INEPTIDÃO PARCIAL DE PETIÇÃO INICIAL
Sumário


I- A ineptidão da petição inicial verifica-se sempre que esta contém deficiências que comprometem irremediavelmente a sua finalidade, situação que determina a nulidade de todo o processo (art.º 186.º 1 do CPC) e conduz à absolvição da instância [art.ºs 576.º 1 e2; 577.º al. b); e, 278.º 1 al. b), do CPC].

II- Através da figura da ineptidão da petição inicial pretende-se evitar que o tribunal seja colocado na situação de impossibilidade de julgar correctamente a causa.

III- A omissão do núcleo essencial da causa de pedir conduz à ineptidão é não suprível através do instituto da correcção dos articulados, sobe pena de violação do princípio da estabilidade da instância prescrito no art. 260º do C.P.C.

IV- Embora o CPC não refira expressamente a possibilidade de ineptidão parcial da petição inicial, entende-se que também não há razões para sustentar a inexistência da figura e, logo, considera-se que seja admissível quando inexista causa de pedir para parte do pedido.

Texto Integral


Acordam, em conferência, no Tribunal da Relação de Guimarães.

I – RELATÓRIO.

Recorrente: Ministério Público.

Tribunal Judicial da Comarca de Vila Real – Juízo Local Cível de Chaves.

O Digno Magistrado do Ministério Público instaurou acção de alteração do regime das responsabilidades parentais relativas à menor C. M. contra R. J. e C. R..
Para tanto alegou que há desentendimentos entre os progenitores relativamente ao regime de visitas e que, decorridos dois anos sobre a fixação do regime de regulação das responsabilidades parentais, no qual se fixou a quantia de 100,00€ a título de alimentos, houve um aumento das despesas da menor.
Conclui, pedindo a alteração do regime das responsabilidades parentais, nomeadamente quanto a visitas e ao montante da prestação de alimentos.
Notificado para vir alegar os concretos factos dos quais resulta a necessidade de alteração da prestação de alimentos fixado e do seu montante, o Digno Magistrado do Ministério Público alegou a necessidade de se fixar horários das visitas com horas e dias de entrega e recolha.
Mais referiu ser a prestação de alimentos insuficiente para a satisfação das necessidades da menor, que aumentaram desde a fixação do regime, desconhecendo o montante exacto que deverá ser fixado.
A progenitora, notificada para concretizar em que medida as despesas aumentaram e indicar o montante que julgasse adequado e o regime de visitas a fixar, nada disse.
Por informação do Juízo Local Cível de Chaves, Juiz 1, o processo de promoção e protecção referente à menor foi arquivado, por não existir qualquer situação de perigo.
O Ministério Público pronunciou-se no sentido da marcação de uma conferência de pais, com vista à obtenção de acordo.
Posteriormente foi proferida decisão onde se decidiu julgar verificada a excepção dilatória de nulidade do processo, por ineptidão do requerimento inicial e, em consequência, absolver da instância os requeridos.

Inconformada com esta decisão, dela interpôs recurso o Mº Pº, sendo que, das respectivas alegações desse recurso extraiu, em suma, as seguintes conclusões:

I – Justificava-se a necessidade da alteração do regime de regulação do exercício das responsabilidades parentais anteriormente estabelecido.
II - Da Petição Inicial constam os factos concretos que justificam a necessidade da alteração desse regime.
III - Quer quanto às visitas, quer quanto ao montante dos alimentos.
IV - Não constando da Petição Inicial o montante exacto para o qual deveria ser aumentada a pensão de alimentos devidos à menor, pelo progenitor (anteriormente fixado em 100 € mensais) e;
V - Não o indicando a progenitora, posteriormente, após ter sido notificada para o efeito.
VI – A consequência não poderá ser a da verificação da excepção dilatória de nulidade do processo, por ineptidão da Petição Inicial e a absolvição da instância.

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Colhidos os vistos, cumpre decidir.
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II- Do objecto do recurso.

Sabendo-se que o objecto do recurso é definido pelas conclusões no mesmo formuladas, sem prejuízo do que for de conhecimento oficioso, as questões decidendas são, no caso, as seguintes:

- Apreciar da existência da excepção dilatória de nulidade de todo o processo, por ineptidão da petição inicial.
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III- FUNDAMENTAÇÃO.

Fundamentação de facto.

