SOCIEDADES ANÓNIMAS
DESTITUIÇÃO DE ADMINISTRADOR
JUSTA CAUSA
DIREITO DE VOTO
AÇÃO DE ANULAÇÃO DE DELIBERAÇÕES SOCIAIS
Sumário

I - Um administrador acionista de uma sociedade anónima não pode votar uma deliberação apresentada à assembleia geral, destinada à sua destituição por justa causa, mesmo que na qualidade de representante orgânico de uma outra sociedade comercial também acionista da primeiramente referida.
II - Se o fizer, o seu voto é nulo e não pode ser contabilizado para o quórum deliberativo.
III - Se, ainda assim este quórum levar em consideração esse voto, a correspondente deliberação é anulável, a menos que o correspondente conteúdo se possa considerar aprovado mesmo sem o dito voto.
IV - Na ação de anulação de deliberações sociais, se tal for pedido, o tribunal pode não só declarar a nulidade do voto emitido que deu origem à deliberação negativa tomada, mas também, se estiverem reunidos os pressupostos para tanto, reconhecer e declarar a deliberação positiva.

Texto Integral

Processo n.º 3735/17.5T8VNG.P1

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Sumário:
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Acordam no Tribunal da Relação do Porto:
I- Relatório
1- B…, instaurou a presente ação declarativa de condenação, sob a forma de processo comum, contra C…, S.A., alegando, em breve resumo, que, na sua qualidade de acionista desta sociedade, apresentou na assembleia geral realizada no dia 31/03/2017, uma proposta de destituição, além do mais, do seu Conselho de Administração.
Sucede que essa proposta foi reprovada, apesar de na respetiva votação terem participado membros que estavam impedidos de votar, por manifesto conflito de interesses.
Por isso mesmo, pede que:
a) Se declare estarem impedidos de votar a proposta de destituição dos membros do Conselho de Administração os acionistas D…, E…, F…, G… e o representante da acionista H… e
b) Sejam julgados nulos e, assim, eliminados e descontados no processo de votação os votos daqueles acionistas que, impedidos de votar a proposta apresentada sob o ponto 1 da ordem de trabalhos de destituição dos membros do Conselho de Administração, a votaram efetivamente; e consequentemente,
c) seja a deliberação tomada com os referidos votos anulada; e ainda,
d) Se declare aprovada a proposta de destituição de todos os membros do Conselho de Administração apresentada pela Autora, com efeitos desde 2017.03.31, considerando-se aqueles destituídos com justa causa desde essa data, com todas as consequências legais.
2- Contestou a Ré, começando por invocar a inutilidade superveniente desta lide, devido ao subsequente voto de confiança nos membros do seu Conselho de Administração e à nomeação desses membros, numa outra Assembleia Geral, realizada, no dia 26/05/2017, para o mesmo cargo.
Por outro lado, chama à colação o desígnio familiar subjacente e comum à sua constituição e da sociedade comercial que a domina (a H… SGPS, SA), em relação à qual pede a intervenção nestes autos.
Impugna ainda os factos atinentes ao processo de convocação da Assembleia Geral que aqui está em causa.
E defende a validade do voto da sociedade, H… SGPS, SA, bem como a inexistência da nulidade do correspondente ato jurídico.
Ao invés, diz ser inválida a referida proposta de destituição, sendo legalmente inadmissível a peticionada conversão, havendo ainda que levar em linha de conta o já referido voto de confiança votado na mesma Assembleia Geral.
A seu ver ainda, a A. age em manifesto abuso de direito e litiga de má fé.
Termina pedindo que:
a) Seja declarada a inutilidade superveniente da lide, com inerente extinção da instância.
b) Em caso de prosseguimento dos autos, requer o chamamento, por intervenção principal provocada, da sua acionista e sociedade dominante H… SGPS, SA.
c) Seja esta ação julgada não provada e improcedente, reconhecendo-se e declarando-se válido o voto expresso pela H… e, consequentemente, válida e eficaz a deliberação tomada em assembleia geral por 96,04% do capital social, que rejeitou a proposta da A. de destituição dos órgãos sociais da Ré, incluindo a referente a todos os membros do seu Conselho de Administração.
d) Subsidiariamente, que se reconheça e declare a invalidade da proposta de destituição e correspondente nulidade, por não ter sido apresentada previamente à convocatória e, assim, por nela não ter sido incluída com menção concreta dos fundamentos que integravam a invocada justa causa, a imputação dos factos a cada um dos membros dos órgãos sociais a destituir e a sua concreta identificação.
e) Ainda subsidiariamente, que se reconheça e declare que, acaso a deliberação impugnada fosse anulada, a inviabilidade da sua conversão devido à posterior deliberação, válida e não impugnada, tomada na mesma assembleia geral pela mesma maioria de 96,04% do capital social, que aprovou um voto de confiança ao Conselho de Administração e deliberou pela sua continuidade em funções.
f) A A. seja condenada por litigância de má fé, em multa condigna e a pagar à Ré indemnização por valor nunca inferior a 10.000,00€.
3- A A. respondeu pedindo a improcedência da exceção deduzida na contestação, a não admissão do incidente de intervenção principal provocada, e o peticionado a título de litigância de má fé.
4- Terminados os articulados, foi tentada a conciliação das partes sem êxito e, em seguida, proferida sentença que indeferiu a requerida extinção da instância por inutilidade superveniente da lide, e julgou a presente ação procedente, declarando “estar impedido de votar a proposta de destituição dos membros do Conselho de Administração, D…, E…, F…, G…, o representante da acionista H…, bem como julgado nulo e, assim, eliminado e descontado no processo de votação o voto desta accionista que, impedida de votar a proposta apresentada sob o ponto 1 da ordem de trabalhos de destituição dos membros do Conselho de Administração, a votou efectivamente”.
E, consequentemente, declarou ainda “como tomada a deliberação positiva de aprovação da proposta de destituição de todos os membros do Conselho de Administração apresentada pela Autora, com efeitos desde 2017.03.31”.
Além disso, “julgou “improcedente o pedido de abuso de direito e litigância de má fé formulado pela R.”.
5- Inconformada com o assim decidido, recorre a Ré, terminando a sua motivação com as seguintes conclusões:
“1. Tem o presente recurso por objeto o despacho saneador/sentença que julgou a ação procedente, com fundamento na insuficiência da matéria de facto e por discordância quanto à matéria de direito e, cumulativamente, a decisão interlocutória que julgou improcedente a extinção da instância por inutilidade superveniente da lide.
2. Como se reconhece no despacho saneador/sentença, os órgãos sociais da Ré exerceram o seu mandato ao longo dos anos 2013 a 2016, o qual caducou a 31 de dezembro de 2016, mantendo-se a partir de então em gerência de facto.
3. A assembleia geral extraordinária, onde viria a ser tomada a deliberação impugnada pela Autora pela presente ação, realizou-se em 31 de março de 2017, ou seja, em momento em que o mandato dos corpos sociais havia já caducado.
4. No dia 26 maio de 2017 houve lugar à assembleia geral ordinária da Ré, da qual resultou a eleição dos órgãos sociais para o referido quadriénio 2017/2020.
5. Consequentemente, tendo sido eleitos os novos corpos sociais da Ré em 26 de maio de 2017, com uma maioria de 98,56% do capital social, e estando estes já no pleno e legítimo exercício da suas funções, entende a Ré que mesmo que houvesse razão para se considerarem destituídos os órgãos sociais, o que não de concede, sempre estaria prejudicada tal questão, configurando-se a existência de uma manifesta situação de superveniente inutilidade da lide ao abrigo do disposto no artigo 277º e) do CPP, impondo-se a extinção da instância.
6. Assim não entendeu no Tribunal “a quo” com o único fundamento de que a ação não teria perdido utilidade pelo facto dos órgãos sociais terem permanecido em funções desde 31 de março de 2017, data em que, pela sentença recorrida teria ocorrido a sua destituição e a presente ação ter sido instaurada em 28 de abril de 2017.
7. O que parece inculcar, na perspetiva do julgador, que a ação não teria perdido interesse, mas teria o seu interesse reduzido tão somente para apuramento da legitimidade do exercício de facto das funções dos órgãos sociais no período de tempo compreendido entre as duas datas referidas de 31 de março de 2017 e 26 de maio de 2017.
8. Contudo, este entendimento esbarra no facto de, na mesma assembleia geral extraordinária de 31 de março de 2017, ter sido também tomada uma outra deliberação, não impugnada pela Autora na presente ação, aprovada por 96,046% dos votos, no sentido de que não fora quebrada a confiança nos órgãos sociais em exercício e que, portanto, reiterada essa confiança, os mesmos deviam manter-se em funções.
9. O que retira qualquer discussão á legitimidade para a continuidade de funções dos órgãos sociais em exercício até à data da nova eleição ocorrida a 31 de maio de 2017,
10. Deste modo, ao não se entender pela existência da inutilidade superveniente da lide pela decisão interlocutória ora sindicável à luz do artigo 644º nº 3 e 660º do CPC, fez-se uma errada aplicação do disposto no artigo 277º alínea e) do CPC, que assim foi violado.
11. O que deve ser julgado liminarmente como procedente e determinar a imediata extinção da instância, inutilizando por sua vez qualquer utilidade ao prosseguimento do presente recurso, circunstância que integra plenamente a previsão da parte final do artigo 660º do CPC.
Sem prejuízo,
12. A Ré, entre os diversos temas da sua oposição, incluiu o da invalidade da proposta de destituição apresentada pela Autora na AG da Ré de 31 de março de 2017, defendendo que nem mesmo deveria ter sido admitida a votação.
13. Esta questão não foi apreciada em 1ª Instância, como era imperativo decorrente dos artigos 608º e 615º n. 1 d) do CPC, assim se gerando por omissão, a respetiva nulidade da sentença, que ora se argui em sede do presente recurso em conformidade com o nº 4 deste último preceito legal, o que desde logo deve conhecer-se no despacho liminar previsto no artigo 652º n. 1 b) do CPC.
Sempre sem prejuízo,
14. Para além dos factos que foram dados como provados na sentença recorrida, todos eles retirados da alegação da Autora na sua PI, outros factos relevantes foram alegados pela Ré e ou deveriam ser dados como provados por terem sido objeto de inequívoca prova documental não impugnada pela A., ou deveriam ter sido acolhidos como temas de prova a submeter a julgamento, designadamente para sobre eles incidir prova testemunhal.
15. Já que oferecem tais factos omitidos inequívoco interesse para a boa decisão da causa, designadamente para se poder objetivamente aquilatar se estão ou não configurados os pressupostos da existência do conflito de interesses, que constitui a “ratio” da aplicação de preceito impeditivo do voto, declarado nulo no aresto recorrido.
16. Temos por isso de constatar, que ao decidir-se de mérito da causa no saneador/sentença, com total desconsideração dos factos alegados pela Ré e sem que sobre eles incidisse prova documental complementar e a requerida prova testemunhal, não se agiu no sentido de uma boa administração da Justiça e não se observaram os princípios da igualdade das partes e o dever de cognição sobre factos essenciais alegados pelas partes, tendo-se feito errada aplicação dos artigos 595º n. 3, 596º e 607º n. 4 todos do CPC.
