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ABUSO DE DIREITO
HERANÇA
ACÇÃO DE REIVINDICAÇÃO
ACÇÃO DE PETIÇÃO DE HERANÇA
CONVOLAÇÃO DO PEDIDO
Sumário
I - O abuso de direito tem subjacente a existência de um direito subjetivo, pelo que não existindo este, não pode ocorrer nenhum exercício abusivo do mesmo. II - A herança corresponde a um património autónomo, cabendo a cada um dos herdeiros o direito a uma parte ideal, que representa uma quota-parte do património hereditário, sendo, por isso, apenas contitulares do direito à herança e não de cada um dos bens que integra o acervo hereditário. III - Enquanto cada um dos herdeiros pode peticionar a restituição de qualquer bem para o domínio da herança, apenas todos os herdeiros - e não apenas alguns ou a maioria - tem a legitimidade substantiva para exercer em conjunto os direitos de propriedade titulados pela herança, designadamente aqueles que são próprios de uma ação de reivindicação. IV - Tendo os autores formulado inicialmente um pedido típico da ação de reivindicação, nada impede que o tribunal convole o mesmo para o pedido específico de uma petição de herança.
Texto Integral
Recurso n.º 1745/08.2TBFLG.P1
Relator: Joaquim Correia Gomes
Adjuntos: António Paulo Vasconcelos; Filipe Caroço
I. RELATÓRIO
1.1. Neste processo n.º 1745/08.2TBFLG do Juízo Central Cível de Penafiel, J4, da Comarca do Porto Este, em que são:
Recorrente/Réus (RR): B… e C…
Recorridos/Autores (AA): D… e E…
Intervenientes: F…, G…, H…, C….
por sentença proferida em 09/abr./2019 foi decidido o seguinte, conforme passamos a transcrever:
I – Julgo a presente acção parcialmente procedente e, em consequência: a) condeno os RR. a reconhecer que o prédio identificado em 1. e 22. dos factos provados pertence à herança aberta e indivisa de I… e J… e respectivos herdeiros, que dele são donos e possuidores, operando-se o cancelamento do registo do prédio a favor dos RR., mantendo-se, contudo, a referida hipoteca. b) no mais, absolvem-se os RR. do peticionado.
II – Julgo a reconvenção totalmente improcedente, dela absolvendo os AA. e intervenientes.”
1.2. Os AA. em 16/jul./2008 demandaram os RR. invocando que ambas as partes e ainda outros são herdeiros dos falecidos I… e J…, tendo o penúltimo comprado em 23/jun./1971 o prédio denominado “K…”, sito no lugar de …, inscrito na matriz rústica sob o artigo 1954.º, comportando-se os últimos como proprietários dos mesmos, a que se seguiram as subsequentes heranças. Mais sustentaram que os RR. passaram a intitular-se proprietários desse mesmo prédio, dizendo que o receberam por herança de seu pai e sogro tendo-o registado a seu favor, terminando com a formulação do seguinte pedido:
“a) reconhecerem que a A. e intervenientes na qualidade de únicos e universais herdeiros de I… e J… são donos e possuidores do prédio identificado supra, nos precisos termos e condições que foram descritas;
b) demolirem a construção que vêm fazendo no referido prédio; e
c) cancelarem o registo que do prédio fizeram a seu favor;
d) pagarem as custas do processo e procuradoria condigna”
Mais suscitaram a intervenção dos restantes herdeiros, com excepção dos RR.
1.3. Os RR. contestaram em 17/set./2008 começando por impugnar o valor da causa e posteriormente a versão dos AA., sustentando que após o falecimento do referido I… e esposa, faleceu L… em 13/abr./1984, filho destes últimos e pai do R. marido, fazendo parte do seu acervo hereditário o prédio rústico “M…” (item 33), sendo este e os demais bens adjudicados a todos os interessados na proporção das suas quotas, o que foi homologado, sendo certo que em relação àquele prédio já o falecido pai do R. marido o possuía como dono exclusivo, aí depositando madeira e pedra, passando depois a ser possuído e fruído pelos herdeiros de L…. Mais sustentaram que posteriormente os RR. intentaram contra os demais proprietários uma ação de divisão de coisa comum de modo a acabar com a divisão da “Tapada K…” (itens 37), tendo-lhes sido adjudicado por sentença de 10/mar./2005, tendo desde então possuído o mesmo como se fossem seus donos, tendo aí construído uma habitação, com um valor não inferior a €150.000,00, que os AA. viram a ser edificada, não se opondo à mesma. Por último e por mera cautela, sustentaram que o prédio onde está implantado este terreno não vale mais que €10.000,00, tendo aquelas obras sido realizadas de boa-fé, terminando com o seguinte pedido:
a) Deve ser alterado o valor da causa e mandada seguir a forma de processo ordinário, nos moldes indicados, notificando os AA. e RR, após decisão, para o pagamento da taxa de justiça eventualmente em falta;
b) deve a presente acção ser julgada improcedente, por não provada a todos os títulos invocados, seja pela procedência das invocadas excepções, seja por via da improcedência da causa de pedir impugnada;
c) E para a hipótese de assim se não entender, no que não se concede, deverá reconhecer-se aos RR. o direito de propriedade plena sobre o prédio identificado pelos AA. na p.i. por via da alegada acessão industrial imobiliária, condenando-se os RR. a pagar aos AA. a sua quota parte no valor do prédio rústico antes da construção, supra alegado.
1.4. Por despacho proferido em 04/jun./2009 foi admitida a intervenção principal como AA. dos herdeiros indicados por estes últimos.
1.5. Os intervenientes G… e F… vieram em 08/set./2009 subscrever os articulados apresentados pelos AA.
1.6. Por despacho proferido em 26/jul./2010, foi fixado o valor da ação em €213.650,00, determinando o prosseguimento dos autos mediante o processo ordinário, admitindo-se a reconvenção, proferindo-se o despacho saneador, selecionando-se os factos assentes e indicando-se a base instrutória.
1.7. Os RR. mediante requerimento de 09/set./2010 vieram alterar a causa de pedir reconvencional, aditando os factos descritos sob o item 68 de a) a e), assim como a alínea c) do seu pedido reconvencional para o seguinte:
“ condenando-se os RR. a pagar aos AA. e a quem mais seja reconhecida a propriedade do prédio, a respectiva quota parte no valor do prédio rústico antes da construção”.
1.8. Os intervenientes N… e O… vieram em 16/mar./2012 subscrever e fazer seus os articulados dos RR., sustentando que o edifício não pode ser separado do terreno, sendo a sua destruição um manifesto abuso de direito.
1.9. Os AA. e RR. em 02/mar./2016 suscitaram o incidente principal provocado do P…, S. A., enquanto credor hipotecário da construção realizada pelos RR. no prédio identificado na p.i.
1.10. Por despacho proferido em 28/05/2016 foi admitida a intervenção principal do P…, SA.
1.11. O P…, SA. contestou em 14/jun./2016 aceitando ser beneficiário da hipoteca constituída sobre tal prédio, na sequência de um empréstimo concedido aos RR., pugnando pela improcedência da ação relativamente ao que lhe diz respeito.
1.12. Por despacho proferido em 06/jan./2017 foram habilitados os herdeiros da falecida O…, melhor referenciados a fls. 1144/1145.
2. O R. insurgiu-se contra a referida sentença, tendo em 03/jun./2019 interposto recurso da mesma, pugnando pela sua revogação, apresentando as seguintes conclusões:
1. O presente recurso versa matéria de facto e de Direito.
2. Estas alegações sistematizaram-se visando conseguir demonstrar vários e sucessivos erros de Julgamento, quer de facto, quer de Direito, fundamentalmente elencados supra em 1) e 2) nas suas diversas alíneas, bem como em 3 – quanto à impugnação da matéria de facto.
3. De um 1) supra resulta que os AA. jamais referenciaram quaisquer elementos físicos que permitam identificar o prédio reivindicado, da mesma forma que nunca conseguiram materializar o corpus e o animus da posse que invocaram.
4. Designadamente, como resulta de 1, c), os documentos juntos não são aptos à prova a que serviram;
5. O conjunto de documentos analisados em audiência, conjugado com os depoimentos transcritos ou devidamente indicados, levam a conclusões diferentes das extraídas pelo Tribunal, quer em matéria de facto, quer em matéria de Direito.
6. Como resulta de 1) o prédio reivindicado não pode corresponder ao ocupado pela habitação dos réus, sendo que estes gozam da presunção do registo, de posse titulada desde, pelo menos, 1961, com sucessivas aquisições derivadas, das quais resulta a escritura de 1964 a favor de Q…, a escritura de venda de 13/01/1982 do Cartório de Fafe, deste ao pai e ao tio do réu H…, do acordo obtido no inventário 5/1984 com intervenção directa e activa de F… – que ao mesmo nunca se opôs -, e da divisão de coisa comum subsequente pela qual lograram vir a registar o prédio em seu nome.
7. Acresce que, também como se alegou supra em 1) – de h) a l), está devidamente explicada a diferença e correspondência nos artigos matriciais que serviram aos títulos referidos na conclusão anterior, nenhum se confundindo com o invocado art. 1954º que os AA. usaram mas nunca lograram demonstrar por qualquer forma.
8. Os AA., a partir de 11/05/2017, com a junção – na sessão da tarde – de oito documentos, entre os quais a fotografia do Google que constitui o documento 1 e a escritura de 13/01/1982 – documento 5 – porque esta provava a aquisição do prédio dos réus pelo seu pai e tio, e antevendo o desfecho da acção, demarcaram a Tapada K… invocada na p.i., apenas como ocupada parcialmente pela habitação dos réus, sendo a outra parte já ocupada no prédio … e Tapada M… que pretenderam ali, sem sucesso, demonstrar que também fora adquirida por I…, sem que antes jamais o houvessem alegado e em contradição frontal com o pedido.
9. Esta realidade veio mesmo a ser confrontada e destruída pela chamada G…, como resulta da respectiva transcrição a fls. 38 a 40 deste recurso, ao referir que a Tapada do sogro I…, dita dos K…, não chegava lá acima, à estrada da …, que a escritura que fizeram não respeitava à Tapada S…, acabando por referir que a casa apenas estaria construída em metade do terreno do sogro – e tudo isto o Tribunal não considerou.
10. Ora, de acordo com os critérios da boa motivação das decisões judiciais, elencados em 4) supra, impunha-se ao Tribunal que, em sede de análise crítica da prova e de decisão de facto e de Direito, considerasse e extraísse todas as conclusões de quanto se alegou em cada alínea de 1) e 2) supra e, assim, dele se servindo também para a decisão da matéria de facto, por certo a acção teria sido julgada improcedente.
11. Os AA., em boa verdade, não provaram nenhuma da matéria alegada na p.i. e tentaram iludir o Tribunal com a versão de também serem proprietários da Tapada M… – art. 1053 e 1980 – à saciedade demonstrados supra como correspondentes aos artigos 224 e 421, já em completa desarmonia e contradição com a alegação inicial.
12. Isto porque, sabiam e sabem que a versão documentada e titulada descrita de 1-j) a 1)-q), se compatibiliza perfeitamente com o vertido em 2)-f) e 2-) g) supra, e que só assim conseguiam – e conseguiram – vencer o pleito.
13. Incumbia ao Tribunal recorrido valorar cada um dos documentos referenciados nas várias alíneas do ponto 1 e ponto 2, sempre tendo presente as presunções judiciais e legais e as limitações e obrigações elencadas em 4) o que, só por si, se revela suficiente para que a acção improceda.
14. O tribunal violou as regras do ónus da prova, designadamente o art. 342.º, decidindo a favor dos AA., sem que estes fizessem a prova dos factos constitutivos do direito que alegavam.
15. Também violou, como se referiu em 1-c) e em 3) -a), o art. 445º, nº 2 do CPC, não levando em conta a impugnação que os réus fizeram dos documentos 1 e 2 da p.i., da mesma forma que os interpretou indevidamente, conforme lá se julga ter demonstrado.
16. Como se demonstrou em 2), não é possível que o prédio dos RR. seja aquele que os AA: reivindicam – nem isso ficou demonstrado – sendo certo ainda que o Tribunal não atendeu a nenhum dos documentos que titulam desde 1961 ao presente a posse dos réus (cfr. conclusão 6),
violando os art. 1251º, 1254º, 1256º, 1260º, 1261º, e 1267º, 1, b) todos do C.C., bem como o art. 7º do C. Registo Predial, bem como a força probatória dos documentos analisados, ora oferecidos pelos AA., ora pelos réus e não impugnados, por isso mesmo dotados de força probatória plena e a impor-se ao Tribunal por forma a determinar convicção e decisão inversa às tomadas.
17. Acresce que, como resulta de 1-c) e 3-a)-iv), mostram-se também violados os art. 1888º, nº 1, 892º e 268º, nº 1 do C.C.