Com relevância para a decisão da causa, da decisão recorrida constam, designadamente, os seguintes fundamentos de facto e de direito:
(…)

Estabelece o art. 42º do RGPTC que:

“1. Quando o acordo ou a decisão final não sejam cumpridos por ambos os pais, ou por terceira pessoa a quem a criança haja sido confiada, ou quando circunstâncias supervenientes tornem necessário alterar o que estiver estabelecido, qualquer um daqueles ou o Ministério Público podem requerer ao tribunal, que no momento for territorialmente competente, nova regulação do exercício das responsabilidades parentais.
2 - O requerente deve expor sucintamente os fundamentos do pedido e:
(…)
3. O requerido é citado para, no prazo de 10 dias, alegar o que tiver por conveniente.
4 - Junta a alegação ou findo o prazo para a sua apresentação, o juiz, se considerar o pedido infundado, ou desnecessária a alteração, manda arquivar o processo, condenando em custas o requerente.
Ora, deste preceito legal resulta que para que se possa alterar a decisão, transitada em julgado, que regulou o exercício das responsabilidades parentais é necessário a verificação de determinados requisitos:

- incumprimento do regime por ambos os pais; ou
- circunstâncias supervenientes que tornem necessário nova regulação.

Porém, para que se possa proceder à alteração exige-se que o requerente “alegue factos concretos do incumprimento de ambos os progenitores ou referentes às circunstâncias supervenientes que, em seu entender, justificam essa alteração” (Tomé Ramião, Regime Geral do Processo Tutelar Cível Anotado e Comentado, p. 176).
Na verdade, embora se esteja perante um processo especial, regulado no regime geral do processo tutelar cível, aplica-se subsidiariamente o Código Processo Civil, nomeadamente a necessidade de o requerente “expor os factos essenciais que constituem a causa de pedir” (art. 552º, nº 1, al. d) do CPC, aplicável por força do art. 33º do RGPTC).
E, nos termos do art. 186º, nº 2 do CPC, diz-se “inepta a petição: quando falte ou seja ininteligível a indicação do pedido ou da causa de pedir”.
Daí que, como se afirma no Ac. TRL de 19.10.1999, CJ IV, 129: “o requerente deve formular um pedido concreto, sem o que o tribunal não pode atuar nem decidir. (…) Se a parte se limitou a requerer ao tribunal a revisão da situação de um menor, quanto a alimentos, não formulando um pedido concreto, nem alegando qualquer facto, e se, convidada a esclarecer e complementar o requerimento, nada veio dizer, deve considerar-se inepto tal requerimento, não havendo lugar à convocação de conferência de pais”.
No mesmo sentido Ac. TRG de 19.03.2013, proc. 6558/05.0TBGMR-D.G1, disponível em www.dgsi.pt “No âmbito da acção de alteração de acordo ou decisão final referente à regulação do exercício do poder paternal, (…) nada obsta a que, conclusos os autos, e em sede de despacho liminar, venha o juiz titular a proferir decisão de indeferimento liminar do requerimento inicial. 2.- O referido (…) poderá verificar-se, designadamente, quando, apesar de o requerente no articulado onde deduz o pedido, estar obrigado a expor os fundamentos do mesmo – v.g. a ocorrência de circunstâncias supervenientes - nada de concreto alega que o justifique. 3.- É que, ocorrendo a omissão (…) padece em rigor o articulado referido do vício de ineptidão, por falta de indicação de causa de pedir, consubstanciando ele uma excepção dilatória de conhecimento oficioso insuprível, não podendo ser sanada, fulminando o legislador a sua verificação com a nulidade de todo o processo. 4.– Ademais, não se olvidando que os processos tutelares cíveis são considerados de jurisdição voluntária, (…) o certo é que, mesmo no âmbito da respectiva tramitação, lícito não é postergarem-se os necessários pressupostos processuais e substantivos aplicáveis”.

No caso concreto, analisando o requerimento inicial não constam os concretos factos que permitam concluir pela necessidade de alterar o regime de regulação das responsabilidades parentais, nomeadamente as circunstâncias que justificam uma alteração da prestação de alimentos (por exemplo, das concretas despesas que a menor passou a ter e que antes não tinha) ou que permitam concluir pela necessidade de alterar o regime livre de visitas (por exemplo, referindo as concretas tentativas de visitas que não foram realizadas por incumprimento dos progenitores ou outras circunstâncias que as impeçam).
E esta falta de concretização dos factos não foi suprida, mesmo após a formulação do convite ao aperfeiçoamento dirigido primeiro ao Requerente e depois à progenitora.
Sendo assim, é manifesto que o requerimento inicial padece de ineptidão, nos termos do disposto no artigo 189.º, n.º1 e n.º2, al. a) do CPC, vício do qual o Tribunal pode conhecer oficiosamente, nos termos do disposto no artigo 196.º do CPC e que, determinando a nulidade do processo, constitui uma excepção dilatória que implica a absolvição da instância dos Requeridos (artigo 278.º, n.º1, al. b) e 577.º, al. b) do CPC).

