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AMEAÇA AGRAVADA
NATUREZA
Sumário
Os crimes de ameaça agravada, previstos no artigo 155º/CP, têm natureza pública.
Texto Integral
Acordam os Juízes, em conferência, na 3ª Secção Criminal, deste Tribunal:
I – Relatório:
O Ministério Público, não se conformando com a decisão de 11 de Junho de 2019, na parte que homologou a desistência de queixa relativamente ao crime de ameaça agravada, previsto e punido pelos artigos 153º/1 e 155º/1- a), do Código Penal, imputado ao arguido CM__________e determinou a extinção do procedimento criminal, veio dele interpor recurso, concluindo as alegações nos termos que se transcrevem: «O recurso foi interposto da parte do despacho que homologou a desistência de queixa relativamente ao crime de ameaça agravada, previsto e punido pelos artigos 153.°, n.° 1, e 155.°, n.° 1, al. a), do Código Penal, e, em consequência, determinou a extinção de todo o procedimento criminal. O crime de ameaça agravada, previsto e punido pelos artigos 153.°, n.° 1, e 155.°, n.° 1, al. a), do Código Penal, reveste natureza pública, pelo que a desistência de queixa do assistente não era susceptível de ser homologada e, por essa via, conduzir à extinção do procedimento criminal. Com efeito, a Lei n.° 59/2007, de 4 de Setembro, autonomizou o crime até aí previsto no artigo 153.°, n.° 2, do Código Penal, inserindo-o no n.° 1 do artigo 155.°, n.° 1, do mesmo diploma - até então referente apenas ao crime de coacção -, unificando quer os fundamentos da agravação das penas dos crimes de ameaça e de coacção, quer procedimentos por tais crimes. Como nem o próprio artigo, nem qualquer outra norma, estabelece que o crime de ameaça agravada previsto e punido pelo artigo 155.°, n.° 1, al. a), do Código Penal depende de queixa, o referido crime reveste natureza pública. Dado o disposto no artigo 48.° e nos artigos 49.°, 50.° e 51.°, n.° 1, todos do Código de Processo Penal, a instauração e/ou prosseguimento do procedimento criminal não depende da apresentação de queixa pelos ofendidos; consequentemente, a desistência de queixa não tinha qualquer efeito nos autos quanto a um crime de natureza pública. Pelo que ao contrário do decidido o tribunal a quo deveria ter prosseguido no julgamento quanto ao crime de ameaça agravada, previsto no art. 153.°, n. 1, e art. 155.°, n. 1, al. a), ambos do Código Penal ; não o fazendo violou o estabelecido nos artigos 153.°, n.° 1, e 155.°, n.° 1, al. a), do Código Penal e artigo 48.° do Código de Processo Penal. Nestes termos, deverá o presente recurso ser julgado procedente e, em consequência, revogada parte da decisão recorrida e substituída por despacho que ordene o prosseguimento do julgamento do arguido CM__________pela prática de um crime de ameaça agravada, previsto pelos artigos 153.°, n.° 1, e 155.°, n.° 1, al. a), do Código Penal. ».
