MAIOR ACOMPANHADO
FUNDAMENTOS DO ACOMPANHAMENTO
CONTEÚDO DO ACOMPANHAMENTO
INSUFICIÊNCIA DA MATÉRIA DE FACTO
SUPRIMENTO PELA RELAÇÃO
Sumário


I- Não indicando a recorrente, relativamente aos meios de prova referenciados nas alegações, quais os concretos pontos de facto que considera incorretamente julgados ou a decisão que, no seu entender, deve ser proferida sobre a matéria de facto relevante para a apreciação da causa, nem especificando expressamente nas conclusões das alegações eventuais modificações que preconize introduzir à decisão de facto constante da sentença recorrida ou factos que pretenda ver excluídos da factualidade provada e/ou não provada, verifica-se o incumprimento do ónus previsto nos artigos 639.º, n.º 1, e 640.º, n.º 1, do CPC, o que configura fundamento de rejeição do recurso relativo à matéria de facto;

II- Tal não impede o tribunal de recurso de aferir se é patente algum vício na decisão sobre a matéria de facto que caiba apreciar oficiosamente, ao abrigo do disposto no artigo 662.º, n.º 2, al. c), do CPC, designadamente quando a decisão da matéria de facto seja deficiente, obscura, contraditória ou incompleta;

III- Constando do processo todos os elementos necessários para suprir as deficiências detetadas e a manifesta insuficiência da matéria de facto dada como provada à luz dos factos alegados e demais circunstâncias que decorrem do exame pericial ao estado mental do requerido pode o Tribunal da Relação colmatar tais deficiências, ampliando a factualidade dada como provada com matéria que entenda assumir relevo para a decisão final da causa, atendendo ao que foi alegado e ao que resulta dos documentos e dos relatórios periciais juntos, procedendo ainda às alterações ao elenco dos factos já tidos como provados que se revelem necessárias para não haver contradição insanável de tal matéria com os aditamentos determinados e perante a reponderação dos meios de prova que se encontram disponíveis e sobre os quais o Tribunal a quo baseou a sua convicção;

IV- Confrontando os traços essenciais do regime jurídico do maior acompanhado com os institutos da interdição e da inabilitação por aquele eliminados facilmente se constata um alargamento dos fundamentos do acompanhamento de maiores bem como uma maior flexibilidade na definição do conteúdo desse mesmo acompanhamento;

V- Justifica-se que o requerido beneficie de uma medida de acompanhamento se os factos que caracterizam os contornos da deficiência de natureza psicológica detetada, traduzida em défice de controlo de impulsos no contexto de estruturação disfuncional da personalidade (perturbação explosiva da personalidade), levam à necessidade de imposição de determinados limites e a ponderação de um especial auxílio sobretudo ao nível do livre exercício de atos de disposição e também de administração do património do requerido, exigências que levam a concluir que o objetivo do acompanhamento não é susceptível de ser salvaguardado através dos meros deveres gerais de cooperação e de assistência, designadamente os decorrentes de relações familiares.

Texto Integral


Acordam na 2.ª Secção Cível do Tribunal da Relação de Guimarães:

I. Relatório

R. L. instaurou no Juízo Local Cível de Guimarães - Juiz 3 - em 13-07-2017, acção especial de inabilitação por anomalia psíquica relativamente a seu filho J. A., solteiro, nascido a ..-08-1999 consigo residente, alegando, no essencial, que o mesmo padece de Síndrome de Hiperatividade e Impulsividade com grave comprometimento do funcionamento social e dos processos de autonomização, manifestando-se a nível comportamental através de alterações dos processos de pensamento, ansiedade, obsessões e compulsões, comportamentos bizarros, com início na infância, encontrando-se profundamente afetado psicologicamente pois vive num mundo de ilusão, não dispondo do discernimento necessário para avaliar o sentido e o alcance do seu consentimento, dos seus atos, decisões e respetivas consequências, estando impedido de ter lucidez e discernimento para reger a sua vida e o seu património, pelo que necessita de quem legalmente o represente e supra a sua incapacidade, que é total, atual e duradoura. Mais requereu a sua nomeação como curadora do requerido e indicou quem considera dever ser nomeado para o conselho de família.

Recebida a petição, procedeu-se à afixação de editais e à publicação de anúncio, tendo sido efetuada a citação pessoal do requerido, com recusa deste em assinar a certidão e a receber os duplicados legais, após o que foi dado cumprimento ao disposto no artigo 231.º, n.º5, do Código de Processo Civil (CPC).

O Tribunal a quo procedeu à nomeação de curador provisório ao requerido, o qual foi citado em representação deste, não tendo apresentado contestação.

O Ministério Público foi citado, nos termos e para os efeitos previstos no artigo 21.º, n.º1, do CPC, não tendo apresentado contestação.

O requerido foi então submetido a exame pericial (artigo 896.º do CPC, na anterior redação), pela competente delegação do INML, com os resultados que constam do relatório da perícia médico-legal de psiquiatria, junto ao processo e oportunamente notificado à requerente e ao Ministério Público, após o que foi determinado que os autos seguissem a forma comum de processo.

Com a entrada em vigor, em 10-02-2019, da Lei n.º 49/2018, de 14-08, foi determinada a notificação da requerente para indicar nos autos a medida ou medidas de acompanhamento adequadas ao caso concreto, o que veio a fazer, indicando como adequadas as seguintes medidas: «- Representação geral do Requerido; - Administração total do património do Requerido; - Autorização prévia para aquisição de bens móveis sujeitos a registo».

Foi então determinada a realização de nova perícia ao requerido, com o objetivo de determinar qual a afeção de que o requerido padece, quais as suas consequências, a data provável do seu início, os meios de apoio e de tratamento aconselháveis, agora solicitada a outra delegação do INML, com os resultados que constam do relatório da perícia médico-legal - psiquiatria - perícias e exames junto ao processo e oportunamente notificado à requerente e ao Ministério Público, após o que foi o Perito subscritor do relatório pericial notificado para complementar o relatório que apresentou com as indicações previstas no artigo 899.º, n.º1, do CPC, o que veio a fazer.
Foi notificado o … para informar nos autos se se encontra registado nas suas bases de dados testamento vital outorgado pelo requerido e/ou procuração para cuidados de saúde.
Procedeu-se à audição do requerido/beneficiário.
Foram ainda solicitadas informações junto do Lar de … e da … entretanto juntas ao processo.
Por último, teve lugar a inquirição de testemunhas e a tomada de declarações à requerente.
Foi proferida sentença que julgou a ação improcedente, absolvendo o beneficiário do pedido.

Inconformada, recorre a requerente, formulando as seguintes conclusões (que se transcrevem):

«1. A Recorrente não concorda com a decisão proferida, entendendo que deve ser revogada e substituída por outra que julgue a acção procedente, porquanto o Tribunal a quo fez uma errada interpretação e valoração da prova produzida e, ao mesmo tempo, uma errada interpretação e aplicação da lei, devendo ser alterada a decisão de mérito proferida.
2. A Recorrente entende que, em face da prova produzida nos presentes autos, designadamente, aquela que permitiu ao Tribunal de primeira instância formar a sua convicção, impunha-se uma decisão que concluísse pelo decretamento de medidas de acompanhamento ao requerido.
3. O Tribunal a quo limitou-se a concluir que, «analisada a factualidade apurada não resulta que o beneficiário tenha um verdadeiro problema de saúde, entendido como doença, ou que tenha qualquer comportamento errático ou anómalo. O requerido apresenta uma personalidade narcísica, egoísta e vaidosa, a que seguramente a falta de limites na sua educação não será seguramente alheia.” (…) o certo é que, contudo, lido o relatório pericial e o auto de audição, não se vislumbra que o beneficiário não esteja habilitado para reger a sua pessoa e os seus bens: orienta-se no espaço e no tempo, tem capacidade de compreensão do mundo que o rodeia, conhece o dinheiro e tem noção do seu valor; sabe ler, escrever e calcular.
4. Salvo o devido respeito por opinião oposta, entende a Recorrente que mal andou o Tribunal a quo ao ter considerado que, in casu, não resulta que o requerido não esteja habilitado para reger a sua pessoa e os seus bens.
5. Antes de mais, cumpre realçar a conclusão vertida no relatório pericial junto aos autos em 13/12/2018, com a referência 7980351, no qual se diz que «O examinado sofre de perturbação do desenvolvimento intelectual e emocional, associada a alterações psicóticas e de comportamento que comprometem a sua vida de relação e a sua integração social. A doença de que sofre o examinado é uma anomalia psíquica permanente e actual. Do ponto de vista clínico não se pode considerar irreversível, por não estarem esgotados os recursos terapêuticos à luz do conhecimento científico natural. Tal como se encontra nesta altura, o examinado está actualmente incapaz de governar a sua pessoa e bens. O início da presente incapacidade deve ser fixado na sua data de nascimento. Atendendo à sua idade jovem, imaturidade e à possibilidade de poder ainda vir a melhorar o seu estado, deverá beneficiar de quem o represente na gestão da sua pessoa e bens, podendo esta medida ser reavaliada num prazo de 5 anos, no sentido de se apreciar a sua evolução.» - nosso relevo.
6. A Recorrente não percebe os motivos que levaram o Tribunal recorrido a não valorar tal relatório pericial.
7. Ainda que não seja possível retirar do mesmo o nome concreto da doença de que o requerido padece, do mesmo resulta que o requerido mostra-se “incapaz de efectuar qualquer decisão consciente e esclarecida acerca da sua pessoa ou dos seus bens.”, antes optando por sustentar que“a imaturidade emocional e personalidade egocêntricas e narcísicas são características cada vez mais frequentes nos jovens de hoje em dia, fruto de uma educação protectiva, e não são fundamento de qualquer restrição ao livre exercício de direitos - cf. despacho proferido em 16.01.2019, referência 161554970.
8. Tal exame pericial permite concluir, sem margem para dúvidas, que o requerido sofre de anomalia psíquica permanente e actual e que, por via disso, encontra-se impossibilitado de exercer, plena, pessoal e conscientemente, os seus direitos ou de cumprir os seus deveres.
9. Por outro lado, a segunda perícia realizada de fls. 131 e seguintes, que serviu para o Tribunal recorrido estribar a sua convicção, concluiu em igual sentido, senão vejamos: «O Examinando apresenta um notório défice de controlo de impulsos no contexto de estruturação disfuncional da personalidade (Perturbação Explosiva da Personalidade) encontrando-se medicado para controlo dos impulsos. Efectivamente, podem-se apontar traços ou características peculiares na Personalidade do examinado. Como é notória no seu percurso de vida, é uma pessoa com dificuldades em lidar com situações de conflitos, com dificuldades no relacionamento interpessoal, algo focalizado na atitude dos outros para consigo de maneira a que muitos dos seus comportamentos e pensamentos são justificados dessa maneira a que muitos dos seus comportamentos e pensamentos são justificados dessa maneira, vitimizando-se e pouca crítica perante os seus comportamentos e rigidez do pensamento. Manteve-se sempre centrado no presente, desvalorizando comportamentos no passado e que levaram à situação actual. Tal situação condiciona uma deterioração da personalidade e da funcionalidade, tornando-o particularmente débil do ponto de vista psíquico. A sua deficiência é de natureza psicológica, sendo que a deficiência limita o desempenho do Examinando em termos volitivos e cognitivos, condicionando comportamentos de prodigalidade e provocando uma incapacidade para gerir bens, necessitando de supervisão.» - nosso relevo.
10. Acresce que, o Sr. Perito subscritor do relatório referido, por esclarecimento apresentado em 28/06/2016, com a referência 8837299, deu conta ao Tribunal recorrido de que “Considera o Perito que o Examinando não tem capacidade para compreender o alcance dos actos de contrair casamento, constituir uma união de facto, de perfilhar ou de adoptar, de se deslocar livremente pelo país ou de testar.”
11. Ora, da prova pericial carreada para os autos resulta evidente que, ao contrário daquilo que consta da decisão sob censura, estamos perante uma anomalia (na formação e manifestação da vontade) que é incapacitante e faz perigar a pessoa do requerido e os seus bens.
12. E a verdade é que, por motivos que não se compreendem, o Tribunal recorrido ignorou e desconsiderou, em absoluto, o teor desses relatórios periciais, defendendo antes que o requerido apresenta uma personalidade egoísta e vaidosa que se deverá à falta de limites na sua educação.

