SERVIDÃO DE PASSAGEM
EXTINÇÃO
DESNECESSIDADE
ÓNUS DA PROVA
Sumário

I – A desnecessidade da servidão traduz-se numa situação em que se conclui que o prédio dominante não precisa da servidão.
II – A lei (art.1569º, nº2, do C.Civil) exige que a desnecessidade da permanência da servidão deve ser aferida pelo momento da introdução da acção em juízo, mas, em princípio, a desnecessidade será superveniente em relação à constituição da servidão, decorrendo de alterações ocorridas no prédio dominante.
III – E sendo a desnecessidade aferida, em regra, pela situação existente no momento em que a ação é proposta (objetiva e actual), pode haver casos em que a desnecessidade depende da realização de obras.
IV – Nestes últimos casos, em que a solução alternativa passa pela realização de obras de acessibilidade ao prédio dominante, este facto concorre para o juízo de ponderação sobre a desnecessidade, e, como tal, deve ser concretamente alegado pelo requerente, não podendo ser diferido para momento posterior à efectuação das obras, porque é elemento constitutivo do direito.
V – Compete ao requerente da extinção o ónus da prova dos elementos indispensáveis ao juízo da desnecessidade e da proporcionalidade, nomeadamente quanto à realização de obras de acessibilidade no prédio dominante, por consubstanciarem factos constitutivos do direito.
VI – É que, não podendo o custo das obras deixar de ser da responsabilidade do titular do prédio serviente, por argumento de maioria de razão com o previsto para a mudança de servidão (cf. art.1568º do C.Civil), é ao titular do prédio serviente, requerente da extinção da servidão, que incumbe alegar [e provar] que a servidão de passagem é desnecessária e, dependendo essa desnecessidade da realização de obras, que das mesmas não resultará incómodo excessivo para o prédio dominante, bem como alegar que está disposto a suportar o respectivo custo.

Texto Integral













Acordam na 2ª Secção Cível do Tribunal da Relação de Coimbra[1]

                                                           *

1 – RELATÓRIO

A (…), e esposa M (…), intentaram contra C (…) , e esposa A (…), a presente ação declarativa de condenação, onde concluem pedindo pela procedência da ação e, em consequência:

a) Que os RR. sejam condenados a reconhecer que os AA. são donos e possuidores do prédio urbano composto por casa de habitação com rés do chão e 1.º andar, pátio e garagem anexos, sito no Lugar (...) , (...) , (...) , atualmente inscrito na respectiva matriz predial da União de Freguesias de (...) e (...) sob o artigo 704 e descrito na CRP de (...) sob o artigo 855 ( (...) );

b) Que os RR. sejam condenados a reconhecer a existência de uma servidão de passagem a pé e de carro, constituída por usucapião, a exercer pelo caminho descrito em 15.º a 24.º da petição inicial, a favor do prédio referido em a) e a onerar o prédio urbano composto por casa de habitação com dois pisos e pátio, sito no Lugar (...) , (...) , (...) , atualmente inscrito na respectiva matriz predial da União de Freguesias de (...) e (...) sob o artigo 686 e descrito na CRP de (...) sob o artigo 75 ( (...) ), cuja propriedade se encontra inscrita a favor dos RR.;

c) Que os RR. sejam condenados a absterem-se de praticar quaisquer actos que estorvem ou dificultem a passagem das pessoas e carros sobre o referido caminho e a retirarem os cadeados e tranca que colocaram no portão de entrada;

d) Que os RR. sejam condenados a pagar aos AA. a importância de 3.000 euros, a título de indemnização de danos não patrimoniais sofridos por aqueles;

e) Que os RR. sejam condenados no pagamento de sanção pecuniária compulsória no valor de 100 euros, por cada dia de atraso, e após respetivo trânsito em julgado, no cumprimento da sentença que vier a ser proferida.