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Contra-alegou o arguido, concluindo as respectivas alegações nos seguintes termos: «A.O Ministério Público interpôs o presente recurso porquanto não se conformou com a douta decisão do Tribunal a quo, ao ter determinado a homologação da desistência da queixa apresentada pelo Assistente, com a concordância do Arguido, relativamente (também) ao ilícito de ameaça agravada. B. Escudando-se para o efeito na alegada natureza do apontado crime de ameaça agravada - crime público, sendo certo porém que, se o Ministério Público manifestou a sua discordância em audiência de discussão e julgamento quanto a tal desistência, igualmente incontrovertido vem a ser o facto de, posteriormente, ter prescindido do direito de recorrer. C. Com efeito, e tal como resulta expresso e cristalino da acta de audiência de discussão e julgamento (não impugnada pelo Ministério Público nas suas motivações do recurso), o Ministério o Público abdicou da faculdade de interposição de recurso. D. Ora, nesta conformidade, tendo o Ministério Público, tal como o Assistente e os Arguidos prescindido do prazo para recurso, tal significa, indubitavelmente, que todos renunciaram à faculdade de recorrer, aceitando de imediato a decisão judicial, nos termos e para os efeitos do disposto no artigo 107.° do CPP. E. Porque assim é, não pode o Ministério Público, que antes renunciou ao exercício do direito de recorrer, vir depois, e contraditoriamente, exercer essa faculdade processual (já precludida por vontade sua). F. Destarte, dúvidas não existem quanto ao facto de o Ministério Público ter voluntariamente renunciado ao direito de recorrer, e por forma expressa, por razões apenas a si imputáveis, faculdade que exerceu livremente, donde é ilegítimo o exercício a posteriori do (antinómico) direito de recurso ou susceptibilidade de alteração da decisão antes aceite. G. Subsidiariamente, falece o mérito do presente recurso dado que o crime em causa (ameaça com agravação - artigo 155.° do Código Penal), não altera a natureza semi-pública do ilícito típico “raiz” ou “mãe” - crime de ameaça, não tendo o legislador expressamente identificado qualquer desvio à qualificação da natureza da variante agravada, H. O que apenas pode significar que o legislador não pretendeu adoptar um regime diverso para o crime de ameaça com agravação, em face do crime típico de ameaça, como tal regulamentado na mesma secção do diploma legal. I. Ora, tratando-se de crime que partilha da natureza semi-pública do crime de ameaça (crime “mãe”, não merece qualquer reparo a sentença homologatória da queixa apresentada pelo Assistente e com a concordância do Arguido, a qual deverá assim ser objecto de confirmação por este Alto Tribunal. Nestes termos e nos melhores de Direito aplicáveis, com o mui douto suprimento de V. Ex.as, deve o presente recurso interposto pelo Ministério Público ser julgado inadmissível, e caso assim não se entenda, atenta a falta de mérito dos seus fundamentos, deve ser negado provimento ao recurso, confirmando-se a douta sentença recorrida, com todas as legais consequências.». ***
Nesta instância, o Exmº Procurador-Geral Adjunto emitiu parecer no sentido do provimento do recurso, considerando que se trata de dois tipos autónomos, sendo que o agravado tem natureza pública.
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II- Questões a decidir:
Do artº 412º/1, do CPP resulta que são as conclusões da motivação que delimitam o objecto do recurso e consequentemente, definem as questões a decidir em cada caso ([1]), exceptuando aquelas questões que sejam de conhecimento oficioso ([2]).
A questão colocada pelo recorrente é saber se o crime de ameaça agravada, previsto pelos artigos 153º/1 e 155º/1- a), do Código Penal tem natureza pública ou semi-pública.
O recorrido coloca a questão da inadmissibilidade do recurso.
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III- Fundamentação de facto: A acta que se refere ao despacho recorrido contem-se nos seguintes termos: « (…)Arguidos: C___________CM__________Mandatário dos arguidos: LP_______Mandatária do assistente G___________(….). Após pelos ilustres advogados foi pedida a palavra, que no uso da mesma disseram que põem fim ao presente litígio nos seguintes termos: ACORDO - Reduz os pedidos cíveis para a quantia única de 1500,00€ (mil e quinhentos euros) a ser pago em 4 (quatro) prestações, sendo o pagamento feito para o IBAN PT 50 0033 0000 45431363776 05, sendo a 1.