ADEMAIS,
13. Consta da declaração emitida pela médica do serviço de Pedopsiquiatria do Hospital …, Dr.ª V. R., datada de 03/07/2017, junta com a inicial sob o documento n.º 24, que o requerido apresenta «alterações dos processos do pensamento, ansiedade, obsessões e compulsões, comportamentos bizarros (perturbação psicótico com início na infância). Este adolescente tem grave comprometimento do seu funcionamento global (académico, social, cuidado com o próprio). O J. A. faz múltiplos psicofármacos e a evolução não tem sido favorável.»
14. Ora, conjugando-se as conclusões vertidas neste atestado médico que, em resumo, vai ao encontro das conclusões insertas nos relatórios resultantes das avaliações periciais a que o requerido foi submetido, não se entende como a sua valoração “no âmbito destes autos seria temerária”, como se refere na decisão recorrida.
15. Por outro lado, o próprio auto de audição valorado pelo Tribunal a quo permite concluir, sem margem para dúvidas, que o requerido não consegue sequer compreender o alcance da situação em que se encontra, bem como das medidas de acompanhamento, pois, ao ser-lhe perguntado pela Mma. Juiz a quo «se sabia onde estava e porque aqui teria vindo, este disse estar no tribunal por causa da herança do pai, confessando estar com algum medo de cá estar, pois já fez asneiras no passado.» - nosso relevo.
16. Para além disso, o Tribunal recorrido não deu o devido relevo à factualidade descrita na informação psicológica de fls. 159 e seguintes, da qual resulta que o requerido frequenta, desde Outubro de 2017, “formação adaptada na X, curso 1 - empregado de andares – no âmbito do POISE (Programa Operacional Inclusão Social e Emprego) – tipologia de operação 3.01 - Qualificação das Pessoas com Deficiências ou Incapacidade, com término em Maio de 2020.” – nosso relevo.
17. Ou seja, a própria formação que vem sendo administrada ao requerido pela X - Cooperativa de Educação e Reabilitação de Crianças Indaptadas de …, Cooperativa de Responsabilidade Limitada – apresenta-se adaptada à sua especial situação. Até porque, tal como resulta dos estatutos dessa instituição, um dos seus objectivos principais foca-se no “apoio às pessoas com deficiência e incapacidade ao nível da prevenção e intervenção precoce, da educação e reabilitação, da ocupação e qualificação para o exercício da cidadania, da residência e autonomia para a vida independente.
18. Entende, ainda, a Recorrente que mal andou o Tribunal a quo quando decidiu não considerar a informação psicológica elaborada pela instituição de educação e reabilitação, bem assim como a ficha de avaliação subscrita pela formadora dessa instituição, o que, se tivesse ocorrido, sempre o teria levado a concluir em sentido contrário àquele que se propugna na sentença recorrida.
19. Para além disso, parece-nos que o Tribunal recorrido não valorou devidamente a prova carreada para os autos, designadamente, os depoimentos prestados pela Recorrente - de 01:18 a 03:06; de 11:59 a 13:21 e 13:22 a 17:00 -, e pela testemunha R. V. - de 09:16 a 13:33.
20. Resulta, assim, que tanto a prova documental constante dos autos, como as próprias testemunhas relataram a notória dificuldade de controlo de impulsos, bem assim como a sua incapacidade para gerir o seu quotidiano sozinho e sem orientação, designadamente, na toma da medicação que lhe está prescrita de modo a manter-se de forma mais ou menos estável.
21. Aqui chegados, importa sublinha o entendimento preconizado no acórdão do Tribunal da Relação do Porto, de 03/11/2005, processo n.º 535475, in www.dgsi.pt. «Não é pressuposto, pois, da interdição por anomalia psíquica, a existência de uma típica enfermidade mental, importando, sobretudo, a presença de uma qualquer perturbação, desarranjo ou defeito patológico das faculdades psíquicas, dando lugar a uma incapacidade para prover aos interesses pessoais. Decorre desta mesma ideia que a anomalia psíquica, conquanto imprescindível, não releva, em si, mas enquanto causa da inaptidão.» - nosso relevo.
22. É, pois, neste contexto que o Tribunal de primeira instância deveria ter dado como assente que o requerido sofre de “deficiência de natureza psicológica”, tal como resulta do relatório pericial de fls. 131 e seguintes (do qual o Tribunal recorrido se serviu para dar como provados os factos vertidos nas alíneas b) e f) a i)), e que, no quadro que a factualidade assente evidencia essa anomalia psíquica permanente e actual, caso não sejam tomadas medidas, sempre poderá determinar riscos para a respectiva saúde e património.
23. E, nessa dimensão, não pode deixar de concluir-se que a situação do requerido é susceptível de ser enquadrada no conceito de anomalia psíquica, resultando evidente que o pleno exercício de direitos/cumprimento de deveres e o bem-estar do maior não estarão assegurados pelos meros deveres gerais de cooperação e assistência
24. Desse modo, impunha-se que o Tribunal a quo julgasse a acção totalmente procedente, por provada, e, por conseguinte, procedesse à nomeação da Requerente como acompanhante e lhe cometa a(s) medidas de acompanhamento requeridas de representação geral do requerido, administração total de património do requerido e autorização prévia para aquisição de bens móveis sujeitos a registo.

Termos em que, deve conceder-se provimento ao presente recurso e, consequentemente, na medida das articuladas conclusões e pelo douto suprimento, revogando-se a decisão recorrida, substituindo-a por outra que julgue a acção totalmente procedente, assim se fazendo JUSTIÇA».
Não foi apresentada resposta às alegações pelo Ministério Público.
O recurso veio a ser admitido como apelação, com subida imediata, nos próprios autos, e com efeito devolutivo.

II. Delimitação do objeto do recurso

Face às conclusões das alegações do recorrente e sem prejuízo do que seja de conhecimento oficioso - artigos 608.º, n.º 2, 609.º, 635.º, n.º 4, 639.º, n.º 1, e 663.º, n.º2, do Código de Processo Civil (CPC) -, o objeto do presente recurso circunscreve-se às seguintes questões:

A) Aferir se o erro de julgamento invocado pela apelante incide sobre matéria de facto e se estão verificados os pressupostos que permitem a admissibilidade do recurso respeitante à decisão da matéria de facto; em qualquer caso, se a decisão relativa à matéria de facto é deficiente, obscura ou contraditória, havendo necessidade de a ampliar oficiosamente ou de introduzir as modificações necessárias para o efeito;
B) Reapreciação jurídica da decisão recorrida: se o requerido deverá beneficiar de medidas previstas no regime jurídico do maior acompanhado, concretamente, das medidas de acompanhamento enunciadas na conclusão 24.ª das alegações apresentadas pela apelante - de representação geral do requerido, administração total de património do requerido e autorização prévia para aquisição de bens móveis sujeitos a registo.
Corridos os vistos, cumpre decidir.

III. Fundamentação

1. Os factos

1.1. Os factos, as ocorrências e elementos processuais a considerar na decisão deste recurso são os que já constam do relatório enunciado em I. supra relevando ainda os seguintes factos considerados provados pela 1.ª instância na decisão recorrida:

a) O beneficiário é solteiro, nasceu em 04.08.1999 e é filho de A. S. e de R. L.;
b) O beneficiário apresenta um défice de controlo de impulsos no contexto de estruturação disfuncional da personalidade, tendo dificuldades no relacionamento interpessoal, focalizando-se na atitude dos outros para consigo, vitimizando-se e tendo pouca crítica para o seu comportamento, mas sem qualquer sintomatologia psicótica (relatório médico a fls. 131ss);
c) O beneficiário apresenta alterações recorrentes do temperamento e da personalidade, caracterizadas por períodos de temperamento expansivo, sociável e espressivo exagerado alternados com período de desânimo agravado e revolta aguda e irritabilidade intensa (cfr. informação psicológica a fls. 159ss);
d) O beneficiário tem fraca resistência à frustração e fraco controlo da agressividade verbal que por vezes terminam em auto-agressão (cfr. informação psicológica a fls. 159ss);
e) O beneficiário é muito egoísta, extremamente vaidoso, muito preocupado com a sua aparência física e medroso (cfr. ficha de avaliação a fls. 161ss);
f) O beneficiário compreendeu na íntegra o objectivo do exame pericial a que foi sujeito, tendo pleno conhecimento e consciência da sua situação familiar; (relatório a fls. 131ss)
g) O beneficiário orienta-se no tempo e no espaço (relatório a fls. 131ss e auto de audição);
h) O requerido reconhece o dinheiro e conhece o seu valor (relatório a fls. 131ss e auto de audição);
i) O requerido sabe escrever, ler e calcular (relatório a fls. 131ss e auto de audição).

1.2. A decisão recorrida pronunciou-se ainda no sentido de que «não se demonstrou (antes tendo ficado provado o contrário) que o requerido não tenha noção do espaço que o rodeia e do tempo, não conheça as horas, não distinga os dias, as semanas, os meses, os anos e as estações do ano e não tenha noção do dinheiro nem do respectivo valor».

2. Apreciação sobre o objeto do recurso

2.1. Tal como resulta da análise conjugada do disposto nos artigos 639.º e 640.º do CPC, os recursos para a Relação tanto podem envolver matéria de direito como de facto, sendo este último o meio adequado e específico legalmente imposto ao recorrente que pretenda manifestar divergências quanto a concretas questões de facto decididas em sede de sentença final pelo Tribunal de 1.ª instância que realizou o julgamento, o que implica o ónus de suscitar a revisão da correspondente decisão.

Enunciando os ónus a cargo do recorrente que impugne a decisão relativa à matéria de facto, dispõe o artigo 640.º do CPC o seguinte:

«1 - Quando seja impugnada a decisão sobre a matéria de facto, deve o recorrente obrigatoriamente especificar, sob pena de rejeição:

a) Os concretos pontos de facto que considera incorretamente julgados;
b) Os concretos meios probatórios, constantes do processo ou de registo ou gravação nele realizada, que impunham decisão sobre os pontos da matéria de facto impugnados diversa da recorrida;
c) A decisão que, no seu entender, deve ser proferida sobre as questões de facto impugnadas.
2 - No caso previsto na alínea b) do número anterior, observa-se o seguinte:
a) Quando os meios probatórios invocados como fundamento do erro na apreciação das provas tenham sido gravados, incumbe ao recorrente, sob pena de imediata rejeição do recurso na respetiva parte, indicar com exatidão as passagens da gravação em que se funda o seu recurso, sem prejuízo de poder proceder à transcrição dos excertos que considere relevantes;
b) Independentemente dos poderes de investigação oficiosa do tribunal, incumbe ao recorrido designar os meios de prova que infirmem as conclusões do recorrente e, se os depoimentos tiverem sido gravados, indicar com exatidão as passagens da gravação em que se funda e proceder, querendo, à transcrição dos excertos que considere importantes.
3 - O disposto nos n.ºs 1 e 2 é aplicável ao caso de o recorrido pretender alargar o âmbito do recurso, nos termos do n.º 2 do artigo 636.º».

Relativamente ao alcance do regime decorrente do preceito legal acabado de citar, refere Abrantes Geraldes (1), que «a) Em quaisquer circunstâncias, o recorrente deve indicar sempre os concretos pontos de facto que considera incorretamente julgados, com enunciação na motivação do recurso e síntese nas conclusões; b) Quando a impugnação se fundar em meios de prova constantes do processo ou que nele tenham sido registados, o recorrente deve especificar aqueles que, no seu entender, determinam uma decisão diversa quanto a cada um dos factos; c) Relativamente a pontos da decisão da matéria de facto cuja impugnação se funde, no todo ou em parte, em provas gravadas, para além da especificação obrigatória dos meios de prova em que o recorrente se baseia, cumpre ao recorrente indicar, com exactidão as passagens da gravação relevantes e proceder, se assim o entender, à transcrição dos excertos que considere oportunos; d) O recorrente deixará expressa a decisão que, no seu entender, deve ser proferida sobre as questões de facto impugnadas, como corolário da motivação apresentada, tendo em conta a apreciação crítica dos meios de prova produzidos, exigência nova que vem na linha do reforço do ónus de alegação, por forma a obviar à interposição de recursos de pendor genérico ou inconsequente, também sob pena de rejeição total ou parcial da impugnação da decisão da matéria de facto».

Assim, «a rejeição total ou parcial do recurso respeitante à impugnação da decisão da matéria de facto deve verificar-se em alguma das seguintes situações:

a) Falta de conclusões sobre a impugnação da decisão da matéria de facto;
b) Falta de especificação nas conclusões dos concretos pontos de facto que o recorrente considera incorrectamente julgados;
c) Falta de especificação dos concretos meios probatórios constantes do processo ou nele registados (v.g. documentos, relatórios periciais, registo escrito, etc.);
d) Falta de indicação exacta das passagens da gravação em que o recorrente se funda;
e) Falta de posição expressa sobre o resultado pretendido relativamente a cada segmento da impugnação;
f) Apresentação de conclusões deficientes, obscuras ou complexas, a tal ponto que a sua análise não permita concluir que se encontram preenchidos os requisitos mínimos que traduzam algum dos elementos referidos» (2).

No caso em apreciação, analisadas as alegações de recurso apresentadas pela apelante e correspondentes conclusões, verifica-se que nas mesmas a recorrente não indica, relativamente aos meios de prova referenciados nas alegações, quais os concretos pontos de facto que considera incorretamente julgados ou a decisão que, no seu entender, deve ser proferida sobre a matéria de facto relevante para a apreciação da causa, não especificando expressamente, nas conclusões das alegações, eventuais modificações que preconize introduzir à decisão de facto constante da sentença recorrida ou factos que pretenda ver excluídos da factualidade provada e/ou não provada.