Para tanto, alegam, em síntese, a propriedade do prédio urbano composto por casa de habitação com rés do chão e 1.º andar, pátio e garagem anexos, sito no Lugar (...) , (...) , (...) , atualmente inscrito na respectiva matriz predial da União de Freguesias de (...) e (...) sob o artigo 704 e descrito na CRP de (...) sob o artigo 855 ( (...) ) que adquiriram a D (…) e O (…), por escritura lavrada a 23.08.1978 e cuja propriedade se encontra inscrita a seu favor; mais alegam que, por si e antepossuidores, há mais de 20, 30 e 50 anos estão na posse do mesmo, depositando lenha, cereais e arados, guardando na garagem as viaturas, ocupando o primeiro andar com as mobílias, roupas e electrodomésticos, residindo nesse prédio dia e noite com os seus familiares sempre que se encontrem em (...) , atos praticados à vista de todos, ano após ano, sem interrupção ou oposição de quem quer que fosse, convictos de estarem a exercer direitos próprios e sem ofensa de direitos de terceiros, razão pela qual invocam o seu direito de propriedade adquirido, se mais não for, por via da usucapião; mais alegaram que os RR. são proprietários do prédio urbano composto por casa de habitação com dois pisos e pátio, sito no Lugar (...) , (...) , (...) , atualmente inscrito na respectiva matriz predial da União de Freguesias de (...) e (...) sob o artigo 686 e descrito na CRP de (...) sob o artigo 75 ( (...) ) e cuja propriedade se encontra inscrita a favor dos RR.; alegam igualmente que o acesso ao seu prédio sempre foi feito, a pé, com animais à rédea e com carros de bois, pelo prédio dos RR., e desde há mais de 37 anos, é assim feito com tractores e outras viaturas, por um caminho em terra batida, com cerca de três metros de largura, situada no limite sul do prédio dos RR., caminho que parte da rua no limite sul – nascente, no local onde, à presente data, existe um portão de ferro, e segue no sentido nascente – poente até ao enfiamento das entradas para a garagem e para casa de habitação do prédio dos AA., desembocando depois no prédio pertença de M (…); mais alegam que, desde há mais de 15, 20, 30 e 50 anos, por si e antepossuidores, passam pelo leito do referido caminho, sempre que se dirigiam a pé e de carro, ou seja, com tractores e outras viaturas, para o seu prédio, leito que pela passagem reiterada ficou duro e trilhado e com vestígios deixados pelas pegadas e pelas rodas dos carros, facilmente percetíveis, o que fizeram à vista de todos, sem interrupção ou oposição de quem quer que fosse e na convicção de estarem a exercer direito próprio e sem lesão de direitos de terceiros; mais alegaram que, há cerca de 7 a 8 anos, os RR. procederam à realização de obras de vedação do seu prédio e, nessa altura, colocaram um portão de chapa de ferro, com cerca de 3,70 metros de comprimento, no local onde, antes, existia a portaleira, tendo entregue aos AA. umas chaves; mais alegaram que, à data da prolação da decisão proferida no âmbito do processo 5/1991 – processo por via do qual os AA. pretenderam o reconhecimento da servidão de passagem pelos anteriores proprietários do prédio dos RR. – o tribunal considerou demonstrado, já então, que nos então últimos 12 anos, os RR. passavam no aludido caminho com viaturas, o que continuaram a fazer, desde então e até à presente data; alegaram ainda que, em Dezembro de 2015, os RR. colocaram cadeados no portão de acesso ao caminho, permitindo apenas o acesso a pé, tendo, em Fevereiro de 2016, mandado estacionar uma viatura no enfiamento do portão da entrada e no leito do caminho de forma a impedir a passagem; alegaram finalmente que, desde Janeiro de 2016, e em virtude da obstrução da passagem pelos RR., têm sofrido desgosto, sofrimento e tristeza, nervosismo e dificuldades em dormir, especialmente ao R. marido que necessitou de tomar ansiolíticos para dormir, arrelias e incómodos decorrentes das inúmeras viagens que necessitaram fazer para intentar a presente ação, tudo danos não patrimoniais cuja compensação quantificam em valor não inferior a 3.000 euros.