Fundamentação de direito.

Com evidência decorre de tudo o exposto que a única questão objecto da presente apelação consiste na de saber se, de facto, na presente situação se verifica ou não a existência da excepção dilatória de nulidade de todo o processo, por ineptidão da petição inicial que foi declarada na decisão recorrida, e que o Recorrente considera não se verificar, pois que, em sua opinião, da petição Inicial constam os factos concretos que justificam a necessidade da alteração desse regime, quer quanto às visitas, quer quanto ao montante dos alimentos.

Como é consabido, o processo é de todo nulo sempre que a petição inicial se considere inepta, v.g. quando haja falta ou ininteligibilidade, quer do pedido, quer da causa de pedir ou, ainda, quando o primeiro esteja em contradição com o segundo - Art. 186º do CPC.

No que concerne ao conteúdo componente da petição inicial, deriva da mera leitura do preceituado no art. 552º que o autor deve expor os factos e as razões de direito que servem de fundamento à acção, como lógico antecedente da pretensão que pretende formular.

Decorrência lógica do funcionamento do princípio do dispositivo, em vigor no ordenamento processual, é sobre aquele que invoca a titularidade de um direito - autor - que recai o ónus de alegação dos factos de cuja prova seja possível concluir pela existência desse direito - art. 5 nº1, do CPC.

Na realidade, o Processo Civil surge como o instrumento privilegiado de realização do direito privado, não cabendo ao Tribunal a função de recolha de factos com interesse para a resolução de qualquer litígio que seja incumbido de resolver (art. 5º, nº 3, CPC), embora tal não prejudique a atendibilidade de factos instrumentais advenientes da discussão da causa (art. 5º, nº2).

Nesta consonância, a narrativa em que se consubstancia a petição inicial há-de conter, pelo menos, «os factos pertinentes à causa e que sejam indispensáveis para a solução que o Autor quer obter: os factos necessários e suficientes para justificar o pedido».

A causa de pedir consiste no acto ou facto jurídico (simples ou complexo, mas sempre concreto) donde emerge o direito que o autor invoca e pretende fazer valer, sendo certo que este direito não pode ter existência (e por vezes nem pode identificar-se) sem um acto ou facto jurídico que seja legalmente idóneo para o condicionar ou produzir(1).

Dito de outro modo: a causa de pedir consiste no acto ou facto jurídico em que o autor se baseia para formular o seu pedido (2), traduzindo-se a indicação da causa de pedir na individualização daquele acto ou facto.

É evidente que não é exigível que o autor faça uma exposição completa do elemento factual (3). Todavia, não pode deixar de considerar-se que uma indicação de qualquer um dos elementos integradores da causa de pedir em termos genéricos pode importar uma individualização da causa de pedir que não constitui especificação suficiente do facto jurídico de que procede a pretensão e que leva à ineptidão da petição inicial (4).

Como ensina o Prof. A. de Castro (5), não deve buscar-se uma noção de causa de pedir única para todos os efeitos, v. g., caso julgado, litispendência, alteração do pedido no decurso da causa (ou, acrescentamos nós, para aplicação do instituto da ineptidão da petição inicial), antes se devendo procurar a solução que melhor se ajuste para cada efeito, havendo que adoptar o conceito mais adequado aos fins próprios de cada instituto – causa de pedir referida a factos concretos (para efeitos de caso julgado) e causa de pedir referida a categorias factuais abstractas (no que toca à alteração superveniente da causa de pedir e da litispendência).

Ao delinear o regime da ineptidão da petição inicial a intenção e finalidade da lei foi “impedir o prosseguimento duma acção viciada por falta ou contradição interna da matéria objecto do processo, que mostra desde logo não ser possível um acto (unitário) de julgamento, «judicium»” (6), ou dito de outro modo, com “a figura processual da ineptidão da petição inicial visa-se, em primeiro lugar, evitar que o juiz seja colocado na impossibilidade de julgar concretamente a causa, decidindo sobre o mérito, em face da inexistência do pedido ou da causa de pedir, ou do pedido e da causa de pedir que se não encontrem deduzidos em termos inteligíveis, visto só dentro dessas balizas se mover o exercício da actividade jurisdicional declaratória do direito”, sendo certo que além desse propósito de circunscrever e definir os poderes do juiz quanto à actividade decisória, a figura da ineptidão propõe-se “ainda impedir se faça um julgamento sem que o réu esteja em condições de se defender capazmente, para o que carece de conhecer o fundamento do pedido contra ele deduzido” (7).