18. De acordo com o vindo de dizer e exposto em 1 e 2, e sempre à luz daquelas incongruências, contradições e violações da lei, por errada análise crítica da prova, impõe-se que: a. os factos provados 22 a 26, sejam dados como não provados, pelo conjunto de razões que para cada um se invocou em 3-a), designadamente porque da conjugação e análise dos documentos 1 e 2 da p.i., da sua impugnação, das regras do art. 445º 2 do CPC, do texto dos ditos documentos, das imposições legais, da ausência de prova testemunhal nesse sentido e porque assim o impõe uma análise crítica da prova, coerente, com respeito pelas regras do ónus da prova. b. Já os factos 27 a 33 dos provados, devem ser dados por não provados, conforme evidenciado em 3)-b), designadamente como resulta dos depoimentos da A. D…, da chamada G…, das testemunhas T…, U…, V… e W…, todos lá devidamente referenciados e que melhor se podem apreciar no anexo de transcrições que vai junto. c. O facto 34 – facto essencial dos autos – mal se percebe como foi dado como provado e terá, necessariamente, de ser dado como não provado, pois que, já se explanou e resulta de 1 e 2 supra que toda a documentação vai em sentido inverso, não há prova testemunhal, nem da posse, no seu corpus e animus, com vista à usucapião, do mesmo modo que, inversamente, os réus têm a seu favor uma sucessão de títulos, desde 1961, comprovando a aquisição derivada e a presunção do registo. d. De todo o modo, quanto a este facto 34, os depoimentos de V… e T…, bem como da A. D… e da chamada J…, merecem ser reapreciados, nos concretos pontos lá devidamente indicados, o que determina necessariamente, no entender do recorrente, que tal ponto seja dado como não provado. e. Concretamente, o depoimento de T…, revela-se demolidor e esclarecedor do ponto de vista factual - contrariamente ao decidido pelo Tribunal -, designadamente por referência à casa dos réus, como implantada por terreno adquirido ao Q1… da Taipa – Q… – e, sem dúvidas, que ali não pertenceu nunca ao S1…, nem ao avô da filha, sem dúvidas também de que o seu terreno era da piscina da casa ao lado para baixo, e essa piscina encontra assento no depoimento e V… e no documento 1 e 3 dos juntos na audiência de 11/05/2017. f. Não pode o Tribunal desconsiderar o depoimento desta testemunha apenas porque este declarou que de plantas e fotografias nada percebia quando o seu depoimento revela que dos factos percebia e muito bem.
19. Por outro lado, pelas razões elencadas para cada um supra, conforme invocado de fls. 41 a 47, os factos A a J dos não provados devem ser dados por provados, que por referência aos documentos em que se estriba a argumentação adrede, quer por referência aos depoimentos lá referenciados que vão no mesmo sentido.
20. Já o ponto 39 dos factos provados, relativo ao valor do terreno, deve ser alterado no sentido de o prédio reclamado pelos AA. ter o valor de 26.622,50€, conforme resulta dos esclarecimentos prestados pelo perito Engenheiro X…, em audiência de julgamento, no dia 11/05/2019.
21. Por outro lado e porque se trata de facto superveniente, tem de dar-se como provado o teor da escritura pública de 13/01/1982 do Cartório de Fafe, que foi junta pelos próprios AA.
22. Deve ser dado por provado – ou acolhido na motivação - o teor das certidões fiscais referidas em 1) j), k) e l) da presente alegação.
23. Deve ser dado como provado – ou acolhido na motivação – o registo definitivo do prédio a favor dos réus constante do documento 3 junto à p.i. e também de fls. 133.
24. Quanto à reconvenção, caso a acção se mantenha procedente, no que não se concede, deve a mesma ser julgada provada e procedente, pois que, em face de tudo quanto antecede, e por boa aplicação dos art. 1325º, 1340º e 1341º do C.C., se impõe reconhecer que os AA. construíram de boa-fé e na convicção de que o faziam em terreno próprio.
25. Por último, de tudo o exposto resulta que a fundamentação de facto e de direito oferecida pelo Tribunal não se mostra convincente, não ostenta razoabilidade lógica nem cronológica não contendo uma efectiva análise crítica da prova – em violação do art. 607º, nº 3 e 4 do CPC - e, como tal, deve ser declarada incapaz de sustentar a matéria assente e a decisão recorrida.
3. Os AA. D…, E… contra-alegaram em 02/jul./2019, pugnando pela improcedência do recurso, apresentando recurso subordinado, alterando-se a sentença com a consequência de os réus serem condenados a demolir a construção que indevidamente fizeram, e a hipoteca, efetuada e registada sem consentimento dos proprietários, ser cancelada, ou, quando assim se não entenda, ser declarada ineficaz em relação aos proprietários do prédio.
3.1 Assim, em sede de resposta ao recurso concluíram do seguinte modo:
1.ª - No recurso independente os réus questionaram o modo como foram fixados os factos 22 a 34, pretendendo ainda que fossem acrescentados três novos factos, reproduzindo o teor de documentos juntos aos autos, e questionando o modo como o tribunal deu por provado que a herança representada pela autora é dona e possuidora do prédio reivindicado, deu por provado que esse prédio não podia pertencer aos réus e julgou improcedente o pedido reconvencional de aquisição do prédio pelos réus por acessão industrial imobiliária.
2.ª - No entanto, as decisões questionadas não merecem censura, quanto à fixação dos factos postos em crise, uma vez que da sentença consta com minúcia e rigor a análise dos depoimentos prestados pelas testemunhas ouvidas, e dos depoimentos de parte, constando ainda, com minúcia
e rigor, as razões pelas quais três das testemunhas ouvidas não mereceram credibilidade.
3.ª - Também o direito questionado foi corretamente aplicado, uma vez que se provou, quer por documentos quer pelos depoimentos citados, que as heranças em causa adquiriram o prédio por usucapião, por estarem na sua posse há mais de 30 anos, que o réu marido não podia ter adquirido o prédio que reivindicava porque não o herdou, como referia, de seu pai, e não se provou, em sede da pretensa aquisição da propriedade por acessão industrial imobiliária, um requisito essencial – o do artigo 1340.º, n.º 4, do Código Civil (boa-fé, no sentido específico de que o réu não sabia que o prédio era alheio ou no sentido de que obteve autorização para a construção do dono do terreno).
4.ª - Acresce que a questão posta pelos réus quanto à falta de direitos de representação da filha menor pelo alienante do prédio é irrelevante, uma vez que mesmo que assim fosse, a transmissão podia dar-se até a non domino, pois o que releva para efeitos de aquisição por usucapião é a posse de mais de 30 anos, seguida, pública, pacífica, de boa-fé e dotada de ânimo de quem usa coisas próprias, e esses factos provaram-se sem reticência alguma.
3.2 No seu recurso subordinado apresentaram as seguintes conclusões:
1.ª – A douta sentença recorrida, apesar de ter julgado procedente o pedido de condenação dos réus a reconhecerem que o prédio reivindicado pelos autores – e que eles, réus, ocuparam, construindo uma casa – pertence a uma herança ilíquida e indivisa em que uns e outros são interessados, não ordenou, como também se pedira, a demolição do prédio aí construído pelos réus, nem determinou o cancelamento da hipoteca constituída pelos mesmos réus junto do Y… (atual P…), sem autorização dos proprietários do prédio reivindicado e sobre este incidente.
2.ª – Para assim decidir, ponderou a sentença recorrida que, face ao valor da obra e à sua utilidade, ocorreria abuso de direito em relação ao pedido de demolição, que obstaculizava a procedência, e que a hipoteca devia subsistir porque o banco tinha realizado diligências prévias com vista à constituição desse ónus, e registara a hipoteca, sendo por isso terceiro de boa-fé.
3.ª – No entanto, não pode ter-se por verificado qualquer abuso de direito em relação ao pedido de demolição, porquanto, tendo a petição inicial entrado em Julho de 2008, nessa ocasião os réus apenas haviam dado início à construção da habitação (artigo 42.º da petição inicial e facto provado n.º 6) pelo que podiam e deviam ter suspendido de imediato a construção, e se o não fizeram é porque decidiram arriscar, não podendo ser imputada aos autores qualquer conduta temerária que justifique a improcedência do pedido nessa parte.
4.ª – Com efeito, é manifesto que o proprietário de um qualquer prédio rústico tem o direito de impedir que quem não é proprietário desse prédio nele proceda a qualquer construção, e de, quando ocupado por outrem, o direito de, mediante decisão judicial, o receber sem quaisquer outros ónus ou encargos para além daqueles que antes da usurpação tivesse, tanto mais quanto é certo que, mercê das regras do registo predial, se este reproduzisse a realidade provada, dele não podia constar a propriedade dos réus sobre o prédio, e, por isso, nunca podia também constar o registo de qualquer hipoteca que não fosse autorizada pelo proprietário, pois a necessidade legal do registo do prédio em nome de quem constitui a hipoteca só pôde ser cumprida pelos réus através de falsas declarações e a hipoteca não produziria sem registo quaisquer efeitos, nos termos do artigo 687.º do Código Civil.
5.ª – De resto, a jurisprudência que se conhece sobre a matéria entende que “Não se vê em que é que a exigência da demolição de uma construção na parte em que se encontra ilegalmente implantada, possa exceder – e muito menos por forma manifesta, como exige aquele preceito – esses limites, nomeadamente os impostos pelo fim social do direito que o autor pretende fazer valer” (Acórdão do STJ de 08-04-1986, BMJ 356, 313) e que “A figura do abuso de direito consagrada no artigo 334.º do Código Civil não é invocável quando se pretende impugnar não os limites do exercício do direito mas a própria existência do direito” (Acórdão do STA de 14-04-1988, BMJ 376, 462), decisões às quais acresce a tomada pelo Acórdão da Relação de Évora de 25-02-1993 (Col. Jurisp. 1993, 1.º, 277) segundo a qual “Uma construção não autorizada pode ser mandada demolir pela autoridade competente”, não obstando “à demolição a possibilidade de ainda ser obtida a necessária autorização”, o que tudo confirma não ser no caso invocável qualquer abuso de direito.
4. Os intervenientes G… e F… vieram em 05/jul./2019 aderir às contra-alegações apresentadas pelos recorridos AA., bem como ao recurso subordinado apresentado pelos mesmos (634.º, n.º 3).
5. Admitido o recurso, foi o mesmo remetido a esta Relação onde foi autuado em 30/set./2019, procedendo-se a exame preliminar e cumprindo-se os vistos legais, não existindo questões prévias ou incidentais que obstem ao seu conhecimento.
6. O objeto do recurso principal incide no reexame da matéria de facto (a’) e, na sua procedência, as suas implicações jurídicas (a’’), a inexistência de abuso de direito (b’), assim como as suas consequências (b’’),
*** II. FUNDAMENTAÇÃO 1. A sentença recorrida “A) FACTOS PROVADOS
1. Encontra-se descrito na Conservatória do Registo Predial de AN…, sob o nº 1161/281201, o prédio rústico designado “Tapada K…”, sito no lugar de …, composto por pinhal e eucaliptal, com 4.700 m2, a confrontar do Norte com estrada, do Sul com herdeiros de I…, do Nascente com Tapada Z…, do Poente com herdeiros de AB…, inscrito na matriz sob o artigo 224.
2. Pela ap. Nº 85/281201 foi inscrita a aquisição do prédio referido em 1. A favor de B…, viúva, I…, casado com AD…, na comunhão de adquiridos, F…, casado com AC…, na comunhão de adquiridos, H…, casado com C…, na comunhão de adquiridos, AE…, casado com AF…, na comunhão de adquiridos, O… e N…, solteiros, na proporção de 5/8 para a 1ª e 3/48 para cada um dos restantes, por óbito de L…, casado com a referida AG…, na comunhão geral.
3. Pela ap. Nº 01/020503 foi inscrita a instauração de acção provisória por natureza, em que figuram como AA. H… e mulher C… e Réus I… e mulher, F… e mulher, AE… e mulher; O…, N… e AG…, tendo sido deduzido o seguinte pedido: proceder à venda ou adjudicação do bem.
4. Pela Ap. Nº 09/20050623 foi convertida a Ap. referida em 3., passando a constar: DECISÃO: aquisição a favor de H… e mulher C…, casados no regime de comunhão de adquiridos (…), por o terem adquirido na acção de divisão de coisa comum feita com AG…, viúva, I… e mulher, F… e mulher G…, AE… e mulher AF…, O… e N….
5. O prédio referido em 1. encontra-se presentemente descrito como terreno para construção urbana, inscrito na matriz sob o artigo 1121.º, que confronta a Norte com estrada, Sul com herdeiros de I…, Nascente com Tapada Z… e Poente com herdeiros de AB…s.