17. Correspondem estes factos não levados em conta na sentença recorrida os que a Ré alegou nos artigos 17º, 18º.19º, 20º, 22º, 24º, 25º, 26º, 27º, 28º, 29º, 30º, 32º, 34º, 35º, 36º, 37º, 38º, 39º e 42º da contestação, todos eles transcritos nestas alegações.
18. Só à luz destes factos, excluídas da motivação da sentença recorrida, se poderá compreender que os órgãos sociais eleitos na C… recebem um mandato para o exercício dos seus cargos balizado, objetivamente, pelos interesses definidos pelos seus mesmos acionistas singulares no quadro da H…, sendo estes interesses veiculados e garantidos pelo CA da H… através do exercício do voto nas assembleias gerais da C…, com o peso que os seus acionistas aceitaram e mantiveram no modelo empresarial instituído pelo fundador Dr. I….
19. E assim permitir uma justa avaliação do efetivo papel da H… e do seu voto nas assembleias gerais da C… e, consequentemente, garantir uma correta ponderação da problemática de eventuais conflitos de interesse quando esse voto vinculado é exercido na C… pelo acionista H…, através do seu Presidente do Conselho de Administração eleito em ambas as sociedades.
20. Ao contrário do que se transpôs, por forma equivocada, para a alínea Q) da motivação da sentença recorrida, a acionista H…, não foi “representada” pelo acionista e Presidente do Conselho de Administração da C…, D….
21. Na verdade, embora D… seja, a título pessoal, acionista de ambas as sociedades, a sua presença na assembleia geral e as suas intervenções, designadamente quando exerceu o seu direito de voto em nome da H…, foi justificada, por dever legal, na qualidade de Presidente do Conselho de Administração da H….
22. Tendo-se em consideração o conjunto das intervenções registada em ata, provenientes dos acionistas da Ré sobre o ponto 1 da ordem de trabalhos, resulta de forma clara e expressa, que se pronunciaram a favor da conduta dos órgãos sociais eleitos e em exercício, com especial enfoque no órgão de administração, os acionistas que, na empresa dominante, H…, representam 67,46% do capital social.
23. E estes, no seio da sociedade dominante H…, em assembleia geral extraordinária realizada a 20 de janeiro de 2017, que antecedeu a da C…, deliberaram concretamente sobre qual a posição que a H… deveria defender e qual o seu sentido de voto sobre os pontos da ordem de trabalhos na assembleia geral extraordinária já então convocada da C…, a requerimento da Autora, como consta da respetiva ata desta assembleia geral da H… de 20 de janeiro de 2017 – Vide doc. junto sob o n.º 10.
24. O que permite reter e concluir que o Presidente do Conselho de Administração da H…, D…, que dos seus interesses foi porta-voz na assembleia geral da C…, não exerceu o seu direito de voto, a título pessoal, na defesa de eventuais interesses na sua permanência no Conselho de Administração da C…, mas sim como transmissor da vontade coletiva da sociedade H…, que nele confiou, como decorre da lei e dos seus Estatutos, exercendo o poder/dever de defender os interesses desta, pré-definidos e configurados por larga maioria dos seus acionistas em assembleia geral.
25. Não obstante a total inconsideração e falta de pronúncia sobre este tema, suscitando a já arguida nulidade da sentença recorrida, nem por isso deixará de se sustentar, por dever de cautela, a invalidade da proposta de destituição em globo dos órgãos sociais.
26. A proposta concretamente apresentada foi: “propõe-se aos senhores acionistas a destituição dos membros do Conselho de Administração e da Mesa da Assembleia Geral e a não renovação do mandato do Fiscal Único.”
27. Ou seja, sem qualquer referência a justa causa e sem qualquer facto individual e concretamente imputado ao acionista e Presidente do Conselho de Administração D… que a justificasse e que, consequentemente, pudesse dar causa a um eventual conflito de interesses que impedisse o seu voto em nome da acionista maioritária H….
28. Assim se conclui, em conjugação com as bases doutrinárias acima transcritas nesta alegações, que “in casu”, não estando em causa uma proposta concreta de destituição com justa causa, a proposta apresentada e votada apenas poderia ser qualificada como uma proposta de destituição sem justa causa, nada impedindo a validade do voto expresso pela H… através do seu Presidente do Conselho de Administração, único em questão na presente ação.
29. Mas mesmo que assim não se entendesse, o que de admite apenas como hipótese de raciocino, ainda assim sempre estaríamos perante uma proposta inválida se com ela se pretendesse justificar uma destituição com justa causa.
30. Antes de mais porque uma proposta de destituição de membros dos órgãos sociais de uma sociedade não é compatível com uma simples crítica genérica à sua atuação que, porventura, desagrade a um acionista ultraminoritário.
31. Pelo contrário, não pode a destituição ocorrer, quando seja fundada em justa causa, sem que o promotor alegue e prove os factos graves que a integram, com menção concreta da atuação ilícita e gravemente lesiva dos interesses da sociedade e com a devida imputação individual e concreta desses factos ao (ou aos) membro(s) que o(s) tenha(m) porventura cometido.
32. Ora, como se pode constatar pela leitura da proposta de destituição exarada em ata e transcrita na sentença recorrida, o representante da A. limitou-se – repete-se - a consignar um conjunto de críticas gerais e a apontar, genericamente, atos que considera lesivos dos acionistas e próprios de uma má gestão, imputáveis globalmente aos membros dos órgãos sociais colegiais sem, todavia, operar a imputação de tais atos aos membros em concreto dos órgãos sociais, que pretendia destituir.
33. Pelo exposto resulta que, em bom rigor, a proposta de destituição dos órgãos sociais em bloco nem mesmo deveria ter sido admitida a votação, mas certo é que outro entendimento teve a Presidente da Mesa da Assembleia, o que se respeita, por ter sido notório que não pretendeu ela cercear, como resulta da ata, o seu empenhamento, que sempre manteve, em não obstruir os direitos dos acionistas minoritários na condução dos trabalhos da assembleia.
34. Acresce que embora seja um princípio geral a regra da livre destituição dos administradores pela sociedade, com ou sem justa causa, apenas diferindo as suas consequências, tal medida só se justifica quando a maioria dos acionistas perca a plena confiança nos seus administradores, ou quando, independentemente da perda dessa confiança, a sociedade pretenda alterar o seu rumo ou estratégia, podendo considerar que a substituição dos membros da administração se justifique pelo facto de os substitutos poderem ser mais aptos ou preparados para garantir essa alteração.
35. O que, no caso vertente, não sucede, tendo o contrário ficado demonstrado, inclusivamente, pela aprovação do voto de confiança na administração eleita e em exercício que na mesma assembleia ocorreu com a esmagadora maioria favorável de 96,04% do capital social da C… - Vide ata junta sob doc. n.º 9.
36. Por outro lado, a destituição de administradores com justa causa promovida por via de assembleia geral de sócios deve constar da ordem de trabalhos da convocatória de forma específica e concreta permitindo-se em assembleia um debate esclarecedor e profundo sobre as causas da destituição proposta, considerando-se indispensável o evitar do efeito surpresa junto dos acionistas e dos próprios administradores.
37. Sendo assim imperativo que os acionistas e os administradores e demais membros dos órgãos sociais conhecessem previamente, para se poderem defender de forma cabal e oportuna, a proposta de destituição com todos os seus fundamentos, o que não sucedeu, sendo particularmente relevante salientar que a própria convocatória da assembleia geral extraordinária proposta e convocada por requerimento da Autora, apenas referia a possibilidade de se deliberar eventualmente sobre a manutenção ou destituição dos corpos socias eleitos, sem se mencionar qualquer proposta concreta de destituição com justa causa.
38. Com efeito, na convocatória da assembleia geral extraordinária de 31 de março de 2017, fez-se constar apenas no ponto 1. da Ordem de Trabalhos o seguinte: “Apreciação em geral da conduta do Conselho de Administração e demais órgãos sociais no exercício dos mandatos que lhe foram conferidos e, consequentemente, dos atos de gestão e fiscalização praticados no âmbito das suas competências específicas, com eventual tomada de deliberação sobre a manutenção ou destituição dos corpos sociais eleitos e, neste último caso, com a eleição de novos órgãos sociais.”
39. A lei não fornece uma definição operativa de causa justa para a destituição de administradores, mas a “prudentia juris”, sedimentada através de numerosos acórdãos dos nossos tribunais superiores, tem adotado um critério assente na culpa e na gravidade do comportamento do “destituendo”, bem como na consequente impossibilidade da continuação deste no cargo.
40. Assim sendo, só haverá justa causa quando se verificar uma conduta culposa e grave que torne impossível ou inexigível a subsistência da relação jurídica e funcional entre o administrador e a sociedade por ele administrada, impossibilidade ou inexigibilidade que devem ser aferidas objetivamente, em função dos factos praticados pelo visado e das condições concretas existentes no seio da empresa societária, o que não se verifica no caso concreto em apreço.
41. O que realmente sucedeu foi que o representante da Autora, sorrateiramente, reservou-se para apresentar apenas na assembleia geral a sua proposta genérica de destituição e procurando obter dividendos do efeito surpresa, tomar de assalto a sociedade com os seu parcos 0,76 % do capital social, estratégia esta que depois prosseguiu na assembleia geral de 26 de maio de 2017 com uma proposta de eleição para os órgãos sociais com inclusão de membros estranhos à sociedade, com exceção do si próprio.
42. Quanto ao voto em concreto, na assembleia geral extraordinária de 31 de março 2017, D… participou numa tripla qualidade; como Presidente do Conselho de Administração eleito e em exercício da C…, embora com o mandato caducado, como mero acionista desta a título pessoal, titulando uma participação de 0,72% do capital social, e ainda como Presidente do Conselho de Administração da H…, aliás como sempre vinha sucedendo nas mais recentes assembleias gerais da C… 43.
Estatui o artigo 384º 6. c) do C.S.C. que um acionista não pode votar, nem por si, nem por representante, nem em representação de outrem, quando a lei expressamente o proíba e ainda quando a deliberação incida, entre outras matérias, sobre a destituição, por justa causa, do seu cargo de titular de órgão social.
44. Subjacente a esta proibição, como resulta da literalidade e do espírito da norma, está a prevenção da possibilidade de um acionista poder retirar para si uma vantagem ilegítima quando se encontre em conflito de interesses com a sociedade, em relação a uma deliberação, em concreto, na qual possa exercer o seu direito de voto.
45. Assim, para se legitimar a aplicação deste preceito, com inerente proibição de voto por acionista em conflito de interesses com a sociedade, é exigível a existência de uma divergência de princípio entre o interesse (objetivamente avaliado) do sócio e o interesse (objetivamente avaliado também) da sociedade – interesse comum a todos os sócios enquanto tais - convindo, portanto ao sócio uma deliberação orientada em determinado sentido e à sociedade uma deliberação orientada em sentido diferente.
46. A lei visa através desta norma neutralizar o perigo de adoção de deliberações contrárias ao interesse social por determinação ou influência do voto de sócio portador de interesse particular divergente e que poderia por esta via obter vantagens abusivas em detrimento da sociedade.
47. Considera, pois, o legislador que o voto nessas circunstâncias, ou seja, quando exista um interesse conflituante entre o sócio e a sociedade, o impedimento do voto não só ocorre quando seja prestado por si, pessoalmente, como quando o seja por representante ou “em representação de outrem”, atenta a possibilidade de manipulação do voto de representação a benefício do sócio representante.