ª prestação paga no dia 31 de Julho de 2019 e as restantes no mesmo dia dos meses subsequentes, até final. - Custas em partes iguais. Estando presente na sala foi pedida a palavra pela Mandatária do assistente a qual, no uso da mesma, disse querer desistir das queixas apresentadas contra os arguidos. Seguidamente foi dada a palavra aos arguidos C___________e C___________, os quais no uso da mesma disseram aceitar as referidas desistências de queixas. Dada a palavra ao Digno Procurador-Adjunto, o mesmo, no seu uso, disse nada ter opor à homologação da desistência do pedido de indemnização civil, mas opor-se à referida desistência de queixa contra os arguidos relativamente ao crime de ameaça agravada. Seguidamente a Mm.a Juíza proferiu o seguinte: DESPACHO "Nos presentes autos de Processo Comum (Tribunal Singular) já devidamente identificados, tendo em consideração a transacção do pedido de indemnização cível que antecede, a disponibilidade do objecto e a qualidade dos intervenientes na mesma, e ainda o disposto nos artigos 283.°, 284.° e 290.°, n.° 4, do C.P.C., homologo por sentença a referida transacção, condenando e absolvendo nos seus precisos termos. Sem custas, por não serem devidas, atenta a isenção prevista nos termos do artigo 4.°, n.° 1, alínea n) do R.C.P. O arguido C___________, vem acusado da prática de um crime de ofensa à integridade física simples, p. e p. pelo art.° 143.°, do C.P e de um crime de injúria, p. e p. pelo art.° 181.°, do C.P.. Tais crimes revestem-se de natureza semi pública, dependendo o procedimento criminal de queixa. Preceitua o art.° 116.°, n.° 2, do C.P., que o queixoso pode desistir da queixa apresentada, desde que não haja oposição do arguido, até à publicação da sentença em 1.a instância. Neste contexto fáctico-jurídico, julgo válida, legítima e tempestiva a desistência de queixa apresentada, pelo que a homologo nos seus precisos termos - artigos 113.°, n.° 1, 116.°, n.° 2, 143.° e 181.°, todos do Código Penal, e 51.°, n.° 2 do Código do Processo Penal, declarando extinto o procedimento criminal relativo ao arguido C___________, ( art.°s 116.°, n.°2, do C.P. e 51.°, n.°2, do C.P.P.). “O crime do art.° 155° do C. Penal, pese embora posição legislativa relativamente à sua agravação mantem a natureza de "crime mãe" (art.° 153° do C. Penal), uma vez que as circunstâncias elencadas na agravação atuam apenas para agravar a moldura penal e nada aditam ou modificam ao tipo legal de crime de raiz, pois que também nada acrescentam que pressuponha o respectivo preenchimento do ilícito com outros elementos basilares, ao contrário do que sucede em outros tipos legais de crime, como por exemplo nos crimes de homicídio, de furto ou de ofensas corporais, pois ali as circunstâncias agravantes funcionam também como circunstanciais modificativas alterando a moldura penal abstracta através da qual se constroem outros tipos legais de crime sejam eles qualificados ou privilegiados. Deste modo e de acordo com o que vem a ser entendido a nível doutrinal pelos Professores Eduardo Correia e Figueiredo Dias, entendemos também que o tipo base de crime do art.° 153° não foi beliscado na sua natureza e o legislador não quis alterar aquela natureza do crime base nuclear (semipúblico - como se refere no art.° 153°, n.° 2 do C. Penal). Na verdade, o crime de ameaça agravada, p.p. pelos artigos 153°, n°1 e 155°, n°1, al. a) do CP, permite face à sua natureza semi-pública, a desistência do procedimento criminal (neste sentido, Ac. TRL de 14 de Julho de 2011, proc 379/09.9PCRGR.L1). Efectivamente o crime de raiz mantém-se inalterado nos seus elementos simplesmente agravado, face às circunstâncias de relevo como sendo a qualidade da vítima ou do agente, nas alíneas daquele tipo que não a da alínea a) que é o caso dos autos. Assim sendo, entende-se ser admissível a desistência de queixa formulada nestes autos relativamente ao crime de ameaça agravada p. e p. art.°s 153° e 155°, n°1, al. a) do C.P. Penal razão pela qual homologo a referida desistência de queixa tendo em consideração a legitimidade das partes e a desistência apresentada pelo ofendido, que os arguidos aceitaram. Por todo o exposto, ordeno o oportuno arquivamento dos autos. (…). Consigna-se que, pelo Digno Magistrado do Ministério Público e os Ilustres Mandatários, foi dito prescindirem do prazo para recurso.».
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IV- Fundamentos de direito: Da irrecorribilidade da decisão:
O arguido pugna pela irrecorribilidade da decisão, com fundamento em que tendo o MP declarado prescindir do recurso é ilegítimo o exercício do direito ao recurso.
Invoca jurisprudência vária, relativa à apreciação da questão no âmbito do direito civil, de menores e um acórdão penal relativo a actuação de um arguido.
Mais invoca o disposto no artigo 107º/CPP.
Na verdade, o MP declarou, em sede de audiência, prescindir do prazo de recurso.
Nos termos do artigo 107º/ a pessoa em beneficio da qual um prazo for estabelecido pode renunciar ao seu decurso, desde que tal renúncia seja devidamente homologada pela autoridade judiciária que dirigir a fase do processo em curso, em 24 horas. Esta é uma norma genérica, sobre a matéria da renúncia ao decurso de um prazo e não uma norma específica sobre a renúncia ao recurso.
Nos termos do artigo 4º/CPP, nos casos omissos aplicam-se as normas do processo civil que se harmonizem com o processo penal.