6. I… faleceu em 29 de Março de 1976, no estado de casado com J….
7. J… faleceu em 9 de Agosto de 1991.
8. Do casamento de I… e J… nasceram os seguintes filhos:
I. AH…, viúva, nascida em 3 de Junho de 1936, que fora casada com AI…, falecido em 21.03.1975, ela também falecida em 26.07.2001, tendo deixado os seguintes filhos: a) AJ…, casada com AK…, nascida em 01.02.1960; b) AL…, solteiro, nascido em 14.06.1965;
II. O…, solteira, nascida em 04.10.1942;
III. F…, nascido em 07.07.1941, casado com G…;
IV. L…, nascido em 18.09.1934, casado com AG…, ele falecido em 11.04.1984, tendo deixado como sucessores a identificada viúva e os seguintes filhos: a) I…, nascido em 21.02.1960, casado com AD…; b) F…, nascido no dia 02.07.1961, casado com AC…; c) H…, nascido no dia 28.08.1963, casado com C…; d) O…, nascida em 21.11.1965, solteira; e) AE…, nascido em 14.04.1967, que casou com AF…, encontrando-se o casamento dissolvido por divórcio decretado em 24.07.2007; f) N…, nascido em 05.03.1970;
V. D…, nascida em 01.04.1944, casada com E….
9. Por óbito de I… correu termos no 1.º Serviço de Finanças de AN… processo de liquidação de imposto sobre as sucessões e doações, tendo sido apresentada a relação de bens que consta a fls. 77 a 83, cujo teor se dá por reproduzido.
10. Correu termos neste Tribunal, sob o nº 5/84, processo especial de inventário, instaurado em 10 de Maio de 1984, em que figurou como inventariado L… e inventariante AG…, no qual foram indicados os bens que constam a fls. 102 a 104, designadamente o direito a um prédio rústico denominado Tapada M…, sito na freguesia de …, a confrontar do Norte com herdeiros AM… e outro, Nascente com caminho, Poente e Sul com S…, inscrito na matriz sob os arts. 1053.º e 1980.º, cujo teor se dá por reproduzido.
11. No âmbito do referido inventário, foi nomeado representante legal dos então menores AE… e N…, F….
12. Ainda no âmbito do mesmo inventário, foi realizada conferência de interessados, na qual os interessados e o representante legal dos menores declararam que os bens descritos fossem adjudicados a todos os interessados, na proporção das suas quotas e pelos valores da descrição de bens.
13. O mapa de partilha foi homologado por sentença proferida em 31 de Maio de 1985, transitada em julgado.
14. Por apenso ao processo referido em 10., correu termos neste Tribunal, sob o nº 5-B/1984, acção especial de divisão de coisa comum, instaurada em 19 de Novembro de 2002, pelos aqui Réus H… e C…, contra AG…, I… e mulher, E… e mulher, AE… e mulher, O… e N…, na qual foi pedida a venda ou adjudicação do prédio denominado Tapada K…, descrito na Conservatória sob o nº 1161/281201 e inscrita na matriz sob o artigo 224.
15. No dia 22 de Setembro de 2004, foi realizada conferência de interessados no âmbito da referida acção de divisão de coisa comum, tendo sido acordado que o prédio referido em 14. fosse adjudicado aos aqui RR. H… e C…, na parte que excedia a sua quota.
16. Por sentença de 10 de Março de 2005, transitada em julgado, foi homologado o acordo referido em 15.
17. Em 30 de Outubro de 2006, a Câmara Municipal AN… emitiu o alvará de obras de construção nº 422/06 em nome de H…, que titula a aprovação das obras que incidem sobre o prédio sito em …, freguesia de …, descrito na Conservatória do Registo Predial de AN…, sob o n.º 1161/281201, e inscrito na matriz rústica da respectiva freguesia sob o artigo 224.
18. Em 18 de Maio de 2005, os Réus requereram no 2.º Serviço de Repartição de AN…, o averbamento para seu nome do prédio rústico inscrito na matriz da freguesia de … sob o artigo 224.º.
19. Encontra-se descrito sob o n.º 1160/281201, na Conservatória do Registo Predial de AN…, o prédio rústico denominado Tapada Z…, sito em …, da freguesia de …, composto por pinhal, com 4.950 m2, onde consta a confrontar de Norte com estrada, Sul com caminho, Nascente com S… e Poente com Tapada K…, inscrito na matriz sob o artigo 401.
20. Pela Ap. Nº 85/281201 foi inscrita a aquisição do prédio referido em 19. a favor de AG…, viúva, I…, casado com AD…, na comunhão de adquiridos, F…, casado com AC…, na comunhão de adquiridos, H…, casado com C…, na comunhão de adquiridos, AE…, casado com AF…, na comunhão de adquiridos, O… e N…, solteiros, na proporção de 5/8 para a 1ª e 3/48 para cada um dos restantes, no inventário por óbito de L…, casado com a referida AG…, na comunhão geral.
21. Os RR. deram início à construção de uma habitação no prédio referido em 1.
22. Em 23 de Junho de 1971, I…, então casado com J…, morador no lugar de …, freguesia de …, concelho de AN…, declarou comprar a S…, e este vender, uma sorte de mato denominada “K…”, sita no lugar do seu nome, freguesia de …, deste concelho, a confrontar de Norte com caminho, de sul com I…, de nascente com Q… e de Poente com herdeiros de Dr. AO….
23. Nesse acordo, S… agiu em nome e por conta de AP…, sua filha, tendo declarado o prédio como inscrito na matriz rústica sob o artigo 1954.
24. O referido acordo, subscrito por S…, foi celebrado por escrito particular.
25. Na data da celebração do aludido acordo, I… entregou Esc. 25.000$00 a S… a título de princípio de pagamento do preço.
26. A restante parte do preço foi posteriormente paga em prestações.
27. Desde 1971, por si e antepossuidores, I… e J… usam e fruem o prédio referido em 22., nele depositando pedra, tijolos e madeira.
28. À vista de toda a gente e de modo a ser por todos conhecida,
29. Sem oposição de ninguém,
30. Com a convicção de exercerem um direito próprio e de não lesarem direitos de outrem.
31. Após o falecimento de I…, os seus sucessores passaram a fruir o prédio referido em 22. colhendo os seus rendimentos, suportando os seus encargos,
32. Sem oposição de ninguém e de modo a por todos ser conhecida,
33. Com a convicção de exercerem um direito próprio e não lesarem direitos de outrem.
34. O prédio referido em 22. corresponde ao prédio descrito em 1..
35. Os Réus iniciaram a construção da habitação referida em 21. após a data referida em 16..
36. Os RR. já concluíram a habitação projectada construir, a qual tem a área de 321,36 m2, um volume de construção de 736,80 m3, um anexo com 3,50 m2, sendo toda ela de um só piso.
37. A referida habitação tem um valor de €150.180,00.
38. Os RR. tiveram despesas de registo, licenciamento e construção da referida habitação.
39. O terreno onde se encontra implantada a referida casa de habitação tem o valor de €67.850,00.
40. Perante a descrição do prédio n.º 1161/281201 e os titulares inscritos, foi constituída uma hipoteca, que actualmente tem como beneficiário o P… (antigo Y…).
B) FACTOS NÃO PROVADOS
A) À data de 23 de Junho de 1971, o prédio referido em 22. Era designado por “Tapada” e “M…”.
B) E correspondia aos arts. 1053.º e 1980.º da antiga matriz rústica de ….
C) A designação “K…” apenas lhe foi dada aquando das novas avaliações matriciais em 1981.
D) Nessa altura, o prédio continuava inscrito com dois artigos e nomes distintos, Tapada Z…, art. 401.º e Tapada K…, art. 224.º.
E) Em data anterior à do seu falecimento, o pai do Réu marido, L…, fruía o prédio denominado Tapada M…, nele depositando madeira e pedras, à vista de toda a gente, sem oposição de ninguém, actuando com a convicção de exercer um direito próprio.
F) Desde a data referida em 13., o prédio denominado Tapada M…, sito na freguesia de …, a confrontar do Norte com herdeiros AM… e outro, Nascente com caminho, Poente e Sul com S…, à data inscrito na matriz sob os arts. 1053.º e 1980.º, passou a ser fruído, continuamente e sem interrupção, por todos os herdeiros de L…,
G) que nele cortavam matos, árvores e lenhas, procedendo a limpezas, pagando contribuições e impostos, à vista e com o conhecimento de toda a gente, sem oposição de quem quer que fosse, actuando estes com a convicção de exercerem um direito próprio e de que não lesavam o direito de outrem.
H) Desde a data referida em 16., até ao presente, os RR. passaram a fruir o prédio denominado Tapada M…, continuamente e sem interrupção, nele cortando matos, árvores e lenhas, pagando as contribuições e impostos, à vista e com o conhecimento de toda a gente, sem oposição de quem quer que fosse, actuando estes com a convicção de exercerem um direito próprio e de que não lesavam o direito de outrem.
I) Os AA. viram e acompanharam, desde a terraplanagem, as obras desta construção e nunca fizeram algo para impedir tal construção.
J) Os Réus levaram a cabo as obras de construção da referida casa de habitação convencidos de que o estavam a fazer em terreno próprio.
C) MOTIVAÇÃO
Para dar como provada esta matéria, o Tribunal analisou a prova documental junta aos autos, os depoimentos de parte e a prova testemunhal produzida, tudo analisado segundo as regras da experiência comum e a livre convicção do julgador, além da matéria admitida em parte pelas
partes em conjugação com os documentos juntos aos autos, os factos assentes de A) a U) e dados como provados sob os n.ºs 1º a 21º, nomeadamente, quanto às descrições prediais, inscrições matriciais, acção de divisão de coisa comum, processo de imposto sobre sucessões e doações
por morte de I… (pai da A. e avô do R.) e Inventário por morte de L… (irmão da A. e pai do R.).
Em termos de prova documental considerou-se, designadamente:
• A declaração de venda de fls. 8 e respectivo complemento de fls. 9, apresentado nos termos do art. 144º do CPC (quanto ao pagamento integral do preço do referido prédio), documento cujo original foi exibido em audiência de julgamento pela A. e por todos visionado, incluindo pelo R. (factos 22º a 27º dados como provados). Tal documento particular não tem e não tinha, como é óbvio, a virtualidade, por si só, de conferir a propriedade ao avô do R., pois a venda de bens imóveis àquela data só poderia ser realizada por escritura pública, pelo que existiria vício de forma em relação a tal acto de venda. Mas os AA. alegam a aquisição do bem, primeiro por seu pai (inicialmente), e posteriormente pela herança e seus herdeiros, por usucapião, estando pago todo o preço pelo seu pai (I…), desde 1971, altura em que dele começou a fruir, tendo falecido em 1976 e a sua esposa em 1991, tendo havido continuidade no uso de tal terreno pelos herdeiros da herança e enquanto tal, como foi possível aferir da prova produzida no seu todo. Tal imóvel corresponde à K…, não negando o R. que o avô o adquiriu, mas tentando alegar que se situava noutro local, que também não precisa qual. Por outro lado, independentemente de S… agir em nome da filha, tal não releva para efeitos de qualquer nulidade da venda, porque como se referiu, os AA. alegaram a usucapião e provaram a mesma (como se verá) em relação a tal imóvel. A questão dos autos é, diga-se, verdadeiramente complexa na sua análise, atenta a sua pormenorização, documentação e hiato temporal. A interpretação conjugada que se faz de toda a prova é aquela que nos parece, sem margem para dúvidas, a mais consentânea com as regras da experiência comum e a normalidade das coisas em todos os hiatos temporais e localização espacial, como a seguir se descreverá.
• A certidão de registo de fls. 10 e ss., n.º 1161, de um prédio designado de ‘Tapada K…’, com a matriz 224, registado em nome dos RR. (factos 1º a 4º dados como provados). Da conjugação de todos os documentos juntos aos autos não é possível fazer uma correspondência deste registo com o documento que o originou, pois o registo em causa indica que teve origem no inventário por morte de L… (pai do R.) e observando a documentação de tal inventário não se descortina que tal prédio lá constasse. O que constava de tal inventário de 1984 (e note-se que o registo em causa é de 2001, ou seja, quase 20 anos depois) era, no que aqui interessa apenas a verba 9, descrita como ‘O direito a um prédio rústico, denominado Tapada M…, inscritos na matriz sob os artigos 1053 e 1980’, sendo que da relação de bens constava ‘um meio’ desse prédio.
Os RR. alegam, mas não provam, que o prédio sofreu alteração de nome para ‘Tapada K…’ em 1981, com as novas avaliações das matrizes (sendo certo que as novas avaliações o que normalmente originavam eram novos números matriciais e não alterações de nomes dos prédios). Por outro lado, não se compreende como é que, se tivesse sido alterado o nome e a matriz em 1981, tal prédio ainda constasse do inventário em 1984 (fls. 98 e ss.) com outro nome e outros artigos matriciais (Tapada K…; nome este e matrizes estas coincidentes com a escritura de compra e venda de fls. 1255 e ss., a favor do falecido L… e irmão; escritura que segundo referido pelas testemunhas e depoimentos que infra se analisarão, mais não foi do que o tentar legalizar o terreno onde estava a Z…, depois da morte do pai (I…), para que os irmãos pudessem laborar e alargar o armazém, sendo certo que tal terreno sempre pertenceu a I… e a todos os herdeiros após a sua morte, o que todos reconheciam e que é um terreno distinto da K…).
