Ups... Isto não correu muito bem. Por favor experimente outra vez.
HABILITAÇÃO DE HERDEIROS
INCERTOS
Sumário
I. A dedução de habilitação contra herdeiros incertos constitui um procedimento de ultima ratio, devendo sempre ser esgotadas todas as possibilidades de identificar os herdeiros do falecido.
II. Quando é a própria requerente do incidente que afirma saber o nome de outros interessados, não tendo porém acesso aos demais elementos de identificação, não pode recorrer-se à citação edital sem primeiro fazer todas as diligências que se mostrem possíveis para obter as informações em falta, podendo e devendo o Tribunal auxiliar na recolha das informações necessárias, nos termos dos arts. 6º e 7º CPC.
Texto Integral
Acordam no Tribunal da Relação de Guimarães I- Relatório
X – ACABAMENTOS TÊXTEIS, LDA., pessoa colectiva n.º …, com sede no lugar de … Barcelos, propôs contra R. F., S. L. UNIPERSONAL, Y TÊXTIL, UNIPESSOAL, LDA., N. C., e R. F., acção declarativa sob a forma de processo comum, pedindo que os réus sejam condenados a pagarem-lhe, solidariamente, a quantia referente às prestações vencidas e não pagas à presente data, no valor de € 500.000,00, acrescida de juros de mora, à taxa legal, desde a data de vencimento de cada uma delas até efectivo e integral pagamento, os quais, no presente momento, ascendem a € 7.822,61, bem como, ao abrigo do disposto no n.º 1 do artigo 557.º do Código do Processo Civil, no pagamento das prestações vincendas, custas, procuradoria e demais despesas legais a que derem causa.
Alega em síntese que no âmbito da sua actividade, prestou às sociedades RR. trabalhos próprios da sua área de negócio, ao longo dos anos, para o exercício das suas actividades, sendo que tais serviços foram sempre facturados à sociedade primeira Ré, por ser esta a titular do negócio. Esta acumulou uma elevada dívida para com a autora, fruto de um súbito avolumar de encomendas não pagas. Pretende com a acção o pagamento dessa dívida.
No decurso da acção, em 16.1.2017, faleceu o réu R. F..
Por despacho de 1.2.2017 foi declarada suspensa a instância.
Veio então a autora requerer a habilitação de N. C., de E. C. – menor de idade, representada pela primeira, sua mãe – e incertos (por não ter logrado identificar outros sucessores, apesar de saber que há filhos de um primeiro casamento) para prosseguirem nos autos principais como herdeiras de R. F., falecido no estado de casado com N. C..
N. C.contestou, pugnando pela nulidade, ineptidão, abuso de direito e inadmissibilidade do incidente, porquanto, por um lado, não foi junta a certidão de casamento do falecido, para prova do seu matrimónio, por outro, a requerente deveria ter feito mais diligências para apurar outros sucessores, já que sabe que o falecido teve filhos do primeiro casamento.
A final, o incidente foi decidido com a prolação de sentença que, nos termos do disposto no nº 1 do art. 354º e do nº 1 do art. 355º do CPC, habilitouN. C., por si e em representação de E. C., e ainda incertos, representados pelo Ministério Público, como herdeiros de R. F., para com eles prosseguir os termos da demanda.