No âmbito do processo civil existe norma sujeita à epígrafe de perda do direito de recorrer e renúncia ao recurso. É o actual artigo 632º (anterior artigo 681º), que determina, no nº 2, que não pode recorrer quem tiver aceitado a decisão depois de proferida, mas exclui do âmbito de aplicação do preceito o Ministério Público (nº 4). Aliás, mesmo no âmbito do artigo 107º/CP há quem entenda que a sua aplicação só é devida na medida em que não colida com a natureza pública dos interesses protegidos ([3]).
Tal norma é aplicável ao processo penal.
Tem subjacente o reconhecimento de que a função do MP no processo penal se traduz na prossecução penal, isto é, no exercício da acção penal, que é dominada por considerações de tutela da ordem jurídica e da realização dos fins superiores da justiça. Não havendo margem para critérios de oportunidade no exercício das funções que lhe competem, o legislador eximiu o MP do dever de congruência na sua actuação processual, do que é manifestação não só a norma em apreço mas, por exemplo, a faculdade de submeter à apreciação superior um acto de recurso ou contra alegação praticado na instância inferior (vide artigo 416º/CPP). A solução pode gerar controvérsia no âmbito do direito constituendo, mas tal não é fundamento para o não cumprimento da norma – que, segundo o legislador, melhor tutela os diversos interesses, com consagração constitucional, em jogo.
Improcede, na conformidade, a questão da irrecorribilidade do despacho pelo MP.
*** Da natureza pública ou semi-pública do crime de ameaça agravada, previsto pelos artigos 153º/1 e 155º/1- a), do Código Penal:
A questão colocada no recurso prende-se, essencialmente, com a natureza do crime de ameaça agravada. A decisão recorrida e o arguido entendem que é um crime semi-público, o recorrente entende que é um crime público.
A questão não é nova e tem merecido soluções distintas na jurisprudência, se bem que se venha desenhando uma posição maioritária no sentido da natureza pública do tipo agravado.
É uma questão de hermenêutica judiciária, que tem que ser analisada segundos os critérios legais, ou seja, de acordo com a analise da letra da norma, do escopo da norma e do seu elemento histórico, considerando a unidade do sistema jurídico.
Em termos de interpretação literal temos que das duas normas em vigor apenas o tipo simples, consagrado no artigo 153º/CP, contém a menção de que o procedimento criminal depende de queixa, ou seja, de que se trata de um crime semi-público, em que a desistência de queixa opera como causa de extinção do procedimento criminal (artigo 116º/CP).
Do artigo 155º/CP, que define o tipo agravado, nada consta a esse respeito, sendo que nos tipos descritos entre os dois artigos, ou seja, nos artigos 154º, 154º/A, 154º/B e 154º/C, a lei refere expressamente a natureza semi-pública apenas quanto ao tipo contido no artigo 154º/A e quanto aos demais tipos descritos no mesmo capítulo IV, apenas o fez quanto ao descrito no artigo 156º (que se segue ao 155º). Daqui se retira a convicção de que o legislador definiu a natureza de cada um desses crimes, pontualmente.
A questão pode colocar-se, então, na perspectiva segundo a qual o tipo do 155º/CP resulta do acréscimo ao tipo base, do 153º/CP, de uma agravação (agravação essa que estende aos actos preparatórios do crime de casamento forçado cujo procedimento criminal não depende de queixa, isto é, é um crime público).
Neste ponto há necessidade de conferir o elemento histórico e a unidade do sistema, ou seja, os princípios gerais que presidem à atribuição de natureza semi-pública a determinados tipos de crime.
O artigo 153º, sempre sob a epígrafe de ameaça, evoluiu nos seguintes termos:
- Na redacção dada pelo Decreto-Lei n.º 48/95, de 15 de Março dizia que:
«1 - Quem ameaçar outra pessoa com a prática de crime contra a vida, a integridade física, a liberdade pessoal, a liberdade e autodeterminação sexual ou bens patrimoniais de considerável valor, de forma adequada a provocar-lhe medo ou inquietação ou a prejudicar a sua liberdade de determinação, é punido com pena de prisão até 1 ano ou com pena de multa até 120 dias. 2 - Se a ameaça for com a prática de crime punível com pena de prisão superior a 3 anos, o agente é punido com pena de prisão até 2 anos ou com pena de multa até 240 dias. 3 - O procedimento criminal depende de queixa».