Pode afirmar-se, pois, que com o instituto da ineptidão da petição inicial se visa obstar ao prosseguimento de acções onde esteja logo à partida coarctada a possibilidade de o juiz proceder a um julgamento sobre o fundo da causa (julgamento de facto e de direito) por a peça que introduz o feito em juízo padecer de qualquer dos vícios enumerados no nº 2 do art. 186º do C.P.C. – seja porque impede ou dificulta em termos irrazoáveis e desproporcionados a defesa do réu, seja porque não carreia para os autos os factos que constituem o objecto do processo e nos quais o juiz se pode basear para decidir o litígio (art. 5, nº 1 a 3 do C.P.C.).

A opção do nosso legislador (art. 581º, nº 4 do C.P.C.) pela teoria da substanciação, em detrimento da teoria da individualização, no que à causa de pedir concerne, implica que o preenchimento da causa de pedir supõe a alegação dos factos essenciais que se inserem na previsão abstracta da norma ou normas jurídicas definidoras do direito cuja tutela se busca através do processo (8).

Essa individualização do acto ou facto concreto que suporta a pretensão de tutela formulada em juízo deve ser efectuada em termos inteligíveis, permitindo apreender com segurança a causa de pedir. Devem ser expostos com clareza os fundamentos da pretensão, devendo ser considerada inepta a petição que se apresente em termos obscuros ou ambíguos, por forma a impedir a apreensão segura da causa de pedir (9).

Importa distinguir entre falta de causa de pedir e causa de pedir deficiente, já que apenas o primeiro caso configura o vício da ineptidão da petição inicial, gerador da nulidade de todo o processo (art. 193º, nº 1 e 2, a) do C.P.C.), sendo que só o segundo permite o recurso ao aperfeiçoamento, nos termos do art. 508º, nº 1, b) e 3 do C.P.C..

A petição deficiente (quando tal vício não seja colmatado) é censurada ao nível do mérito da causa, enquanto a petição inepta importa a absolvição da instância (por nulidade de todo o processo).

A petição deficiente (e sendo certo que se descura aqui a deficiência que implica a ineptidão – a ausência de alegação de factos essenciais à delimitação do fundamento factual da pretensão constitui também uma deficiência, mas uma deficiência radical e absoluta) é constituída por aqueles casos em que ocorre uma insuficiência – sendo a peça em questão clara e suficiente quanto à causa de pedir, omite todavia factos ou circunstâncias necessários para o reconhecimento do direito do autor (10).

Não sendo fácil distinguir entre situações de causa de pedir imperfeita (mas ainda assim meramente deficiente) e situações em que falta a causa de pedir, designadamente os casos em que o autor faz, na petição, afirmações mais ou menos vagas e abstractas, que umas vezes descambam na ineptidão por omissão de causa de pedir, outras na improcedência por falta de material de facto sobre que haja que de assentar o reconhecimento do direito (11), temos por seguro, para encontrar a linha de fronteira entre as duas situações, um critério pragmático que assenta num juízo de prognose acerca da delimitação do caso julgado, pressupondo uma sentença favorável ao autor (12) - ‘projectando no futuro a decisão, se for então possível determinar concretamente qual a situação jurídica que foi objecto de apreciação jurisdicional, sem correr riscos de repetição da causa, não se verificará a falta de causa de pedir; já quando, por falta de invocação de qualquer matéria de facto, por grave deficiência na sua descrição ou por falta de localização no espaço e no tempo, for previsível o risco de repetição da causa ou se tornar impossível a averiguação da relação jurídica anteriormente litigada deverá concluir-se pela ineptidão da petição inicial’.

Realce-se que apenas a petição deficiente pode ser objecto de despacho de aperfeiçoamento, nos termos dos art. 265º, nº 2, 278º, nº 3 e 590º, nº 1, b) e 3 do C.P.C..