Inconformada com esta decisão, N. C. interpôs o presente recurso, que foi recebido como de apelação, com subida imediata, em separado, e com efeito meramente devolutivo, findando a respectiva motivação com as seguintes conclusões:
1. Na pendência da acção com processo comum instaurada pela sociedade X – ACABAMENTOS TÊXTEIS, Lda. contra, entre outros, R. F., este veio a falecer na data de 16 de Janeiro de 2017; 2. A Recorrida X – ACABAMENTOS TÊXTEIS, Lda., na data de 21.05.2017, deu entrada no processo de um requerimento (ref. 25775990) em que confessa que sabe que: a. “o falecido tinha nacionalidade espanhola, sendo do conhecimento da A. que aquele tinha três filhos de um primeiro casamento, uma filha do segundo casamento, para além do cônjuge sobrevivo”; b. conhece “todos os filhos pessoalmente e pelo respectivo nome”. 3. Em cumprimento do seu dever de cooperação, a Recorrente informou que o falecido não deixara testamento ou outras disposições de última vontade. 4. A Recorrida nunca procurou informar-se da localização dos filhos do falecido R. F., nem nunca procurou adquirir os documentos comprovativos da identificação dos herdeiros do falecido, nomeadamente, certidões de nascimento e habilitação de herdeiros, para que pudesse ser deduzido o competente incidente de habilitação. 5. A Recorrida conhecendo a identificação dos filhos herdeiros do falecido optou ilegalmente por requerer a citação de “incertos” sabendo antecipadamente que os filhos eram certos e conhecidos pessoalmente pela Recorrida, sabendo os respectivos nomes, pelo que tinha forma fácil de obter por autoridade, as respectivas moradas. 6. Ao agir como agiu a Recorrida X – ACABAMENTOS TÊXTEIS, Lda. violou, de forma objectiva e directa o disposto no artigo 355º - 1 do CPC, pois é a própria Recorrida quem diz que conhece pessoalmente e pelos seus respectivos nomes todos os filhos do falecido Sr. R. F.. 7. A Recorrida também sabe que a ora Recorrente é a segunda esposa do Sr. R. F., cujos filhos não aceitaram este segundo casamento do Sr. R. F. e, por tal, nunca a Recorrente teve nenhum contacto com nenhum desses filhos do seu marido. 8. Qualquer habilitação de incertos só pode legalmente ocorrer quando existe impossibilidade em determinar e identificar o/a(s) herdeiro/a(s) do falecido, o que não é o que ocorre com a Recorrida, conforme esta confessa. 9. A Recorrida não fez qualquer diligência para obter de qualquer autoridade espanhola quaisquer documentos e/ou elementos, incluindo moradas, números de identificação fiscal ou quaisquer outros, o que lhe permitiria a identificação e localização desses filhos do primeiro matrimónio do Sr. R. F.. 10. Como vem no douto Acórdão do Venerando Tribunal da Relação de Lisboa, de 17.07.1986, in CJ, 1986, 4º-134, "é ilegítimo o exercício de um direito em contradição com o comportamento assumido anteriormente pelo exercente, por ser contrário aos princípios impostos pela boa fé". 11. O requerimento inicial apresentado pela Recorrida e a forma como constrói e formula o pedido de habilitação de herdeiros, quanto à sua intensidade e execução, manifesta uma autêntica fraude à lei, violando as disposições legais que regulamentam processualmente os termos da propositura deste incidente, evidencia total desrespeito pelas normas jurídicas, ofende claramente o sentido de justiça e, com a sua conduta, ultrapassa todos, mas todos, os limites referidos no art. 334º do CCivil. 12. O Tribunal a quo, na decisão que proferiu, não se pronunciou sobre as excepções deduzidas pela Recorrente na sua contestação, o que significa que ocorreu, na sentença, a nulidade de omissão de pronúncia sobre matéria de direito invocada pela Recorrente na sua contestação. 13. O Tribunal a quo violou o disposto no artigo 195º-1 (e 615º nº 1 d)) do CPC ao não se pronunciar sobre a ausência de requisitos e condições para serem citados os “incertos”, por estes não serem incertos, e protegeu, com essa omissão, a negligência e comodismo da Recorrida que, conhecendo pessoalmente os filhos do Sr. R. F. do seu primeiro casamento e conhecendo os nomes destes filhos, optou por catalogá-los de “incertos” para não ter o incómodo de os mandar citar. 14. A grosseira negligência da X – ACABAMENTOS TÊXTEIS, Lda., o seu desinteresse e omissão, ao desencadear o aquele incidente muito para além do limite temporal (dos seis meses) de que dispunha – mais a mais, sem fundamentos, motivos ou razões válidas, como antecedentemente escalpelizado –, eivada e prenhe de nulidades e de abuso do direito, na modalidade de venire contra factum proprium, em flagrante incumprimento do ónus probatório que sobre ela recaía, mostra-se não só impertinente e dilatório como legalmente inadmissível, porque manifestamente intempestivo. 15. O Tribunal a quo violou o disposto nos artigos 195º-1, 277º c), 281º, 355º-1 e 615º nº 1 d), todos do CPC.
A recorrida contra-alegou, pugnando pela total improcedência do recurso.
