in dubio pro reo.
Respondeu o M.º P.º dizendo que o recurso é manifestamente improcedente.
Nesta Relação, o Ex.mo PGA emite douto parecer no qual conclui:
a) No que diz respeito à contra-ordenação a condenação não é de manter já que, tendo os factos ocorrido em 1/11/02, o procedimento contra-ordenacional prescreveu em 1/11/04
b) No que diz respeito ao crime, o recurso é de considerar manifestamente improcedente.
Colhidos os vistos dos Ex.mos Adjuntos, cumpre apreciar e decidir.
O tribunal a quo considerou provada a seguinte factualidade:
1. No dia 01-11-2002, às 21H45, na AE n.º ., em ………., Valongo, ao km 18, o arguido conduzia o automóvel ligeiro de passageiros de matrícula ..-..-AP, seguindo este com o motor desligado, rebocado por outro veículo automóvel, com as quatro rodas no chão, segurando o arguido o volante do veículo, definindo dessa forma a respectiva direcção, e accionando os órgãos de travagem quando se mostrava necessário;
2. O arguido não é titular de qualquer carta ou licença de condução;
3. Na ocasião mencionada em 1, o arguido não se fazia acompanhar por qualquer documento que permitisse a sua identificação;
4. O arguido previu e quis conduzir o veículo automóvel referido, apesar de saber que não estava legalmente habilitado para conduzir e de que, para o fazer, devia fazer-se munir de documento que permitisse a sua identificação;
5. Notificado para apresentar o seu documento de identificação no prazo de oito dias nas instalações da Brigada de Trânsito no Porto, o arguido não o fez;
6. O arguido previu e quis não apresentar qualquer documento de identificação no prazo mencionado;
7. O arguido sabia que tal conduta lhe estava vedada por lei e tendo capacidade de determinação, ainda assim, não se inibiu de a realizar;
8. O arguido tem antecedentes criminais;
9. O arguido vive em casa dos pais;
10. O arguido efectua pequenos trabalhos como carregador de móveis e porteiro de discoteca, donde retira rendimento médio mensal não inferior a € 500,00;
11. O arguido, no âmbito do processo especial abreviado n.º …/03.0GTBRG do .º Juízo Criminal do Tribunal da Comarca de Braga, no dia 20-10-2003, foi condenado, por sentença já transitada em julgado, pela comissão, no dia 27 e 28 de Abril de 2003, de um crime de condução de veículo sem habilitação legal, p. e p. pelo art. 3º, n.º1 e 2, do Decreto- Lei n.º 2/98, de 03-01, e de um crime de desobediência, p. e p. pelo art. 348º, n.º1, al. a), do Cód. Penal, conjugado com o disposto no art. 387º, n.º2, do Cód. Proc. Penal, nas penas de 100 dias e 80 dias de multa, respectivamente, à taxa diária de € 2,50, e na pena unitária de 120 dias de multa, à mesma taxa diária.
As conclusões da motivação balizam o objecto do recurso.
Defende o Recorrente:
1. Não pode ser condenado pelo crime de condução de veículo automóvel atendendo a que não tinha direcção efectiva do veículo;
2. Não pode ser condenado pela prática da contra-ordenação visto que apresentou o bilhete de identidade, nada mais lhe sendo exigível, sendo certo que, pelo facto de não conduzir o veículo, não tinha que apresentar quaisquer outros documentos.
3. O Ministério Público não fez prova dos factos constantes da acusação.
4. Se assim não se entendesse, aplicar-se-ia sempre o princípio in dubio pro reo.
QUESTÃO PRÉVIA:
O Ex.mo PGA defende que a contra-ordenação está prescrita.
E bem, diga-se.
Com efeito:
O arguido foi condenado em 100€ de coima pela prática, em 1 de Novembro de 2002, de uma contra-ordenação p. e p. pelo art.º 85º, n.º 1, 2 e 4, do Cód. da Estrada vigente à data da prática dos factos.
Dispõe o art.º 27º do DL 433/82, de 27 de Março:
“O procedimento por contra ordenação extingue-se por efeito da prescrição logo que sobre a prática da contra ordenação hajam decorrido os seguintes prazos:
a) Cinco anos, quando se trate de contra ordenação a que seja aplicável uma coima de montante máximo igual ou superior a 49.879,79€;
b) Três anos, quando se trate de contra ordenação a que seja aplicável uma coima de montante igual ou superior a 2.493,99€ e inferior a 49.879,79€;
c) Um ano, nos restantes casos.
A contra ordenação a que se reportam os autos é punível, em abstracto, com coima inferior a 250€.
Consequentemente, o prazo prescricional é de 1 ano.
A prescrição interrompe-se quando ocorra algum dos factos previstos no art.º 28º do citado DL 433/82; e suspende-se nos casos previstos no art.º 27º-A desse diploma legal.
À fixação do regime substantivo das contra-ordenações aplica-se, subsidiariamente, o Código Penal – art.º 32º do DL 433/82.