- Na redacção dada pela Lei n.º 59/2007, de 04/091:
« 1 - Quem ameaçar outra pessoa com a prática de crime contra a vida, a integridade física, a liberdade pessoal, a liberdade e autodeterminação sexual ou bens patrimoniais de considerável valor, de forma adequada a provocar-lhe medo ou inquietação ou a prejudicar a sua liberdade de determinação, é punido com pena de prisão até um ano ou com pena de multa até 120 dias. 2 - O procedimento criminal depende de queixa».
O artigo 155º/CP na redacção dada pelo Decreto-Lei n.º 48/95, de 15 de Março e pelo Decreto-Lei n.º 48/95, de 15 de Março, respeitava apenas ao crime de «coacção grave», correspondente à epígrafe. Na redacção dada pela Lei n.º 59/2007, de 04 de Setembro, passou a ter por epígrafe «agravação» e a conter-se nos seguintes termos:
«1 - Quando os factos previstos nos artigos 153.º e 154.º forem realizados: a) Por meio de ameaça com a prática de crime punível com pena de prisão superior a três anos; ou b) Contra pessoa particularmente indefesa, em razão de idade, deficiência, doença ou gravidez; c) Contra uma das pessoas referidas na alínea l) do n.º 2 do artigo 132.º, no exercício das suas funções ou por causa delas; d) Por funcionário com grave abuso de autoridade; o agente é punido com pena de prisão até dois anos ou com pena de multa até 240 dias, no caso do artigo 153.º, e com pena de prisão de um a cinco anos, no caso do n.º 1 do artigo 154.º 2 - As mesmas penas são aplicadas se, por força da ameaça ou da coacção, a vítima ou a pessoa sobre a qual o mal deve recair se suicidar ou tentar suicidar-se».
Sendo o direito penal, em sentido subjectivo (jus puniendi) a manifestação da faculdade atribuída aos Estados de estabelecer quais os comportamentos que constituem crime, ameaçar os agentes desses comportamentos e sancioná-los, radicando essa faculdade na titularidade, por cada Estado, do direito e dever de conformar a sociedade tendo em vista determinado projecto social e politico (no caso, dos Estados democráticos estabelecidos na respectiva lei constitucional), determinando-se o exercício desse poder/dever pelo princípio da intervenção mínima e pela adaptação, em cada momento, à mutação do social e das exigências regulamentadoras daí emergentes, conclui-se que o conjunto de normas penais emanadas desse Estado (direito penal em sentido objectivo ou jus poenale) reflecte precisamente a concepção dominante sobre o penalmente tolerável e o intolerável e o grau da respectiva tolerabilidade.
Nessa linha, o direito penal Português entendeu condicionar o exercício da acção penal à vontade dos particulares, no âmbito dos crimes em que a intolerabilidade do comportamento criminalizado tem por maior fundamento a tutela de interesses privados do que a tutela de interesses públicos. O que não quer dizer que o mesmo tipo de comportamento possa, em determinadas situações, ser intoleravelmente gravoso, já numa perspectiva de tutela dos interesses públicos, a ponto que o interesse privado em causa claudique perante a necessidade de tutela do interesse público, no âmbito da ponderação sobre o peso relativo dos bens jurídicos atingidos.
Nasce assim a destrinça entre crimes particulares – aqueles que dependem do exercício de queixa e da dedução de acusação pelo particular titular do interesse jurídico afectado – semi-públicos – aqueles em que perante a manifestação de vontade de perseguição penal do titular do interesse jurídico lesado o Estado move essa perseguição – e públicos – aqueles em que o Estado, por si exerce a perseguição penal, independentemente da vontade do particular lesado.