II
As conclusões das alegações de recurso, conforme o disposto nos artigos 635º,3 e 639º,1,3 do Código de Processo Civil, delimitam os poderes de cognição deste Tribunal, sem esquecer as questões que sejam de conhecimento oficioso. Assim, e, considerando as referidas conclusões, as questões a decidir consistem em saber se: a) ocorre omissão de pronúncia sobre excepções invocadas pela recorrente b) estavam reunidos os requisitos para serem citados editalmente os herdeiros incertos
III
Com interesse para a decisão, as ocorrências processuais são as que acima ficaram expostas.
Conhecendo então do recurso.
O falecimento de uma parte determina, em regra, a suspensão da instância (art. 269º,1 e 270º CPC). Após declarada essa suspensão, a instância apenas reinicia a sua marcha depois de habilitados os sucessores do falecido, para que com ele prossiga a acção (art. 276º,1 CPC).
Incumbe ao requerente da habilitação alegar que os habilitandos são titulares prioritários da vocação sucessória (art. 342º,1 CC), cabendo a estes alegar os factos impeditivos ou extintivos da sua legitimidade, vg, repúdio (art. 342º,2 CC). Não cabe ao requerente provar que inexistem outros herdeiros, uma vez que se trata de um facto negativo e indeterminado, cuja prova seria na prática, inviável (RP 28-10-10, CJ t. IV, p. 204) (1).
E quando se desconhece a identidade dos herdeiros?
Responde o art. 355º CPC: 1 - Se forem incertos, são citados editalmente os sucessores da parte falecida. 2 - Findo o prazo dos éditos sem que os citados compareçam, a causa segue com o Ministério Público, nos termos aplicáveis do artigo 22.º.
Como escrevem os autores supra citados, a dedução de habilitação contra herdeiros incertos constitui um procedimento de ultima ratio, devendo o interessado diligenciar previamente pela sua identificação, se necessário for, com a colaboração do Tribunal (art. 7º,4 CPC). Actualmente as Secretarias Judiciais têm acesso ao Sistema Integrado de Registo e Identificação Civil, através do qual, mediante o nome e data de nascimento, será possível apurar quais os ascendentes e descendentes de qualquer cidadão nacional falecido, de modo que a habilitação de sucessores incertos será sempre excepcional.
Ora bem.
As partes estão de acordo em que existem três filhos de um primeiro casamento do falecido R. F., que serão de nacionalidade espanhola.
Da consulta dos autos de habilitação via Citius (porque os elementos necessários não constam desse apenso de recurso em separado), resulta que o Tribunal ordenou as notificações das partes para que estas fornecessem as informações necessárias, tudo como foi sendo requerido pelas mesmas, de forma cruzada, e mesmo assim não foi possível obter as informações necessárias para proceder à citação pessoal dos outros herdeiros. A requerente da habilitação explicou pormenorizadamente as diligências que fez, e as razões pelas quais não logrou obter sucesso. A ora recorrente, apesar de, pela sua ligação ao falecido, ser porventura quem estaria em melhores condições para poder obter, ou pelo menos ajudar a obter, as informações em falta, escudou-se sempre na alegação da sua total ignorância sobre os outros filhos do falecido.
E destarte, a sentença recorrida acabou referindo: “quanto aos incertos, não tendo a requerente logrado obter elementos bastantes à identificação dos demais herdeiros, a demanda dos incertos é lícita e tem a sua previsão legal no nº 1 do art. 355º do CPC”.
O que dizer ?
Vamos começar por reforçar a ideia de que o recurso à citação edital de incertos é procedimento de natureza excepcional, porque atinge em cheio o princípio do contraditório, e deve ser reservado apenas para as situações em que de todo, após esgotar as diligências possíveis, não foi possível a citação pessoal.
Ora, temos de dizer que sendo conhecidos os nomes dos outros herdeiros do falecido, e sendo eles cidadãos espanhóis, e sendo a Espanha um Estado de Direito com registo centralizado de todos os seus cidadãos, afigura-se que será possível obter as informações em falta, ou, pelo menos, vislumbram-se diligências de busca da informação que não foram ainda tentadas, mesmo que pedindo a colaboração do Tribunal, ao abrigo do disposto no art. 7º,1,4 CPC.