Concluem, assim, pela condenação dos RR. nos termos acima descritos.

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Tendo sido todos regularmente citados, a fls.59 e seguintes dos autos, vieram os RR. apresentar a sua contestação, impugnando, grosso modo, os factos invocados pelos AA. e alegando, em síntese, que possuem o prédio referido em b), por si e antepossuidores, há mais de 20, 30 ou 40 anos pública e pacificamente, que o seu prédio parte de sul com o prédio dos AA. e que ambas as partes não residem permanentemente nos respetivos prédio porquanto os AA. são emigrantes em França há mais de 20 anos e os RR. residem e trabalham em X (...) Portugal desde 1982, habitando o seu prédio alguns dias por ano; mais alegaram que, à data da aquisição do seu prédio, foram informados da existência de uma servidão de passagem a pé e com animais à rédea que onerava o seu prédio em benefício do prédio dos AA., sendo tal acesso feito apenas desse modo e não através de carros, tractores ou outros veículos, sendo que tal passagem, a ter lugar, foi feita à revelia deles RR.; mais alegaram que apenas entregaram as chaves do portão para passarem no caminho a pé e com animais à rédea, em conformidade com o determinado por decisão judicial no processo 5/1991; mais alegaram que, em meados de 2015, foram interpelados pelos AA., por carta datada de 11.08.2015, dando-lhes conta do direito de passar de carro, invocando o teor da decisão judicial referida, razão pela qual, por carta datada de 04.11.2015, eles RR. informaram os AA. de que tal direito apenas se circunscrevia à passagem a pé e com animais à rédea, posição que reiteraram por via de notificação judicial avulsa, interrompendo, assim, qualquer prazo de constituição de servidão.

Em sede reconvencional, e para o caso de se considerar a existência de servidão de passagem pretendida pelos AA., vieram os RR. alegar que o prédio dos AA. comunica, a nascente e sul, com a rua pública, deitando o logradouro nascente deste prédio para a via pública e através do qual pode ser garantida a passagem de veículos, sem onerar o prédio dos RR., através da realização de obra de baixo custo e sem qualquer inconveniente substancial já que o referido logradouro não tem qualquer uso, cultura ou árvores, e permite traçar uma passagem mais curta e mais direta dos veículos provenientes da via pública para o prédio dos AA., razão pela qual peticionam a extinção da servidão por desnecessidade, extinção que, com os mesmos fundamentos, e em qualquer caso, pretendem ver reconhecida relativamente à servidão de passagem a pé e com animais à rédea.

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A fls.75 e seguintes dos autos, vieram os AA. apresentar a sua réplica, reiterando tudo quanto alegado em sede de petição inicial, impugnando, no mais, e grosso modo, tudo quanto alegado em sede de reconvenção, designadamente, a existência de uma situação de desnecessidade da passagem para acesso ao prédio dos AA., alegando, além do mais, que, ainda que assim fosse, sempre se manteria a servidão de passagem de acesso ao prédio urbano inscrito na matriz sob o artigo 531 da União de freguesias de (...) e (...) , pertencente à herança indivisa deixada por óbito de Z (…)

Concluem nos termos da petição inicial e pela improcedência da reconvenção.

*

A fls. 81 e seguintes, vieram os RR. “responder” à réplica, nos termos ali melhor vertidos.

*

Foi realizada audiência prévia, tendo sido proferido despacho saneador e, nos termos do art.596.º n.º 1 do CPC, foi definido o objecto do litígio e foram fixados os temas de prova.

*

Realizou-se a audiência final, com observância do inerente formalismo legal, como se alcança das respectivas atas.