48. Pretendeu-se assim obstruir o eventual aproveitamento de uma relação de mandato, pela qual o mandatário acionista, instrumentalizando os poderes conferidos pelo mandante, também acionista, possa operar a manipulação do voto a seu favor quando em causa esteja uma deliberação sobre assunto que lhe diga diretamente respeito.
49. O que obviamente pressupõe que o acionista votante, em representação de outrem, possua os poderes efetivos e a liberdade bastante para determinar e exercer o direito de voto do seu representado, usando-o, contudo, em benefício próprio.
50. No caso em concreto, não só o acionista D…, ao votar em nome da H… não tinha tal poder como, acrescidamente, o seu voto não só não conflituava com os interesses da C…, como até era o único possível para a defesa desses interesses tendo em conta o mandato concreto que lhe havia sido conferido pelos acionistas de ambas as sociedades, estando por isso o voto que exerceu enquanto Presidente do CA da H… legitimado e limitado por lei e pelos Estatutos.
51. O Presidente do Conselho de Administração da H… limitou-se a dar voz e a expressar de forma vinculada o sentido de voto da H… como acionista maioritária da C…. O voto da H… foi exercido por quem possuía o poder/dever legal para o efeito, em total sintonia com os interesses imediatos e de longo prazo invariavelmente definidos por unanimidade dos acionistas e, mais recentemente, pela sua expressiva maioria, não havendo entre a H… e a C…, em relação de domínio, qualquer conflito no tocante aos órgãos sociais desta.
52. Em causa estava, pois, uma representação legal, imposta por lei e pelos Estatutos da H…, enquanto pessoa coletiva desprovida de voz, cuja vontade coletiva, legitimamente fundada, como foi e é o caso, é manifestada e exteriorizada pelo seu órgão de administração e, em particular, pelo seu presidente, já que este, pelo pacto social desta sociedade dominante, possui poderes legais para isoladamente a vincular perante terceiros - artigo 409º do C. S. Comerciais.
53. O voto questionado não foi exercido com utilização de um instrumento voluntário de mandato nem resultou de um contrato de mandato, com ou sem representação e não poderia ser manipulado ou aproveitado pelo acionista D… para dele tirar proveito pessoal em sentido oposto aos interesses da C….
54. No caso concreto da H…, o Conselho de Administração e o seu Presidente têm exclusivos e plenos poderes de representação da sociedade, poderes estes, pois, que não emergem de representação voluntária, mas sim de uma representação legal, sendo que para o efeito da proibição do voto por acionista em representação de outrem, como se alude no artigo 384º 6. Do C.S.C. está em causa, pois só assim, ocorrerá um risco de manipulação do voto, uma situação de representação voluntária.
55. Refere o artigo 405º do C.S.C. que o Conselho de Administração deve gerir as atividades da sociedade, subordinando-se às deliberações dos acionistas e, pela alínea b) do n.º 1 do seu artigo 64º, que os administradores estão obrigados aos deveres de lealdade, no interesse da sociedade, atendendo aos interesses de longo prazo dos sócios. E se não pautarem a sua atuação pelo cumprimento destes deveres, respondem civilmente perante a sociedade, nos termos previsto no artigo 72º do mesmo diploma legal.
56. Pelo exposto, é absolutamente inoperante em relação ao voto pretensamente nulo, e ao contrário do vem alegado como causa de pedir, a aplicação do invocado artigo 384º 6. do C. S. Comerciais, pelo que não enferma tal voto de qualquer causa de nulidade, bem tendo agido a Presidente da Mesa da Assembleia Geral ao tê-lo admitido e computado para efeitos de rejeição da proposta de destituição apresentada pelo representante da A.
57. Por mera cautela e hipótese de raciocínio dir-se-á ainda que, caso a deliberação em causa fosse anulada, assim se sufragando a sentença recorrida, a sua conversão em deliberação válida de destituição, tal como vem operado na mesma sentença, afigura-se manifestamente inviável.
58. Nos termos do artigo 293º do C. Civil, “o negócio nulo ou anulado pode converter-se num negócio de tipo ou conteúdo diferente, do qual contenha os requisitos essenciais de substância e de forma, quando o fim prosseguido pelas partes permita supor que elas o teriam querido, se tivessem previsto a invalidade”.
59. O que não seria obviamente o caso.
60. Como está claro nos autos, todos os acionistas da H…/C…, com exceção da A. e seu irmão N…, apoiavam e apoiam sem reservas os órgãos sociais destas duas sociedades, reconhecendo-lhes competência, dedicação, lealdade e fidelidade ao projeto e à estratégia empresarial, que herdaram e respeitavam.
61. Ora, se tivessem previsto a possibilidade, por remota que fosse, de poder ser invalidado o voto expresso pela H… para a rejeição da proposta surpresa de destituição em bloco dos órgãos sociais da Ré, pelo facto de ter sido apresentado pelo seu Presidente do Conselho de Administração, como a todos pareceu e parece inatacável, teriam facilmente optado por uma representação voluntária da H… a favor de alguém estranho à sociedade e que não tivesse qualquer relação com os órgãos sociais da C….
62. Mas sucedeu ainda que, na mesma assembleia geral (e como já referimos várias vezes), os acionistas da Ré, pela mesma larga maioria que rejeitou a proposta de destituição, aprovou ainda um claríssimo voto de confiança a todos os membros dos órgãos sociais e que deveriam permanecer nas suas funções, pelo que desde logo produziram deliberação válida (não impugnada pela Autora) que impossibilitaria a invocada conversão, dada a manifesta incompatibilidade substantiva entre ambas, neutralizando esta segunda os efeitos da deliberação anterior.
63. Deliberação esta que se transcreve da ata (Doc. n.º 9): “Foi, de seguida, pela Presidente da Mesa declarado que seria colocada a votação a segunda proposta, feita pelo Presidente do CA, sobre se, foi ou não, quebrada a confiança dos acionistas, no Conselho de Administração, sendo que a ter sido quebrada deverão cessar funções de imediato, sendo que a não ter sido, deverão manter-se. Mais declarou que teriam impedimento de voto os membros do Conselho de Administração. Interveio aqui o representante da acionista B…, J…, para alertar a Presidente da Mesa para o disposto no artigo 384 ° n° 6 al. c) CSC. Em resposta, a Presidente da Mesa referiu que tal foi levado em conta nas votações. Foi então colocada a votação, a proposta sobre quem entende que não foi quebrada a confiança nos órgãos sociais e, portanto, que os mesmos se devem manter em funções. Votaram no sentido de que não foi quebrada a confiança e da manutenção em funções, a acionista “H…”, através do seu representante D…, com 94,96 %, a acionista K… com 0,70%, o acionista L… com 0,02%, e o acionista M… com 0,36 %,, portanto um total de 96, 04 % do capital social; Em sentido contrário, ou seja, de que foi quebrada a confiança nos órgãos sociais, pelo que devem cessar funções, votaram os acionistas N… com 0,72% do capital e a acionista B…, através do seu representante, com 0, 72 %, portanto um total de 1,44% do capital social ;Foi assim declarada, pela Presidente da Mesa, aprovada a proposta de manter a confiança nos órgãos sociais e que se devem manter em funções;”
64. A sentença recorrida violou todas as disposições legais citadas nestas conclusões”.
Termina pedindo que se conceda provimento ao presente recurso e, nessa medida, dever-se-á:
“A- Revogar a decisão interlocutória que cumulativamente constitui objeto do presente recuso e, em sua substituição, decretar-se a extinção da instância por inutilidade superveniente da lide.
B- Caso assim não se entenda, declarar a nulidade da sentença recorrida e ordenar a baixa do processo à 1ª Instância para que aí sejam conhecidas as questões não apreciadas e suscitadas pela Ré.
C- Ainda para o caso de assim não se entender, revogar a sentença recorrida e ordenar a baixa do processo à 1ª Instância para que aí prossiga os seus termos, com elaboração dos temas de prova incluindo os factos alegados pela Ré com relevância para o conhecimento do mérito da ação e para que posterior produção de prova.
D- Finalmente, sempre para o caso de assim não se entender, agora com base nos factos constantes da sentença recorrida e aos que que devem ser aditados como provados em função da prova documental produzida e á melhor aplicação do Direito, revogar a sentença recorrida e julgar-se a ação improcedente, seja por se considerar a invalidade e a inadmissibilidade da proposta de destituição dos órgãos sociais em globo, seja por se considerar válido o voto expresso pela H… através do seu Presidente do Conselho de Administração e, consequentemente, a validade da deliberação que rejeitou a proposta de destituição ou ainda pela insusceptibilidade de conversão da deliberação negativa em deliberação positiva”.
6- Em resposta, a A. pugna pela confirmação do julgado.
7- Recebido o recurso e preparada a deliberação, importa tomá-la.
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II- Mérito do recurso
1- Definição do seu objeto
Inexistindo questões de conhecimento oficioso, o objeto deste recurso, delimitado, como é regra, pelas conclusões das alegações da recorrente [artigos 608º, nº 2, “in fine”, 635º, nº 4, e 639º, nº1, do Código de Processo Civil (CPC], cinge-se a saber se:
a) A presente instância deve ser declarada extinta, por inutilidade superveniente da lide;
b) A sentença recorrida é nula por falta de apreciação da invalidade da proposta de destituição, apresentada pela A., na Assembleia Geral da Ré, realizada no dia 31/03/2017;
c) Deve ser ampliada a matéria de facto, nos termos requeridos pela Ré;
d) A deliberação impugnada é inválida e não pode ser convertida em deliberação positiva.
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2- Fundamentação
2.1- Na sentença recorrida julgaram-se provados os seguintes factos:
A) A Ré é uma sociedade anónima regularmente constituída, tendo por objeto a exploração agro-vitivinícola e sua comercialização, exploração turística em qualquer das suas modalidades, a construção das respetivas estruturas ou quaisquer estruturas ou construções bem como a compra de prédios rústicos ou urbanos para a construção ou para revenda dos mesmos.
B) A Ré tem o capital social de 175.000,00€, integralmente subscrito e realizado, representado por 625.000 ações, do valor nominal de 0,28€, cada uma, e encontra-se registada na Conservatória do Registo Comercial do Porto, tudo como melhor consta de documento que se protesta juntar e cujo conteúdo se dá aqui por integralmente reproduzido para todos os efeitos legais (cfr. Docº. De fls. 19).
C) A Autora é acionista da Ré, sendo titular de 4.500 ações, do valor nominal de 0,28€, cada uma, representativas de 0,72% do capital social da Ré.
D) A esmagadora maioria do capital social da Ré, numa percentagem de 94,96%, é detida pela sociedade H…, SGPS, S.A. (NIPC ……….), com sede no mesmo local da Ré, com o capital social de 525.000,00€, da qual a Autora é igualmente acionista, detendo 593.500 ações, representativas de 16,27% do capital social da Ré.
E) São igualmente acionistas da Ré, detendo o número de ações a seguir referido:
G… – 4.500
N… – 4.500
E… – 4.500
D… – 4.500
K… – 4.400
L… – 100
F… - 2.250
M… - 2.250
F) São membros dos órgãos sociais da Ré os seguintes acionistas:
- D… - Presidente do Conselho de Administração;
- E… - Vice-Presidente do Conselho de Administração
- F… - Vogal do Conselho de Administração e 2º Secretário da Mesa da Assembleia Geral
- G… - Vogal do Conselho de Administração
- K… - Presidente da Mesa da Assembleia Geral
G) Por anúncio publicado em https://publicaces.mj.pt em 2016.07.27, foi convocada uma reunião da assembleia geral da Ré, a ter lugar na sede social, em 2016.09.09, pelas 18 horas, cfr. doc. Doc. fls. 23.