Do que resultou dos autos é que I…, além de outros inúmeros bens, já havia comprado a Q… ‘de …’ a M… (artigos matriciais 1980 e 1053), bem como a K… (antigo artigo matricial 1954) a S…, tendo entrado na posse de tais bens de imediato, correspondendo a M… ao local mais próximo da Z…, que após a sua incapacidade, ainda em vida, veio a ser explorada pelos seus dois filhos, L… e F…, pagando estes uma espécie de renda aos pais (como o confirmaram as testemunhas). I… não chegou a fazer escrituras públicas dessas compras. Aliás, note-se que desde a sua morte, em 1976, e não obstante os inúmeros bens que compõem a sua herança, o certo é que a mesma ainda hoje, mais de 40 anos depois, se encontra por partilhar. De qualquer
forma, nunca o inventário de L… poderia conduzir ao registo de qualquer ‘Tapada K…’ em nome dos seus herdeiros, primeiro porque a mesma não consta de tal inventário, segundo porque não se prova que o bem que lá consta tenha dado origem ao artigo matricial 224º (que é anterior ao inventário e à escritura), terceiro porque a escritura que originou a sua inserção no inventário tem também um outro comprador, daí o ter-se relacionado ‘o direito a um meio do prédio rústico’ (fls. 1272), que depois foi descrito como ‘o direito a um prédio rústico’ (fls. 103) e em lado algum se prova que tenha havido posteriormente qualquer venda do tio F… ao pai do R. (o falecido L…) da sua parte, como alega o R. sem provar minimamente.
Por outro lado, o art. matricial 224º, como consta da respectiva matriz de fls. 144, foi inscrito em 1981 (após a morte de I…, o que foi possível com as novas avaliações prediais) em nome dos dois irmãos (que exploravam a Z…) e passa a constar em nome do R., tendo como causa a acção de divisão de coisa comum, sendo certo que na mesma não interveio o tio do R. (F…), titular inscrito, mas apenas os herdeiros do falecido pai do R., pelo que a referida acção de divisão de coisa comum não poderia originar a anulação da inscrição a favor do seu tio (como parece que aconteceu).
Mas como resultou provado, quer a escritura pública do outro prédio (M…), quer a inscrição predial da K… sob o art. 224º, não correspondiam à realidade factual vivida em relação aos mesmos, desde logo quanto à sua posse e usucapião, que eram pertença de todos os herdeiros de I… (e que só por facilidade de realizarem os negócios da Z… os irmãos assim agiram).
• Os assentos de óbito e de nascimento de fls. 12 e ss., de I…, J… e L… e respectivos herdeiros, para prova, designadamente, das relações de parentesco e datas de óbito, nomeadamente dos factos 6º a 8º dados como provados.
• O Processo de Liquidação do Imposto sobre as Sucessões e Doações de I…, de fls. 69 e ss., onde consta a referência à aludida Tapada M…, entre outros inúmeros imóveis (facto provado sob o n.º 9).
• O processo de Inventário de L…, de fls. 98 e ss., onde consta ‘o direito a um prédio rústico denominado Tapada M…’ (factos 10º a 13º dados como provados).
Não se compreende, pois, como já referido, que os RR. tenham depois conseguido registar em seu nome um prédio, em relação ao qual só constava ‘o direito a’ e ‘o direito a um meio’, havendo outro suposto proprietário. Por outro lado, ainda menos se compreende que o tenham realizado em relação a um prédio que nem sequer constava do inventário de L…, a K…, uma vez que não provam que exista uma nova designação em relação à M… e um novo número de matriz, pois nenhuma declaração dos Serviços de Finanças o atesta (e não basta fazer essa alegação) e, por outro lado, tendo havido novas avaliações em 1981, o certo é que na escritura de 1982 a referência que se faz é sempre à Tapada M… com dois artigos matriciais diferentes do que pertence à K….
• A certidão do processo de divisão de coisa comum n.º 5- B/1984, com a acta da conferência de interessados e respectiva homologação, com o mapa de partilha do inventário 5/84 e o Alvará de Construção (de 30/10/2006) e processo da Câmara, de fls. 115 e ss. (e 1288 e ss.). Processo esse que já teve por base o registo que constava em relação à ‘Tapada K…’ (que não foi o que foi indicado em sede de inventário de L…, porque era um direito a um prédio com a designação diferente de ‘Tapada M…’, além de que desaparece o outro alegado proprietário (F…), sem se perceber porquê (factos 14º a 17º, 21º, 35º e 38º dados como provados).
• O pedido realizado pelos RR. nos Serviços de Finanças para efeitos de averbamento do prédio em seu nome, do art. 224, como consta de fls. 129 (matriz essa – cfr. fls. 144 – onde constava o nome dos dois irmãos e que passa a constar apenas o nome do R., só pela referência à acção de divisão de coisa comum, sendo certo que na mesma não foi interveniente o outro titular inscrito (F…), pelo que o seu nome lá deveria permanecer) – facto 18º dado como provado.
• A certidão de registo dos prédios n.º 1160 e 1161 de fls. 130 e ss. e as certidões matriciais de fls. 142 e ss. e 1260 e ss., sendo que em relação a este último já consta registado em nome dos
RR., com a indicação da nova matriz como terreno para construção urbana, n.º 1121 (factos 19º e 20º dados como provados).
• As certidões de registo do prédio n.º 1161, onde já consta a hipoteca sobre o prédio, de fls. 168 e ss., 177 e ss. e 663 e ss. (facto 40º dado como provado).
• A perícia realizada em relação ao terreno e à habitação, constante de fls. 462 e ss., para prova dos factos dados como provados sob os n.ºs 36º, 37º e 39º, tendo em consideração as áreas aí indicadas e volume de construção, bem como o valor da habitação e do terreno. Tal perícia mostra-se fundamentada, designadamente em relação ao valor de terreno, de acordo com o PDM em vigor e tendo em conta a área interior do mesmo.
Neste ponto, importa desde já chamar à colação os ‘esclarecimentos’ prestados pelo sr. perito em audiência de julgamento e que o Tribunal não credibilizou, pois tentou referir que actualmente o valor seria outro, pois não teve em conta o PDM e a sua designação, quando não é isso que consta manifestamente na perícia apresentada (não havendo qualquer base para que tenha, no fundo, diminuído o valor do terreno para menos de metade do valor que referiu no seu relatório pericial e, note-se que aí já se fazia referência ao PDM).
• A certidão das Finanças das matrizes n.º 1053º e 1980º da Tapada M…, de fls. 670 e ss., sendo certo que tais certidões serviram de base à escritura de compra e venda realizada 13/01/82, supostamente depois das novas avaliações matriciais, além de que em tal escritura se faz referência a um pagamento de SISA em 10/12/1975, ainda em vida do pai dos alegados compradores, I… (facto 10º dado como provado).
• A escritura da Tapada M… de fls. 1211 e ss. (em relação a Q…) e a escritura de compra e venda desses bens, além de um prédio urbano composto de uma casa de madeira, também referido em audiência de julgamento pelas testemunhas como pertença da herança, mas que foi tentado ‘legalizar’ pelos dois irmãos, L… e F…, por causa da fábrica que estavam a explorar e que era da herança.
Tal como referido, através desta escritura não resulta que os RR. pudessem ter inscrito a seu favor o prédio K…, primeiro porque não é o mesmo prédio (e sabe-se que o nome dado aos prédios antigamente era muito relevante, pois era pelo nome, mais do que pelos números, que se identificava um prédio, ainda para mais rústico) e depois porque o prédio nunca seria só do pai do R. (para não falarmos já que a aludida ‘compra’ resultou apenas, como uma forma de ‘solucionar problemas imediatos’, já que o pai I… já tinha morrido e os irmãos queriam continuar com a Z…).
• A certidão do inventário de L…, de 1984, onde na relação de bens consta ‘o direito a um meio do prédio rústico, denominado Tapada M…’, com os mesmos artigos matriciais 1053º e 1980º, o que denota que tais artigos não foram alterados nas avaliações matriciais de 1981, senão teria que ser indicada a nova matriz e de todo sofreram qualquer alteração quanto ao nome dos prédios. Acresce que a certidão junta relativa aos Serviços de Finanças não atesta a correspondência das matrizes, mas apenas as descreve, apesar da viúva de L… fazer esse pedido, mas que não é de todo confirmado pelos Serviços das Finanças, porque uma coisa é pedir e outra coisa é fazerem essa correspondência efectiva, que não fizeram (facto 10º dado como provado).
• O auto de inspecção ao local de fls. 1367 e ss., com fotografias, onde foi possível percepcionar que o prédio em questão nos autos e a sua envolvência têm efectivamente a configuração constante da fotografia do Google earth de fls. 1248, estando no seguimento da Z…, que é pertença da família e foi explorada pelo pai I… (avô do R.) – factos 22º a 34º dados como provados.
As plantas de fls. 1402 e ss. e de fls. 1420 nada provam em concreto quanto à localização do prédio e muito menos quanto à propriedade do mesmo.
O A. marido e a R. mulher declararam nada saber do assunto dos autos, pelo que se irão apreciar os restantes depoimentos de parte.
Quanto ao depoimento de parte do R. marido, H…, o mesmo acabou por admitir (principalmente na última parte do seu depoimento) que o avô comprou um terreno com o nome de ‘K…’ (não nega a existência de tal terreno, vertido no fundo no documento junto aos autos – factos 22º e 23º dados como provados), como que validando o documento n.º 1 junto com a petição inicial, que faz alusão à aludida compra, e que o R. tentou justificar a dizer que o terreno não era do S1… mas do sogro e que passou para a filha do S1… e tentando dar uma versão das confrontações que não correspondem à realidade (e sempre muito confusa, como que a ‘debitar’ algo que não compreendia muito bem), sendo certo que não conseguiu negar que a filha do S… tinha um terreno ali, que confrontava com a M… e era a dita K…, o que credibiliza a versão dos AA., constante também do dito documento e confirmada pelas testemunhas (e pelos restantes depoimentos de parte), quanto à existência da K…, terreno vendido por S…, em representação da sua filha, a I… (pai da A. e avô do R.), e que o pai da A. já antes de 1971 ocupava com autorização e passou a usufruir a partir daí a título próprio, por o ter pago integralmente (comprado), sendo usado por toda a família, incluindo, é claro, pelos seus filhos que trabalhavam na Z….
O R. também não conseguiu explicar como é que o pai alegadamente ‘comprou’ (fez escritura de compra de) um terreno juntamente com o tio e depois o terreno muda da nome e fica só do seu pai, referindo que o pai depois ‘trocou’ outro terreno com o tio, mas sem existir nos autos qualquer indício sequer disso ter ocorrido. Acresce que a aludida Tapada M… já constava do processo de Imposto sobre Sucessões e Doações do seu avô (I…), pelo que não se compreende como é que o pai e o tio fazem uma escritura de compra e venda em relação à mesma, a não ser pelo facto relatado de tentarem ‘legalizar’ (inadequadamente) a situação, uma vez que o seu avô, à data da escritura, já tinha falecido (mas em 1975, data em que é paga a SISA, a posse ainda era do avô do R., que ainda era vivo).
Por outro lado, como se verifica do documento n.º 1 da petição inicial e do documento relativo à matriz n.º 224º, as confrontações coincidem, numa conjugação nítida de que o terreno é o mesmo (facto 34º dado como provado), tendo o R. apenas alterado o lugar de … para lugar da …, e que tal artigo 224º e respectivas confrontações é completamente diferente dos outros dois artigos matriciais da Tapada M….
Em depoimento de parte, a A. D… expôs a situação dos autos de forma credível, segura e coerente (servindo para dar como provada grande parte da matéria – factos 22º a 34º, em conjugação como é óbvio, com a prova documental e testemunhal produzida), não sendo despiciendo o facto de estar a reivindicar algo que não é propriamente (só) para si, mas que pertence à herança. A A. afirmou que os terrenos em causa, quer a K…, quer a M… sempre foram do pai e passaram para a sua herança, que ainda se encontra indivisa, tendo sido usados pelos herdeiros e que os irmãos foram funcionários do pai, que a empresa era familiar e que eles continuaram lá a trabalhar (‘ficaram a gerir em nome do pai’, ‘negócio que estava em nome do pai’), usando aquilo que era da herança e em nome da herança (e que por várias vezes a mãe chegou a dizer que era necessário legalizarem tudo). A A. descreveu adequadamente as compras realizadas pelo pai, entre 1961 a 1964 da Tapada M… a Q… ‘de …’ e, em 1971, embora já antes estivesse a usá-la, da Tapada K…, a S…, embora não tenha realizado escrituras em relação a qualquer um dos terrenos (o que era, diga-se, situação habitual nesta zona). Referiu, ainda, que quando soube da construção por parte dos RR. (porque mora a cerca de 5/6 kms do local e quando lá ia não era exactamente àquele local), já a mesma estava adiantada e que não disse nada ao sobrinho porque falou com o seu irmão (agora incapaz, F…) que lhe disse que falou com eles (sobrinhos), e que eles referiram que aquilo era deles, daí ter proposto logo a acção, porque eles bem sabiam que aquilo não era deles (factos não provados sob as alíneas A) a J)).