Sendo irrefutável que a reforma processual operada pelos DL 329-A/95, de 12/12 e 180/96, de 25/09, tentou reduzir, até limites razoáveis, as situações em que, por falta dos pressupostos processuais ou por qualquer outra razão relacionada com a constituição da relação jurídica processual, o tribunal se veja confrontado com a necessidade de proferir decisão de absolvição da instância, consagrando um alargamento da possibilidade de salvar a acção inquinada por algum dos vícios impeditivos do conhecimento de mérito, onde avulta a solução arrojada plasmada no nº 3 do art. 278º do C.P.C., o certo é que o alargamento (relativamente ao regime processual pretérito) de tal possibilidade de sanação ficou ainda reservada para aquelas situações resultantes de falhas menores que deixam intacta a estrutura fundamental da instância (13).

Assim, nem todas as situações que configurem excepções dilatórias são susceptíveis de sanação (são insusceptíveis de sanação a ilegitimidade singular, a incompetência absoluta, o caso julgado e a litispendência, assim como a falta de personalidade judiciária, fora dos casos previstos no art. 14º do C.P.C.).

A ineptidão da petição inicial, traduzindo-se em nulidade absoluta que afecta todo o processo, constitui uma excepção dilatória nominada (art. 577º, nº 1, b) do C.P.C.).

Trata-se de excepção dilatória cuja sanação está prevista tão só em dois casos – através do mecanismo constante do nº 3 do art. 186º do C.P.C. ou em função da ampliação da matéria facto feita no articulado réplica, quando este for admitido (14).

A falta ou ininteligibilidade da causa de pedir são insupríveis através do instituto da correcção dos articulados (15) – solução diversa implicaria violação do princípio da estabilidade da instância prescrito no art. 260º do C.P.C. (note-se que as alterações à matéria de facto alegada na petição em decorrência do convite para correcção deste articulado estão circunscritas aos limites do art. 6º do C.P.C., o que logo pressupõe que a causa de pedir esteja já contida na petição, ainda que de forma deficiente, imperfeita ou insuficiente, o que arreda, no nosso modesto entendimento, a possibilidade de considerar que o alargamento dos casos de sanação das excepções dilatórias operadas pela reforma processual civil de 95/96 se afastou da nossa tradição processual civil, que no então art. 477º do C.P.C. (anterior à revisão) reservava o convite ao aperfeiçoamento da petição inicial aos casos da petição deficiente, excluindo desse remédio as petições ineptas).

Assente tudo o exposto, e definida a causa de pedir e estabelecidos os corolários que a configuram, importa agora averiguar da sua existência no caso vertido nos autos.

Ora, a propósito do tipo de acções agora em causa, é certo que como se refere na decisão recorrida:

1- “No âmbito da acção de alteração de acordo ou decisão final referente à regulação do exercício do poder paternal, (…) nada obsta a que, conclusos os autos, e em sede de despacho liminar, venha o juiz titular a proferir decisão de indeferimento liminar do requerimento inicial.
2.- O referido (…) poderá verificar-se, designadamente, quando, apesar de o requerente no articulado onde deduz o pedido, estar obrigado a expor os fundamentos do mesmo – v.g. a ocorrência de circunstâncias supervenientes - nada de concreto alega que o justifique.
3.- É que, ocorrendo a omissão (…) padece em rigor o articulado referido do vício de ineptidão, por falta de indicação de causa de pedir, consubstanciando ele uma excepção dilatória de conhecimento oficioso insuprível, não podendo ser sanada, fulminando o legislador a sua verificação com a nulidade de todo o processo.
4.– Ademais, não se olvidando que os processos tutelares cíveis são considerados de jurisdição voluntária, (…) o certo é que, mesmo no âmbito da respectiva tramitação, lícito não é postergarem-se os necessários pressupostos processuais e substantivos aplicáveis”.

Todavia este citado acórdão acrescenta ainda o seguinte:

5.- É que, se nos referidos processos e em sede de julgamento, há-de o Juiz procurar sempre a melhor solução, privilegiando os critérios de equidade sobre os da legalidade estrita, tal critério vale para a decisão ou o julgamento, que não propriamente para os pressupostos dela mesma, maxime os processuais, não sendo, em suma, o processo de jurisdição voluntária, o remédio e/ou a panaceia que permite suprir todas as irregularidades e aligeirar o princípio da auto-responsabilidade das “partes” que, ainda que mais mitigado, nele vigora também.

E assim sendo, mesmo sendo certo que são os mesmos os princípios, ao nível processual, aplicáveis a qualquer outra acção, os que são aplicáveis aos processos de jurisdição voluntária, e que não devem ser acentuadamente aligeirados nestas situações, é igualmente verdadeiro que o princípio da auto responsabilidade das partes aparece nestas situações mais mitigado, ou seja, mais amenizado na sua exigência de efectivação.