Na sentença, considerou-se, em suma, que face à factualidade apurada, importava concluir, sem que estivesse em causa o direito de propriedade sobre o prédio referido em 1) em favor dos AA., já no que concerne à existência de servidão de passagem de carro [pois que quanto à servidão de passagem a pé já se encontrava ela constituída por anterior sentença judicial], constituída por usucapião, a favor do prédio referido em 1) dos AA., e onerando o prédio dos RR., servidão essa exercida através de um caminho com cerca de 3 metros de largura que parte da via pública, seguindo em sentido nascente – poente e desembocando no prédio pertencente a M (...) – a resposta era negativa, decisivamente porque apenas ficara demonstrada a utilização pontual ou fortuita do caminho pelos AA., acrescendo não ter resultado demonstrado que tal atuação tivesse lugar em circunstâncias que revelassem a convicção dos AA. de que exerciam tal direito de serventia, termos em que, por não verificação dos pressupostos a tanto necessários, a pretensão dos AA. de ver reconhecida a existência da servidão de passagem de carro constituída por usucapião improcedia, o que igualmente sucedia quanto à pretensão de abstenção de prática pelos RR. de quaisquer atos que estorvassem o exercício de tal servidão e remoção das trancas [porque daquele anterior reconhecimento dependente], e bem assim que também improcedia o pedido indemnizatório formulado pelos AA., dada a não verificação dos pressupostos a tanto necessários [desde logo por não ter ficado demonstrado a existência de quaisquer danos]; já no que ao pedido reconvencional respeitava [tendo como objetivo quer a extinção da servidão de passagem de carro, caso fosse reconhecida pela presente lide a sua constituição, quer, e com base nos mesmos fundamentos, a extinção da servidão de passagem a pé e com animais à rédea, já judicialmente reconhecida], também ele improcedia, mormente por não ter ficado demonstrado que exista um atual e efectivo acesso, a pé ou com animais à rédea, alternativo relativamente ao acesso garantido com a servidão de passagem existente, donde, não era possível afirmar a desnecessidade da servidão de passagem existente, antes mantendo tal encargo predial a sua necessidade, o que tudo se traduziu no seguinte concreto “dispositivo”:

« DISPOSITIVO

Em face do exposto, julga-se a acção parcialmente procedente e, em consequência:

a) Condenam-se os RR. (…) a reconhecer que os AA. (…)  são exclusivos e legítimos possuidores e proprietários do prédio urbano composto por casa de habitação com rés do chão e 1.º andar, pátio e garagem anexos, sito no Lugar (...) , (...) , (...) , actualmente inscrito na respectiva matriz predial da União de Freguesias de (...) e (...) sob o artigo 704 e descrito na CRP de (...) sob o artigo 855 ( (...) );

b) No mais, absolvem-se os RR. (…)dos demais pedidos formulados;

c) Julga-se totalmente improcedente o pedido reconvencional formulado pelos RR. (…) e, em consequência, absolvem-se os AA. (…) do mesmo.

Custas por AA. e RR., em partes iguais (art.527.º n.º 1 e 2 CPC, art. 6.º n.º 1 do RCP, por referência à tabela I-A, anexa a este diploma)

Registe e notifique.

*

Após trânsito, compra o disposto no art.3.º n.º 1 alínea c) CRP, com certidão da presente decisão (art.53.º - A do mesmo diploma).»

                                                           *

            Inconformados com essa sentença, apresentaram os AA. recurso de apelação contra a mesma, terminando as suas alegações com as seguintes conclusões:

«(…)

            Contra-alegaram os RR., extraindo as seguintes conclusões das alegações que apresentaram:

(…)

                                                                      *

Os RR., por sua vez, também deduziram recurso contra a sentença [«na parte em que julgou totalmente improcedente o seu pedido reconvencional»], termos em que concluíram as suas alegações nos seguintes termos:

(…)

Também contra-alegaram os AA. face a este segundo recurso, relativamente ao que extraíram as seguintes conclusões:

(…)

            Colhidos os vistos e nada obstando ao conhecimento do objeto dos recursos, cumpre apreciar e decidir.