Como tal, resta concluir que a apelante não observou os ónus previstos nos artigos 639.º, n.º 1, e 640.º, n.º 1, als. a), b) e c), do CPC, o que configura fundamento de rejeição do recurso relativo à matéria de facto.

Sustenta, porém, a recorrente, além do mais, não compreender os motivos que levaram o Tribunal a quo a não valorar o relatório pericial junto aos autos a 13-12-2018 porquanto não se afigura que o exame médico realizado não tenha chegado a uma conclusão segura sobre a incapacidade do requerido, como se refere na sentença sob censura, antes vai nesse sentido, porquanto consta expressamente do mesmo, além do mais, que o requerido sofre de anomalia psíquica permanente e atual e que, por via disso, encontra-se impossibilitado de exercer, plena, pessoal e conscientemente, os seus direitos ou de cumprir os seus deveres. Mais defende que a segunda perícia realizada de fls. 131 e ss. - que serviu para o Tribunal recorrido estribar a sua convicção -, concluiu em sentido idêntico ao do primeiro relatório pericial, designadamente que a situação que o examinando apresenta «condiciona uma deterioração da personalidade e da funcionalidade, tornando-o particularmente débil do ponto de vista psíquico. A sua deficiência é de natureza psicológica, sendo que a deficiência limita o desempenho do Examinando em termos volitivos e cognitivos, condicionando comportamentos de prodigalidade e provocando uma incapacidade para gerir bens, necessitando de supervisão», a que acresce o esclarecimento apresentado pelo Perito, em 28-06-2019, pelo qual deu conta ao Tribunal que «o Examinando não tem capacidade para compreender o alcance dos actos de contrair casamento, constituir uma união de facto, de perfilhar ou de adoptar, de se deslocar livremente pelo país ou de testar». Acrescenta não compreender quais os motivos que levaram o Tribunal a quo a ignorar e desconsiderar os referidos relatórios periciais carreados para os autos e dos quais deriva que o beneficiário não está habilitado para reger a sua pessoa e os seus bens.

Alega ainda que o Tribunal a quo não deu o devido relevo a outros meios de prova constantes dos autos, concretamente:

- a declaração da médica do serviço de Pedopsiquiatria do Hospital ..., datada de 03-07-2017, subscrita pela Dr.ª V. R. e junta com a inicial sob o documento n.º 24, e que, em resumo, vai ao encontro das conclusões insertas nos relatórios resultantes das avaliações periciais a que o requerido foi submetido, não se entende como a sua valoração «no âmbito destes autos seria temerária»;
- o relatório médico subscrito pela mesma médica da especialidade, de 23-04-2015, junto com a petição inicial sob o documento n.º 22, o qual já referia que o requerido «apresenta quadro psicótico, com grave comprometimento do funcionamento social e dos processos de autonomização»;
- as declarações da requerente R. L. e da testemunha R. V., as quais relataram a notória dificuldade de controlo de impulsos, bem assim como a sua incapacidade para gerir o seu quotidiano sozinho e sem orientação, designadamente, na toma da medicação que lhe está prescrita de modo a manter-se de forma mais ou menos estável, o que também resulta da prova documental junta aos autos;
- o próprio auto de audição valorado pelo Tribunal a quo permite concluir, sem margem para dúvidas, que o requerido não consegue sequer compreender o alcance da situação em que se encontra, bem como das medidas de acompanhamento, pois, ao ser-lhe perguntado pela Mma. Juiz a quo «se sabia onde estava e porque aqui teria vindo, este disse estar no tribunal por causa da herança do pai, confessando estar com algum medo de cá estar, pois já fez asneiras no passado»;
- o Tribunal a quo não deu o devido relevo à factualidade descrita na informação psicológica de fls. 159 e seguintes, da qual resulta que o requerido frequenta, desde outubro de 2017, «formação adaptada na X, curso 1 - empregado de andares - no âmbito do POISE (Programa Operacional Inclusão Social e Emprego) - tipologia de operação 3.01 - Qualificação das Pessoas com Deficiências ou Incapacidade, com término em Maio de 2020», sendo tal formação adaptada à sua especial situação;
- por outro lado, não atendeu à informação psicológica elaborada pela instituição de educação e reabilitação dá conta de que «quanto às áreas principais da vida, efectua transacções económicas, não é incapaz de gerir adequadamente a semanada que recebe, estando constantemente a pedir dinheiro a qualquer pessoa para as suas pequenas necessidades quando este acaba», resultando, ainda, que a ficha de avaliação entregue pela formadora dessa instituição refere que «É uma pessoa a quem basta abrir uma “brecha” para estragar um dia de trabalho, direi mais, neste momento, o J. A. arranja todos os argumentos e mais alguns para adiar o trabalho e não fazer nenhum, sinónimo de que psicologicamente está muito mal».

À luz do alegado pela recorrente importa aferir se é patente algum vício na decisão sobre a matéria de facto que caiba a este Tribunal apreciar oficiosamente ao abrigo do disposto no artigo 662.º, n.º 2, al. c), do CPC, nos termos do qual a Relação deve, mesmo oficiosamente, anular a decisão proferida na 1.ª instância, quando, não constando do processo todos os elementos que, nos termos do número anterior, permitam a alteração da decisão proferida sobre a matéria de facto, repute deficiente, obscura ou contraditória a decisão sobre pontos determinados da matéria de facto, ou quando considere indispensável a ampliação desta.

Como salienta a propósito Abrantes Geraldes (3), as decisões da matéria de facto podem revelar-se «total ou parcialmente deficientes, obscuras ou contraditórias, resultante da falta de pronúncia sobre factos essenciais ou complementares, da sua natureza ininteligível, equívoca ou imprecisa ou reveladora de incongruências, de modo que conjugadamente se mostre impedido o estabelecimento de uma plataforma sólida para a integração jurídica do caso.

Verificado algum dos referidos vícios, para além de serem sujeitos a apreciação oficiosa da relação, esta poderá supri-los, desde que constem do processo (ou da gravação) os elementos em que o tribunal a quo se fundou (…). Em concreto, a superação da contradição pode derivar da prevalência que deva ser dada, por exemplo, a certo elemento constante do processo ditado de força probatória plena (…) ou por via da conjugação com outros segmentos da decisão ou com a matéria de facto que já deveria considerar-se provada. Pode ainda decorrer da reponderação dos meios de prova que se encontrem disponíveis e nos quais o tribunal a quo se tenha baseado».

Continuando a seguir de perto os ensinamentos do mesmo Autor, «[p]ode ainda revelar-se uma situação que exija a ampliação da matéria de facto por ter sido omitidos dos temas da prova factos alegados pelas partes que se revelam essenciais para a resolução do litígio, na medida em que assegurem enquadramento jurídico diverso do suposto pelo tribunal a quo. Trata-se de uma faculdade que nem sequer está dependente da iniciativa do recorrente, bastando que a relação se confronte com uma objectiva omissão de factos relevantes», devendo, nesse caso, a Relação, se estiverem acessíveis todos os elementos probatórios relevantes, proceder à apreciação e introdução na decisão da matéria de facto das modificações que forem consideradas oportunas (4).

Neste âmbito, deve entender-se que a resposta deficiente abrange a omissão de decisão sobre algum facto essencial, a «falta absoluta de decisão», a «decisão incompleta, insuficiente ou ilegal» (5). Por outro lado, «as respostas são contraditórias quando têm um conteúdo logicamente incompatível, isto é, quando não podem subsistir ambas utilmente» (6).

No caso vertente, vinha alegado e documentado de forma relevante, detalhada e exaustiva na petição inicial todo o percurso sociopedagógico e o historial clínico do jovem J. A., nascido a ..-08-1999, aqui requerido - por meio de declarações, atestados médicos, relatórios médicos especializados e circunstanciados, bem como por meio de relatórios psicopedagógicos, psicológicos e ainda relatório de internamento em pedopsiquiatria, documentos estes que não foram objeto de impugnação no âmbito do processo.

Apesar de esta matéria de facto não ter sido considerada expressamente na sentença recorrida como provada ou não provada, certo é que se verifica que o Tribunal a quo parece aludir à mesma factualidade apenas na fundamentação da decisão da matéria de facto, resultando das considerações vertidas em tal segmento da sentença que aquele tribunal não atendeu a tal documentação com base no seguinte: «A grande maioria da documentação junta aos autos com a p.i. tem mais de 10 anos e reporta-se à fase da infância do requerido. Entendo, por isso, que a sua valoração no âmbito destes autos seria temerária, ainda para mais tendo o requerido sido sujeito a específica avaliação pericial no corrente ano de 2019».

Sucede que o conjunto de circunstâncias que foram sequencialmente alegadas na petição inicial e que reproduzem de forma objetiva e detalhada todo o percurso sociopedagógico e o historial clínico do requerido possuem manifesto relevo e influência na decisão da causa, sobretudo porque o juízo jurídico a emitir subsequentemente pelo tribunal deve basear-se na situação global do requerido, não podendo abstrair-se dos antecedentes de tal situação, os quais relevam, aliás, no âmbito da decisão a proferir, pois que no caso de decretamento de medidas de acompanhamento deve o juiz fixar, quando possível, a data a partir da qual as medidas decretadas se tornaram convenientes, nos termos previstos no artigo 900.º, n.º1, do CPC, sendo a data do início da afeção um elemento relevante tal como também decorre do artigo 899.º, n.º1, do CPC. Note-se, aliás, que o Tribunal a quo, apesar de inicialmente desvalorizar a documentação junta aos autos com a petição inicial, acabou por basear parte da fundamentação da decisão da matéria de facto em circunstâncias relativas ao contexto educativo e ao percurso pedagógico do requerido, através de ilações que afirmou retirar das declarações das testemunhas inquiridas, das declarações de parte da própria requerente e do relatório do Centro Social e Paroquial de ..., onde o beneficiário residiu por mais de 3 anos (entre Janeiro de 2016 e Julho de 2019), para concluir, no essencial, que «o beneficiário é uma pessoa caprichosa (muito caprichosa), sendo que a mãe sempre terá actuado de forma a satisfazer esses caprichos ao invés de estabelecer regras e limites, negando as vontades do filho».

Ora, analisando o que se mostra exaustivamente documentado nos autos - por meio de declarações, atestados e relatórios médicos especializados e circunstanciados, bem como por meio de relatórios psicopedagógicos, psicológicos e relatório de internamento em pedopsiquiatria, documentos estes que não foram objeto de impugnação no âmbito do processo -, julgamos que as conclusões extraídas pelo Tribunal a quo a partir das declarações das testemunhas inquiridas, das declarações de parte da própria requerente e do relatório do Centro Social e Paroquial de ... consubstanciam uma abordagem manifestamente simplista, redutora e insuficiente para efeito da caracterização da real condição do requerido, a qual se revela bem mais complexa e delicada. Note-se, aliás, que alguns dos documentos clínicos referentes ao requerido reportam-se a datas relativamente recentes da vida do jovem, tal como sucede com o “Relatório Médico” do Serviço de Pedopsiquiatria do Hospital ... Guimarães, datado de 3-07-2017, subscrito pela Dr.ª V. R. (Pedopsiquiatra), do qual consta de relevante que o jovem J. A., então com 17 anos de idade, tem mantido acompanhamento clínico por apresentar «alterações dos processos de pensamento, ansiedade, obsessões e compulsões, comportamentos bizarros (perturbação psicótica, com início na infância). Este adolescente tem grave comprometimento do seu funcionamento global (académico, social, cuidado com o próprio). O J. A. faz múltiplos psicofármacos e a evolução não tem sido favorável» (documento 24 junto com a petição inicial). Com idêntico teor surgem-nos a “Declaração Médica” do Serviço de Pedopsiquiatria do Hospital ... Guimarães, datado de 29-12-2016, subscrito pela Dr.ª V. R. (Pedopsiquiatra) - documento 23 junto com a petição inicial - o “Relatório Médico Psiquiatria” do Centro Hospitalar do Alto Ave, datado de 23-04-2015, subscrito pela Dr.ª V. R. (Pedopsiquiatra) - documento 22 junto com a petição inicial. Temos ainda a “Declaração” de internamento do jovem J. A. no Serviço de Pedopsiquiatria do Hospital …, no Porto, a respetiva “Nota de Alta” e “Resumo da Informação Clínica”, todos referentes ao internamento hospitalar do jovem no Serviço de Pedopsiquiatria desde o dia 14-11-2014 ao dia 28-11-2014 (documentos 19, 20 e 21 juntos com a petição inicial). E dispomos ainda de diversos outros elementos relevantes e esclarecedores, entre os quais relatórios de acompanhamento psicológico datados de 7-06-2005 (documento 3 junto com a petição inicial), 4-04-2006 (documento 7 junto com a petição inicial), 9-01-2013 (documento 14 junto com a petição inicial) e 22-07-2014 (documento 16 da petição inicial), relatório de avaliação psicológica de 6-10-2006 (documento 4 da petição inicial), e relatórios e declarações médicas de 12-05-2008 (documento 6 da petição inicial) e 3-11-2009 (documento 8 da petição inicial), declarações e atestados médicos de pedopsiquiatria datados de 25-01-2010 (documento 9 da petição inicial), e 29-10-2012 (documento 13 da petição inicial). Resulta documentado nos autos, além do mais, que o jovem J. A., para além da terapia ocupacional e do acompanhamento inicial em Pediatria do desenvolvimento, manteve acompanhamento psicológico desde pelo menos os cinco anos de idade, passando a ter acompanhamento em psiquiatria desde os 10 anos de idade, com acompanhamento terapêutico através de medicação específica, designadamente através de psicofármacos, que toma de forma crónica e regular, e através de medidas pedagógicas adaptadas. Manifesta perturbação e instabilidade psicomotora e comportamental desde tenra idade, com episódios reveladores de agravamento e alteração comportamental, com heteroagressividade e inquietação psicomotora, que inclusivamente desencadearam a necessidade de internamento hospitalar em Pedopsiquiatria entre 14-11-2014 a 28-11-2014. Acresce que o “relatório médico” subscrito pela médica pedopsiquiatra que acompanha clinicamente o J. A. nos dá conta, em 3 de julho de 2017, que aquele jovem denotava à data grave comprometimento do seu funcionamento global, fazia múltiplos psicofármacos e apresentava evolução não favorável. Assim se conclui que todos estes elementos não podem ser ignorados, muito menos sem qualquer justificação objetivamente circunstanciada nos elementos que foram oportunamente juntos aos autos e não mereceram qualquer tipo de impugnação.