Em declarações de parte, a chamada G… (também curadora do chamado seu marido, F…, incapaz conforme consta do relatório médico junto aos autos, designadamente a fls. 1477, o que foi devidamente notificado às partes), confirmou apenas que as matas dos K… e das M… já eram do sogro antes dele morrer (que já tinha pago tudo) e que o marido e o cunhado (L…, que faleceu em 1984), como continuaram com a empresa (e que pagavam uma espécie de renda à sogra, pelo uso do terreno), a determinada altura necessitaram de legalizar os terrenos (pois queriam aumentar o armazém) e puseram o terreno da M… em nome deles, mas que o terreno era, como sempre foi, de todos os herdeiros e que o marido nunca considerou que aquilo fosse dele; que usavam o terreno nomeadamente para efeitos da Z… e depósito de materiais, nomeadamente de umas pedras que um devedor lá colocou como forma de pagamento, mas que tudo era realizado enquanto herdeiros em relação ao dito terreno.
O Tribunal considerou, também, os depoimentos das testemunhas conforme se explanará.
Assim, T…, que trabalhou na empresa (Z…) no tempo dos dois irmãos (F… e L…, filhos de I…), confirmou que sempre usaram, no âmbito da exploração da Z…, aquelas matas por ali acima e que às vezes não tinham espaço lá em baixo e iam descarregar lá em cima, designadamente lenhas e madeiras e pedra, na zona onde o R. construiu a casa, dando a ideia que tudo aquilo era pertença da Z… (e naturalmente do dono inicial da mesma, I…).
Também a testemunha U…, que trabalhou para a referida empresa, na altura explorada pelos dois irmãos, confirmou que colocou no local onde o R. construiu a casa, madeiras e lenhas, recebendo ordens também directamente do Sr. F…, ou seja, tudo por conta da referida herança a quem pertenciam (e pertencem) os terrenos.
A testemunha W…, neto de I…, sobrinho da A. e primo do R., depôs também de forma credível e com conhecimento directo sobre a matéria, referindo que conhece bem o terreno onde o primo construiu a casa, tal como o outro que está ao lado, terrenos onde costumava brincar nas férias, onde o pai explorava a Z… e não teve dúvidas em afirmar (quanto ao terreno onde o R. construiu a casa) que ‘aquele terreno sempre foi do meu avô, pertence à área da Z…, palmilhei aquilo tudo com o meu pai’ e que a mata em causa ‘foi comprada pelo avô’, mas que o tio e o pai precisaram de colocar em nome deles, por problemas que surgiram, mas que aquilo não é deles, tendo identificado bem os dois prédios, a Mata M… (que foi do ‘Q1…”, mais comprida e estreita, onde iam fazer a ampliação da fábrica, daí colocar o terreno em nome dos dois para facilitar essa operação) e a Mata K… (que foi do ‘S1…’, onde colocavam material da fábrica, designadamente uma balança que compraram para a fábrica, madeiras e pedras), além de ter identificado outros prédios do avô naquele local, designadamente a Tapada Z… e uma casa em madeira (junto à mata das M…, em baixo), sendo útil para se perceber a configuração do local, os terrenos que o envolvem e os actos praticados pelos herdeiros também no terreno que os RR. ‘indevidamente’ ocupam e que pertence à herança de I… – factos 22º a 34º dados como provados e factos não provados sob as alíneas A) a J).
A testemunha AQ…, do interveniente P…, confirmou apenas a realização da aludida hipoteca sobre o imóvel, uma vez que averiguaram da inscrição do mesmo na CRP a favor dos RR., daí a sua realização (facto 40º dado como provado).
A testemunha AT…., pouco conhecimento tinha da matéria dos autos, até porque sempre viveu em França, desde 1970, e só há cerca de 15 anos é que está cá em Portugal, sendo pouco credível as conversas que referiu ter quer com o pai do R. (pessoa em relação ao qual nem sequer sabe o nome), quer com o Q1…, sendo certo que não sabe identificar os terrenos em causa (não sabendo localizar os mesmos, nem referir quaisquer confrontações), daí que o seu depoimento não tenha sido valorado pelo Tribunal.
A testemunha V… também nenhuma credibilidade teve para o Tribunal, não só pela sua postura em audiência de julgamento e por um discurso ‘estudado’, mas também porque não se vislumbra qualquer razão de ciência do mesmo para poder referir-se à localização dos terrenos, tendo ele sido apenas um dos funcionários da Z….
Também a testemunha AU… nenhuma credibilidade representou para o Tribunal, também pela sua postura observada em julgamento, pois não basta dizer ‘que é assim, que conhece aquilo há muitos anos, que era daquele tempo’, para o Tribunal acreditar e ter como verdadeira tal versão. A testemunha tentou ‘relatar’ uma determinada situação que depois, quando confrontado com a mesma junto da fotografia do local, não conseguiu explanar de forma convincente (aliás, não conseguiu identificar nada, só dizia que a tapada S1… ficava dali para baixo, ‘debitando’ sempre o mesmo discurso), dizendo apenas que o S1… não teria vendido nada ao avô do R., mas não soube explicar o documento junto aos autos (referindo que conhece os sarrabiscos, mas depois diz que não sabe se é a letra do S1…) e por todos estes motivos nenhuma credibilidade teve para o Tribunal.
Quanto aos factos não provados, o Tribunal assim o entendeu, porque ficou provado circunstancialismo diverso, não tendo os RR. feito qualquer prova do alegado.
• Assim, relativamente à matéria alegada pelos RR. não se fez qualquer prova, nomeadamente, em relação à usucapião relativa ao prédio em questão, pois o que resultaram foram actos praticados pelos herdeiros de I… e enquanto tal e não como proprietários exclusivos de qualquer terreno.
• No que concerne aos factos sob as alíneas A), C) e D), não se fez a mínima prova que a K… alguma vez se tivesse chamado M… e muito menos que as avaliações matriciais de 1981 tivessem alterado a designação, tal como referido, ou que a Tapada M… tivesse originado dois prédios diferentes, mormente o designado de Tapada K…. O que se provou foi matéria oposta, que o prédio vendido em 23/06/1971 se chamava K…, como a própria declaração de venda o declara, e como era por todos conhecida.
• Da mesma forma não se fez a mínima prova em relação ao disposto na alínea B), pois trata-se de artigos matriciais que nada têm que ver com o art. 224º que depois foi usado pelos RR. para registar o seu prédio.
• Por outro lado, quanto às alíneas E) a H), os RR. não fizeram prova que o pai do R. marido tenha de alguma forma usado o prédio, seja a M…, seja a K…, como se seu proprietário fosse e muito menos que os seus herdeiros (de L…) tenham agido sobre tal terreno como proprietários (aliás, depois do inventário em 1984, só foi efectuado um registo em 2001, próximo da altura em que o R. pretendeu começar a sua construção e construiu a habitação). É certo que o pai do R. era herdeiro de seu pai I… (tal como a A. e demais intervenientes), e poderia até ter aspirações a herdar essa parte, mas daí a agir como proprietário vai uma longa distância (e de qualquer forma os RR. não alegam que tenha havido uma inversão do título da posse, pois referem que o pai do R. marido ‘comprou’ o terreno).
• No que diz respeito à alínea I), os RR. também não fizeram qualquer prova que os AA. acompanharam a construção desde a sua terraplanagem, sem qualquer oposição, tal como já foi referido e explicado supra.
• Acresce que, quanto à alínea J), os RR. também não conseguiram provar que as obras de construção da referida habitação foram realizadas na convicção de que o terreno era próprio, pois não nos podemos esquecer que o R. marido era neto do falecido I…, e à data da morte do seu pai já teria mais de 18 anos e não poderia ignorar o uso que era dado ao terreno e a que título, sendo certo que a versão que referiu do tio lhe contar da ‘troca’ de terrenos não foi minimamente comprovada, antes pelo contrário, já em 2009 aquando da apresentação do seu articulado a fls. 219 e ss. dos autos (numa altura em que o seu tio não estava incapaz), a versão do mesmo era coincidente com a dos AA. (que o terreno é e sempre foi da herança), o que foi confirmado, designadamente, pela sua curadora em audiência de julgamento e pelo seu filho (testemunha), ou seja, que a K… (terreno onde o R. fez a casa) é da Herança de I…, assim como a M… em relação à qual os dois irmãos realizaram uma escritura, embora sabendo e actuando como sendo terreno da referida Herança. A ‘troca de nomes e de matrizes’ (que às vezes ocorre por lapso, mas que infelizmente ainda ocorre em muitos casos ou porque não se quer fazer um destaque porque é dispendioso, ou porque o terreno não está legalizado e dá muito trabalho e demora muito tempo a legalizar), o registo da totalidade de um prédio quando há referência a um meio ou ao seu direito, são elementos que não podem ser alheios pelo menos ao conhecimento dos RR., que diligenciaram pelo registo do prédio em seu nome para poderem obter a licença de construção (daí o facto dado como não provado).
Por todas estas razões e dada a manifesta falta de prova quanto ao invocado relativamente a esta matéria, estes factos só podiam ter sido dados como não provados.
*** 2. Fundamentos do recurso a) Reexame da matéria de facto
O Novo Código de Processo Civil (NCPC) estabelece no seu artigo 640.º, n.º 1 que “Quando seja impugnada a decisão sobre a matéria de facto, deve o recorrente obrigatoriamente especificar, sob pena de rejeição: a) Os concretos pontos de facto que considera incorretamente julgados; b) Os concretos meios probatórios, constantes do processo ou de registo ou gravação nele realizada, que impunham decisão sobre os pontos da matéria de facto impugnados diversa da recorrida; c) A decisão que, no seu entender, deve ser proferida sobre as questões de facto impugnadas.”. Acrescenta-se no seu n.º 2 que “No caso previsto na alínea b) do número anterior, observa-se o seguinte: a) Quando os meios probatórios invocados como fundamento do erro na apreciação das provas tenham sido gravados, incumbe ao recorrente, sob pena de imediata rejeição do recurso na respetiva parte, indicar com exatidão as passagens da gravação em que se funda o seu recurso, sem prejuízo de poder proceder à transcrição dos excertos que considere relevantes; b) Independentemente dos poderes de investigação oficiosa do tribunal, incumbe ao recorrido designar os meios de prova que infirmem as conclusões do recorrente e, se os depoimentos tiverem sido gravados, indicar com exatidão as passagens da gravação em que se funda e proceder, querendo, à transcrição dos excertos que considere importantes”. Nesta conformidade e para se proceder ao reexame da factualidade apurada em julgamento, deve o recorrente: (i) indicar os factos impugnados; (ii) a prova de que se pretende fazer valer; (iii) identificar o vício do julgamento de facto, o qual se encontra expresso na motivação probatória. Nesta última vertente assume particular relevância afastar a prova ou o sentido conferido pelo tribunal recorrido, demonstrando que o julgamento dos factos foi errado, devendo o mesmo ser substituído por outros juízos, alicerçados pela prova indicada pelo recorrente.
Assim, tal reexame passa, em primeiro lugar, pela reapreciação da razoabilidade da convicção formada pelo tribunal “a quo”, a incidir sobre os pontos de factos impugnados e com base nas provas indicadas pelo recorrente (recurso de apelação limitada). Daí que esse reexame esteja sujeito a este ónus de impugnação, sendo através do mesmo que se fixam os pontos da controvérsia, possibilitando-se o seu conhecimento pela Relação, que formará a sua própria convicção sobre a factualidade impugnada (Acs. STJ de 04/mai./2010, Cons. Paulo Sá; 14/fev./2012, Cons. Alves Velho, www.dgsi.pt). Porém, fica sempre em aberto, quando tal for admissível, a possibilidade do tribunal de recurso, designadamente por sua iniciativa e perante o mesmo, renovar ou produzir novos meios de prova (662.º, n.º 2, al. a) e b) NCPC), alargando estes para o reexame da factualidade impugnada (recurso de apelação ampliada). Mas em ambas as situações, sob pena de excesso de pronúncia e de nulidade do acórdão (666.º, 615.º, n.º 1, al. d) parte final), o tribunal de recurso continua a estar vinculado ao ónus de alegação das partes (5.º) e ao ónus de alegação recursiva (640.º) – de acordo com a primeira consideram-se como não escritos o excesso de factos que venham a ser fixados, face à segunda o tribunal superior não conhece de questões não suscitadas, salvo se for de conhecimento oficioso (Ac. STJ de 11/dez./2012, Cons. Alves Velho, www.dgsi.pt).