H) Da convocatória da reunião faziam parte os seguintes pontos da ordem de trabalhos:
“1. Apreciação em geral da conduta do Conselho de Administração e demais Órgãos Sociais no exercício dos mandatos que lhe foram conferidos e, consequentemente dos atos de gestão e fiscalização praticados no âmbito das suas competências especificas, com eventual tomada de deliberação sobre a manutenção ou destituição dos corpos sociais eleitos e, neste último caso, com a eleição de novos órgãos sociais.
2. Apreciação dos contratos de prestação de serviços pendentes e sua eventual manutenção, alteração ou revogação.
3. Análise da viabilidade económica e financeira da C…, S.A., tendo em vista a eventual tomada de medidas em observação do disposto no artigo 35º do Código das Sociedades Comerciais, cfr docº. De fls. 23.
I) No dia 1 de Setembro de 2016, a Autora solicitou à Ré que a ata da reunião da assembleia geral fosse lavrada por Notário, que foi desconvocada e designado o dia 04.11. para a sua realização, cfr. fls. 25.
J) Por anúncio publicado em https://publicaces.mj.pt em 2016.09.12, foi convocada uma reunião da assembleia geral da Ré, a ter lugar na sede social, em 2016.11.04, pelas 18 horas, cfr. doc. de fls. 26.
L) Da convocatória da reunião faziam parte os seguintes pontos da ordem de trabalhos:
“1. Apreciação em geral da conduta do Conselho de Administração e demais Órgãos Sociais no exercício dos mandatos que lhe foram conferidos e, consequentemente dos atos de gestão e fiscalização praticados no âmbito das suas competências especificas, com eventual tomada de deliberação sobre a manutenção ou destituição dos corpos sociais eleitos e, neste último caso, com a eleição de novos órgãos sociais.
2. Apreciação dos contratos de prestação de serviços pendentes e sua eventual manutenção, alteração ou revogação.
3. Análise da viabilidade económica e financeira da C…, S.A., tendo em vista a eventual tomada de medidas em observação do disposto no artigo 35º do Código das Sociedades Comerciais, cfr docº. de fls. 26.
M) No dia 04.11. não se realizou a AG, tendo sido a mesma suspensa até ao dia 20.01.2017 à mesma hora, cfr. fls. 27 e 28.
N) No dia 20.01. não se realizou a AG, tendo sido a mesma novamente suspensa até ao dia 31.03.2017 pelas 14:30horas, cfr. fls. 29 e 30.
O) No dia 31 de Março de 2017, pelas 14,30, realizou-se finalmente a sobredita reunião da assembleia geral da Ré, tendo estado presentes ou representados todos os acionistas.
P) Em representação da Autora, esteve presente o Senhor Dr. J…, cfr. docº. de fls. 34.
Q) O acionista e Presidente do Conselho de Administração, D…, representou a acionista H…; e o acionista L… foi representado pela sua mãe, K….
R) Aberta a reunião e no âmbito do ponto 1 da ordem de trabalhos, pediu a palavra o representante da Autora, o qual fez a intervenção e apresentou a proposta seguinte:
A AGE regularmente convocada para 9 de Setembro de 2016, foi desconvocada pela Presidente da Mesa da Assembleia Geral (AG) no dia 8 de Setembro de 2016, apesar de não estar legal e estatutariamente prevista a possibilidade de o Presidente da Mesa da Assembleia Geral desconvocar uma Assembleia Geral (AG) regularmente convocada, para além de os fundamentos elencados nos considerandos que estiveram na base dessa desconvocação não impedirem legalmente a realização da Assembleia Geral, tanto mais que a accionista B… assegurou junto da Senhora Notária Dr.ª O… a disponibilidade desta para se deslocar à sede da Sociedade no dia 9 de Setembro de 2016 à hora constante da convocatória de AGE, o que acabou por efectivamente acontecer.
Entretanto, no dia 12 de Setembro de 2016, foi publicada no Portal da Justiça uma convocatória para uma nova AG da C…, agendada para dia 4 de Novembro de 2016 às 18:00. Constatámos, então, com apreensão e grande desconforto, que, após uma desconvocação sem qualquer fundamento legal, estatutário ou de facto, a Presidente da Mesa da Assembleia Geral da C… optou por um longo período de quase dois meses de dilação temporal para realização da AG, quando o que seria razoável e de bom senso seria o agendamento da AG para uma data próxima, a conciliar com a agenda da Senhora Notária Dr.ª O….
Esta não nos pareceu uma actuação adequada da Presidente da Mesa da AG da C…, no âmbito do cumprimento das suas obrigações legais.
Posteriormente, naquele dia 4 de Novembro, suspendeu-se a realização da reunião da AG para mais outros dois meses depois, tendo a data de 20 de Janeiro sido desde logo proposta pela Presidente da Mesa da Assembleia Geral; em 20 de Janeiro, e uma vez mais por proposta de data apresentada pela Presidente da Mesa da Assembleia Geral, foi esta reunião suspensa para hoje, dia 31 de Março de 2017, mais de seis meses após a data da sua convocação.
Na nossa opinião, do procedimento adoptado resultou que as matérias que constituem a ordem de trabalhos fossem discutidas tarde e a más horas, tendo a actuação da Presidente da Mesa da AG da C… contribuído decisivamente para o injustificado atraso na realização desta assembleia e a discussão das matérias que constituem o seu thema decidendum.
PROPOSTA
Considerando, relativamente ao Conselho de Administração:
Conforme teve já oportunidade de se referir na assembleia geral de 7 de Junho de 2016, o CA da C… não actua de forma diligente enquanto “gestor criterioso e ordenado”, com lealdade e “no interesse da sociedade, atendendo aos interesses de longo prazo dos sócios”, designadamente no que respeita à gestão dos custos e sua contenção e ao tratamento do financiamento da H… à C…, porquanto:
A) Financiamento da H…
Na AG de 7 de Junho de 2016, foi referido pelo ROC e pelo CA da C… que não existe um contrato escrito de financiamento da H… à C… e que não há qualquer acordo acerca dos termos desse mesmo financiamento, não havendo por isso um plano de pagamentos, nada referindo quanto a juros, o que tudo foi confirmado em carta remetida pelo CA à acionista B… em 23 de Junho de 2016;
Na AG de 7 de Junho de 2016 o ROC referiu que o financiamento não tinha sido reembolsado na data em que estava previsto (31/12/2015).
Acresce que, fruto das sucessivas, recorrentes e crescentes perdas da C…, a dívida financeira da sociedade à sua accionista H…, continua a subir, tendo crescido 46% de 2010 a 2015, para mais de um milhão de euros.
B) Equilíbrio Financeiro
No Relatório e Contas de 2013 (ponto 2.7), o CA afirmava que “O rumo imprimido à gestão da sociedade continua firmemente a perseguir um duplo objectivo: Atingir o equilíbrio económico da sociedade e zelar pela conservação e valorização do património que lhe está confiado.”
Ora, aquele objectivo não foi claramente atingido nos últimos 10 anos, tal como objectivamente se pode concluir atendendo à recorrência de perdas da C…: Perdas operacionais médias anuais de mais de Eur 90,000 nos últimos 5 anos, mais de meio milhão de euros de perdas acumuladas em 5 anos e 1 milhão de euros de perdas acumuladas em 10 anos, pelo que as declarações do CA consubstanciam evidentes falsidades e clara inaptidão para o exercício do cargo.
C) Custos da C…
Também no Relatório e Contas de 2013 (ponto 2.7), o CA afirmava “…Continuando a política já iniciada nos exercícios anteriores, a Administração da Sociedade norteou-se por uma drástica redução de custos…”; mas essa afirmação é então – e mantém-se hoje - objectivamente falsa, pois os custos da C… subiram 18% no ano a que se refere a afirmação e subiram 23% nos últimos 5 anos, até 2015; e considerando apenas os custos operacionais (CMVMC+FSEs+Pessoal), estes também subiram, 21% no ano a que se refere a afirmação e subiram 7% nos últimos 5 anos, até 2015.
Mas falando dos custos com o pessoal registados nas contas da C…, estes representam cerca de 100% das suas vendas ou mesmo o dobro, se incluirmos os custos com pessoal da H… que está na realidade afecto à actividade da C…, tendo inclusivamente aumentado relativamente ao ano anterior, ao ponto de nos últimos 5 anos as perdas acumuladas da C… ascenderam a 200% das vendas acumuladas - mais de meio milhão de euros! E os custos com Fornecimentos e Serviços Externos representam quase 80% das vendas da C…, tendo subido 30% no último ano reportado.
Tudo isto denúncia evidentes falsidades nas afirmações feitas e clara inaptidão para o exercício do cargo.
D) Objectivo social da C…
No Relatório e Contas da C… de 2015 (ponto 4), o CA afirma que “A gestão da sociedade continuou norteada pelo duplo objectivo de atingir o equilíbrio financeiro da sociedade, e zelar pela conservação, exploração e valorização do património que lhe está confiado.”
Ora, este objectivo constitui uma negação do escopo lucrativo próprio da sociedade e a confissão de que o CA se move por interesses estranhos à sociedade e privativos dos seus accionistas.
E) Reuniões do Conselho de Administração
De acordo com o artigo 13º do Pacto Social da C…, “O conselho de administração reunirá sempre que for convocado pelo seu presidente ou por outros dois administradores, devendo realizar-se, pelo menos, uma reunião em cada três meses.”
A verdade, porém, é que, apesar da expectativa de em 2014 e 2015 se realizarem, pelo menos, oito reuniões do CA, apenas quatro terão tido lugar, de acordo com as cópias de actas que foram disponibilizadas à accionista B…, inscritas com as datas de 4 de Março de 2014, 21 de Outubro de 2014, 23 de Março de 2015 e 3 de Dezembro de 2015.
Não se compreende nem se aceita que o CA da C… apenas tenha reunido 4 vezes em mais de 2 anos, ou, no caso de ter reunido mais vezes, que não tenha ou não tenha enviado as respectivas actas, tal como solicitado pela accionista B….
F) Existe confusão, se não mesmo promiscuidade, entre os interesses da sociedade e o interesse da maioria dos accionistas - os que a governam -afirmando o CA que a sociedade existe para preservar o património da família.
E isso mesmo representa a negação do escopo necessariamente lucrativo de uma sociedade comercial, para além de que isso nem verdade é, pois nos últimos 10 anos, as perdas acumuladas da C…, de mais de 1 milhão de euros, representaram cerca de 1/3 de perda patrimonial, pois os imóveis que - em teoria e alegadamente - se visam manter valem 3 a 4 milhões de euros ou menos.
G) A C… é hoje objectivamente factor de destruição de valor e não de criação ou sequer de manutenção, mas quando confrontado com esta realidade insofismável, o PCA apenas tem para dizer que “Os custos são os que são”, o que é sinal evidente do grau de proactividade deste CA.