A este propósito cumpre ainda constatar que todos os elementos clínicos que ressaltam dos diversos documentos juntos aos autos estão em consonância com os depoimentos prestados no âmbito do processo, designadamente pela requerente R. L. e pela testemunha R. V., mas também pela testemunha M. M., que se mostram gravados e por isso puderam ser ouvidos, permitindo assim a este tribunal confirmar que efetivamente também decorre de tais declarações, no essencial, a notória dificuldade de controlo de impulsos por parte do J. A., bem como, e por essa via, a sua incapacidade para gerir o seu quotidiano sozinho e sem orientação/supervisão.

Como elementos complementares para efeito da caracterização da condição do requerido não podemos também deixar de considerar relevantes as circunstâncias que decorrem das recentes informações enviadas pela instituição de educação e reabilitação frequentada pelo jovem J. A., aliás mediante prévia solicitação do Tribunal a quo - declaração de frequência, informação psicológica e ficha de avaliação - das quais resulta, além do mais, que o J. A. frequenta desde outubro de 2017 «formação adaptada na X - Cooperativa de Educação e Reabilitação de Crianças Inadaptadas de …, CRL - curso 1 - empregado de andares, no âmbito do POISE (Programa Operacional Inclusão Social e Emprego) - Tipologia de Operação 3.01 - Qualificação das Pessoas com Deficiências ou Incapacidade», com termo em maio de 2020. Cumpre ainda destacar que a referida informação psicológica confirma que o jovem apresenta «alterações recorrentes do temperamento e da personalidade, caracterizadas por períodos de temperamento expansivo, sociável e expressivo exagerado (Extroversão Excessiva); prejuízos frequentes na Amabilidade com comportamento antagonista e desafiador; fracas capacidades no que diz respeito às funções mentais que produzem um temperamento pessoal trabalhador, metódico e escrupuloso (défice na responsabilidade), alterações significativas e muito frequentes ao nível da Estabilidade Psíquica que se traduzem por irritabilidade intensa, preocupações exacerbadas que surgem do nada, inconstância e humor variável. Alterna, frequentemente, períodos de temperamento pessoal alegre e cheio de esperança, embora com projectos irrealistas e pouco contextualizados, com desânimo agravado e revolta aguda.
São de salientar ainda prejuízos significativos ao nível das Funções de Energia e impulsos relacionados com a motivação (Fracos incentivos pessoais para agir) e controlo dos impulsos.
Ao nível das funções emocionais, apresenta dificuldades acentuadas ao nível da amplitude da emoção relacionadas com gestão de sentimentos tais como ódio, ansiedade, raiva que o levam a expressar vontade de “pegar numa caçadeira e matar” A, B, ou C.
Relativamente às funções cognitivas de nível superior, apresenta um desempenho no percentil 70, indicador de competências ao nível raciocínio indutivo.
No que diz respeito à Atividade e Participação, apresenta dificuldades extremas em lidar com o stresse e outras exigências psicológicas que se traduzem em momentos muito curtos de aceitação de regras e normas.
Revela capacidade para o cumprimento das tarefas definidas mas face a fases agudas de rejeição/crítica a tudo e todos, associadas a chantagem emocional, ameaças em acabar com a vida, vitimização sistemática, fraca resistência à frustração e fraco controlo da agressividade (violência verbal) que por vezes terminam em autoagressão, passa a maior parte dos dias sem realizar um dia de formação normal.
Salienta-se que este descontrolo, ultimamente muito frequente, levou a nova expulsão de 3 dias na semana passada, situação que já tinha ocorrido anteriormente.
Ao nível da comunicação é um bom falante com boas capacidades de conversação, discussão e argumentação mal aproveitadas, sem dificuldades na leitura, escrita e cálculo.
Nas interacções e relacionamentos interpessoais, é conflituoso com os pares e superiores, pouco tolerante às chamadas de atenção, muito crítico nos relacionamentos mas nem sempre de forma ajustada, com dificuldades na regulação do seu comportamento nas interacções complexas (controlo das emoções/impulsos e agressão verbal, de maneira contextual e socialmente apropriada).
Quanto às áreas principais da vida, efetua transações económicas, mas é incapaz de gerir adequadamente a semanada que recebe, estando constantemente a pedir dinheiro a qualquer pessoa para as suas pequenas necessidades quando este acaba».
Todos estes meios de prova constituem elementos de ordem objetiva que permitem complementar e conferir um valor fundamental aos relatórios dos peritos médicos elaborados no âmbito do processo em referência, ambos requisitados junto dos organismos oficiais competentes e que não foram objeto de impugnação por parte dos intervenientes no processo.

Não podemos esquecer que no caso estamos perante uma ação que visa, no essencial, aferir se o requerido deverá beneficiar de medidas previstas no regime jurídico do maior acompanhado pelo que as questões que constituem o objeto de tais perícias são predominantemente técnicas e exigem conhecimentos especiais que os julgadores normalmente não possuem. Ora, contrariamente ao que parece decorrer da sentença recorrida, ambos os relatórios periciais elaborados no contexto dos autos precisaram, de forma segura e suficiente, a afeção de que sofre o beneficiário, as suas consequências, a data provável do seu início, bem como dos meios de apoio e de tratamento aconselháveis. Por outro lado, cumpre realçar que as conclusões das perícias não se revelam incompatíveis entre si, antes convergindo no sentido da incapacidade do requerido para reger a sua pessoa e os seus bens, tornando evidente a necessidade de supervisão e da aplicação de uma medida de acompanhamento. Assim, no primeiro relatório pericial, datado de 8-12-2018 e junto aos autos a 13-12-2018 a Sra. Perita (Em Psiquiatria Forense), formulou de forma expressa as seguintes conclusões:

«O examinado sofre de perturbação do desenvolvimento intelectual e emocional, associada a alterações psicóticas e de comportamento que comprometem a sua vida de relação e a sua integração social.
A doença de que sofre o examinado é uma anomalia psíquica permanente e actual.
Do ponto de vista clínico não se pode considerar irreversível, por não estarem esgotados os recursos terapêuticos à luz do conhecimento científico natural.
Tal como se encontra nesta altura, o examinado está atualmente incapaz de governar a sua pessoa e bens.
O início da presente incapacidade deve ser fixado na sua data de nascimento.
Atendendo à sua idade jovem, imaturidade e à possibilidade de poder ainda vir a melhorar o seu estado, deverá beneficiar de quem o represente na gestão da sua pessoa e bens, podendo esta medida ser reavaliada num prazo de 5 anos, no sentido de se apreciar a sua evolução».

Também o relatório da segunda perícia, datado de 14-05-2019 e junto aos autos a 28-05-2019, devidamente complementado com o aditamento/prestação de esclarecimentos junto a 28-06-2019, o Sr. Perito (Em Psiquiatria Forense), formulou de forma expressa e fundamentada as seguintes conclusões:

«O Examinando apresenta um notório défice de controlo de impulsos no contexto de estruturação disfuncional da personalidade (Perturbação Explosiva da Personalidade) encontrando-se medicado para controlo dos impulsos.

Efectivamente, podem-se apontar traços ou características peculiares na Personalidade do examinado. Como é notória no seu percurso de vida, é uma pessoa com dificuldades em lidar com situações de conflitos, com dificuldades no relacionamento interpessoal, algo focalizado na atitude dos outros para consigo de maneira a que muitos dos seus comportamentos e pensamentos são justificados dessa maneira, vitimizando-se e pouca crítica perante os seus comportamentos e rigidez do pensamento. Manteve-se sempre centrado no presente, desvalorizando comportamentos no passado e que levaram à situação actual.

Tal situação condiciona uma deterioração da personalidade e da funcionalidade, tornando-o particularmente débil do ponto de vista psíquico. A sua deficiência é de natureza psicológica, sendo que a deficiência limita o desempenho do Examinando em termos volitivos e cognitivos, condicionando comportamentos de prodigalidade e provocando uma incapacidade para gerir bens, necessitando de supervisão.
Deverá ser determinada uma representação e ser aplicado um acompanhamento equivalente ao exercício pelo acompanhante das responsabilidades parentais, se assim o Tribunal o considerar necessário.
Importa ainda considerar que a aplicação de uma medida de acompanhamento fará sempre recair sobre o acompanhante um dever paralelo de cuidado e diligência, visando a salvaguarda do bem-estar e a recuperação do maior acompanhado».

E complementou o relatório pericial com os seguintes esclarecimentos, após solicitação expressa por parte do Tribunal a quo:

«1) Devido ao facto de ser uma estruturação disfuncional da personalidade para a qual contribuem diversos factores, pode-se apontar como início da patologia o primeiro ano de vida;
2) O seu tratamento consiste em medidas psicofarmacológicas e psicoterapêuticas;
3) Considera o Perito que o Examinando não tem capacidade para compreender o alcance dos atos de contrair casamento, constituir uma união de facto, de perfilhar ou de adotar, de se deslocar livremente pelo país ou de testar».

Sustenta a apelante que por motivos que não se compreendem, o Tribunal a quo ignorou e desconsiderou, em absoluto, os relatórios periciais carreados para os autos e dos quais deriva que o beneficiário não está habilitado para reger a sua pessoa e os seus bens.

Analisada a fundamentação da decisão da matéria de facto constante da decisão recorrida observa-se que, efetivamente, o Tribunal a quo não valorou o resultado do primeiro relatório pericial, limitando-se a remeter para os fundamentos que determinaram a remessa dos autos para a forma comum, os quais não explicitou de forma expressa.
Já relativamente ao resultado do segundo relatório pericial verifica-se que transpõe para a matéria de facto dada como provada apenas alguns segmentos ou expressões isoladas do relatório pericial, omitindo as demais circunstâncias relativas ao exame do estado mental e relativos à «Discussão e Conclusão», na sua maioria elementos essenciais e constitutivos ou complementares do juízo médico/científico expresso no referido relatório. Mais se verifica que na fundamentação da decisão sobre a matéria de facto não se consignou a razão pela qual não foi considerado, na sua globalidade, o conjunto das circunstâncias relativas ao exame do estado mental e relativos à «Discussão e Conclusão», ainda que transpareça da restante motivação a aludida convicção firmada em exemplos que entendeu resultarem das declarações da requerente quanto ao contexto educativo do jovem J. A.. Também se constata que as circunstâncias não incluídas nos factos provados não foram consideradas na matéria não provada, nem resulta do enunciado relativo à decisão sobre a matéria de facto que as mesmas traduzam respostas restritivas, posto que a formulação enunciada apresenta-se em determinados pontos como uma composição autónoma de diversos elementos parciais que constam do relatório pericial mas na sua maioria em contexto diverso daquele em que foram incluídos no referido laudo e integrados com outras explicações que os complementam e conferem sentido distinto.

Nos termos do artigo 388.º do Código Civil (CC), a prova pericial tem por fim a perceção ou apreciação de factos por meio de peritos, quando sejam necessários conhecimentos especiais que os julgadores não possuem, ou quando os factos, relativos a pessoas, não devam ser objeto de inspeção judicial. Neste domínio, esclarece ainda o artigo 489.º CPC que a segunda perícia não invalida a primeira, sendo uma e outra livremente apreciadas pelo tribunal.