O STJ, por acórdão de 8/3/01, in DR de 30/3/01, uniformizou jurisprudência divergente no que toca à aplicação do regime penal da interrupção da prescrição às contra ordenações desta forma:
“A regra do n.º 3 do art.º 121º do Código Penal, que estatui a verificação do procedimento criminal quando, descontado o tempo de suspensão, tiver decorrido o prazo normal da prescrição, acrescido de metade, é aplicável, subsidiariamente, nos termos do art.º 32º do regime geral das contra ordenações (Decreto-Lei n.º 433/82, de 27 de Outubro, alterado pelo Decreto-Lei n.º 244/95, de 14 de Setembro), ao regime prescricional do procedimento contra ordenacional”.
A doutrina é igualmente válida para a regra da 2ª parte do n.º 3 do art.º 121º, que estabelece:
“Quando, por força de disposição especial, o prazo da prescrição for inferior a 2 anos o limite da prescrição corresponde ao dobro desse prazo”.
Por outro lado, e conquanto o art.º 27-A do citado DL 433/82 não elenque como causa de suspensão da prescrição a notificação ao arguido do despacho que designa dia para julgamento, o certo é que o STJ, por acórdão de uniformização de jurisprudência datado de 1/3/01, DR, I Série-A, de 15/3/01, entendeu que tal notificação suspende a prescrição do procedimento criminal.
Em todo o caso, reza o n.º 2 do citado art.º 27º-A que, neste caso, “a suspensão não pode ultrapassar seis meses”.
Ora, o prazo prescricional, por força da acusação, interrompeu-se – n.º 2 do art.º 28º do DL 433/82.
No entanto, “A prescrição do procedimento tem sempre lugar quando, desde o seu início e ressalvado o tempo da suspensão, tiver decorrido o prazo da prescrição acrescido de metade” – n.º 3 do mesmo art.º 28º.
Como o prazo prescricional é de um ano, mas o procedimento contra-ordenacional esteve interrompido, a prescrição ocorre quando desde a prática da contra-ordenação tiver decorrido um ano e meio.
A este prazo há que somar o prazo da suspensão que é, no máximo, de seis meses.
Consequentemente, o prazo prescricional, no caso sub judice, é de 2 anos.
Porque os factos ocorreram a 1 de Novembro de 2002, com facilidade se conclui que está prescrito o procedimento contra ordenacional desde 1 de Novembro de 2004.
Face ao decidido está prejudicada a análise da conclusão em que o Recorrente diz que não pode ser condenado pela prática da contra-ordenação, a qual indevidamente chama de crime.
Pretende o Recorrente impugnar a matéria de facto, acabando por invocar o princípio in dubio pro reo.
Nos termos do n.º 1 do art.º 428º do CPP, as relações conhecem de facto e de direito.
No caso subjudice a prova está documentada e, por isso, a decisão proferida sobre a matéria de facto podia ser amplamente impugnada.
Para tanto, e conforme se estatui no n.º 3 do art.º 412º do CPP, o recorrente teria de especificar:
a) Os pontos de facto que considera incorrectamente julgados;
b) As provas que impõem decisão diversa da recorrida;
c) As provas que devem ser renovadas.
E acrescenta o n.º 4:
Quando as provas tenham sido gravadas, as especificações previstas nas alíneas b) e c) do número anterior fazem-se por referências aos suportes técnicos, havendo lugar a transcrição.
Independentemente da impugnação da matéria de facto, o recurso pode ter como fundamento:
- A insuficiência para a decisão da matéria de facto provada;
- A contradição insanável da fundamentação ou entre a fundamentação e a decisão;
- O erro notório na apreciação da prova.
Ponto é, neste caso, que o “vício resulte do texto da decisão recorrida, por si só ou conjugada com as regras da experiência comum” – corpo do n.º 2 do art.º 410º do CPP.
O que vale por dizer que não é permitida a consulta de outros elementos do processo.
Ora, o Recorrente não cumpriu os ónus impostos pelo preceito legal transcrito.
Na realidade, não só não indicou os pontos de facto que considera incorrectamente julgados, como não indicou as provas que impõem decisão diversa da recorrida.
E ainda não fez referência aos suportes técnicos.
Porque assim, não impugnou amplamente a matéria de facto.
Igualmente não alegou – certamente porque não se verificam – os vícios do n.º 2 do art.º 410º do CPP.
Não faz sentido fazer apelo ao princípio in dubio pro reo quando o Sr. Juiz não teve qualquer dúvida, não titubeou.
E que dúvida poderia ter quando o próprio arguido confessa que vinha a conduzir o veículo que estava a ser rebocado (cfr. fls. 3 da transcrição), confissão essa que é confirmada pelo depoimento do Sr. Agente autuante, únicas pessoas ouvidas em julgamento?
Tem-se por definitivamente fixada a matéria de facto.
A verdadeira questão do presente recurso é a de saber se ao arguido cometeu o ilícito p. e p. pelo art.º 3º, n.º 1 e 2, do D.L. n.º 2/98, de 03-01, atendendo a que vinha ao volante (fazendo também uso dos pedais) de veículo rebocado, que dirigia.