Esta destrinça tem que ver com a natureza e a intensidade da lesão e não apenas com o tipo de lesão. «O fundamento da existência de crimes particulares lato sensu reside, por um lado, em que certas infracções (por exemplo, certas formas de ofensas corporais, danos, furtos, injúrias) não se relacionam com bens jurídicos fundamentais da comunidade de modo tão directo e imediato que aquela sinta, em todas as circunstâncias da lesão – v.g. atenta a sua insignificância -, necessidade de reagir automaticamente contra o infractor. Se o ofendido entende não fazer valer a exigência de retribuição, a comunidade considera que o assunto não merece ser apreciado em processo penal. Complementa a consideração anterior a ideia de que em certas infracções (…) a promoção processual contra ou sem a vontade do ofendido pode ser inconveniente ou mesmo prejudicial para interesses seus dignos de toda a consideração, porque estreitamente relacionados com a sua esfera íntima ou familiar; perante um tal conflito de interesses juridicamente relevantes o legislador dá prevalência ao interesse do particular, considerado em si mesmo e no reflexo que assume em interesses públicos». ([4])
Na conformidade, deparamos com tipos de crime que na sua forma simples estão dependentes de queixa e na sua forma qualificada ou agravada têm natureza pública. Vejam-se os artigos 143º e 144º, 203º e 204º, 212º e 213,º 217º e 218º do CP)
Por exemplo, o artigo 143º/CP exclui expressamente da natureza semi-pública o crime de ofensas à integridade física, se perpetrado contra agentes das forças de segurança no exercício das suas funções ou por causa delas, previsão normativa que coincide com a alínea c) do artigo 155º/1, do CP. Ora, não se discute a natureza pública que tipo agravado dos artigos 144º, tal como dos tipos contidos nos artigos 204º e 213º, cujos elementos típicos coincidem com os descritos nos artigos 143º, 203º, e 212º respectivamente (claro que com excepção da previsão relativa à agravação).
O que se verifica, em termos de prática legislativa, é que quando o legislador pretende definir a natureza particular ou semi-pública de vários crimes da mesma espécie, refere-o no final do capítulo a que respeitam, estendendo a todos elas a natureza em causa (vide os artigos 178º e 187º). Fora deste âmbito, sempre que há um tipo simples e um tipo qualificado ou agravado e o legislador pretende atribuir natureza semi-pública ao simples e pública ao qualificado, coloca a menção de que «o procedimento criminal depende de queixa» apenas no tipo simples e nada diz quanto ao agravado ou qualificado, tendo-se vindo a interpretar a técnica como atributiva de natureza pública a este último.
Aliás, da Exposição de Motivos da alteração legislativa diz-se que, a par da necessidade de cumprir a Convenção de Istambul, «Aproveita-se, ainda, a oportunidade para, procurando responder a situações já sinalizadas nos tribunais, e no sentido do reforço da proteção das vitimas e priorização do afastamento dos agressores, se propor o alargamento especial do âmbito de aplicação da medida de coação de proibição de contacto aos crimes de ameaça, coação e perseguição (stalking), sem que, para tal, seja necessário proceder ao agravamento da moldura penal destes crimes, com a correspondente alteração ao Código de Processo Penal». Tal reforço de protecção resulta da prevalência de um fim público sobre um fim particular, o que aponta seriamente no sentido da natureza pública da norma em causa.
Não se vê, portanto, motivo para estender a natureza semi-pública ao tipo agravado de ameaças, sendo que nenhum dos factores aponta nesse sentido.
Concluindo que em causa está um crime público, verifica-se a insusceptibilidade de a declaração de desistência de queixa operar como forma de extinção do procedimento criminal, o que impõe a realização de julgamento do arguido com relação ao crime agravado imputado.
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V- Decisão:
Acorda-se, pois, concedendo provimento ao recurso, em revogar a decisão homologatória da desistência de queixa quanto ao crime de amaça agravada imputado ao arguido C___________, remetendo os autos para julgamento do mesmo nessa parte.
Sem custas
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Lisboa, 13/ 11/2019
Maria da Graça M. P. dos Santos Silva
A.Augusto Lourenço
_______________________________________________________ [1] Cf. Germano Marques da Silva, em «Curso de Processo Penal», III, 2ª edição, 2000, pág. 335, e Acs. do S.T.J. de 13/5/1998, em B.M.J. 477-º 263; de 25/6/1998,em B.M.J. 478º-242 e de 3/2/1999, em B.M.J. 477º-271. [2] Cf. Artºs 402º, 403º/1, 410º e 412º, todos do CPP e Ac. do Plenário das Secções do S.T.J., de 19/10/1995, D.R., I – A Série, de 28/12/1995. [3] Cf. Anotação 2 ao artigo, a págs 353 do CPP comentado, de António Henrique Gaspar e outros, edição de 2014 da Almedina. [4] Vide Jorge de Figueiredo Dias em Direito Processual Penal , Coimbra Editora , 1974 , página 121 .