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Vejamos então cada um dos factos impugnados, as razões para a sua impugnação, a motivação da sentença recorrida e a convicção probatória desta Relação.
a) factos provados sob os itens 22 a 26, cuja redação é a seguinte:
22. Em 23 de Junho de 1971, I…, então casado com J…, morador no lugar de …, freguesia de …, concelho de AN…, declarou comprar a S…, e este vender, uma sorte de mato denominada “K…”, sita no lugar do seu nome, freguesia de …, deste concelho, a confrontar de Norte com caminho, de sul com I…, de nascente com Q… e de Poente com herdeiros de Dr. AO….
23. Nesse acordo, S… agiu em nome e por conta de AP…, sua filha, tendo declarado o prédio como inscrito na matriz rústica sob o artigo 1954.
24. O referido acordo, subscrito por S…, foi celebrado por escrito particular.
25. Na data da celebração do aludido acordo, I… entregou Esc. 25.000$00 a S… a título de princípio de pagamento do preço.
26. A restante parte do preço foi posteriormente paga em prestações.
Na impugnação desta factualidade o R. recorrente considera que a mesma não tem qualquer suporte probatório (conclusão 18). Por sua vez, a sentença recorrida expressou-se a propósito do seguinte modo:
“A declaração de venda de fls. 8 e respectivo complemento de fls. 9, apresentado nos termos do art. 144º do CPC (quanto ao pagamento integral do preço do referido prédio), documento cujo original foi exibido em audiência de julgamento pela A. e por todos visionado, incluindo pelo R. (factos 22º a 27º dados como provados). Tal documento particular não tem e não tinha, como é óbvio, a virtualidade, por si só, de conferir a propriedade ao avô do R., pois a venda de bens imóveis àquela data só poderia ser realizada por escritura pública, pelo que existiria vício de forma em relação a tal acto de venda. Mas os AA. alegam a aquisição do bem, primeiro por seu pai (inicialmente), e posteriormente pela herança e seus herdeiros, por usucapião, estando pago todo o preço pelo seu pai (I…), desde 1971, altura em que dele começou a fruir, tendo falecido em 1976 e a sua esposa em 1991, tendo havido continuidade no uso de tal terreno pelos herdeiros da herança e enquanto tal, como foi possível aferir da prova produzida no seu todo. Tal imóvel corresponde à K…, não negando o R. que o avô o adquiriu, mas tentando alegar que se situava noutro local, que também não precisa qual. Por outro lado, independentemente de S… agir em nome da filha, tal não releva para efeitos de qualquer nulidade da venda, porque como se referiu, os AA. alegaram a usucapião e provaram a mesma (como se verá) em relação a tal imóvel. A questão dos autos é, diga-se, verdadeiramente complexa na sua análise, atenta a sua pormenorização, documentação e hiato temporal. A interpretação conjugada que se faz de toda a prova é aquela que nos parece, sem margem para dúvidas, a mais consentânea com as regras da experiência comum e a normalidade das coisas em todos os hiatos temporais e localização espacial, como a seguir se descreverá.”
Os RR. quanto a tais documentos n.º 1 e 2 juntos com a p.i. limitaram-se a impugnar que os mesmos “não têm correspondência com nenhuma realidade negocial” (item 11), impugnando “a autoria da letra, quer a assinatura aposta ..., quer mesmo o seu conteúdo”, não suscitando a sua falsidade. A partir desta impugnação o Recorrente considera que cabia aos AA. o ónus de demonstrarem a autenticidade do conteúdo e da assinatura aposta em tal documento. Vejamos então a relevância jurídica desta impugnação.
A força probatória dos documentos particulares encontra-se sujeita a regras substantivas e a regras processuais, visando aquelas a validade e a relevância do documento, estando previstas no Código Civil (artigos 373.º - 379.º), e estas o procedimento a observar para a sua pertinência na relação processual, as quais estão enunciadas no Novo Código Processo Civil (423.º - 451.º). No que concerne às primeiras temos de distinguir a relevância da autoria da letra e da assinatura, da força probatória do seu conteúdo. Assim e de acordo com o disposto no artigo 374.º Código Civil, n.º 1 “A letra e a assinatura, ou só a assinatura, de um documento particular consideram-se verdadeiras, quando reconhecidas ou não impugnadas pela parte contra quem o documento é apresentado, ou quando esta declare não saber se lhe pertencem, apesar de lhe serem atribuídas, ou quando sejam havidas legal ou judicialmente como verdadeiras”, acrescentando-se no n.º 2 que “Se a parte contra quem o documento é apresentado impugnar a veracidade da letra ou da assinatura, ou declarar que não sabe se são verdadeiras, não lhe sendo elas imputadas, incumbe à parte que apresentar o documento a prova da sua veracidade”. Por sua vez, consagra-se no artigo 376.º, n.º 1 que “O documento particular cuja autoria seja reconhecida nos termos dos artigos antecedentes faz prova plena quanto às declarações atribuídas ao seu autor, sem prejuízo da arguição e prova da falsidade do documento”. No que diz respeito às regras processuais, haverá que diferenciar a impugnação da genuinidade do documento, regulada nos artigos 444.º e 445.º do NCPC, da ilisão da autenticidade ou da força probatória de documento, mormente a sua falsidade, que se encontra prevista no artigo 446.º a 449.º, também do NCPC. Convém ainda recordar que o tribunal atende a todas as provas produzidas (413.º NCPC) e que só em caso de dúvida sobre a realidade de um facto a mesma deve ser resolvida contra a parte a quem esse facto aproveita (414.º NCPC)
Daqui decorre que tendo sido apresentado um documento particular respeitante a terceiro, relativamente ao qual foi impugnado tanto a letra e assinatura aí apostas, bem como o seu conteúdo, sem que fosse suscitada a sua falsidade, esse mesmo documento muito embora não se revista de prova plena quanto às declarações aí expressas, pode muito bem revelar-se como prova indiciária dessas mesmas declarações, podendo para o efeito ser corroborado através de outros meios de prova.
Ora foi isso que sucedeu no caso em apreço, tal como resulta da motivação da matéria de facto. E das próprias declarações de parte do R. Recorrente é aceite que o seu avô, o declarante I…, comprou o prédio designado “K…”, que fica a Poente, mas não a um tal “S1…”. No entanto, tanto os esclarecimentos das declarações de parte da A. D… e da chamada G… vão no sentido do teor da declaração de compra e venda datada de 23/jun./1971, sendo estas tias do R., tanto mais que este no ano de 1971, tinha 7 anos de idade, numa altura é que tais negócios não tinham certamente para o mesmo qualquer importância – atente-se que o R. no início do seu depoimento na sessão de 01/jan./2019 indicou que tinha 55 anos de idade. Daí que esta factualidade se mantenha como provada.
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b) factos provados sob os itens 27 a 33, cuja redação é a seguinte:
27. Desde 1971, por si e antepossuidores, I… e J… usam e fruem o prédio referido em 22., nele depositando pedra, tijolos e madeira.
28. À vista de toda a gente e de modo a ser por todos conhecida,
29. Sem oposição de ninguém,
30. Com a convicção de exercerem um direito próprio e de não lesarem direitos de outrem.
31. Após o falecimento de I…, os seus sucessores passaram a fruir o prédio referido em 22., colhendo os seus rendimentos, suportando os seus encargos,
32. Sem oposição de ninguém e de modo a por todos ser conhecida,
33. Com a convicção de exercerem um direito próprio e não lesarem direitos de outrem.
A impugnação destes factos tem por base os depoimentos da A. D…, da chamada G…, das testemunhas T…, U…, V… e W….
A sentença recorrida a tal propósito pronunciou-se do seguinte modo:
“Em depoimento de parte, a A. D… expôs a situação dos autos de forma credível, segura e coerente (servindo para dar como provada grande parte da matéria – factos 22º a 34º, em conjugação como é óbvio, com a prova documental e testemunhal produzida), não sendo despiciendo o facto de estar a reivindicar algo que não é propriamente (só) para si, mas que pertence à herança. A A. afirmou que os terrenos em causa, quer a K…, quer a M… sempre foram do pai e passaram para a sua herança, que ainda se encontra indivisa, tendo sido usados pelos herdeiros e que os irmãos foram funcionários do pai, que a empresa era familiar e que eles continuaram lá a trabalhar (‘ficaram a gerir em nome do pai’, ‘negócio que estava em nome do pai’), usando aquilo que era da herança e em nome da herança (e que por várias vezes a mãe chegou a dizer que era necessário legalizarem tudo). A A. descreveu adequadamente as compras realizadas pelo pai, entre 1961 a 1964 da Tapada M… a Q… ‘de …’ e, em 1971, embora já antes estivesse a usá-la, da Tapada K…, a S…, embora não tenha realizado escrituras em relação a qualquer um dos terrenos (o que era, diga-se, situação habitual nesta zona). Referiu, ainda, que quando soube da construção por parte dos RR. (porque mora a cerca de 5/6 kms do local e quando lá ia não era exactamente àquele local), já a mesma estava adiantada e que não disse nada ao sobrinho porque falou com o seu irmão (agora incapaz, F…) que lhe disse que falou com eles (sobrinhos), e que eles referiram que aquilo era deles, daí ter proposto logo a acção, porque eles bem sabiam que aquilo não era deles (factos não provados sob as alíneas A) a J)).
Em declarações de parte, a chamada G… (também curadora do chamado seu marido, F…, incapaz conforme consta do relatório médico junto aos autos, designadamente a fls. 1477, o que foi devidamente notificado às partes), confirmou apenas que as matas K… e das M… já eram do sogro antes dele morrer (que já tinha pago tudo) e que o marido e o cunhado (L…, que faleceu em 1984), como continuaram com a empresa (e que pagavam uma espécie de renda à sogra, pelo uso do terreno), a determinada altura necessitaram de legalizar os terrenos (pois queriam aumentar o armazém) e puseram o terreno da M… em nome deles, mas que o terreno era, como sempre foi, de todos os herdeiros e que o marido nunca considerou que aquilo fosse dele; que usavam o terreno nomeadamente para efeitos da Z… e depósito de materiais, nomeadamente de umas pedras que um devedor lá colocou como forma de pagamento, mas que tudo era realizado enquanto herdeiros em relação ao dito terreno.
O Tribunal considerou, também, os depoimentos das testemunhas conforme se explanará.
Assim, T…, que trabalhou na empresa (Z…) no tempo dos dois irmãos (F… e L…, filhos de I…), confirmou que sempre usaram, no âmbito da exploração da Z…, aquelas matas por ali acima e que às vezes não tinham espaço lá em baixo e iam descarregar lá em cima, designadamente lenhas e madeiras e pedra, na zona onde o R. construiu a casa, dando a ideia que tudo aquilo era pertença da Z… (e naturalmente do dono inicial da mesma, I…).
Também a testemunha U…, que trabalhou para a referida empresa, na altura explorada pelos dois irmãos, confirmou que colocou no local onde o R. construiu a casa, madeiras e lenhas, recebendo ordens também directamente do Sr. F…, ou seja, tudo por conta da referida herança a quem pertenciam (e pertencem) os terrenos.
A testemunha W…, neto de I…, sobrinho da A. e primo do R., depôs também de forma credível e com conhecimento directo sobre a matéria, referindo que conhece bem o terreno onde o primo construiu a casa, tal como o outro que está ao lado, terrenos onde costumava brincar nas férias, onde o pai explorava a Z… e não teve dúvidas em afirmar (quanto ao terreno onde o R. construiu a casa) que ‘aquele terreno sempre foi do meu avô, pertence à área da Z…, palmilhei aquilo tudo com o meu pai’ e que a mata em causa ‘foi comprada pelo avô’, mas que o tio e o pai precisaram de colocar em nome deles, por problemas que surgiram, mas que aquilo não é deles, tendo identificado bem os dois prédios, a Mata M… (que foi do ‘Q1…’, mais comprida e estreita, onde iam fazer a ampliação da fábrica, daí colocar o terreno em nome dos dois para facilitar essa operação) e a Mata K… (que foi do ‘W1…’, onde colocavam material da fábrica, designadamente uma balança que compraram para a fábrica, madeiras e pedras), além de ter identificado outros prédios do avô naquele local, designadamente a Tapada Z… e uma casa em madeira (junto à mata M…, em baixo), sendo útil para se perceber a configuração do local, os terrenos que o envolvem e os actos praticados pelos herdeiros também no terreno que os RR. ‘indevidamente’ ocupam e que pertence à herança de I… – factos 22º a 34º dados como provados e factos não provados sob as alíneas A) a J).
A testemunha AQ…, do interveniente P…, confirmou apenas a realização da aludida hipoteca sobre o imóvel, uma vez que averiguaram da inscrição do mesmo na CRP a favor dos RR., daí a sua realização (facto 40º dado como provado).