Basta ver, por exemplo, o que se decidiu no Acórdão do TRL de 19 de Abril de 2007 (Relator: Fernando Pereira Rodrigues): “como se deixou acima expresso, o Recorrente, por apenso à acção declarativa em que é Autor e Réus B e C, requereu a habilitação de herdeiros contra a esposa do segundo Réu falecido e dos herdeiros incertos, alegando que ignora se aquele deixou herdeiros ou testamento e pediu a citação edital dos herdeiros incertos, tendo em face do incidente assim deduzido sido proferido despacho a ordenar que os autos aguardem que o requerente comprove as diligências efectuadas com vista a identificar os sucessores do falecido Réu. A questão que se coloca é a de saber se o Recorrente tem de comprovar a realização de tais diligências ou se, sem mais, deve ser ordenado o seguimento do incidente. Ora, a questão em apreço já foi tratada nos Acórdãos citados no despacho recorrido, de 06.07.2005, do Supremo Tribunal de Justiça e de 29.06.2006 da Relação de Lisboa, em recursos também interpostos pelo ora Recorrente e em ambos se entendeu que a demanda de incerto apenas se justifica se a parte demandante não tem possibilidade de os determinar e identificar. Com efeito, no douto aresto do STJ defendeu-se que “conjugando o disposto no art. 375°, n.° 1, com o art. 16°, n.° 1, ambos do CPC, a citação dos requeridos como incertos só se justifica quando o autor não tem possibilidade de os determinar e identificar, não sendo suficiente a mera dificuldade “subjectiva” na obtenção de tais informações, dificuldade essa susceptível de (ser) ultrapassada, se for caso disso, com a cooperação do tribunal, nos termos no art. 266°, nº 4 do CPC.” Por outro lado, com base nas mesmas disposições legais entendeu-se, em caso similar ao dos autos, no douto Acórdão desta Relação acima citado que “o ora recorrente não pode deixar de tentar identificar, de forma diligente, os interessados directos em contradizer, diligência que, no caso, se revela facílima visto que pode sempre, para o efeito, contactar a viúva que demandou em acção declarativa. Já não lhe é lícito, contrariamente ao que dantes sucedia, declarar a mera ignorância; …; seja como for, o recorrente terá sempre, neste domínio, de comprovar que efectuou diligências nesse sentido junto das entidades tributárias e só se houver recusa, com base na confidencialidade ou sigilo, é que lhe será legítimo recorrer à cooperação do próprio tribunal”. Ora, o entendimento defendido na jurisprudência citada parece ser de seguir, na medida em que o Recorrente não mostra ter realizado quaisquer diligências com vista a identificar os herdeiros do réu falecido e algumas dessas diligências estão ao seu alcance em face de contactos que pode levar a efeito junto de pessoas e serviços. Por outro lado não parece à partida bom caminho demandar incertos como herdeiros, com as inerentes inconveniências da citação edital e da representação pelo Ministério Público, sabendo-se que os mesmos facilmente poderão ser identificados e citados para os termos da acção. Certo é que se o Recorrente demonstrar ter realizado as diligências que podia realizar e que estas se frustraram com vista à identificação dos sucessores do falecido sempre poderá requerer ao tribunal a realização das necessárias ao fim em alcance e só em último caso se justificando a citação edital de incertos, até porque a viúva chamada à habilitação terá o dever de prestar cooperação nesse sentido por força do disposto no art. 266º/1 do CPC”.
Assim, vislumbram-se diligências úteis que não se mostra terem sido realizadas, como o pedido de informações à Embaixada de Portugal em Espanha, ou à Embaixada de Espanha em Portugal, sendo certo que o Tribunal poderá e deverá sempre intervir, auxiliando a pesquisa em causa nos termos das disposições legais citadas, quando a parte invocar e demonstrar que se deparou com obstáculos intransponíveis.
Assim, concluímos que assiste razão à recorrente, quando diz que a requerente deveria ter feito mais diligências para apurar a identificação dos outros sucessores, já que sabe que o falecido teve filhos do primeiro casamento.
Como tal, não podia o Tribunal recorrido ter determinado o recurso à citação edital dos incertos, sem ter esgotado as diligências para obter as informações em falta. Com o que o recurso procede.
IV- DECISÃO
Por todo o exposto, este Tribunal da Relação de Guimarães decide julgar o recurso procedente, e em consequência revoga a decisão recorrida, devendo a requerente do incidente realizar mais diligências para obtenção da informação em falta, solicitando o auxílio do Tribunal, se for caso disso.