Muito embora a força probatória das respostas dos peritos seja fixada livremente pelo Tribunal (artigo 389.º CC), importa atender à especial relevância que no caso em apreciação assume a indicação, no relatório pericial, da afeção de que sofre o beneficiário, as suas consequências, a data provável do seu início, bem como dos meios de apoio e de tratamento aconselháveis. Tais aspetos configuram elementos absolutamente indispensáveis para o juiz decidir, tal como decorre expressamente do disposto no artigo 899.º, n.º1, do CPC, apenas conferindo a lei ao juiz a possibilidade de autorizar o exame numa clínica da especialidade, com internamento nunca superior a um mês e sob responsabilidade do diretor respetivo, ou ordenar quaisquer outras diligências (artigo 899.º, n.º 2, do CPC), caso permaneçam dúvidas na sequência do relatório pericial apresentado.
Neste domínio, importa seguir de perto a fundamentação contida no Ac. TRG de 29-011-2003 (relatora: Maria Rosa Tching) (7), ainda que por referência ao regime previsto para as ações de interdição por anomalia psíquica, então aplicável, do qual se destacam as seguintes conclusões: «(…) - A existência ou inexistência de uma qualquer anomalia psíquica incapacitante, isto é, de uma anomalia psíquica de tal modo grave, que torne a pessoa inapta para se reger a ela própria e aos seus bens, traduz-se numa questão eminentemente técnica e que exige conhecimentos especiais que os julgadores, normalmente, não possuem. Por isso, os peritos médicos são, pela própria natureza das coisas, as pessoas mais habilitadas para se pronunciarem sobre tal questão. (…) - E, apesar de, nos termos do art. 589º do C. Civil, a força probatória da perícia ser livremente fixada pelo tribunal e de o art. 952º, n.º1 do C. P. Civil, não estabelecer qualquer valor preferencial ou de hierarquia entre os dois meios prévios inquisitórios – interrogatório e exame pericial do arguido -, a verdade é que o julgador não pode afastar deliberamente, o parecer contido no relatório dos peritos, substituindo-lhe, sem o fundamentar, outros elementos de convicção».

Como tal, não pode deixar de entender-se que o juiz, caso decida não acatar as conclusões retiradas da perícia terá de justificar tal entendimento, rebatendo os argumentos nela expostos ou, na dúvida, autorizar o exame numa clínica da especialidade, com internamento nunca superior a um mês e sob responsabilidade do diretor respetivo, ou ordenar quaisquer outras diligências (artigo 899.º, n.º 2, do CC). Na verdade, conforme se refere no Ac. TRG de 4-10-2018 (relator: Pedro Damião e Cunha) (8), «(…) uma coisa será uma perícia para constatação de factos, os quais podem eventualmente ser confirmados e/ou refutados por outros elementos de prova; outra, bem diferente, será o caso de uma perícia destinada a exprimir um juízo técnico, científico ou artístico, o qual, pela sua própria natureza, só poderá ser infirmado ou rebatido com argumentos de igual natureza, ou seja, de ordem técnica, científica ou artística; e com sujeição aos mesmos métodos». De modo semelhante, também nos presentes autos o relevo probatório das perícias realizadas alcança esse nível, porquanto se destinam indiscutivelmente a exprimir um juízo técnico-científico (médico), o qual, pela sua própria natureza, só poderia ser infirmado ou rebatido com argumentos de igual natureza, ou seja, de ordem técnica ou científica e com sujeição aos mesmos métodos de obtenção dos resultados.

Tanto basta para considerar que as conclusões vertidas nas perícias efetuadas nos autos não podiam ser descartadas sem justificação de idêntica natureza ou com sujeição a idênticos métodos, atenta a necessária ponderação da especial força probatória da prova pericial efetuada, tanto mais que a mesma não só não foi infirmada por qualquer outro meio de prova de idêntica natureza como surge consubstanciada, como se viu, nos restantes elementos probatórios antes analisados. Assim, os relatórios periciais estão suficientemente fundamentados e reúnem os requisitos previstos na lei, sendo certo que em relação à matéria sobre que incidem não foi produzida qualquer outra prova relevante que possa infirmar as respetivas conclusões.

Nesta medida, atendendo às deficiências detetadas e à manifesta insuficiência da matéria de facto dada como provada à luz dos factos alegados e demais circunstâncias que decorrem do exame ao estado mental do requerido, as quais consubstanciam, na sua maioria, elementos essenciais e constitutivos, ou complementares, do juízo médico/científico expresso nos referidos relatórios, traduzidos em expressões que configuram consequências lógicas extraídas de outros factos apreensíveis - não se reconduzindo, por isso, a meros conceitos normativos nem a juízos valorativos indeterminados -, decide-se oficiosamente determinar a ampliação da matéria de facto dada como provada, à luz do disposto no artigo 662.º, n.º 2, al. c) - a contrario - do CPC. Para o efeito, acrescenta-se aos factos provados diversa matéria que se entende assumir relevo para a decisão final da causa, atendendo ao que foi alegado e ao que resulta dos documentos e dos relatórios periciais juntos, procedendo-se ainda às alterações ao elenco dos factos já tidos como provados que se revelem necessárias para não haver contradição insanável de tal matéria com os aditamentos agora determinados e perante a reponderação dos meios de prova que se encontram disponíveis e sobre os quais o Tribunal a quo baseou a sua convicção.

Pelo exposto, passará a ser a seguinte a matéria de facto provada:

a) O jovem J. A. é solteiro, nasceu em …-08-1999 e é filho de A. S. e de R. L.;
b) O requerido J. A. teve acompanhamento em consultas de psicologia desde 2003 revelando-se então uma criança bastante impulsiva e com alterações de humor constantes.
c) O requerido J. A. começou a ser acompanhado semanalmente em Terapia Ocupacional desde os seus 5 anos de idade, tendo em vista o seu desenvolvimento psicomotor, nomeadamente o desenvolvimento da coordenação motora global e do equilíbrio, bem como o aumento dos períodos de atenção/concentração e a integração de regras de comportamento.
d) Quando o requerido J. A. tinha 7 anos de idade foi-lhe diagnosticado Síndrome de Hiperatividade e Défice de atenção, tendo iniciado terapêutica com medicação específica, através da administração de Ritalina, tendo também ficado determinado a necessidade permanente de medicação e terapia comportamental na escola e no domicílio.
e) Com o decorrer dos anos o requerido J. A. passou a revelar perturbações associadas às dificuldades no desenvolvimento, apresentando um quadro clínico de hiperatividade com défice de atenção e impulsividade (código 314.01 do DSM-IV-TR), associados a instabilidade psicomotora e perturbação de oposição e desafio, o que resultou em padrões de comportamento desajustados (baixo limiar a frustração, comportamentos de desafio-oposição com adultos cuidadores, relação com os pares conflituosa) e em baixo rendimento escolar, mantendo farmacoterapia e acompanhamento psicológico.
f) Na sequência de episódio de “bullying” ocorrido em contexto escolar em 19 de abril de 2010 o jovem J. A. denotou um maior agravamento no seu estado clínico, tendo nessa sequência tentado o suicídio por três vezes;
g) O jovem J. A. continuou a ser acompanhado com carácter regular em consultas de psicologia e pedopsiquiatria e dada a cronicidade do seu estado clínico esteve sempre medicado, tendo sido submetido em 2-07-2012 a teste de avaliação de Inteligência - WISC III – que revelou um QI Global abaixo da média, tendo em conta o seu grupo de pares.
h) No ano letivo 2013/2014 o requerido frequentou o 7.º ano de escolaridade na Escola EB 2,3 …, no regime de Educação Especial ao abrigo do D.L. n.º 3/2008 de 7/01, não tendo transitado de ano por falta de aproveitamento escolar, tendo em conta o excesso de faltas injustificadas e os resultados obtidos.
i) Consta do relatório escolar circunstanciado, relativo ao ano letivo 2013/2014, além do mais, que o jovem J. A. usufruiu de apoio pedagógico personalizado em todas as disciplinas, de coadjuvação a francês e matermática e de tutoria, usufruindo ainda de turma reduzida, revelando ao longo de todo o ano lectivo graves dificuldades de aprendizagem, falta de empenho no estudo e na realização das tarefas escolares, nomeadamente recusa em passar conteúdos para os cadernos e em realizar testes, apresentando graves problemas de comportamento, tendo sido alvo de várias participações disciplinares, actividades de integração (medidas correctivas) e medidas disciplinares sancionatórias, recusando-se, sobretudo no 3.º período, a ir à maioria das aulas, refugiando-se na biblioteca ou no recreio.
j) Com referência a julho de 2014, a situação clínica do jovem J. A. continuava a agravar-se, não obstante o acompanhamento médico e a medicação constante, manifestando-se com uma aumento da agressividade comportamental, marcado por disforia, confusão mental, insistência excessiva e mandatária de satisfação de diferenciadas exigências e ritualismos, violação de importantes regras e normas sociais (ameaça à integridade física da figura parental na forma verbal e com recurso a arma branca), comportamento insultuoso e agressivo face às outras pessoas e animal doméstico, comportamento sexual desajustado (com partilha inadequada de atos realizados perante o seu grupo de pares), crença e partilha inadequada e irrealista de ideais políticos e religiosos, discurso incoerente e atos imprudentes, desafio constante perante a autoridade do adulto ou figura educativa.
k) No ano letivo 2014/2015 o jovem J. A. foi inscrito e frequentou o 1.º ano do Curso Vocacional de Comércio e Transportes, na Escola Profissional - Associação Comercial e Industrial … - com o objetivo de encontrar uma resposta educativa e formativa que fosse de encontro aos seus interesses e capacidades.
l) No ano letivo 2014/2015 o jovem J. A. continuou a persistir no mesmo tipo de comportamentos mas de uma forma mais gravosa.
m) O que culminou num total de 156 faltas injustificadas desde o dia 22 de Setembro ao dia 31 de outubro de 2014, decorrentes na sua maioria de atrasos a seguir aos intervalos e de expulsão da sala de aula devido a comportamento perturbador apresentado.
n) O Requerido foi também suspenso devido a comportamento perturbador e agressivo apresentado nas aulas, pelo período de 12 dias.
o) No dia 14 de novembro de 2014 o jovem J. A. foi internado nos serviços de Pedopsiquiatria do Centro Hospitalar do Porto, tendo-se mantido em regime de internamento, ininterruptamente, até ao dia 28 de novembro de 2014, devido ao aumento das condutas agressivas adotadas pelo jovem, tanto a nível escolar como a nível familiar, bem como ao aumento de pensamentos delirantes, denotando alterações de comportamento com heteroagressividade e inquietação psicomotora.
p) Relativamente ao requerido J. A., a médica pedopsiquiatra V. R. atestou, em 3 de julho de 2017, que «tem seguido o menor J. A., de 17 anos de idade, por apresentar alterações dos processos de pensamento, ansiedade, obsessões e compulsões, comportamentos bizarros (perturbação psicótica, com início na infância). Este adolescente tem grave comprometimento do seu funcionamento global (académico, social, cuidado com o próprio). O J. A. faz múltiplos psicofármacos e a evolução não tem sido favorável».
q) O jovem J. A. frequenta desde outubro de 2017 «formação adaptada na X - Cooperativa de Educação e Reabilitação de Crianças Inadaptadas …, CRL - curso 1 - empregado de andares, no âmbito do POISE (Programa Operacional Inclusão Social e Emprego) - Tipologia de Operação 3.01 - Qualificação das Pessoas com Deficiências ou Incapacidade, com termo em maio de 2020».
r) O jovem J. A. apresenta alterações recorrentes do temperamento e da personalidade, caracterizadas por períodos de temperamento expansivo, sociável e expressivo exagerado (extroversão excessiva).
s) O jovem J. A. denota prejuízos frequentes na amabilidade com comportamento antagonista e desafiador.
t) O jovem J. A. revela fracas capacidades no que diz respeito às funções mentais que produzem um temperamento pessoal trabalhador, metódico e escrupuloso (défice na responsabilidade), alterações significativas e muito frequentes ao nível da estabilidade psíquica que se traduzem por irritabilidade intensa, preocupações exacerbadas que surgem do nada, inconstância e humor variável.
u) O jovem J. A. alterna frequentemente períodos de temperamento pessoal alegre e cheio de esperança, embora com projetos irrealistas e pouco contextualizados, com desânimo agravado e revolta aguda.
v) O requerido J. A. apresenta prejuízos significativos ao nível das funções de energia e impulsos relacionados com a motivação (fracos incentivos pessoais para agir) e controlo dos impulsos.
w) O jovem J. A. revela capacidade para o cumprimento das tarefas definidas mas face a fases agudas de rejeição/crítica a tudo e todos, associadas a chantagem emocional, ameaças em acabar com a vida, vitimização sistemática, fraca resistência à frustração e fraco controlo da agressividade (violência verbal) que por vezes terminam em autoagressão, passa a maior parte dos dias sem realizar um dia de formação normal.
x) Nas interações e relacionamentos interpessoais é conflituoso com os pares e superiores, pouco tolerante às chamadas de atenção, muito crítico nos relacionamentos mas nem sempre de forma ajustada, com dificuldades na regulação do seu comportamento nas interações complexas (controlo das emoções/impulsos e agressão verbal, de maneira contextual e socialmente apropriada).
z) O jovem J. A. efetua transações económicas, mas não é capaz de gerir de forma adequada a semanada que recebe, estando constantemente a pedir dinheiro a qualquer pessoa para as suas pequenas necessidades quando este acaba.
aa) O beneficiário é muito egoísta, extremamente vaidoso, muito preocupado com a sua aparência física e muito medroso.
ab) O jovem J. A. procura sempre encontrar todos os argumentos para adiar o trabalho e não fazer qualquer das tarefas que lhe são atribuídas.
ac) O jovem J. A. todos encontra-se integrado no Centro Social e Paroquial de ..., com medida de promoção e proteção de acolhimento residencial desde o dia 7 de janeiro de 2016.
ad) Revela-se um jovem educado e bem-apresentado, mas denota comportamentos obsessivos ou desajustados, como a mudança repetitiva da roupa diária, a extrema necessidade de se sentir realizado através de compras ou, quando contrariado, de proferir ameaças, acabando por não as realizar.
ae) De modo a colmatar algumas das suas necessidades, o jovem J. A. é recompensado com dinheiro de bolso diário e tabaco, acordo estabelecido com a entidade formadora, mãe e CPCJ de ….
af) O seu comportamento melhorou significativamente após o período de acolhimento no Centro Social e Paroquial de ..., mas recentemente têm surgido episódios diários de alterações do mesmo e da personalidade (tais como o incumprimento de regras anteriormente bem executadas, a vitimização e a oscilação do humor), alterações que comprometem o seu bem-estar e o de terceiros.
ag) Atualmente, o jovem J. A. faz múltiplos psicofármacos diários prescritos pela área de Psiquiatria do Hospital da ... em Guimarães, pela Dr.ª S. R..
ah) O jovem J. A. orienta-se no tempo e no espaço.
ai) O jovem J. A. sabe ler, escrever e realiza cálculos.
aj) O requerido J. A. identifica o valor facial do dinheiro, tendo noção do seu valor para pequenas compras que habitualmente faz, assim como para bens de maior valor.
ak) Reconhece o valor da sua pensão, o valor da renda de casa da mãe, das roupas que veste e do tabaco que consome.
al) O requerido J. A. compreendeu o objetivo do segundo exame pericial a que foi sujeito e colaborou no mesmo.
am) O jovem J. A., mostrou compreensão pela maior parte das questões do segundo exame pericial a que foi sujeito, apresentando discurso responsivo, de frases circunstanciadas, de construção sintática e vocabulários adequados, mas com forte teor obsessivo, denotando alguma dificuldade na abstração e centrado na desresponsabilização dos seus atos e com tendência à vitimização.
an) No âmbito do segundo exame pericial a que foi sujeito, o jovem J. A. não apresentou alterações a nível da memória nem foi apurada sintomatologia psicótica.
ao) No âmbito do segundo exame pericial a que foi sujeito, o jovem J. A. manteve-se sempre centrado no presente, desvalorizando comportamentos do passado e que levaram à situação atual.
ap) O jovem J. A. apresenta capacidade de organização e planeamento muito deficitárias.
aq) O jovem J. A. mostra-se desinteressado, sem espírito de iniciativa ou responsabilização, o que o leva a viver o dia-a-dia de forma arbitrária.
ar) O jovem J. A. não tem noção das suas reais dificuldades e não denota preocupação pelo seu futuro.
as) O jovem J. A. apresenta um notório défice de controlo de impulsos no contexto de estruturação disfuncional da personalidade (Perturbação Explosiva da Personalidade), encontrando-se medicado para controlo dos impulsos.
at) Apresenta dificuldades em lidar com situações de conflito.
au) Denota dificuldades no relacionamento interpessoal, focalizando-se na atitude dos outros para consigo de maneira que muitos dos seus comportamentos e pensamentos são justificados dessa maneira, vitimizando-se e apresentando pouca crítica perante os seus comportamentos bem como rigidez do pensamentos.
av) O jovem J. A. apresenta deterioração da personalidade e da funcionalidade que o tornam particularmente débil do ponto de vista psíquico.
ax) Apresenta deficiência de natureza psicológica a qual limita o desempenho do jovem em termos volitivos e cognitivos, determinando comportamentos de prodigalidade e levando a que não seja capaz de gerir bens sem supervisão.
az) No aditamento/prestação de esclarecimentos junto a 28-06-2019, o Sr. Perito (Em Psiquiatria Forense) que elaborou o relatório da segunda perícia, datado de 14-05-2019, esclareceu o seguinte: «Considera o Perito que o Examinando não tem capacidade para compreender o alcance dos atos de contrair casamento, constituir uma união de facto, de perfilhar ou de adotar, de se deslocar livremente pelo país ou de testar».