H) Que, se realmente o CA da C… actuasse diligentemente na prossecução do interesse da sociedade - que como entidade juridicamente diferente dos seus accionistas, que tem um interesse diferente do destes ou mesmo do da maioria deles - havia de ter tentado alterar a estrutura de exploração ou, não tendo - como não tem - os conhecimentos técnicos necessários para o fazer, havia de ter:
a) efectuado ou encomendado a uma entidade independente uma análise de custo beneficio e orçamentos ou propostas para entrega das quintas à gestão ou exploração por entidades terceiras, com pagamento de rendas relevantes, fixas, variáveis ou mistas, aos proprietários dos terrenos;
b) analisado a possibilidade, com pedidos de propostas ou orçamentos, de subcontratar a operação das vinhas e/ou da vinificação a entidade terceira, contra o pagamento pela C… de uma comissão anual, fixa, variável ou mista ou;
c) analisado a possibilidade, através de uma análise custo-benefício, de parar a produção de vinho e/ou de uva, confrontando designadamente a poupança de custos emergente, face aos eventuais custos de manutenção mínimos dos terrenos (limpeza).
I) A estes aspectos estruturais, acrescem as falsidades e/ou inconsistências que constam dos documentos de prestação de contas de 2015, como sejam (i) a referência a uma avaliação dos imóveis por entidade independente que o ROC negou ter existido; (ii) o custo de cerca de 8 mil euros em limpezas que o TOC e o CA afirmaram dizer respeito à Quinta de Braga (Quinta … em …), mas que da informação entretanto enviada pelo CA da C… decorre poder ter sido na “Quinta de …” sem que nenhum esclarecimento tenha disso dado; (iii) a referência na alínea (a) da nota 15 (Financiamentos Obtidos) de que o financiamento da H… não vence juros, mas na nota 21 (Juros e Rendimentos similares obtidos) das notas às contas de 2015 da H… refere-se a existência de juros e estes existem de modo implícito, dedutíveis da diferença entre o valor nominal e o valor de balanço ao custo amortizado, a uma taxa de média que nos últimos 5 anos oscilou entre os 3.5% e os 4.2%.
J) Por outro lado, a falta de prestação de muita da informação pedida, nomeadamente em assembleia geral, e a evidente fraqueza e inconsistência da informação prestada, que não esclareceu em alguns casos meras diferenças numéricas ou aritméticas.
K) Finalmente, o CA não cumpriu com o disposto no nº 1 do artº 35º do Código das Sociedades Comerciais (CSC); e que, a esse respeito, o Fiscal Único e ROC da C…, Dr. P…, também não cumpriu com as suas obrigações, tal como previstas nos artºs 420º e 420-Aº do CSC.
Reiteramos a nossa posição já expressa e fundamentada na AG da C… de 7 de Junho de 2016, a saber e a recordar:
- “Na nossa opinião, as práticas de gestão prosseguidas pelo Conselho de Administração da C… são lesivas dos naturais e legítimos interesses dos accionistas da C… e constituem em si mesmas uma violação do mandato atribuído pelos accionistas ao Conselho de Administração da C…;
- Em face de tudo o que já se descreveu e analisou, a nossa apreciação geral do desempenho e actuação do Conselho de Administração é negativa e por isso votaremos contra, qualquer proposta de louvor ao Conselho de Administração da C….
No que respeita à Mesa da Assembleia Geral
A) Para além das circunstâncias acima referidas relativas à convocação, desconvocação e suspensão desta assembleia geral.
B) Na acta da AG de 7 de Junho de 2016 verificam-se diversas e relevantes omissões e erros na transcrição que a mesma pretende ser dos factos nela ocorridos, como seja o facto de o representante da sócia B… ter perguntado “Enquanto em 2014 a C… não tinha dívidas a Fornecedores, no final de 2015 as Dívidas a Fornecedores passaram para Eur17,856 (70% dos Custos de Mercadorias Vendidas e Matérias Consumidas), valor muito mais alto do que nos 5 anos anteriores. Porquê? Quais os Fornecedores e respectivos saldos por antiguidade? Eventuais penalizações ou riscos (pedidos de insolvência) que daí possam advir?”
Na acta nada se fez constar a respeito desta questão, da resposta que foi dada e da discussão que se seguiu.
C) O representante da sócia B… solicitou para ser anexo a cada uma das actas das reuniões de 13 de Junho de 2014 e 7 de Junho de 2016 um documento, que entregou, o que foi ignorado por quem nelas exerceu as funções de Presidente da Mesa da Assembleia Geral, não o tendo anexado nem tão pouco feito a eles referência nas mesmas.
D) Da acta da assembleia geral de 13 de Junho de 2014 consta como estando pessoalmente presente a accionista B…, o que é falso;
Quanto ao Fiscal Único / ROC
A) Apesar de no Relatório e Contas de 2015 se fazer referência a um reforço da imparidade, ocorrida em 2014, de Eur48,457 para Eur109,925 com base numa “avaliação efectuada por avaliador independente e profissionalmente habilitado” – nota 8 - o Fiscal Único, na AG de 7 de Junho de 2016, esclareceu que se trata dos lotes dos quais a C… é proprietária, que não houve nenhuma avaliação.
Trata-se de um instrumento de valor em função do valor patrimonial destes, que estão 20% acima do seu valor patrimonial.”
B) Na alínea a) da nota 15 (Financiamentos Obtidos) das notas às contas de 2015 da C… e na nota 8 (Investimentos em Subsidiárias e Participadas) das notas às contas de 2015 da H…, refere-se que o financiamento da H… à C… não vence juros, mas o Fiscal Único, na AG de 7 de Junho de 2016, repetiu que “(…) deve-se ao facto de ser feita através de juros implícitos”, o que significa que a política contabilística adoptada neste caso pelo CA, e com a concordância do Fiscal Único não traduz a realidade, que é desde logo também um princípio que deve ser observado na política contabilística estabelecida e implementada por uma sociedade.
C) No relatório e contas de 2015, os Gastos/reversões de depreciação e de amortização dos Activos Biológicos do exercício de 2015 (Eur16.1k, conforme as contas; Eur8.2k ajustado pelo erro no R&C de 2015 das Depreciações Acumuladas1) estão contabilizados como Custo das Vendas. A definição destes Activos Biológicos é feita pelo próprio CA da C…, no seu Relatório e Contas de 2015, na nota 11:
“Em 31 de Dezembro de 2015 e 2014, as quantias escrituradas como activos biológicos correspondem ao custo menos depreciações acumuladas, das vinhas plantadas em 2003, 2004 e 2013 em … – Marco de Canaveses. A vida útil estimada para estes activos é de 40 anos.” A este respeito, o Fiscal Único afirmou na assembleia geral de 7 de Junho de 2016 que “(…) se referiam às vinhas e que estavam apresentadas no custo das vendas.” Ora, estes Activos Biológicos são investimento em vinhas e a sua depreciação deveria estar contabilizada como tal, na rúbrica “Gastos/reversões de depreciação e de amortização” e não como “CMVMC: Custo de Mercadorias Vendidas e Matérias Consumidas”. Esta é uma política contabilística que não reflecte a realidade da empresa, distorcendo assim a leitura das contas da C…, instrumento fundamental para a tomada de decisão e apreciação por todos os accionistas da actividade da empresa e do desempenho do CA.
D) Na nota 11 às Contas de 2015 da C… o valor das depreciações acumuladas dos Activos Biológicos a 31 de Dezembro de 2014 está errado. Deveria estar Eur87,532 e está Eur79,589, o que não mereceu qualquer reparo ou comentário pelo Fiscal Único.
E) Por outro lado, e como inúmeras vezes declarado pelo CA da C…, em AGs e Cartas, “Não existem contratos de prestação de serviços escritos”, o que, relativamente ao ROC, configura uma violação das obrigações do ROC, conforme estabelecidas no Estatuto da Ordem dos ROCs (Lei nº 140/ 2015, de 7 de Setembro de 2015) e no Código de Ética da Ordem dos ROCs (Regulamento 551/2011, de 14 de Outubro de 2011).
Por conseguinte, propõe-se aos senhores accionistas a destituição dos membros do Conselho de Administração e da Mesa da Assembleia Geral e a não renovação do mandato do Fiscal Único.
Fazemos notar que
a) Nos termos e ao abrigo do disposto nos artºs. 64º., 374º.-A, 384º., nº. 6, alínea c), 403º., nº. 4, do CSC; e
b) Tendo presente que:
- Na condução dos trabalhos, o presidente da mesa da assembleia geral deverá pautar-se pelos princípios de imparcialidade, igual tratamento dos accionistas, proporcionalidade e pelo princípio da legalidade, (bem como estar devidamente familiarizado com as regras estatutárias e do CSC);
- Cabe, ainda, ao presidente da mesa, na orientação dos trabalhos, apurar quaisquer proibições de voto e conflitos de interesses, verificando as inibições de votos que possam surgir relativamente a cada ponto da ordem de trabalhos, quer nos casos em que a lei expressamente proíba o accionista, ou seu representante, de votar em determinadas matérias ou, ainda, quando a deliberação incida sobre, nomeadamente a destituição por justa causa, do seu cargo de titular de órgão social;
os seguintes membros do Conselho de Administração não deverão nem poderão, enquanto accionistas da C…, votar este ponto da ordem dos trabalhos, que aos próprios diz respeito:
- D… (Presidente do CA)
- E… (Vice-Presidente do CA da C…)
- F… (Vogal do CA e 2º Secretário da Mesa da AG)
- G… (Vogal do CA)
E os seguintes membros da Mesa da Assembleia Geral não deverão nem poderão, enquanto accionistas da C…, votar este ponto da ordem dos trabalhos, que aos próprios diz respeito:
- K… (Presidente da Mesa da AG)
- Q… (1º Secretário da Mesa da AG)
- F… (Vogal do CA e 2º Secretário da Mesa da AG).
S) Finda a discussão a Presidente da Mesa da AG colocou à votação a proposta da acionista B… relativa à destituição do Conselho de Administração integrado por D…, G…, E…, F… e T… e que não podem votar os accionistas D…, E…, F… e G… e tendo admitido a votar a acionista H…, K…, M… e B….
T) Votaram contra os acionistas H… com 94,96% do capital, K… com 0,70%, L… com 0,2% e M… com 036%, num total de 96,04% do capital; votaram a favor o representante da accionista B… com 0,72% e N… com 0,72%, num total de 1,44% do capital.
U) Colocada pela Sra. Presidente da Mesa a votação a proposta sobre se foi ou não quebrada a confiança dos acionistas no CA, sendo que, a ter sido quebrada deverão cessar funções de imediato, sendo que, a não ter sido, deverão manter-se. Mais declarou que teriam impedimento de voto os membros do CA.
V) Interveio a acionista B… para alertar a Presidente da Mesa para o disposto no artº 384º, n.º 6, al. c) do CSC, ao que esta respondeu que tal foi levado conta nas votações.
X) Votaram no sentido de que não foi quebrada a confiança nos órgãos sociais e da manutenção em funções, a acionista H…, através do seu representante D…, com 94,96%, a acionista K… com 0,70%, o acionista L… com 0,02% e o acionista M… com 0,36%, num total de 96,04%; em sentido contrário, de que foi quebrada a confiança nos órgãos sociais e devem cessar funções, votaram os acionistas N… com 0,72% do capital, B… com 0,72%, num total de 1,44% do capital social, tudo cfr. melhor resulta da ata junta a fls. 115 e ss.
*
2.2- Análise dos fundamentos do recurso
Começa por estar em causa a utilidade do prosseguimento desta ação.