Ora, isto posto, e sem perder de vista que se está perante um processo de jurisdição voluntária, em que além da prossecução dos interesses dos progenitores, está também, e, essencialmente em causa, a prossecução do interesse dos menores, e sendo certo que reconhecendo-se que a petição inicial está muito longe de conter a alegação de uma factualidade que de um modo perfeitamente sustentado e completo exprima ou expresse factualidade que sustente uma alteração de circunstâncias plenamente justificativas das alterações do regime de regulação do poder paternal requeridas, nem por isso se deixa de entender que, não obstante o acabado de referir, a petição inicial contém um conteúdo mínimo que permite fundamentar a requerida alteração do regime de visitas.

Assim, e por decorrência, em nosso entender, a petição inicial será apenas inepta no que concerne à requerida alteração da prestação alimentar, pois que, como se refere na decisão recorrida, “analisando o requerimento inicial não constam os concretos factos que permitam concluir pela necessidade de alterar o regime de regulação das responsabilidades parentais, nomeadamente as circunstâncias que justificam uma alteração da prestação de alimentos”, tendo-se o Requerente limitado a requerer ao tribunal a revisão da situação de um menor, quanto a alimentos, não formulando um pedido concreto.


Na verdade, sendo certo que, como e bem se referre na decisão recorrida, na petição inicial não são alegadas circunstâncias supervenientes assentes numa aferição e/ou análise comparativa entre o estado actual das coisas e aqueloutro que existia aquando do acordo ou da prolação da decisão em vigor, sendo evidente que de modo mais cabal e linear só após o confronto de ambas é que possível concluir estar-se perante uma alteração anormal, que não apenas perante uma mera evolução natural e previsível do "status quo ante" acordo e/ou decisão, os factos alegados, não deixam, mesmo assim, nas concretas circunstâncias, de permitir concluir pela eventual existência de um incumprimento do acordo vigente no concernente ao regime de visitas.

Como é consabido, são dois os pressupostos da alteração do regime do poder paternal, sendo eles, por uma banda, o incumprimento por ambos os pais, ou, por outro lado, a verificação de circunstâncias supervenientes que obrigam e justificam a alteração do regime estabelecido.

Analisada a factualidade alegada na petição dela consta, designadamente, a seguinte:

- A 7/12/2016, foi proferida sentença homologatória do acordo obtido no processo de Regulação do Exercício das Responsabilidades Parentais nº 2087/16.5T8CHV-J2.
- Entretanto, alteraram-se as circunstâncias de facto relativas aos progenitores.
- Com efeito,

No referido acordo, ficou a constar que o pai poderia estar com a filha sempre que quisesse, devendo para o efeito avisar previamente a mãe.
- Porém, não tem havido entendimento entre os progenitores, relativamente às visitas (aos períodos em que a filha pode estar com o pai).
- E esse desentendimento entre os progenitores (o pai pretender períodos em que a mãe não pode e vice-versa), levou mesmo a conflitos que originaram o processo de Inquérito com o número 434/18.4PBCHV, que terminou com um despacho de arquivamento por desistência do procedimento criminal.

Ora, uma tal factualidade é indubitavelmente, em si mesma, suficiente para se poder conclui que o regime de “livre acesso” à filha, por parte do pai, não tem funcionado, por falta de acordo entre ambos quanto à determinação dos concretos períodos de visitas, sendo, por isso, premente a necessidade de alterar este regime fixando-se um outro mais rígido que não deixe na disponibilidade dos progenitores este aspecto, potenciador de conflitos, sobre o qual se não conseguem entender, e do que decorrem evidentes e nefastas consequências para a própria menor.

Como óbice a esta decisão poderia colocar-se a questão de saber se se afigura possível declarar a ineptidão parcial da petição, ou se, pelo contrário, se terá sempre de declarar a ineptidão total.

Ora salvo o devido respeito por diversa opinião somos de entender que inexistem obstáculos processuais relevantes que impeçam esta decisão, pois que, que, como se refere no Acórdão da Relação do Porto de 15/12/2016, “Ocorre a ineptidão da petição inicial quando esta contém deficiências que comprometem irremediavelmente a sua finalidade, o que determina a nulidade de todo o processo (art.º 186.º 1 do CPC) e conduz à absolvição da instância [art.ºs 576.º 1 e2; 577.º al. b); e, 278.º 1 al. b), do CPC].
Através da figura da ineptidão da petição inicial pretende-se evitar que o tribunal seja colocado na situação de impossibilidade de julgar correctamente a causa.
Assinala-se, desde já, que embora o CPC não refira expressamente a possibilidade de ineptidão parcial da petição inicial, entende-se que também não há razões para sustentar a inexistência da figura e, logo, considera-se que seja admissível quando inexista causa de pedir para parte do pedido [cfr., Ac. do STJ de 17-03-1998, proc.º n.º 213/98, Conselheiro Garcia Marques, disponível em www.dgsi.pt]”.