2.2. Resta então apreciar se o requerido deverá beneficiar de medidas previstas no regime jurídico do maior acompanhado.

A decisão recorrida entendeu, no essencial, não resultar da factualidade apurada que o requerido tenha um verdadeiro problema de saúde, considerado como doença, ou que tenha qualquer comportamento errático ou anómalo, concluindo a propósito que o requerido apresenta uma personalidade narcísica, egoísta e vaidosa, a que seguramente a falta de limites na sua educação não será alheia. Ainda assim, ponderou a possibilidade de reconduzir a factualidade dada como provada ao conceito de doença, para concluir não vislumbrar razões para considerar que o requerido não esteja habilitado para reger a sua pessoa e o seus bens pois que se orienta no espaço e no tempo, conhece o dinheiro e tem noção do seu valor, sabe ler, escrever e calcular, entendendo ainda que o receio de adoção de comportamentos pródigos não se encontra suficientemente estribado em factos, aludindo, por último, à natureza subsidiária das medidas de acompanhamento.

Por seu turno, a recorrente defende, em síntese, não vislumbrar os motivos que levaram o Tribunal a quo a ignorar e desconsiderar a prova pericial junta aos autos da qual resulta evidente que o requerido padece de uma anomalia (na formação e manifestação da vontade), sendo notória a dificuldade de controlo de impulsos, bem assim como a sua incapacidade para gerir o seu quotidiano sozinho e sem orientação, designadamente, na toma da medicação que lhe está prescrita de modo a manter-se de forma mais ou menos estável. Neste contexto, considera que o Tribunal de primeira instância deveria ter dado como assente que o requerido sofre de «deficiência de natureza psicológica», tal como resulta do relatório pericial de fls. 131 e seguintes [do qual o Tribunal a quo se serviu para dar como provados os factos vertidos nas alíneas b) e f) a i)], e que, no quadro que a factualidade assente evidencia essa anomalia psíquica permanente e atual, caso não sejam tomadas medidas, sempre poderá determinar riscos para a respetiva saúde e património. E, nessa dimensão, não pode deixar de concluir-se que a situação do requerido é susceptível de ser enquadrada no conceito de anomalia psíquica, resultando evidente que o pleno exercício de direitos/cumprimento de deveres e o bem-estar do maior não estarão assegurados pelos meros deveres gerais de cooperação e assistência, impondo-se proceder à nomeação da requerente como acompanhante, atribuindo-lhe as medidas de acompanhamento requeridas de representação geral do requerido, administração total de património do requerido e autorização prévia para aquisição de bens móveis sujeitos a registo.

O quadro fáctico relevante com vista à subsequente subsunção jurídica é consideravelmente diferente daquele que serviu de base à prolação da sentença recorrida, por força das alterações agora decididas e introduzidas na matéria de facto provada.

Os presentes autos tiveram início a 13-07-2017 e seguiram os trâmites então em vigor quanto ao processo especial de interdição e inabilitação, regulado nos artigos 891.º a 904.º do CPC. Na pendência do processo entrou em vigor, a 10-02-2019, a Lei n.º 49/2018, de 14-08, que instituiu o regime jurídico do maior acompanhado e eliminou os institutos da interdição e da inabilitação anteriormente previstos no Código Civil (CC). A referida lei tem aplicação imediata aos processos de interdição e de inabilitação pendentes aquando da sua entrada em vigor, cabendo ao juiz utilizar os poderes de gestão processual e de adequação formal para proceder às adaptações necessárias nos processos pendentes, conforme estatuído nos n.ºs 1 e 2 do artigo 26.º do diploma em causa.

Como salienta o Ac. TRC de 04-06-2019 (relatora: Maria João Areias) (9), «[t]al orientação encontra a sua explicação na mudança de paradigma subjacente ao novo regime, reconhecendo a inadequação do anterior processo dualista de interdição/inabilitação, quer pela sua rigidez, quer por centrar os seus objetivos no suprimento de uma incapacidade de exercício de direitos e restringindo a atuação do representante legal aos atos conservatórios do património do interdito, e substituindo-o por outro que visa a máxima preservação da capacidade do indivíduo e assente em medidas a adotar casuisticamente e periodicamente revistas», posto que «“[p]roteger sem incapacitar” constitui, hoje, a palavra de ordem, de acordo com os princípios perfilhados pela referida Convenção da ONU e em conformidade com a transição do modelo de substituição para o modelo de acompanhamento ou de apoio na tomada de decisão» (10).

Tal como dispõe o artigo 138.º do CC, na redação dada pela Lei n.º 49/2018, de 14-08, o maior impossibilitado, por razões de saúde, deficiência, ou pelo seu comportamento, de exercer, plena, pessoal e conscientemente, os seus direitos ou de, nos mesmos termos, cumprir os seus deveres, beneficia das medidas de acompanhamento previstas neste Código.

Confrontando os traços essenciais do regime jurídico do maior acompanhado com os institutos da interdição e da inabilitação por aquele eliminados, facilmente se constata que houve um alargamento dos fundamentos do acompanhamento de maiores, ainda que se denote, em simultâneo, uma menor rigidez do conteúdo desse mesmo acompanhamento.

Com efeito, nos termos do artigo 138.º do CC, na redação anterior, as causas que determinavam a interdição eram a anomalia psíquica, surdez-mudez ou cegueira que tornasse o sujeito visado incapaz de governar a sua pessoa e bens, enquanto os fundamentos de inabilitação eram constituídos por todas as causas de interdição que, embora de caráter permanente, não fossem de tal modo graves que justificassem a interdição e, bem assim, a habitual prodigalidade ou o abuso de bebidas alcoólicas ou de estupefacientes por parte do indivíduo que determinassem que este fosse incapaz de reger o seu património (artigo 152.º do CC, na anterior redação).

Já no novo regime do maior acompanhado - para além de se flexibilizar o sistema no sentido de se adaptar o conteúdo do acompanhamento em função das necessidades concretas do sujeito, o qual já não decorre de forma automática da lei, ainda que possa ser determinado em concreto com uma amplitude que pode ir desde um mínimo a um máximo, fazendo mesmo intervir diversos regimes jurídicos -, observa-se que o legislador parece ter optado por uma formulação algo ampla quanto aos requisitos da medida de acompanhamento.

Assim, tal como explica Mafalda Miranda Barbosa (11), «São dois os requisitos para que possa ser decretado o acompanhamento, um de ordem subjectiva e outro de ordem objectiva.

No que ao primeiro respeita, haveremos de considerar a impossibilidade de exercer plena, pessoal e conscientemente os direitos ou cumprir os deveres. Em causa está, portanto, a possibilidade de o sujeito formar a sua vontade de um modo natural e são. Por um lado, há-de ter as capacidades intelectuais que lhe permitam compreender o alcance do ato que vai praticar quando exerce o seu direito ou cumpre o seu dever. Por outro lado, há-de ter o suficiente domínio da vontade que lhe garanta que determinará o seu comportamento de acordo com o pré-entendimento da situação concreta que tenha. Em suma, trata-se da possibilidade de o sujeito se autodeterminar, no que respeita ao exercício dos seus direitos e ao cumprimento dos seus deveres. A lei prescinde agora dos requisitos da habitualidade, permanência e durabilidade e permite que o acompanhamento seja decretado em relação a um especial domínio da vida do beneficiário e a situações transitórias (…).Mas continua a exigir-se uma certa constância, até porque o acompanhamento só será decretado quando não seja possível alcançar as finalidades que com ele se prosseguem através de deveres gerais de cooperação e assistência.

Quanto ao requisito de índole objetiva, exige-se que a impossibilidade para exercer os direitos ou cumprir os deveres se funde em razões de saúde, numa deficiência ou no comportamento do beneficiário».