Segundo a Ré, tendo sido expresso, na Assembleia Geral realizada no dia 31/03/2017, um voto de confiança nos Administradores cuja destituição foi pedida pela A., e tendo aí sido também deliberado que os membros desse órgão deveriam manter-se em funções, como, aliás, sucedeu, em virtude da reeleição que teve lugar na Assembleia Geral realizada no dia 26/05/2017, é inútil, neste momento, continuar a discutir a legitimidade de tais membros para se manterem no cargo, desde a data primeiramente referida.
Como veremos, no entanto, não é assim. O que, de resto, também se decidiu na instância recorrida, e A. concorda.
Vejamos.
Está em causa nesta ação, para além do mais, a alegada invalidade da deliberação social tomada na Assembleia Geral realizada no dia 31/03/2017, que reprovou a proposta da A. para serem destituídos os membros do Conselho de Administração da Ré, que então exerciam funções.
Ora, esse vício não ficou sanado com nenhuma das outras deliberações já referenciadas; ou seja, nem com aquela que manifestou confiança nos ditos membros, mantendo-os em funções, nem com a subsequentemente tomada, no dia 26/05/2017, que elegeu novos corpos sociais para a Ré.
E isto, por duas razões fundamentais:
Em primeiro lugar, porque nenhuma dessas deliberações foi renovatória da deliberação ora impugnada. Isto é, em nenhuma delas foi manifestada a vontade dos sócios de sanar eventuais vícios de que padecesse a primeira.
E, depois, porque, a ser julgada procedente esta ação, a eficácia desse julgamento, transitado que esteja em julgado, determinará a erradicação dos concretos efeitos jurídicos que foram associados a essa deliberação, o que a A. continua a pretender.
É que a eleição dos corpos sociais da Ré, que teve lugar no dia 26/05/2017, só produziu efeitos jurídicos a partir dessa data.
Por conseguinte, continua a poder discutir-se se os órgãos sociais que até aí se mantinham em funções dispunham de legitimidade para o efeito.
Por outro lado, a manifestação de confiança manifestada pela maioria dos sócios no Conselho de Administração que estava em funções anteriormente, e mais concretamente no dia 31/03/2017, embora não venha impugnada nestes autos, também não sana a invalidade que a A. imputa à deliberação que a precedeu, seja porque, como já vimos, não foi adotada com esse objetivo, seja ainda porque essa questão se mantem em aberto.
Há, sem dúvida, uma conexão entre estas duas últimas deliberações. Mas se alguma é capaz de influenciar a outra, não é a que manifestou confiança no Conselho de Administração que, à data (31/03/2017), se mantinha em funções, mas antes a que a precedeu e que está em causa nestes autos, que, a ser anulada e substituída nos seus efeitos, como pretende a A., determinará, necessariamente, a falta de sentido daquela. Por outras palavras, deixa de fazer sentido manifestar confiança num Conselho de Administração cujos membros venham a ser, desde então, destituídos. Isto porque, como observa Vasco da Gama Lobo Xavier[1], a eficácia retroativa da sentença anulatória determina que a deliberação anulada se deva julgar “ab origine desprovida de efeitos – e assim mesmo, portanto, no momento em que foi aprovado o ato subsequente”.
Se alguma deliberação, pois, é suscetível de exercer a sua influência sobre a outra, designadamente ao nível do respetivo conteúdo, é aquela que nestes autos vem impugnada e não a que manifestou confiança no Conselho de Administração que, no dia 31/03/2017, se mantinha em funções. Até porque o prolongamento no exercício desse cargo resultou, não da deliberação maioritária nesse sentido tomada, mas da ausência de nova nomeação, posto que o período para o qual esse Conselho tinha sido eleito já havia expirado. É, pois, uma decorrência da própria lei e não da vontade dos sócios [artigo 391.º, n.º 4, do Código das Sociedades Comerciais (CSC)].
Tudo isto para concluir que, ao contrário do sustentado pela Ré neste recurso, não se considera inútil o prosseguimento desta lide, para os efeitos previstos no artigo 277.º, al.e), do CPC. Nessa medida, a sentença recorrida, porque assim decidiu, deve, neste aspeto, ser confirmada.
Avancemos, agora, para a análise da questão seguinte.
Trata-se de saber se a sentença recorrida é nula por falta de apreciação da alegada invalidade da proposta de destituição, apresentada pela A., na Assembleia Geral da Ré, realizada no dia 31/03/2017.
Essa nulidade só ocorrerá se, como resulta do disposto artigo 615.º, n.º 1, al. d), do CPC, a omissão de pronúncia disser respeito a alguma questão que nessa sentença devesse ter sido apreciada e não foi; ou seja, se disser respeito a algum pedido, causa de pedir ou exceção, arguida ou de conhecimento oficioso, de que o juiz tivesse o dever de se ocupar, sem, no entanto, o ter feito (artigo 608.º, n.º 2, do CPC).
Ora, o que verificamos, no caso presente, é que essa omissão não ocorre. Senão vejamos:
O que está em causa, na versão da Ré, é o facto de na sentença recorrida não se ter aludido seja à alegada ausência de invocação de justa causa na proposta que deu azo à deliberação impugnada, seja mesmo à inexistência dessa justa causa.
Ora, tendo esta ação sido proposta com o escopo, entre o mais, de anular a deliberação social a que já fizemos referência, por nela ter participado um acionista sem legitimidade para a expressão do voto de outrem - concretamente, por o acionista, D…, ter votado em representação da sociedade, H…, SGPS, S.A., estando, na perspetiva da A., legalmente impedido de o fazer -, não tinha a dita sentença de ajuizar o mérito dos fundamentos da destituição; isto é, não tinha de verificar se a justa causa para essa destituição estava, ou não, preenchida. Não fazia parte do objeto desta ação, visto que estamos apenas perante um contencioso de legalidade e não de mérito.
E, nesse contencioso de legalidade, a sentença recorrida ocupou-se dos seus fundamentos; ou seja, ocupou-se de saber se os termos em que foi pedida a referida destituição impediam o aludido administrador-acionista de votar, tendo concluído positivamente. Isto, naturalmente, porque tomou como pressuposto (de facto e de direito) que havia sido despelotada uma destituição por justa causa, como alegara a A., e não apenas uma destituição arbitrária.
Deste ponto de vista, pois, não cremos que ocorra qualquer nulidade da sentença recorrida. O que é bastante para a improcedência deste fundamento de recurso.
Está em causa, seguidamente, o problema de saber se deve ser ampliada a matéria de facto, nos termos requeridos pela Ré.
Esta questão requer uma análise mais extensa.
O que a Ré pretende neste capítulo, no fundo, além da reprodução integral da ata da Assembleia Geral realizada no dia 31/03/2017, é que se aditem à matéria de facto já julgada provada na sentença recorrida, outros factos por si alegados que permitam “objetivamente aquilatar se estão ou não configurados os pressupostos da existência do conflito de interesses, que constitui a “ratio” da aplicação do preceito impeditivo do voto, declarado nulo” naquela sentença.
Mais concretamente, pretende que, agora ou após melhor prova, se introduzam nesse capítulo os factos por si alegados nos artigos 17º, 18º.19º, 20º, 22º, 24º, 25º, 26º, 27º, 28º, 29º, 30º, 32º, 34º, 35º, 36º, 37º, 38º, 39º e 42º, da contestação, cujo teor é o seguinte:
“17. (…) a A. e todos os acionistas individuais da C…, referenciados no artigo 6º, são igualmente acionistas da H… SGPS, SA.
18. Detendo aí o seguinte número de ações e percentagem no seu capital social de €525.000,00:
- G…, 2.501 ações – 2,38%
- D…, 17.083 ações – 16,27%
- B…, 17.083 ações - 16,27%
- L…, 100 ações – 0,10%
- K…, 16.983 ações – 16.17%
- E…, 17.083 ações – 16,27%
- N…, 17.083 ações – 16,27%
- F…, 8.542 ações – 8,13%
- M…, 8542 ações – 8,13%
19. Ora, todos estes acionistas, com excepção de Sra. Dra. G…, que dele era esposa, são descendentes diretos (filhos e netos) do fundador destas duas sociedades, o falecido Sr. Dr. I….
20. Ainda em vida e preocupado com a perpetuação e boa conservação, em prol dos seus descendentes, do património fundiário que foi acumulando e criando pelo esforço do seu trabalho como jurista, advogado e gestor, fundou e estruturou estas duas sociedades nesse propósito, adotando um modelo de coligação que se vem mantendo,
22. Ambas as sociedades são, por conseguinte, as vestes de um projeto ou desígnio familiar, legado pelo fundador e antepassado comum, integrando cada uma delas especificas e complementares funções visando a preservação e boa gestão do património familiar
24. Como é próprio deste tipo de sociedades, tem por objeto exclusivo a detenção duradoura de participações sociais de outras sociedades, juridicamente independentes, não exercendo diretamente uma atividade económica.
25. Foi esta sociedade criada para servir de veículo, com os respectivos benefícios fiscais permitidos por lei, para alavancar as atividades particularmente apreciadas e caras ao fundador de agricultura e turismo.
26. Foi neste quadro que a H… passou a ter, a montante, a detenção de uma participação de 11% no capital social da atual S1…, SA, sociedade do grupo S…, e a jusante, participação de 94,96% na C…, ora Ré.
27. Deste modo, os fluxos financeiros que a H… vem auferindo da sua participação na S1…, a título de dividendos, têm sido colocados à disposição das necessidades da sua participada C…, sendo esta uma sociedade instrumental destinada a administrar um vastíssimo património fundiário, implicando elevados investimentos agrícolas, florestais e de beneficiação, levando a cabo a exploração da vinha, que também vai gerando receita.
28. A C… tem assim mantido, por vontade dos seus acionistas, a missão de garantir, de forma sustentada e profissional, a administração, exploração e valorização do património pessoal dos seus acionistas, honrando os princípios de responsabilidade social e os compromissos assumidos.
29. E assim evitando que os acionistas, a título pessoal, sejam diretamente chamados a gerar suprimentos para que as quintas estejam cultivadas e as florestas sejam tratadas como vem sucedendo com a dedicação e empenho dos seus administradores.
30. Ora, no âmbito deste modelo, como facilmente se percebe pelo que dele fica exposto, as decisões estratégicas são tomadas em família e no quadro societário da H…, onde os diversos filhos, netos e viúva do fundador possuem e exercem direitos sociais baseados nos direitos que individualmente detêm, em abstrato, sobre o património familiar gerido pela sociedade instrumental C….
32. De facto e de direito, existe consequentemente uma relação de domínio entre estas duas sociedades coligadas, sendo a H… a sociedade dominante e a C… a sociedade dominada.
34. Assim, para o quadriénio 2013/2016, foram eleitos para o Conselho de Administração da H… e da C…, os seguintes acionistas comuns:
- D… – Presidente do Conselho de Administração da H… e da C…;
- E… – Vogal do Conselho de Administração da H… e Vice-Presidente do Conselho de Administração da C…;
- G… – Vogal do Conselho de Administração da C…;
- M… – Vogal do Conselho de Administração da C… (substituído posteriormente por F…);
- T… – Vogal do Conselho de Administração da C….