Por tudo o exposto, na parcial procedência da apelação, considera-se verificada a excepção dilatória da ineptidão parcial da petição inicial, e, por decorrência, revoga-se a decisão recorrida quanto à requerida alteração do regime de visitas, determinando o prosseguimento normal dos autos quanto a este aspecto, confirmando-se a decisão recorrida com relação ao restante teor.

IV- DECISÃO.

Pelo exposto, acordam os Juízes desta secção cível do Tribunal da Relação de Guimarães em julgar parcialmente procedente a apelação, considerando-se verificada a excepção dilatória da ineptidão parcial da petição inicial, revogando-se, por decorrência, a decisão recorrida quanto à requerida alteração do regime de visitas, determinando o prosseguimento normal dos autos quanto a este aspecto, confirmando-se a decisão recorrida com relação ao seu restante teor.

Sem custas.
Guimarães, 06/ 02/ 2020

José Alberto Martins Teixeira
José Amaral (com voto de vencido)
Helena Maria Carvalho Gomes Melo

Votei vencido, em parte, porque, sem prejuízo do respeito devido pelo entendimento maioritário, teria igualmente revogado a decisão recorrida quanto aos alimentos, por não me parecer estar-se, também aí, ante uma absoluta “falta de factos concretos” que, de todo, inviabilize a demonstração das “circunstâncias supervenientes” justificativas da alteração do valor da prestação fixada.
Se assim fosse, e pressupondo-se ser admissível despacho liminar (o que não me parece líquido, por se me afigurar intencional o pormenor de tal não constar previsto na lei e de nesta se ter diferido para momento subsequente à citação a apreciação, ainda em fase prematura, dos fundamentos e da necessidade da alteração – artº 42º, nº 4, do RGPPTC), então, em vez do convite ao aperfeiçoamento, era logo que, coerentemente, devia ter sido julgada a ineptidão e declarada a nulidade de todo o processo.
É que aquele expediente correctivo pressupõe a formulação de um juízo segundo o qual existe uma alegação deficitária corrigível e completável (que, se não for acatado, leva à improcedência). Não serve para suprir o vício de falta de causa de pedir ou de pedido, nem, uma vez assumida aquela opção, retroceder e fulminar a petição.
Sendo complicada a questão da admissibilidade da ineptidão parcial e da consequente nulidade parcial, neste tipo de processo ela é ainda mais problemática por o ser a cisão entre pedidos e causas de pedir respeitantes à “regulação”.
Foi alegado que "aumentaram as despesas com a menor, sendo a quantia de 100,00€ fixada insuficiente para a satisfação das suas necessidades" e, embora seja certo que estas não foram densificadas nem a medida do pretendido aumento concretizada, não me parece que, aqui, mais deva ser exigível (embora fosse desejável) e que deva ser sancionado com a nulidade, pois, como resulta dos autos, aquele valor foi o fixado em 2016, quando a criança tinha apenas um ano de idade e agora está quase a fazer cinco, circunstâncias objectivas que conferem comum e notória plausibilidade àquela hipótese.
Tratando-se de processo especial para o qual a lei estabelece como “princípio orientador” a “simplificação e oralidade” (artº 4º, nº 1, alínea a), do RGPTC), com a natureza do de “jurisdição voluntária” (artº 12º), o juiz tem amplos poderes instrutórios (artº 21º, 34º, nº 2, 42º, nº 6), investiga livremente os factos e toma a decisão segundo critérios de conveniência e oportunidade (986º a 988º, CPC) apenas obedientes a um princípio último (o interesse superior da criança).
Logo, o grau de exigência na formulação da causa de pedir e do pedido é muito mais baixo do que nas acções puramente contenciosas, sendo que, na espécie, se confinam a uma “exposição sucinta” (artº 42º, nº 2) bastante para que os requeridos sejam citados (nº 3), só depois se decidindo sobre a existência de fundamentos (nº 4).
Não cabendo ao juiz a iniciativa processual (motivo por que sempre a instância terá de ser iniciada por algum dos sujeitos a quem a lei a comete (art. 17º, nºs 1 e 2, 42º, nº 1, e 45º, nº 1), os parâmetros do requerimento (para dar início a um processo ou a um incidente) deverão ser mais largos do que no processo civil e os critérios de aferição dos respectivos fundamentos e pedido não poderão ter a mesma espessura e rigidez que os dos artº 5º e 552º, nº 1, alíneas d) e e), do CPC (menos ainda do que aqueles que a jurisprudência e doutrina tradicionais preconizavam quanto à ineptidão para a fulminar com a nulidade).
O próprio legislador, ao prever a observância das “regras de processo civil”, cuidou de ressalvar as “que não contrariem os fins da jurisdição de menores”.
O princípio dispositivo aplica-se, neste processo, em termos menos rígidos e com efeitos mais temperados pelo do inquisitório, tal como o da auto-responsabilidade com o da cooperação.
A apreciação da justiça material do caso não deve ser obstaculizada a priori com base num fundamento de natureza adjectiva cuja existência e consistência não se perfilam de modo certo e seguro como inequívocas nem como irremediáveis, para mais desembocando numa solução para o processo (validade parcial quanto ao regime de visitas e prosseguimento quanto a estas) que é formalmente discutível, sobretudo tendo em conta que a parte restante (considerada afectada pela invalidade) consubstancia um dos dois aspectos em que também se analisa o nuclear exercício das responsabilidades parentais alvo da regulação cuja alteração se pretende e que, assim, fica cindido e reduzido a um único quando, afinal, no centro da substância do litígio está a criança e o seu superior interesse (em todas as vertentes).
Se o Mº Pº, como curador dos menores, pode requerer a alteração dos alimentos artº 45º, nº 1) e se, para tal, basta que qualquer pessoa lhe “comunique” tal necessidade (nº 2), também, em vista dessa pressuposta simplicidade e celeridade e por maioria de razão, não parece que mais lhe seja exigível do que uma “exposição sucinta” (artº 42º, nº 2) – tendo em conta, aliás, que naturalmente há-de ser restrito, na maioria dos casos, o seu conhecimento das circunstâncias concretas e escasso o tempo para agir pronta e oportunamente em prol dos interesses de certa criança que lhe foram sinalizados como carecidos de reapreciação, condicionalismos dificilmente compatíveis e sempre “superiores” aos rigores do procedimento formal.