Enunciando o alcance das razões enunciadas no citado artigo 138.º do CC na redação dada pela Lei n.º 49/2018, de 14-08, a propósito do aludido requisito de índole objetiva, refere ainda a mesma Autora (12), «[n]as razões de saúde integram-se quer as patologias de ordem física, quer as patologias de ordem psíquica e mental. Parece, portanto, haver um alargamento em relação ao quadro de fundamentos das interdições e inabilitações, não se ficando preso a uma ideia estrita de anomalia psíquica. Já no que respeita à deficiência, integram-se na previsão normativa os cegos e os surdos-mudos, a que já se referia o anterior regime das interdições e inabilitações, tal como se integram as deficiências mentais, aí também contempladas. Fundamental é que a deficiência limite o desempenho do sujeito em termos volitivos e/ou cognitivos. Serão, por isso, residuais as situações de cegueira ou surdez-mudez que possam fundar o regime do acompanhamento, na medida em que dificilmente determinarão a limitação da possibilidade de exercer direitos e cumprir deveres, o que não significa que sejam inexistentes. Finalmente, no tocante ao segmento pelo seu comportamento, se dúvidas parece não haver quanto à possibilidade de, por essa via, se contemplarem os casos de comportamento pródigo, comportamento condicionado pelo abuso de bebidas alcoólicas e estupefacientes, hesita-se em saber se o regime se queda nestas hipóteses ou se permite que outros comportamentos inviabilizadores do exercício de direitos e do cumprimento de deveres possam ser tidos em conta para efeitos de decretamento do acompanhamento. Ora, como não estamos balizados, na tarefa interpretativa, por um princípio de tipicidade que limite a autónoma constituição normativa, parece que podemos ir, orientados por este critério-guia, além das hipóteses clássicas de prodigalidade, de consumo de bebidas alcoólicas e de estupefacientes. Fundamental é que o comportamento concreto se repercuta na impossibilidade de exercer direitos e cumprir deveres, isto é, que o comportamento seja causa, em concreto, pelo menos num domínio específico da vida, da falta de autodeterminação da pessoa».

A este propósito, cumpre ainda salientar que mesmo à luz do regime anteriormente em vigor relativamente aos institutos da interdição e da inabilitação, previstos nos artigos 138.º e 152.º do CC, o entendimento que veio a consolidar-se nesta matéria interpreta o conceito de anomalia psíquica num sentido mais lato, abrangendo qualquer perturbação das faculdades intelectuais ou intelectivas (afetando a inteligência, a perceção ou a memória) ou das faculdades volitivas (atinentes quer à formação da vontade, quer à sua manifestação) (13). Neste contexto, defende-se, designadamente, que anomalia psíquica compreende qualquer perturbação das faculdades intelectuais ou intelectivas (afetando a inteligência, a percepção ou a memória) ou das faculdades volitivas (atinente quer à formação da vontade, quer à sua manifestação), e que não é pressuposto da interdição (ou da inabilitação) por anomalia psíquica, «a existência de uma típica enfermidade mental, importando, sobretudo, a presença de uma qualquer perturbação, desarranjo ou defeito patológico das faculdades psíquicas, dando lugar a uma incapacidade para prover aos interesses pessoais» (14).
Revertendo ao caso concreto, importa considerar o que resulta da factualidade provada no sentido de que o jovem J. A. apresenta um notório défice de controlo de impulsos no contexto de estruturação disfuncional da personalidade (Perturbação Explosiva da Personalidade), encontrando-se medicado para controlo dos impulsos - cfr. alínea as) da matéria de facto provada). Aliás, faz múltiplos psicofármacos diários prescritos pela área de Psiquiatria do Hospital da ... em Guimarães, pela Dr.ª S. R..
O quadro de personalidade assim enunciado configura uma verdadeira afeção de que padece já que implica deterioração da personalidade e da funcionalidade que o tornam particularmente débil do ponto de vista psíquico - cfr. alínea av) da matéria de facto assente.
Tal patologia parece não obstar a que o requerido se expresse de forma correta e coerente, que saiba ler, escrever, realize cálculos e se oriente no tempo e no espaço. Aliás, o jovem J. A. compreendeu o objetivo do segundo exame pericial a que foi sujeito e colaborou no mesmo, mostrando compreensão pela maior parte das questões do segundo exame pericial a que foi sujeito, apresentando discurso responsivo, com frases circunstanciadas, de construção sintática e vocabulários adequados, ainda que com forte teor obsessivo, denotando alguma dificuldade na abstração e centrado na desresponsabilização dos seus atos e com tendência à vitimização. Porém, a patologia de que padece manifesta-se na vertente do relacionamento com os outros e na capacidade de auto-crítica, apresentando dificuldades em lidar com situações de conflito - alínea at) -, dificuldades no relacionamento interpessoal, focalizando-se na atitude dos outros para consigo de maneira que muitos dos seus comportamentos e pensamentos são justificados dessa maneira, vitimizando-se e apresentando pouca crítica perante os seus comportamentos bem como rigidez do pensamentos - alínea au). Note-se que, no âmbito do segundo exame pericial a que foi sujeito, o jovem J. A. manteve-se sempre centrado no presente, desvalorizando comportamentos do passado e que levaram à situação atual. O requerido apresenta também capacidade de organização e planeamento muito deficitárias, mostrando-se desinteressado, sem espírito de iniciativa ou responsabilização, o que o leva a viver o dia-a-dia de forma arbitrária. Não tem noção das suas reais dificuldades e não denota preocupação pelo seu futuro. Nas interações e relacionamentos interpessoais é conflituoso com os pares e superiores, pouco tolerante às chamadas de atenção, muito crítico nos relacionamentos mas nem sempre de forma ajustada, com dificuldades na regulação do seu comportamento nas interações complexas (controlo das emoções/impulsos e agressão verbal, de maneira contextual e socialmente apropriada). O jovem J. A. efetua transações económicas, mas não é capaz de gerir de forma adequada a semanada que recebe, estando constantemente a pedir dinheiro a qualquer pessoa para as suas pequenas necessidades quando este acaba.
Em consequência, e tal como concluiu o Sr. Perito (Em Psiquiatria Forense), que elaborou o relatório da segunda perícia, datado de 14-05-2019 e junto aos autos a 28-05-2019, a afeção de que padece configura deficiência de natureza psicológica a qual limita o desempenho do jovem em termos volitivos e cognitivos - cfr. alínea ax) da matéria de facto provada.
Resulta, assim, manifesto que se mostra verificado o requisito de ordem objetiva exigido no artigo 138.º do CC para a sujeição do jovem J. A. uma medida de acompanhamento, nos termos antes enunciados.
Retira-se ainda da factualidade assente que a referida deficiência de natureza psicológica, para além de limitar o desempenho do jovem em termos volitivos e cognitivos, determina comportamentos de prodigalidade e leva a que não seja capaz de gerir bens sem supervisão.
Desta forma, cumpre concluir que a referida afeção impede o requerido de exercer, plena, pessoal e conscientemente, os seus direitos e de, nos mesmos termos, cumprir os seus deveres, pelo que se verifica também o requisito subjetivo a que supra aludimos, necessário para que o jovem J. A. possa beneficiar do regime do acompanhamento.
Neste domínio, importa ainda atentar no artigo 140.º, n.º 1 do CC, o qual dispõe que o acompanhamento do maior visa assegurar o seu bem-estar, a sua recuperação, o pleno exercício de todos os seus direitos e o cumprimento dos seus deveres, salvo as exceções legais ou determinadas por sentença, explicitando no seu n.º 2 que, a medida não tem lugar sempre que o seu objetivo se mostre garantido através dos deveres gerais de cooperação e de assistência que no caso caibam.
Tal como decorre deste último preceito, o regime do maior acompanhado assenta também num princípio de subsidiariedade, do qual resulta que a medida de acompanhamento só é decretada quando as finalidades que com ela se prosseguem não sejam garantidas através dos deveres gerais de cooperação e assistência.
Retomando ao caso em apreciação, resulta indiscutível que os factos que caracterizam os contornos da deficiência de natureza psicológica verificada levam à necessidade de imposição de determinados limites e à ponderação de um especial auxílio sobretudo ao nível do livre exercício de atos de disposição e também de administração do património do requerido, exigências que levam a concluir que o objetivo do acompanhamento não é susceptível de ser salvaguardado através dos meros deveres gerais de cooperação e de assistência, designadamente os decorrentes de relações familiares (artigo 1874.º, n.º 1 do CC).
Entendemos, deste modo, que a matéria de facto apurada justifica que o requerido beneficie das medidas previstas no regime jurídico do maior acompanhado.
Por conseguinte, à luz de todo o enquadramento antes enunciado, julgamos que as circunstâncias dos autos impunham ao Tribunal a quo que proferisse decisão no sentido do decretamento do regime de acompanhamento do maior, com a aplicação das medidas adequadas e necessárias, considerando o respetivo grau de impossibilidade de exercício de direitos e deveres.

Daí que proceda, nesta parte, a apelação.

Relativamente ao «Âmbito e conteúdo do acompanhamento», dispõe o artigo 145.º do CC:

«1 - O acompanhamento limita-se ao necessário.
2 - Em função de cada caso e independentemente do que haja sido pedido, o tribunal pode cometer ao acompanhante algum ou alguns dos regimes seguintes:
a) Exercício das responsabilidades parentais ou dos meios de as suprir, conforme as circunstâncias;
b) Representação geral ou representação especial com indicação expressa, neste caso, das categorias de atos para que seja necessária;
c) Administração total ou parcial de bens;
d) Autorização prévia para a prática de determinados atos ou categorias de atos;
e) Intervenções de outro tipo, devidamente explicitadas.
3 - Os atos de disposição de bens imóveis carecem de autorização judicial prévia e específica.
4 - A representação legal segue o regime da tutela, com as adaptações necessárias, podendo o tribunal dispensar a constituição do conselho de família.
5 - À administração total ou parcial de bens aplica-se, com as adaptações necessárias, o disposto nos artigos 1967.º e seguintes.».

Esclarece, por outro lado, o artigo 147.º, n.º 1 do CC, sob a epígrafe Direitos pessoais e negócios da vida corrente, que o exercício pelo acompanhado de direitos pessoais e a celebração de negócios da vida corrente são livres, salvo disposição da lei ou decisão judicial em contrário, esclarecendo o n.º 2 do citado preceito que, são pessoais, entre outros, os direitos de casar ou de constituir situações de união, de procriar, de perfilhar ou de adotar, de cuidar e de educar os filhos ou os adotados, de escolher profissão, de se deslocar no país ou no estrangeiro, de fixar domicílio e residência, de estabelecer relações com quem entender e de testar.

Resulta claramente do regime legal agora em análise que o acompanhamento se deve limitar ao necessário. Tal como refere a propósito Mafalda Miranda Barbosa (15), «[o]rientado por este padrão de necessidade, o Tribunal pode atribuir ao acompanhante um ou vários poderes, consoante o que se revele necessário perante a concreta situação do acompanhado, fazendo, assim, intervir diversos regimes jurídicos.

(…) «as situações de acompanhamento podem ser muito díspares, incluindo situações de assistência ou de representação, que pode chegar a ser genérica. Mesmo nesses casos, o acompanhado conserva, em regra, a capacidade para a celebração de negócios da vida corrente (negócios que a generalidade das pessoas celebra ou para satisfação das necessidades do dia-a-dia ou para satisfação de necessidades que, ultrapassando o quotidiano, fazem ainda parte do ordinário da vida), nos termos do artigo 147.º/1 CC, bem como continua a ter capacidade de exercício no tocante a direitos pessoais, embora a decisão judicial ou a lei possam determinar a exclusão da capacidade nestes casos».

No caso em apreciação, julgamos que a capacidade diminuída que foi detetada no jovem J. A. não se revela de tal forma grave que o impossibilite de gerir na totalidade a sua pessoa e bens. Como se viu, tal patologia parece não obstar a que o requerido se expresse de forma correta e coerente, que saiba ler, escrever, realize cálculos e se oriente no tempo e no espaço. Aliás, o jovem J. A. compreendeu o objetivo do segundo exame pericial a que foi sujeito e colaborou no mesmo, mostrando compreensão pela maior parte das questões suscitadas no âmbito da referida perícia, apresentando discurso responsivo, com frases circunstanciadas, de construção sintática e vocabulários adequados, ainda que com forte teor obsessivo, denotando alguma dificuldade na abstração e centrado na desresponsabilização dos seus atos e com tendência à vitimização. No âmbito do segundo exame pericial a que foi sujeito, o jovem J. A. não apresentou alterações a nível da memória nem foi apurada sintomatologia psicótica.

Neste domínio, constata-se que o jovem J. A. necessita de forma clara e indubitável de ser representado e assistido por outrem em determinadas áreas da vida, concretamente na disposição e na administração dos seus bens (ou daqueles que porventura lhe advenham por partilha) por forma a capacitá-lo a ter património e rendimentos suficientes à sua normal subsistência e à garantia das condições adequadas ao seu estado de saúde, sem assumir, por outro lado, encargos que ponham essa subsistência em causa. Deste modo, entendemos que os factos que caracterizam os contornos da deficiência de natureza psicológica verificada, e que resultam de forma direta e necessária da “discussão” que fundamenta as conclusões enunciadas no relatório da segunda perícia, datado de 14-05-2019 e junto aos autos a 28-05-2019, levam apenas à necessidade de imposição de determinados limites e à ponderação de especial auxílio, representação e assistência ao nível do livre exercício de atos de disposição e também de administração do património. Acresce que, sendo o objeto do recurso delimitado pelas respetivas conclusões, julgamos que as medidas de acompanhamento enunciadas na conclusão 24.ª das alegações apresentadas pela recorrente - de representação geral do requerido, administração total de património do requerido e autorização prévia para aquisição de bens móveis sujeitos a registo -, não permite que se pondere, em sede de decisão do presente recurso, o estabelecimento de restrições ao exercício de direitos pessoais, designadamente, dos expressamente previstos no artigo 147.º, n.º 2 do CC, tanto mais que conforme já se constatou o acompanhado continua em regra a ter capacidade de exercício no tocante a direitos pessoais, ficando a eventual restrição de tal núcleo de direitos dependente da valoração das necessidades inerentes à concreta patologia ou afeção do acompanhado.