A testemunha AT…, pouco conhecimento tinha da matéria dos autos, até porque sempre viveu em França, desde 1970, e só há cerca de 15 anos é que está cá em Portugal, sendo pouco credível as conversas que referiu ter quer com o pai do R. (pessoa em relação ao qual nem sequer sabe o nome), quer com o Q1…, sendo certo que não sabe identificar os terrenos em causa (não sabendo localizar os mesmos, nem referir quaisquer confrontações), daí que o seu depoimento não tenha sido valorado pelo Tribunal.
A testemunha V… também nenhuma credibilidade teve para o Tribunal, não só pela sua postura em audiência de julgamento e por um discurso ‘estudado’, mas também porque não se vislumbra qualquer razão de ciência do mesmo para poder referir-se à localização dos terrenos, tendo ele sido apenas um dos funcionários da Z….
Também a testemunha AV… nenhuma credibilidade representou para o Tribunal, também pela sua postura observada em julgamento, pois não basta dizer ‘que é assim, que conhece aquilo há muitos anos, que era daquele tempo’, para o Tribunal acreditar e ter como verdadeira tal versão. A testemunha tentou ‘relatar’ uma determinada situação que depois, quando confrontado com a mesma junto da fotografia do local, não conseguiu explanar de forma convincente (aliás, não conseguiu identificar nada, só dizia que a tapada do W1… ficava dali para baixo, ‘debitando’ sempre o mesmo discurso), dizendo apenas que o W1… não teria vendido nada ao avô do R., mas não soube explicar o documento junto aos autos (referindo que conhece os sarrabiscos, mas depois diz que não sabe se é a letra do W1…) e por todos estes motivos nenhuma credibilidade teve para o Tribunal.”
Após a audição destes depoimentos, podemos constatar a existência de duas versões distintas: uma no sentido do prédio denominado “K…” desde que foi comprado por I… ter sido utilizado e aproveitado por este e seus sucessores, como sendo seus donos – entenda-se quanto a tais sucessores como sendo da herança após o falecimento daquele outro – indicando como faziam essa utilização e aproveitamento, designadamente como terreno de apoio à exploração da Z… na ocasião explorada pelos Irmãos F… e L…, mas que anteriormente tinha sido de I…, pai daqueles, descarregando e guardando aí lenhas e madeiras (depoimentos da A. D…, Chamada G…, testemunhas W…, T… e U…); outra no sentido de que esse prédio é pertença dos RR. que aí construíram uma casa (depoimento da testemunha V…).
Será de referir que estas três últimas testemunhas trabalharam na Z… próxima da tapada aqui em litígio, mas enquanto a testemunha T… sustenta que os patrões eram os irmãos F… e L… , as outras acabam por reconhecer esta mesma versão, mas por caminhos distintos. Assim, a testemunha U… primeiro afirmou que o patrão era o F…, mas no final veio a reconhecer que o patrão era também o L…, enquanto a testemunha V… hesita entre os Irmãos F… e L… e apenas o L…, muito embora a sua propensão vá para este último. Apenas por aqui se pode constatar o “grau de comprometimento” destas testemunhas, aparentando a primeira um maior grau de descomprometimento. No entanto, não deixa se sobressair do depoimento da testemunha V… ao mencionar que na sequência dessa exploração de madeira era paga uma verba à viúva do I… (avó do R.), o que dá para entender que o prédio da exploração de madeiras era da herança do falecido I…. No entanto não deixa o mesmo de fazer uma referência a quem pertencia o prédio onde os RR. construíram uma casa, senão atente-se nesta passagem do seu depoimento:
Advogado: Esse terreno de quem era? V… Esse terreno dizem que era do Q1… da ….
Advogado: Dizem que era do Q… não é isso e era do Sr. L… ou era da Z… ou de quem era? V…: Foi o Sr. L… que comprou.
Advogado: Foi o Sr. L… que comprou? V…: Foi sim senhora o Sr. L… que comprou ao Q1… da ….
Advogado: Do Q1… da … era ele que disse isso como é que foi o senhor sabia foi, o Sr. L… que lhe transmitiu? V…: Não o Sr. L… conversava com os empregados.
Mas quem seria esse Q1… da …? A única referência a um tal Q… encontramos na escritura pública de compra e venda de 13/jan./1982 em que Q… vende o prédio rústico não apenas ao L…, pai do R. marido, mas também ao seu tio F…, marido da chamada G…, conforme analisaremos mais à frente. No entanto das suas declarações esta chamada situa geograficamente os terrenos aqui em causa e sustenta que essa escritura visava “legalizar” uma compra anterior, relatando o que se passa a transcrever:
G…
Portanto, eu ouvia falar na altura e sempre ouvi falar, do S1… do …, que era, salvo erro, o Sr. S…. É S2…, talvez, eu não sei. Portanto, para lá do …. E que a outra mata onde estava a Z…, portanto, do pavilhão para lá que pertencia ao Sr. de …, ao Sr. Q1…. Não me pergunte o nome, o outro nome que eu só o conhecia por esses nomes.
G…
Sim. Esses ditos terrenos que não estavam legalizados, pronto, é assim o termo que eu costumo empregar, como não estavam legalizados eles puseram no nome deles. Como estavam a explorar e fizeram uma sociedade entre os dois, precisavam de montar máquinas. Na altura recordo-me, e que ainda deve estar lá porque eu já há mais de 20 anos que não vou lá, inclusivamente uma balança e mais não sei o quê que era para montar. Simplesmente, entretanto, aconteceram problemas muito graves e nunca chegaram a montar.
G…
Olhe, o que eu posso dizer de andar a passear com os meus filhos por lá, é a única coisa que eu posso dizer, é que a das M… passava cá em baixo, no começo onde tinha uma casota velha, como eu dizia, que eles punham lá umas ferramentas velhas, do tal Sr. fazer o carvão e que ia desde cá debaixo até lá acima. Era muito estreitinha e recordo-me de andar aí. A outra, a dos K…, era onde fazia um vãozinho e onde eles faziam o carvão e ia até lá acima. Mas não saía ao outro caminho, é a ideia que eu tenho.
Passemos agora a analisar a prova documental que esta Relação considera mais pertinente para formar a sua convicção. Desde logo será de referir que o prédio registado pelos RR. com a designação de “Tapada K…”, freguesia de …, artigo 224 (fls. 10), não consta com esta designação no inventário por falecimento de L…, pai do R. Recorrente. Tal inventário ocorreu no decurso de 1984 e como se pode constatar de fls. 98-104 (103-104) foi aí apenas relacionado a “Tapada AV…”, sita no lugar do …, freguesia de … (verba n.º 8), o direito a um prédio rústico, denominado “Tapada M…”, freguesia de … (verba n.º 9), assim como o direito a um meio prédio urbano sito na freguesia de … (verba n.º 10). Por sua vez, também anteriormente, mais precisamente no Processo de Liquidação do Imposto sobre as Sucessões e Doações pelo falecimento de I…, pai da A. mulher e avô do R. marido, datado de 28/mar./1976, o qual consta a fls. 71 – 85, surge igualmente referenciada mediante a verba n.º 17 uma “Tapada M…”, sita no lugar do …, não constando a restante identificação do prédio (fls. 79). Ora, desta prova documental não decorre que o referido L…, pai do R. recorrente, fosse titular da propriedade do prédio denominado “Tapada M…” muito embora tivesse um “certo direito” à mesma.
Por sua vez, a outra referência próxima à designação deste prédio apenas encontramos na escritura pública de compra e venda de 13/jan./1982 em que um tal Q… e esposa declaram vender a L…, pai do R. marido, e a F…, marido da chamada G…, a “Tapada M…” (n.º um) e um prédio urbano (n.º dois), melhor identificados a fls. 1256-1258, com a particularidade de que a SISA foi paga em 10/dez./1975. Atenta a data do pagamento da SISA em 1975, quando a escritura pública é de 198, tem todo o sentido a versão anteriormente referenciada apresentada pela chamada G…, de que tal escritura visava a “legalização” de uma anterior compra e venda. No entanto a mesma não diz respeito ao prédio “Tapada K…”.
Mas também não decorre do mencionado Processo de Liquidação do Imposto sobre as Sucessões e Doações pelo falecimento de I… o relacionamento de qualquer prédio com a designação de “K…”, sendo a designação mais próxima desta aquela que encontramos no registo predial de fls. 10 a favor dos RR., porquanto aí consta a menção à “Tapada K…”. Mas uma coisa é certa, este prédio nunca foi relacionado no inventário por óbito L…, pai do R. marido. Mas então existe ou não esse prédio designado como “K…”? Da generalidade dos depoimentos prestados esta Relação considera que este prédio “K…” foi efectivamente comprado por I… a S…, conforme consta do escrito particular datado de 23/jun./1971 sendo desde então utilizado e fruído por aquele e seus sucessores como se fossem seus proprietários, mais precisamente como terreno de apoio à Z…. A única explicação plausível para que tal “K…” não constasse no Processo de Liquidação do Imposto sobre as Sucessões e Doações pelo falecimento de I… era porque tal prédio era contíguo à “Tapada M…”, sendo utilizado em comum com este prédio, face à exploração da referida Z…, também não sendo despiciendo o número de imóveis aí relacionados, os quais compreendem 22 verbas (verbas 10 a 31). Daí que a factualidade agora em apreço manter-se-á como provada.
c) facto provado 34, cuja redação é a seguinte:
“O prédio referido em 22. corresponde ao prédio descrito em 1.”
Para o reexame desta factualidade o Recorrente invoca os depoimentos das testemunhas V… e AV…, bem como da A. D… e chamada G….
A sentença recorrida para além de analisar os depoimentos das testemunhas V… e os depoimentos da A. D… e da chamada G…, expressou-se do seguinte modo no que concerne ao depoimento da testemunha AU…:
“Também a testemunha AU… nenhuma credibilidade representou para o Tribunal, também pela sua postura observada em julgamento, pois não basta dizer ‘que é assim, que conhece aquilo há muitos anos, que era daquele tempo’, para o Tribunal acreditar e ter como verdadeira tal versão. A testemunha tentou ‘relatar’ uma determinada situação que depois, quando confrontado com a mesma junto da fotografia do local, não conseguiu explanar de forma convincente (aliás, não conseguiu identificar nada, só dizia que a tapada do S1… ficava dali para baixo, ‘debitando’ sempre o mesmo discurso), dizendo apenas que o S1…, não teria vendido nada ao avô do R., mas não soube explicar o documento junto aos autos (referindo que conhece os sarrabiscos, mas depois diz que não sabe se é a letra do S1…) e por todos estes motivos nenhuma credibilidade teve para o Tribunal.”.
Será de referir que esta testemunha, agora com 92 anos de idade, afirmou ter sido feitor de S…, que consta como sendo o vendedor do prédio constante na declaração de 23/jun./1971. Esta testemunha quando instada onde era “a tapada do Q1…” e se “o S1… nunca lhe vendeu nada”? respondeu, respectivamente, o seguinte:
“AU…
A tapada do Q1… era onde o AU1… fez a casa
Au…
Nunca lhe vendeu um palmo de terra.”
Como se pode constatar destas respostas, as mesmas estão em plena contradição com o que consta na escritura pública de compra e venda de 13/jan./1982, porquanto o tal Q… e esposa declaram vender tanto ao L…, pai do R. marido, e a F…, tio do R. marido e não apenas àquele. Aliás e como já referimos do Inventário do L… não consta tal prédio como sendo propriedade exclusiva daquele inventariado.
Daí que e renovando as considerações anteriores sobre a factualidade descrita mediante os itens 27 a 33, não temos quaisquer dúvidas de que se trata do mesmo prédio, pelo que improcede a presente impugnação.
d) factos não provados mediante as alíneas A) a J), tendo estas alíneas a seguinte redação:
A) À data de 23 de Junho de 1971, o prédio referido em 22. Era designado por “Tapada” e “M…”.
B) E correspondia aos arts. 1053.º e 1980.º da antiga matriz rústica de ….
C) A designação “K…” apenas lhe foi dada aquando das novas avaliações matriciais em 1981.
D) Nessa altura, o prédio continuava inscrito com dois artigos e nomes distintos, Tapada Z…, art. 401.º e Tapada K…, art. 224.º.
E) Em data anterior à do seu falecimento, o pai do Réu marido, L…, fruía o prédio denominado Tapada K…, nele depositando madeira e pedras, à vista de toda a gente, sem oposição de ninguém, actuando com a convicção de exercer um direito próprio.
F) Desde a data referida em 13., o prédio denominado Tapada K…, sito na freguesia de …, a confrontar do Norte com herdeiros AM… e outro, Nascente com caminho, Poente e Sul com S…, à data inscrito na matriz sob os arts. 1053.º e 1980.º, passou a ser fruído, continuamente e sem interrupção, por todos os herdeiros de L…,
G) que nele cortavam matos, árvores e lenhas, procedendo a limpezas, pagando contribuições e impostos, à vista e com o conhecimento de toda a gente, sem oposição de quem quer que fosse, actuando estes com a convicção de exercerem um direito próprio e de que não lesavam o direito de outrem.