1. Cfr. Manuel de Andrade, Noções Elementares de Processo Civil, 1979, p. 111.
2. Cfr. J. A. dos Reis, Comentário ao Código de Processo Civil, Vol. 2º, p. 369.
3. Cfr. A. de Castro, Direito Processual Civil Declaratório, 1981, Vol. II, pag. 221.
4. Cfr. Castro Mendes, Direito Processual Civil, III, pag. 48.
5. Direito Processual Civil Declaratório, 1981, Vol. I, pp. 209 a 211
6. Cfr. Castro Mendes, Direito Processual Civil, III, pag. 47.
7. Cfr. A. de Castro, Direito Processual Civil Declaratório, 1981, Vol. II, pp. 219 e 220.
8. Abrantes Geraldes, Temas da Reforma do Processo Civil, I Volume, 2ª edição revista e ampliada, p. 193.
9. Abrantes Geraldes, Temas da Reforma do Processo Civil, I Volume, 2ª edição revista e ampliada, p. 211.
10. J. A. do Reis, Comentário …, Vol. 2º, p. 372.
11. J. A. dos Reis, Comentário …, Vol. 2º, p. 374.
12. Critério proposto por Abrantes Geraldes, Temas da Reforma do Processo Civil, I Vol, 2ª edição revista e ampliada, reimpressão, p. 209, em nota (nota 377), sendo daí retirada a citação que se segue em texto.
13. Abrantes Geraldes, Temas da Reforma do Processo Civil, II Vol, 2ª edição revista e ampliada, pp. 64 e 65.
14. Assento nº 12/94, no DR, Iª Série A, de 21/07/94, que fixou jurisprudência no sentido de que a nulidade resultante de simples ininteligibilidade da causa de pedir é sanável através de ampliação fáctica em réplica, se o processo a admitir.
15. Cfr. Abrantes Geraldes, Temas da Reforma do Processo Civil, I Vol, 2ª edição revista e ampliada, reimpressão, pp. 65 e 66 e Temas da Reforma do Processo Civil, I Vol, 2ª edição revista e ampliada, reimpressão, p. 208 (nota 375).