Por outro lado, e considerando o disposto no artigo 147.º, n.º 1 do CC, deve o requerido manter os poderes para os negócios da vida corrente, para gestão dos valores monetários por si auferidos de modo a colmatar algumas das suas necessidades - dinheiro de bolso diário, nos termos do acordo estabelecido com a entidade formadora, mãe e CPCJ de …, tal como enunciado na alínea ae) da matéria de facto provada -, e para a gestão dos valores monetários por si auferidos ou a auferir como remuneração da sua atividade profissional e até ao limite dessa remuneração.

Finalmente, atenta a factualidade dada como provada, afigura-se recomendável que o jovem J. A., ora beneficiário, continue a beneficiar de apoio e cuidados por parte de familiares, designadamente de sua mãe sobre quem incidirá a escolha para acompanhante, e das instituições que o têm acompanhado, tendo em vista designadamente a prossecução do regular e adequado acompanhamento médico-psicofarmacológico e, desta forma, a promoção do bem-estar e da recuperação integral do beneficiário. Julgamos, porém, que no contexto dos autos, atendendo designadamente ao apoio e acompanhamento que vem sendo dispensado ao beneficiário, o objetivo do acompanhamento, neste domínio, é passível de ser salvaguardado através dos meros deveres gerais de cooperação e de assistência, designadamente os decorrentes de relações familiares (artigo 1874.º, n.º 1 do CC), pelo que nada será especificamente determinado a propósito, sem prejuízo dos deveres que decorrem para o acompanhante do preceituado no artigo 146.º do CC.

Tudo ponderado, ao abrigo do disposto nos artigos 900.º do CPC, 138.º, 139.º, 140.º, 143.º, n.ºs 1, 2 al. c), 145.º, 146.º e 147.º, do CC, impõe-se alterar a sentença recorrida e, em consequência:

a) Decretar o acompanhamento de J. A., solteiro, nascido a ..-08-1999, filho de A. S. e de R. L.;
b) Designar como acompanhante do beneficiário a sua mãe, R. L.;
c) Decretar que o requerido passa a beneficiar das seguintes medidas de acompanhamento:
i) O acompanhante agora designado exercerá os poderes de representação especial para a prática dos seguintes atos - artigo 145.º, n.º 2, b), do CC:
1. Aquisição e alienação, de forma onerosa ou gratuita, bem como a dação em pagamento, de bens imóveis ou de quinhão hereditário;
2. Constituição de quaisquer ónus ou encargos sobre bens imóveis ou quinhão hereditário;
3. Convencionar a partilha extrajudicial de herança indivisa, pagando ou recebendo tornas;
4. Contrair quaisquer obrigações perante terceiros, incluindo empréstimos bancários, seja por que motivo for;
5. Aquisição ou alienação de veículos automóveis ou de outros móveis sujeitos a registo.
ii) Os atos de disposição e oneração do património do beneficiário importam autorização do acompanhante;
iii) Os atos de disposição de bens imóveis carecem de autorização judicial prévia e específica - cfr. artigo 145.º, n.º 3 do CC;
iv) Compete ao acompanhante a administração geral de bens do beneficiário, aplicando-se à administração de bens o disposto nos artigos 1967.º e ss. do CC (cfr. artigo 145.º, n.º 5 do CC);
v) O beneficiário mantém os poderes para gestão dos valores monetários por si auferidos de modo a colmatar algumas das suas necessidades - dinheiro de bolso diário, nos termos do acordo estabelecido com a entidade formadora, mãe e CPCJ de …, tal como enunciado na alínea ae) da matéria de facto provada -, e para a gestão dos valores monetários por si auferidos ou a auferir como remuneração da sua atividade profissional e até ao limite dessa remuneração;
d) No exercício da sua função, o acompanhante deve privilegiar o bem-estar do acompanhado, com a diligência requerida a um bom pai de família, provendo pelo seu permanente acompanhamento pessoal;
e) As medidas de acompanhamento agora enunciadas tornaram-se convenientes desde 4-08-2017;
f) O beneficiário não realizou testamento vital nem consta que tenha outorgado procuração para cuidados de saúde (cfr. artigo 900.º, n.º 3 do CPC);
g) Nos termos e para os efeitos previstos no artigo 145.º, n.º 4 do CC decide-se dispensar a constituição do conselho de família.
h) Nos termos e para os efeitos previstos no artigo 155.º do CC, as medidas de acompanhamento agora decididas serão revistas de dois em dois anos.

Síntese conclusiva:

I - Não indicando a recorrente, relativamente aos meios de prova referenciados nas alegações, quais os concretos pontos de facto que considera incorretamente julgados ou a decisão que, no seu entender, deve ser proferida sobre a matéria de facto relevante para a apreciação da causa, nem especificando expressamente nas conclusões das alegações eventuais modificações que preconize introduzir à decisão de facto constante da sentença recorrida ou factos que pretenda ver excluídos da factualidade provada e/ou não provada, verifica-se o incumprimento do ónus previsto nos artigos 639.º, n.º 1, e 640.º, n.º 1, do CPC, o que configura fundamento de rejeição do recurso relativo à matéria de facto;
II - Tal não impede o tribunal de recurso de aferir se é patente algum vício na decisão sobre a matéria de facto que caiba apreciar oficiosamente, ao abrigo do disposto no artigo 662.º, n.º 2, al. c), do CPC, designadamente quando a decisão da matéria de facto seja deficiente, obscura, contraditória ou incompleta;
III - Constando do processo todos os elementos necessários para suprir as deficiências detetadas e a manifesta insuficiência da matéria de facto dada como provada à luz dos factos alegados e demais circunstâncias que decorrem do exame pericial ao estado mental do requerido pode o Tribunal da Relação colmatar tais deficiências, ampliando a factualidade dada como provada com matéria que entenda assumir relevo para a decisão final da causa, atendendo ao que foi alegado e ao que resulta dos documentos e dos relatórios periciais juntos, procedendo ainda às alterações ao elenco dos factos já tidos como provados que se revelem necessárias para não haver contradição insanável de tal matéria com os aditamentos determinados e perante a reponderação dos meios de prova que se encontram disponíveis e sobre os quais o Tribunal a quo baseou a sua convicção;
IV - Confrontando os traços essenciais do regime jurídico do maior acompanhado com os institutos da interdição e da inabilitação por aquele eliminados facilmente se constata um alargamento dos fundamentos do acompanhamento de maiores bem como uma maior flexibilidade na definição do conteúdo desse mesmo acompanhamento;
V - Justifica-se que o requerido beneficie de uma medida de acompanhamento se os factos que caracterizam os contornos da deficiência de natureza psicológica detetada, traduzida em défice de controlo de impulsos no contexto de estruturação disfuncional da personalidade (perturbação explosiva da personalidade), levam à necessidade de imposição de determinados limites e a ponderação de um especial auxílio sobretudo ao nível do livre exercício de atos de disposição e também de administração do património do requerido, exigências que levam a concluir que o objetivo do acompanhamento não é susceptível de ser salvaguardado através dos meros deveres gerais de cooperação e de assistência, designadamente os decorrentes de relações familiares.

IV. Decisão

Pelo exposto, acordam os Juízes deste Tribunal da Relação em julgar parcialmente procedente a apelação, alterando a decisão recorrida, em consequência do que decidem:

a) Julgar a ação procedente, decretando o acompanhamento de J. A., solteiro, nascido a ..-08-1999, filho de A. S. e de R. L.;
b) Designar como acompanhante do beneficiário a sua mãe, R. L.;
c) Decretar que o requerido passa a beneficiar das seguintes medidas de acompanhamento:
i) O acompanhante agora designado exercerá os poderes de representação especial para a prática dos seguintes atos - artigo 145.º, n.º 2, b), do CC:
1. Aquisição e alienação, de forma onerosa ou gratuita, bem como a dação em pagamento, de bens imóveis ou de quinhão hereditário;
2. Constituição de quaisquer ónus ou encargos sobre bens imóveis ou quinhão hereditário;
3. Convencionar a partilha extrajudicial de herança indivisa, pagando ou recebendo tornas;
4. Contrair quaisquer obrigações perante terceiros, incluindo empréstimos bancários, seja por que motivo for;
5. Aquisição ou alienação de veículos automóveis ou de outros móveis sujeitos a registo.
ii) Os atos de disposição e oneração do património do beneficiário importam autorização do acompanhante;
iii) Os atos de disposição de bens imóveis carecem de autorização judicial prévia e específica - cfr. artigo 145.º, n.º 3 do CC;
iv) Compete ao acompanhante a administração geral de bens do beneficiário, aplicando-se à administração de bens o disposto nos artigos 1967.º e ss. do CC (cfr. artigo 145.º, n.º 5 do CC);
v) O beneficiário mantém os poderes para gestão dos valores monetários por si auferidos de modo a colmatar algumas das suas necessidades - dinheiro de bolso diário, nos termos do acordo estabelecido com a entidade formadora, mãe e CPCJ de …, tal como enunciado na alínea ae) da matéria de facto provada -, e para a gestão dos valores monetários por si auferidos ou a auferir como remuneração da sua atividade profissional e até ao limite dessa remuneração;
d) No exercício da sua função, o acompanhante deve privilegiar o bem-estar do acompanhado, com a diligência requerida a um bom pai de família, provendo pelo seu permanente acompanhamento pessoal;
e) As medidas de acompanhamento agora enunciadas tornaram-se convenientes desde 4-08-2017;
f) O beneficiário não realizou testamento vital nem consta que tenha outorgado procuração para cuidados de saúde (cfr. artigo 900.º, n.º 3 do CPC);
g) Nos termos e para os efeitos previstos no artigo 145.º, n.º 4 do CC decide-se dispensar a constituição do conselho de família;
h) Nos termos e para os efeitos previstos no artigo 155.º do CC, as medidas de acompanhamento agora decididas serão revistas de dois em dois anos.

Oportunamente, deverá comunicar-se a presente decisão à conservatória do registo civil competente a fim de ser registada - cfr. artigo 153.º, n.º 2 do CC.
Custas da apelação a cargo da recorrente, na proporção que se fixa em ¼ das devidas, mas sem prejuízo do benefício do apoio judiciário.

Guimarães, 16 de janeiro de 2020
(Acórdão assinado digitalmente)

Paulo Reis (relator)
Espinheira Baltar (1.º adjunto)
Luísa Duarte Ramos (2.º adjunto)



1. Cfr. Abrantes Geraldes, Recursos no Novo Código de Processo Civil, Coimbra, Almedina, 2013, p. 126.
2. Cfr. Abrantes Geraldes, Ob. cit. p. 128 - nota 5.
3. Cfr. Abrantes Geraldes, Ob. cit. pgs. 239-240.
4. Cfr. Abrantes Geraldes, Ob. cit. pgs. 240-241.
5. Cfr. Alberto dos Reis, Código de Processo Civil anotado, Vol. IV (Reimpressão), Coimbra, 1987 - Coimbra Editora, pg. 553.
6. Ac. do STJ de 4-02-97 proferido no processo n.º 458/96 - 1.ª Secção - citado por António Santos Abrantes Geraldes, ob. cit. p. 239, nota 311
7. P. 1476/02-2, disponível em www.dgsi.pt.
8. P. 4142/15.0T8GMR.G1, disponível em www.dgsi.pt.
9. P. 127/18.2T8ORQ.E1, disponível em www.dgsi.pt
10. Cfr. António Pinto Monteiro, Das Incapacidades ao Maior Acompanhado – Breve Apresentação da Lei n.º 49/2019, O Novo Regime Jurídico do Maior Acompanhado, Jurisdição Civil e Processual Civil, Lisboa, Centro de Estudos Judiciários, fevereiro de 2019, pg. 31, acessível em http://www.cej.mj.pt/cej/recursos/ebooks/civil/eb_Regime_Maior_Acompanhado.pdf.
11. Cfr., Mafalda Miranda Barbosa, Fundamentos, Conteúdo e Consequências do Acompanhamento de Maiores, O Novo Regime Jurídico do Maior Acompanhado, Jurisdição Civil e Processual Civil, Lisboa, Centro de Estudos Judiciários, fevereiro de 2019, pgs 64-65, acessível em http://www.cej.mj.pt/cej/recursos/ebooks/civil/eb_Regime_Maior_Acompanhado.pdf.
12. Cfr., a Autora e obra citadas, pgs. 65-66.
13. Cfr. Ac. do STJ de 19-11-2015 (relator: Silva Gonçalves), p. 63/2000.C1.S1; Ac. TRL de 30-06-1994 (relator: António Abranches Martins), p. 0089252, acessíveis em www.dgsi.pt
14. Cfr. Ac. TRP de 3-11-2005 (relator: Oliveira Vasconcelos), p. 0535475 acessível em www.dgsi.pt.
15. Cfr., a Autora e obra citadas, pg. 67.