H) Desde a data referida em 16., até ao presente, os RR. passaram a fruir o prédio denominado Tapada M…, continuamente e sem interrupção, nele cortando matos, árvores e lenhas, pagando as contribuições e impostos, à vista e com o conhecimento de toda a gente, sem oposição de quem quer que fosse, actuando estes com a convicção de exercerem um direito próprio e de que não lesavam o direito de outrem.
I) Os AA. viram e acompanharam, desde a terraplanagem, as obras desta construção e nunca fizeram algo para impedir tal construção.
J) Os Réus levaram a cabo as obras de construção da referida casa de habitação convencidos de que o estavam a fazer em terreno próprio.
No que concerne a esta matéria o R. recorrente invoca os mesmos depoimentos e as anteriores considerações, pelo que esta Relação renova igualmente as suas antecedentes apreciações, mantendo estes factos como não provados.
e) 39 dos factos provados cuja redação é a seguinte:
39. O terreno onde se encontra implantada a referida casa de habitação tem o valor de €67.850,00.
O R. recorrente pretende que em vez deste valor passe a constar €26.622,50, invocando os esclarecimentos prestados em audiência pelo perito X…, engenheiro.
Como se pode constatar do Relatório Pericial de fls. 462/463, melhor justificado com a avaliação imobiliária de fls. 464 o valor total da parcela de terreno que foi atribuído foi de 67.850,00. Confrontando este Relatório Pericial com os seus esclarecimentos, não cremos de que seja de convocar os valores de reserva agrícola ou reserva dominante no âmbito de uma expropriação, não só porque esta última não está aqui em causa, mas também porque não foram exibidos quaisquer levantamentos topográficos de modo a concluir no sentido das afirmações expressas na audiência de julgamento, mormente com as delimitações decorrentes do PDM. Nesta conformidade improcede a impugnação em apreço.
f) O teor da escritura pública de 13/01/1982 do Cartório de Fafe, das certidões fiscais referidas em 1) j), k) e l) da presente alegação, o registo definitivo do prédio a favor dos réus constante do documento 3 junto à p.i. e também de fls. 133.
O R. recorrente invoca para o efeito que são factos supervenientes e que se encontram juntos aos autos os respetivos documentos.
A propósito recordamos que os factos supervenientes têm que ser alegados em articulado superveniente, em conformidade com o disposto nos artigos 588.º e 589.º NCPC (506.º e 507.º CPC) e tal não ocorreu. Por outro lado, uma coisa é a factualidade e outros os meios de prova que sustentam a mesma. Mais acresce que o registo definitivo a favor dos RR. já consta de 4 dos factos provados. Daí que esta impugnação também improceda.
Na improcedência do reexame da matéria de facto, resulta prejudicado o conhecimento das consequências jurídicas que advinham da sua procedência, tal como consta do recurso principal em apreço.
* b) Inexistência de abuso de direito e as suas consequências jurídicas
O Código Civil estabelece no seu artigo 334.º que “É ilegítimo o exercício do direito, quando o titular exceda manifestamente os limites impostos pela boa fé, pelos bons costumes ou pelo fim social ou económico desse direito”. Trata-se de uma cláusula geral que expressa, desde logo, uma antinomia, porquanto associa o abuso ao direito, quando este caracteriza-se por ser lícito e não por ser ilegítimo – como decorre de um conhecido brocardo latino, qui iure suo utitur neminem laedit (“quem faz uso do seu direito não prejudica ninguém”), ainda que temperado por outros, como seja malitis non est indulgendum (“a maldade não deve ter indulgências”). A mesma, como qualquer cláusula geral, caracteriza-se pela sua indeterminação, generalidade e vacuidade, exigindo a sua “integração valorativa”, a partir das suas origens, teleologia e dos seus pressupostos ou requisitos – seguimos aqui de perto o Ac. TRP de 27/jun./2018, acessível em www.dgsi.pt.
A ilegitimidade ou inadmissibilidade do exercício de direitos assentam essencialmente em razões de justiça, mais precisamente da prevalência da justiça substantiva, decorrente, no nosso ordenamento jurídico, da ideia republicana de uma sociedade justa (artigo 1.º Constituição), do direito à igualdade, na sua dimensão substantiva, enquanto princípio e direito fundamental subjetivo (artigo 13.º Constituição), bem como da atribuição aos tribunais da função jurisdicional de administrar a justiça – e não a injustiça – em nome do povo, enquanto diretiva constitucional (202.º n.º 1 Constituição). Tudo isto aponta para que os tribunais se esforcem no sentido de dar prevalência à justiça material e em concreto, em detrimento de uma aparência de justiça, que seria em abstrato e meramente formal. Assim e à partida, o que o disposto no mencionado artigo 334.º pretende, desde logo, transmitir é que, por razões de justiça substantiva, nenhum direito elencado no Código Civil tem um carácter absoluto, sendo antes relativo. Deste modo, ao reconhecimento abstrato de um direito, deve corresponder a sua concretização lícita, gerando uma equivalência de equidade entre o direito e o seu dever, que na prática será entre o justo e o útil que cada uma dessas dimensões implica.
A propósito estará sempre em causa um direito subjetivo, pelo que não existindo este, não pode ocorrer nenhum exercício abusivo do mesmo (Ac. STJ de 14/02/1995, Cons. César Marques; 07/07/1977, 14/11/1991, Cons. Roger Lopes; Cons. Rodrigues Bastos; 11/01/2011, Cons. Sebastião Póvoas, acessíveis em www.dgsi.pt como todos os demais sem indicação de origem). Mas o que se entende por direito subjetivo? Na falta de uma definição legal e assumindo uma leitura analítica, dir-se-á, com base na nomenclatura do Código Civil, que estão em causa os direitos aí reconhecidos a uma pessoa, tanto legais, como contratuais (405.º CC), impondo um dever a terceiros, seja de prestação, abstenção ou qualquer outro, tendo uma natureza privada. Assim, direito subjetivo privado será todo aquele que, com fundamento na lei ou num contrato e no âmbito das relações intersubjetivas, confere uma posição pessoal de vantagem jurídica em relação a terceiros, com uma diversidade de funcionalidades relevantes para o seu titular. Porém, quando os direitos identificados no Código Civil sejam estritamente de natureza pessoal e correspondam a imediações substantivas dos direitos fundamentais nucleares (Direitos, liberdades e garantias pessoais), o seu conteúdo essencial não está sujeito a qualquer ilegitimidade de exercício, atenta a sua força jurídica (artigo 18.º, n.º 3 Constituição) – tanto mais, que não temos uma disciplina semelhante ao artigo 25.º, 3 da Constituição Grega, segundo o qual “O exercício abusivo de direitos não é permitido”.
*
O Código Civil estabelece no seu artigo 1305.º, que “O proprietário goza de modo pleno e exclusivo dos direitos de uso, fruição e disposição das coisas que lhe pertencem, dentro dos limites da lei e com observância das restrições por ela impostas”, acrescentando no subsequente artigo 1311.º, n.º 1 que “O proprietário pode exigir judicialmente de qualquer possuidor ou detentor o reconhecimento do seu direito de propriedade e a consequente restituição do que lhe pertence”. Daqui decorre que apenas o titular do direito de propriedade goza desse direito de modo pleno e exclusivo, na conhecida expressão de ius utendi, fruendi e abutendi, ainda que nos seus limites e sujeito às demais restrições legais.
O mesmo Código Civil e no que concerne à herança, enuncia no artigo 2075.º que “O herdeiro pode pedir judicialmente o reconhecimento da sua qualidade sucessória, e a consequente restituição de todos os bens da herança ou de parte deles, contra quem os possua como herdeiro, ou por outro título, ou mesmo sem título”. Por sua vez, no que concerne ao regime jurídico da administração da herança, estipula-se no seu artigo 2079.º que “A administração da herança, até à sua liquidação e partilha, pertence ao cabeça-de-casal”, podendo exigir a entrega dos bens e o exercício de ações possessórias (artigo 2088.º), realizar a cobrança de dívidas (artigo 2089.º), assim como a venda de certos bens e a satisfação de determinados encargos (artigo 2909º). No demais e segundo o n.º 1 do artigo 2091.º do Código Civil, “Fora dos casos declarados nos artigos anteriores, e sem prejuízo do disposto no artigo 2078.º, os direitos relativos à herança só podem ser exercidos conjuntamente por todos os herdeiros ou contra todos os herdeiros”.
Perante este quadro legal a jurisprudência tem considerado, como é exemplo o Ac. STJ de 30/jan./2013 (Cons. Álvaro Rodrigues, www.dgsi.pt) que “Os co-herdeiros de um património comum, adquirido por sucessão mortis-causa, não são donos dos bens que integram o acervo hereditário, nem mesmo em regime de compropriedade, pois apenas são titulares de um direito sobre a herança (acervo de direitos e obrigações) que incide sobre uma quota ou fracção da mesma para cada herdeiro, mas sem que se conheça quais os bens concretos que preenchem tal quota”. Deste modo, a herança corresponde a um património autónomo, cabendo a cada um dos herdeiros o direito a uma parte ideal, que representa uma quota-parte do património hereditário, sendo, por isso, apenas contitulares do direito à herança e não de cada um dos bens que integra o acervo hereditário.
A propósito da destrinça entre a ação de reivindicação e de petição da herança, no Ac. STJ de 17/jul./2003 (Cons. Azevedo Ramos, www.dgsi.pt) assinalou-se que “Enquanto a acção de petição da herança tem, como pedido principal, o reconhecimento judicial da qualidade sucessória do herdeiro, já a acção de reivindicação tem como pedido principal o reconhecimento do direito de propriedade, sendo, em ambas as acções, a pretensão de restituição da coisa um pedido derivado daqueles pedidos principais”. Pese embora esta destrinça, mas atenta a proximidade jurídica entre uma e outra ação, tem sido aceite a convolação de um pedido inicial de reivindicação para uma consequência jurídica própria da petição de herança – neste sentido o Ac. STJ de 17/dez./2014 (Cons. Maria Clara Sottomayor, www.dgsi.pt). Assim, enquanto cada um dos herdeiros pode peticionar a restituição de qualquer bem para o domínio da herança, apenas todos os herdeiros – e não apenas alguns ou a maioria – tem a legitimidade substantiva para exercer em conjunto os direitos de propriedade titulados pela herança, designadamente aqueles que são próprios de uma ação de reivindicação.
E quanto à construção de moradias em prédio rústico da herança, a jurisprudência chegou a considerar que “A construção de moradas de casa em terreno alheio, ainda que com autorização do respectivo proprietário, só pode conduzir a aquisição da propriedade do terreno, por acessão, ou com o acordo do proprietário, ou depois de convencido este em acção contra ele instaurada, e sempre após o pagamento do valor que o terreno tinha antes da obra”, pelo que “Não se verificando este condicionalismo, devem as moradas de casa ser descritas no inventário por óbito do dono do terreno como dívida da herança ao interessado que as construiu” (Ac. STJ de 07/jul./1970, Cons. Rui Guimarães, www.dgsi.pt).
Nesta conformidade, não podemos reconhecer aos AA., ainda que acompanhados e sufragados por outros herdeiros, mas sem que seja por todos os herdeiros, a titularidade do direito de propriedade relativamente ao prédio aqui em litígio, porquanto o mesmo cabe à herança aberta e indivisa por óbito de I… e J…. E não sendo os mesmos titulares desse direito de propriedade, mas apenas herdeiros dessa herança, as consequências jurídicas daí decorrentes só podiam conduzir à devolução de tal prédio à herança, com a subsequente anulação do registo de propriedade a favor dos RR. e nada mais. Daí que não havendo qualquer direito de propriedade, não se pode dizer que o seu exercício configura qualquer abuso de direito. A tal não impede que os AA. tenham inicialmente formulado um pedido típico da ação de reivindicação e o tribunal recorrido tenha convolado o mesmo como sendo específico de uma ação de petição de herança. Assim e muito embora por razões distintas, será de confirmar igualmente nesta parte a sentença recorrida.
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Na improcedência tanto do recurso principal, como do recurso subordinado, as respetivas custas ficam a cargo de cada um dos recorrentes - 527.º, n.º 1 e 2 do NCPC.
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No cumprimento do disposto no artigo 663.º, n.º 7 do NCPC, apresenta-se o seguinte sumário:
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*** III. DECISÃO
Nos termos e fundamentos expostos, delibera-se negar provimento ao recurso principal interposto pelo R. B…, bem como ao recurso subordinado movido pelos AA. D… e E…, confirmando-se a sentença recorrida, ainda que em parte com fundamentos distintos.
Custas de cada um dos recursos pelas partes recorrentes.
Notifique.
Porto, 10 de dezembro de 2019
Joaquim Correia Gomes
António Paulo Vasconcelos
Filipe Caroço