Segundo este preceito legal, que quem conduzir veículo automóvel na via pública ou equiparada sem para tal estar habilitado nos termos do Código da Estrada, é punido com pena de prisão até 2 ano ou com pena de multa.
Expendeu o Sr. Juiz:
“São elementos típicos objectivos do crime de que vem acusado o arguido:
- a condução de um veículo automóvel, onde se incluem os motociclos;
- em via pública ou equiparada;
- o agente não estar habilitado legalmente para conduzir.
Conduzir é assumir o controlo de um determinado veículo, enquanto o mesmo se desloca, quer tenha o respectivo motor em funcionamento quer não o tenha em tal situação, quer se encontre em posição de marcha por meios próprios ou por meios alheios.
Fundamental para a verificação da condução é que o veículo circule e que o agente tenha a sua direcção efectiva, podendo determinar, ainda que não exclusivamente, a direcção da sua marcha e velocidade.
Via pública é, de acordo com o disposto no art. 1º, n.º 1, al. a), do referido código, toda a via do domínio público do Estado, das Regiões Autónomas e das autarquias locais.
Só pode conduzir um automóvel na via pública quem estiver legalmente habilitado para o efeito, sendo certo que o documento que titula essa habilitação designa-se por carta de condução – cfr. art.ºs. 121º, n.º1, e 122º, n.º1, do Cód. da Estrada, aprovado pelo D.L. n.º 2/98, de 03-01.
De salientar que se está diante de um crime de perigo abstracto, em que o legislador, ao incriminar a conduta descrita, assume como adquirido que a mesma é potencialmente causadora de sinistros rodoviários. A segurança rodoviária é, pois, o interesse ou valor a tutelar de forma imediata com esta incriminação.
O dolo consiste, na modalidade de directo (prevista no art. 14º, n.º1, do C.P.), na consciência, por parte do agente, de que não está legalmente habilitado a conduzir o veículo automóvel, e em querer conduzi-lo na via pública.
Ora, dos factos dados como provados resulta que se verificam todos os elementos típicos acima enunciados.
O arguido conduzia um automóvel numa via pública, ainda que rebocado e sem que o respectivo motor se encontrasse a funcionar, sem ser portador de carta de condução ou qualquer outra licença de condução, não estando por isso, legalmente habilitado para o fazer.
Mais se provou que o fez de forma livre e consciente, bem sabendo da falta de habilitação legal para conduzir e que, mesmo assim, assumiu a sua condução. Actuou, pois, com dolo directo”.
O arguido diz que não cometeu o crime porque “encontrava-se dentro de veículo que não funcionava e que portanto estava a ser rebocado por outro através de cabos”.
Por isso, não tinha a direcção efectiva sobre o mesmo.
O Recorrente faz confusão entre os conceitos de condução e de propulsão, ignorando, ao que parece, este vocábulo.
Conduzir significa guiar, dar rumo ou direcção, transportar de um lugar para outro.
Dúvidas não há que o arguido, no dia 01-11-2002, às 21H45, na AE n.º ., em ………., Valongo, ao km 18, conduzia o automóvel ligeiro de passageiros de matrícula ..-..-AP, seguindo este com o motor desligado, rebocado por outro veículo automóvel, com as quatro rodas no chão, segurando o arguido o volante do veículo, definindo dessa forma a respectiva direcção, e accionando os órgãos de travagem quando se mostrava necessário.
E ainda de que o arguido não é titular de qualquer carta ou licença de condução.
Ou seja, o arguido conduzia um veículo, cuja propulsão, tracção, ou impulso lhe era fornecida por um outro veículo.
E não pelo motor do próprio veículo, como é vulgar acontecer.
Como poderia ser fornecida pelo declive da rua, em que não carecia de pôr o motor a trabalhar.
Dúvidas não há de que era o arguido quem manobrava o volante e os pedais (o acelerador e embraiagem como que inexistiam. Como inexiste esta nos veículos de caixa automática).
Por isso, conduzia o veículo automóvel.
A condução nos termos em que era feita – em auto estrada, em veículo rebocado – até exige mais perícia ao condutos, que tem de se mover num raio de acção limitado.
Perícia essa de que o Recorrente ainda não deu provas de que é portador, submetendo-se ao competente exame.
Afastada a confusão, que não sabemos se resulta de mera confusão, de ignorância ou de má fé, fácil é concluir que o recurso é manifestamente improcedente.
O que implica a sua rejeição em Conferência – n.º 1 do art.º 420º do CPP.
DECISÃO:
Termos em que:
1. Se julga extinto, por prescrição, o procedimento contra-ordenacional;
2. Se rejeita o recurso na parte referente ao procedimento criminal.
Fixa-se em 6 Ucs a tributação; e em 4 Ucs a sanção a que alude o n.º 4 do art.º 420º do CPP.
Porto, 6 de Dezembro de 2006
Francisco Marcolino de Jesus
Ângelo Augusto Brandão Morais
José Carlos Borges Martins