35. Esta eleição, incluindo a que simultaneamente ocorreu para os demais órgãos sociais em assembleias gerais ordinárias realizadas em 10 de maio de 2013, foram decorrência de deliberações dos acionistas das duas sociedades coligadas, ambas tomadas por unanimidade, ou seja, com a confiança depositada por todos os familiares (viúva e descendentes) do fundador, incluindo consequentemente a ora A., B… e seu irmão N…, com quem vem partilhando a cruzada de oposição, apenas encetada a partir de 2016.
36. Vide, no tocante à ora Ré, C…, a ata n.º 46, referente à assembleia geral, onde a eleição ocorreu – Doc. n.º 2.
37. Recorrendo-se ao disposto no artigo 486º do Código das Sociedade Comerciais, que define o conceito de “sociedade em relação de domínio”, dúvidas não podem, pois, subsistir quanto à existência dessa especial relação entre a H… e a C….
38. Já que se afigura inegável que a H…, sociedade de gestão das participações do grupo familiar, exerce diretamente perante a aqui Ré, sua participada, uma influência dominante.
39º Caracterizada desde logo pelo poder da sua participação no capital social da sociedade dominada (94,96%), que lhe permite nomear os seus órgãos sociais em conformidade com os interesses definidos pelos mesmos acionistas no seu próprio seio e assim definir, indiretamente, a estratégia empresarial da sociedade veículo, mantendo-a sustentável e adequada à realização dessa estratégia, enquanto mantida democraticamente pelos acionistas da H….
42. Sendo essa a razão de ambas as sociedades serem presididas, ao nível do seu órgão de administração, pelo mesmo acionista, eleito com a unanimidade de todos, D…”.
Estes factos, do ponto de vista da Ré, exprimem “a razão da criação das duas sociedades H… e C…, em contexto estritamente familiar, visando a preservação, a boa gestão e o desenvolvimento do património da Família B1D1E1G1I1K1N1Q1…, sem o que não se pode compreender a especial intimidade e interdependência entre as duas sociedades em causa que têm em comum os mesmos acionistas”.
Só à luz desses factos – continua a Ré – “se poderá compreender que os órgãos sociais eleitos na C… recebem um mandato para o exercício dos seus cargos balizado, objetivamente, pelos interesses definidos pelos seus mesmos acionistas singulares no quadro da H…, sendo estes interesses veiculados e garantidos pelo CA da H… através do exercício do voto nas assembleias gerais da C…, com o peso que os seus acionistas aceitaram e mantiveram no modelo empresarial instituído pelo fundador Dr. I…”.
“Na verdade, embora D… seja, a título pessoal, acionista de ambas as sociedades, a sua presença na assembleia geral e as suas intervenções, designadamente quando exerceu o seu direito de voto em nome da H…, foi justificada, por dever legal, na qualidade de Presidente do Conselho de Administração da H…” e não como porta voz dos seus interesses pessoais, pelo que não se pode falar em qualquer conflito de interesses, para efeitos de preenchimento da previsão contida no artigo 384.º, n.º 6, al. c), do CSC.
Será assim ?
Importa ter presente, antes de mais, que, nos termos do artigo 595.º, n.º 1, al. b), do CPC, o juiz deve conhecer, total ou parcialmente, do mérito da causa no despacho saneador quando, para o julgamento de um ou mais pedidos, não haja necessidade de produzir outras provas para além daquelas que estão já adquiridas no processo. Isto, tendo em conta, naturalmente, todas as soluções juridicamente plausíveis para o litígio, à luz de um critério objetivo, e não específico do juiz da causa. Este tem sido o entendimento dominante na doutrina[2] e jurisprudência[3].
E, assim, o juiz pode conhecer do mérito da causa quando toda a matéria de facto relevante para a decisão, segundo as várias soluções plausíveis, se encontre provada; mas pode também antecipar o conhecimento de mérito quando seja indiferente para qualquer dessas soluções a prova dos factos que permaneçam controvertidos; isto é, quando o juiz, através de um juízo de prognose fundado em critérios objetivos, conclua que os já provados permitem a prolação de uma decisão final conscienciosa e segura, o que ocorre nos casos em que os factos controvertidos, mesmo a provarem-se, não permitirem a defesa de outra solução que não seja a adotada.
Ora, no caso em apreço, cremos que os factos que a Ré pretende introduzir na factualidade provada, nenhuma modificação podem determinar na solução que foi dada a este conflito, a respeito da nulidade declarada na sentença recorrida.
Mas, vamos por partes.
Dispõe o citado artigo 384.º, n.º 6, al. c), do CSC, que nenhum acionista pode votar, por si, através de representante, “nem em representação de outrem, quando a lei expressamente o proíba e ainda quando a deliberação incida”, entre outros aspetos, sobre a “destituição, por justa causa, do seu cargo de titular de órgão social”.
Esta é, claramente, uma norma proibitiva, que faz parte de uma das técnicas (a proibicionista) de regulação de conflito de interesses nas sociedades comerciais. Mais propriamente, é uma norma impeditiva de atuação em situação de conflito de interesses[4], que pressupõe, naturalmente, que há uma incompatibilidade substancial entre o interesse direto e imediato do administrador accionista[5] e o interesse da sociedade. O interesse do administrador, por um lado, em se manter em funções e ser por elas reconhecido, e, o interesse da sociedade, por outro, em ser corretamente gerida, à luz dos seus objetivos societários.
Tal norma tem carácter injuntivo; isto é, o que nela se dispõe “não pode ser preterido pelo contrato de sociedade” – n.º 7, do mesmo preceito.
Assim, o administrador-acionista que se encontre na apontada situação de conflito, está impedido de votar. Ou seja, não pode exercer o direito de voto se, como vimos, estiver em discussão a “destituição, por justa causa, do seu cargo de titular de órgão social”[6]. Não tem, em suma, legitimidade para o efeito[7].
Mas, para que surja esse impedimento, o referido conflito de interesses não tem de estar já demonstrado. E, menos ainda, em juízo. A lei atribui a esta, como às demais proibições de voto, uma função preventiva[8]. De tal modo que presume o conflito.
O regime das sociedades comerciais por quotas ajuda-nos a perceber que assim é.
Também nelas, o “sócio não pode votar nem por si, nem por representante, nem em representação de outrem, quando, relativamente à matéria da deliberação, se encontre em situação de conflito de interesses com a sociedade” – artigo 251.º, n.º1, do CSC.
Acrescenta, no entanto, este mesmo preceito o seguinte: “Entende-se que a referida situação de conflito de interesses se verifica designadamente quando se tratar de deliberação que recaia sobre: (…) “destituição, por justa causa, da gerência que estiver exercendo ou de membro do órgão de fiscalização”- (al. f).
Ou seja, em tal hipótese, sendo apresentada a votação uma proposta de destituição, por justa causa, de um sócio-gerente de uma sociedade na qual o mesmo exerce essas funções, presume-se, de modo inilidível (artigo 350.º, n.º 2, do Código Civil), que há uma situação de conflito e sobre ela o mesmo não pode votar.
No momento em que a lei veda ao administrador o exercício do direito de voto, com efeito, “não pode haver contra este mais do que uma simples suspeição. Teoricamente, é possível suceder, se ao administrador fosse permitido votar, o seu voto seria exercido em conformidade com o mais puro interesse da sociedade; a lei presume, porém, que tendo de escolher entre o interesse da sociedade e o seu interesse pessoal, a pessoa atue para satisfazer o segundo em detrimento do primeiro – previne a tentação, eliminando a oportunidade”[9].
O administrador nessas circunstâncias tem, pois, o dever de lealdade para com os demais sócios e a sociedade e, nessa medida, deve revelar-lhes o dito conflito (artigo 64.º, n.º1, al. b), do CSC). Se o não fizer, pode ser responsabilizado pelos danos daí decorrentes. Mas, quer faça ou não faça, logo que haja noticia de um potencial conflito de interesses[10] nos termos já assinalados, o administrador acionista deve ser impedido de votar, entre outros aspetos, também na sua própria destituição por justa causa. E, se o fizer, o seu voto é nulo (artigos 294.º e 295.º do Código Civil).
“A lei visa, assim, neutralizar o perigo de adoção de deliberações contrárias ao interesse social por determinação ou influência do voto de sócio portador de interesse particular divergente.
A lei não se basta, portanto, com mecanismos reativos, designadamente a anulabilidade das deliberações abusivas que atribuam vantagens especiais aos sócios em situação de conflito de interesses. Com o impedimento de voto, ela intenta prevenir o risco de eles serem especialmente avantajados em detrimento da sociedade. O impedimento de voto é instrumento preventivo que atua no procedimento deliberativo; a anulabilidade de deliberação abusiva é instrumento reativo que atua sobre o conteúdo deliberativo”[11].
Ora, aplicando estas noções ao caso em apreço, verificamos, por um lado, que o presidente do Conselho de Administração da Ré, à data em que foi tomada a deliberação impugnada, era também seu acionista; e, por outro, que a A. propôs a destituição do mesmo e de todos os que constituíam esse órgão social, imputando-lhes a falta de atuação diligente e leal ““no interesse da sociedade, atendendo aos interesses de longo prazo dos sócios”, designadamente no que respeita à gestão dos custos e sua contenção e ao tratamento do financiamento da H… à C…”, justificando-o com diversos exemplos. Isto é, propôs essa destituição por justa causa, pois que, se fosse sem ela, nem sequer tinha de o justificar (artigo 403.º, n.º 1, do CSC).
É certo que a Ré, neste recurso, diz não aceitar essa imputação. Mas, o que é facto é que o próprio visado com essa destituição que agora está em causa, ele próprio, aceitou para si o impedimento, abstendo-se de votar, enquanto acionista da Ré. Sinal, portanto, de que reconheceu que a A. o pretendia destituir por justa causa.
Sucede que o mesmo Administrador era, em simultâneo e na mesma Assembleia Geral, o representante da maior acionista da Ré, a sociedade, H…, SGPS, S.A., que nesta detém uma participação social correspondente a 94,96%.
Mas, não era um representante qualquer. Como foi alegado pela Ré, e cremos poder julgar comprovado por acordo tácito entre as partes e pela documentação junta aos autos[12], esse Administrador era também o Presidente do Conselho de Administração da última sociedade referida. Ou seja, era um dos seus representantes orgânicos.
E é aqui que surge o problema. Surge, por outras palavras, a questão de saber se o dito Presidente do Conselho de Administração, na sua qualidade de representante estatutário da sociedade, a H…, SGPS, S.A., estava impedido de votar na sua destituição, por justa causa, de Administrador da Ré.
Ora, o artigo 384.º, n.º 6, do CSC, parece não deixar margem para quaisquer dúvidas. Um acionista, quando esteja em discussão a sua destituição, por justa causa, de um cargo societário, “não pode votar, nem por si, nem por representante, nem em representação de outrem”[13]. E esta representação, em nosso entender, é tanto a voluntária como a orgânica[14]. Não há qualquer razão para distinguir as ditas representações uma da outra, uma vez que é de presumir que o legislador soube exprimir o seu pensamento em termos adequados (artigo 9.º, n.º 3, do Código Civil).
Por outro lado, mesmo tendo em conta a razão de ser de tal proibição, ou seja, que o acionista sobreponha o seu interesse individual ao interesse da sociedade, o risco de que tal aconteça é idêntico em ambos os tipos de representação.
Não ignoramos, com isto, que a Ré discorda deste ponto de vista. E alega que exercia um poder/dever legal, vinculado pelas instruções que lhe tinham sido estabelecidas pela sua representada. Nessa medida, acrescenta, não há, como na representação voluntária, o risco de manipulação do voto no interesse do representante.
Pois bem, como cremos ter deixado já evidenciado, não é esse o nosso entendimento. Até porque, justamente, devido à ligação orgânica à sociedade representada, o risco de manipulação do voto, por concertação de posições, devido aos cargos ocupados e aos poderes (de facto e de direito) que lhe são inerentes, é bem superior.
Assim, temos como certo que o referido Administrador da Ré, mesmo na qualidade de representante da sociedade já referenciada, não podia votar. E isto, note-se, sem apurar qualquer outro facto.
Está demonstrada a sua qualidade de administrador-acionista da Ré, está igualmente provado que o objeto da deliberação impugnada era a sua destituição por justa causa, e, assim, o voto de tal deliberação era-lhe legalmente vedado; seja, na dita qualidade, seja como representante da maior acionista da mesma Ré.
Por outro lado, não pode esta ação servir também para a discussão do mérito da medida de destituição adotada; designadamente, avaliando o mérito da justa causa invocada pela A.
Este processo, como já dissemos, foi instaurado como contencioso de legalidade e, portanto, atendendo ao pedido de anulação e causa de pedir, tal como foram formulados pela A., o que há a decidir é unicamente a viabilidade desse pedido. Não o mérito do fundamento da destituição, que está, manifestamente, fora do objeto desta ação.
Quer isto dizer, em suma, que não vislumbramos qualquer necessidade de ampliação da matéria de facto apurada.
O voto emitido pelo aludido representante é, como já vimos, nulo e, assim, não podia, nem pode, ter qualquer influência no resultado da votação. O que significa que, aplicada a prova de resistência[15] e concluindo-se, como se concluiu, e bem, na sentença recorrida que a proposta em causa teria sido aprovada sem esse voto (artigos 176.º n.º 1, do Código Civil e 58.º, n.º 1, al. b), in fine, do CSC), não podem deixar de ser daí retiradas as devidas consequências jurídicas; ou seja, não pode deixar de se julgar essa proposta como aprovada, como pedido pela A.. De uma deliberação negativa, pois, passa a uma deliberação positiva. Isto porque se, como é o caso, “por causa da contagem indevida dos votos nulos, o presidente proclamar deliberação negativa (de não aprovação da proposta), os legitimados para pedir a anulação podem pedir também (cumulação de pedidos) a declaração judicial da deliberação positiva (de aprovação da proposta) em contas direitas afinal adotada”[16] /[17].
E foi o que foi feito e determinado na sentença recorrida.
A Ré, no entanto, não se conforma com este resultado. E argumenta que a conversão da deliberação impugnada é manifestamente inviável, por não se verificarem os pressupostos previstos no artigo 293.º, do Código Civil, para a conversão dos negócios jurídicos nulos ou anuláveis.
Se – acrescenta – “todos os acionistas da H…/C…, com exceção da A. e seu irmão N… (…), tivessem previsto a possibilidade, por remota que fosse, de poder ser invalidado o voto expresso pela H… para a rejeição da proposta surpresa de destituição em bloco dos órgãos sociais da Ré, pelo facto de ter sido apresentado pelo seu Presidente do Conselho de Administração, como a todos pareceu e parece inatacável, teriam facilmente optado por uma representação voluntária da H… a favor de alguém estranho à sociedade e que não tivesse qualquer relação com os órgãos sociais da C….
Mas sucedeu ainda que, na mesma assembleia geral (…), os acionistas da Ré, pela mesma larga maioria que rejeitou a proposta de destituição, aprovou ainda um claríssimo voto de confiança a todos os membros dos órgãos sociais e que deveriam permanecer nas suas funções, pelo que desde logo produziram deliberação válida (não impugnada pela Autora) que impossibilitaria a invocada conversão, dada a manifesta incompatibilidade substantiva entre ambas, neutralizando esta segunda os efeitos da deliberação anterior”.
Ora, se houve possibilidade que deveria ter sido equacionada pela Ré e pelos seus legais representantes, foi a de a proposta impugnada vir a ser anulada. Não só porque a A. anunciou expressamente na Assembleia Geral em que essa proposta foi apreciada, que discordava do entendimento aí maioritariamente seguido, mas sobretudo devido ao regime previsto no artigo 384.º, nº 6, do CSC, que, como dissemos, não deixa margem para grandes dúvidas[18].
Por outro lado, também não impede a conversão da deliberação em causa a circunstância de, logo de seguida, ter sido tomada uma outra, que não há notícia de ter sido impugnada e que manifestou confiança nos membros órgãos sociais da Ré, mantendo-os em funções.
Com efeito, como já adiantámos, não foi essa deliberação renovatória da ora impugnada, nem constitui a mesma qualquer reeleição dos aludidos membros, com eficácia retroativa. Pelo contrário, os acionistas que a subscreveram limitaram-se a manifestar um sentimento (de confiança), sendo que a manutenção em funções dos corpos sociais decorre da própria lei (artigo 391.º, n.º 4, do CSC), não fora, como é o caso, de, em relação aos membros do Conselho de Administração, os mesmos se deverem considerar já destituídos.
Por conseguinte, não é este obstáculo a que a dita conversão ocorra.
Em resumo: nenhum dos fundamentos esgrimidos neste recurso é de acolher, pelo que a sentença recorrida só pode ser confirmada.
*
III- DECISÃO
Pelas razões expostas, acorda-se em negar provimento ao presente recurso e, consequentemente, confirma-se a sentença recorrida.
*
- Porque decaiu na sua pretensão recursiva, as custas deste recurso serão suportadas pela Ré - artigo 527º, nºs 1 e 2, do CPC.
*
Porto, 10 de Dezembro de 2019
João Diogo Rodrigues
Anabela Tenreiro
Lina Baptista
__________
[1] Anulação de Deliberação Social e Deliberações Conexas, reimpressão, Livraria Almedina, 1998, pág. 521
[2] Cfr. entre outros, José Lebre de Freitas, A. Montalvão Machado e Rui Pinto, Código de Processo Civil Anotado, Vol. 2.º, 2ª ed., Coimbra Editora, pág. 402, Abílio Neto, Código de Processo Civil Anotado, 16ª ed, pág. 727.
[3] Cfr. entre outros, Ac. RLx de 19/06/2008, Processo n.º 4191/2008-8, Ac. RC de 26/01/2010, Processo n.º 1801/08.7TBCBR.C1, Ac. RLx de 14/12/2006, Processo n.º 9662/2006-6, Ac. RG de 02/07/2013, Processo n.º 295/12.7T6AVR.C1, consultáveis em www.dgsi.pt.
[4] Neste sentido, Pedro de Albuquerque e Diogo Costa Gonçalves, “O impedimento do exercício do direito de voto como proibição genérica de atuação em conflito”, publicado na Revista de Direita das Sociedades, Ano III (2011), n.º 3, págs. 682 e 683.
[5] No sentido de que o interesse do sócio deve ser direto e imediato pronuncia-se Jorge Manuel Coutinho de Abreu, Curso de Direito Comercial, Das Sociedades, Vol. II, 6ª Edição, Almedina, pág. 240, e o Ac. STJ de 12/06/1996, CJ (ASTJ), II, pág. 127.
[6] Como refere Jorge Pinto Furtado, in “O Voto nas Deliberações de Sociedades”, Estudos em Homenagem ao Prof. Doutor Raúl Ventura, Vol. III, Coimbra Editora, 2003, pág. 249, “o impedimento de voto fundado em conflito de interesses determina uma proibição frontal do seu exercício: não implica a simples suspensão do voto, mas constitui um limite intransponível ao seu uso e cômputo numa votação”.
[7] Neste sentido, Jorge Pinto Furtado, loc cit., pág. 268.
[8] Raúl Ventura, Sociedades por Quotas, Comentário ao Código das Sociedades Comerciais, Vol. II, Almedina, pág. 299.
[9] Raúl Ventura, Estudos Vários Sobre Sociedades Anónimas, Comentário ao Código das Sociedades Comerciais, Almedina, pág. 554.
[10] Neste sentido, de que basta um conflito potencial, pronunciam-se também os Autores já citados, Pedro de Albuquerque e Diogo Costa Gonçalves, ob. cit., pág. 680.
[11] Jorge Manuel Coutinho de Abreu e outros, Código das Sociedades Comerciais em Comentário, vol. VI, Almedina, pág.130.
[12] Cfr. artigo 42.º da contestação, nesta parte não contrariado pela A., na resposta de fls. 238 a 241, também apontando nesse sentido a cópia da certidão constante de fls. 166 a 168, que não foi impugnada.
[13] O sublinhado é da nossa responsabilidade.
[14] Raul Ventura, em anotação ao artigo 251.º do CSC, Sociedades por Quotas, Vol. II, já citado, pág. 293, parece também inclinar-se neste sentido, a propósito das sociedades por quotas, em que se levanta o mesmo problema. No entanto, quando configura uma das hipóteses da pessoa coletiva e do seu representante orgânico deterem, ambos, participações sociais na sociedade em que ocorre o processo deliberativo, escreve o seguinte:
“ – o interesse em conflito pertence pessoalmente ao sócio, que também é representante orgânico da pessoa coletiva; este não pode votar em representação voluntária da pessoa coletiva (que neste caso é em princípio possível, visto serem ambos sócios), mas poderá votar como representante orgânico da pessoa coletiva? Embora para isso seja necessário interpretar a frase do art. 251.º “nem em representação de outrem”, de modo a abranger tanto a representação voluntária como a representação orgânica, a resposta deverá ser afirmativa, visto nos dois casos ser o representante que exprime o voto”.
Salvo o devido respeito, que é muito, parece que, com estes pressupostos, a resposta devia ser negativa. Mas admitimos que seja lapso de interpretação da nossa parte.
[15] Cfr. a propósito desta prova, entre outros, Raul Ventura, na obra já citada, Sociedade por Quotas, (…), págs. 267 e 268.
Na jurisprudência, entre outros, Ac. RC de 06/11/2012, Processo n.º 281/08.1TBVNO.C1, consultável em www.dgsi.pt, bem como na doutrina aí citada.
[16] Jorge Manuel Coutinho de Abreu e outros, Código das Sociedades Comerciais em Comentário, vol. VI, Almedina, pág.134
[17] Solução que, para alguns, é obtida por via uma interpretação extensivo-teleológica do artigo 830.º, n.º1, Código Civil, de modo a ser este aplicável não somente às obrigações derivadas de contrato promessa de celebração do contrato prometido, mas também a outras obrigações de emitir declarações de vontade – Faz alusão a essa solução, por exemplo, o Ac. RP de 2830/15.0T8VNG.P1, consultável em www.dgsi.pt
[18] Num caso com algumas semelhanças, devido ao alerta de um dos sócios para a ilegalidade que estava a ser cometida, sintetizou-se assim, no sumário, o entendimento seguindo no Ac. RC de 10/02/2009, Processo n.º 9/08.6TBSCD.C1, consultável em www.dgsi.pt: “Perante uma deliberação negativa em que foi decisivo o voto de quem estava impedido de participar na votação, deve ser considerada como tomada a deliberação positiva contrária, correspondente ao número de votos validamente expressos, se nessa reunião o sócio sobre o qual recaía o impedimento foi advertido de que estava impedido de votar”.