                                                                       *

            2 – QUESTÕES A DECIDIR, tendo em conta o objeto do recurso delimitado pelos recorrentes nas conclusões das respetivas alegações (arts. 635º, nº4, 636º, nº2 e 639º, ambos do n.C.P.Civil), por ordem lógica e sem prejuízo do conhecimento de questões de conhecimento oficioso (cf. art. 608º, nº2, “in fine” do mesmo n.C.P.Civil), face ao que é possível detetar o seguinte:

a) apelação dos AA.

- rejeição deste recurso por incumprimento dos ónus estabelecidos no art. 640º do n.C.P.Civil (como questão prévia suscitada nas contra-alegações a este recurso);

            - incorreta valoração da prova produzida, que levou ao incorreto julgamento da matéria de facto, a saber, da constante das alíneas a), b), c), d), i), j) e k) da factualidade não provada [que relativamente à alínea a), a factualidade da mesma devia ser considerada totalmente provada; que relativamente à alínea b), a resposta devia ser «provado apenas que desde há mais 15, 20 e 30 anos os AA. passavam no caminho referido em 14. com viaturas»; que relativamente à alínea c), a resposta devia ser «provado apenas que os AA. passaram à vista de todos incluindo os Réus, apenas com oposição em 5/11/90 de L (…) e mulher, e com a oposição dos Réus a partir de Dezembro de 2015»; que relativamente à alínea d), a factualidade da mesma devia ser considerada totalmente provada; que relativamente às alíneas i), j) e K), a factualidade das mesmas devia ser considerada totalmente provada];

- incorreto julgamento de direito [no que respeita à improcedência do pedido de reconhecimento do direito de servidão de passagem com carros, nomeadamente porque foi desconsiderada a presunção do animus da posse por parte dos AA. (cf. o nº2 do art. 1252º do C.Civil), pelo que incumbia aos Réus demonstrarem a inexistência por parte dos AA. de convicção de que exerciam tal direito de serventia].

b) apelação dos RR.

- incorreto julgamento de direito da decisão recorrida na parte em que julgou totalmente improcedente o pedido reconvencional deduzido [pois que nem sempre é suposto para se reconhecer a desnecessidade, que a servidão deixe de ter qualquer utilidade/proveito (absoluta inutilidade), acrescendo que, no tocante ao meio alternativo à servidão existente, se quem pretender fazer valer este direito, deverá alegar e realizar as obras necessárias à construção desse meio alternativo, ou a sua disponibilidade para proceder nos autos ao depósito da quantia necessária à realização dessas obras, sucedia que «Os RR disponibilizaram-se para pagar tais custos com a abertura deste novo acesso, o que farão logo que notificados para esse efeito»].

                                                                       *

3 – QUESTÃO PRÉVIA

Cabe apreciar a invocada rejeição do recurso por incumprimento dos ónus estabelecidos no art. 640º do n.C.P.Civil.

Sustentam os RR./recorridos, em síntese, para fundamentar esta sua invocação nas contra-alegações à apelação deduzida pelos AA., que «estes não especificaram nenhuma passagem, por referência ao suporte digital em que foram gravados, tanto nas alegações como nas conclusões, embora naquela tenha feito algumas transcrições de passagens desses depoimentos».

Que dizer?

Salvo o devido respeito, não assiste qualquer razão, nesta parte, aos RR./recorridos.

É certo que os AA./recorrentes não juntaram [no final ou em anexo às suas alegações recursivas], a transcrição integral da gravação áudio dos depoimentos e declarações de parte que tiveram lugar na audiência, contudo, fundamentaram as suas alegações recursivas propriamente ditas com inúmeras transcrições de depoimentos.

Ora se assim é, cumpriram eles o determinante e imprescindível para efeitos de se poder validar a sua impugnação à decisão sobre a matéria de facto, em termos de cumprimentos dos requisitos a tanto necessários, à luz do art. 640º do n.C.P.Civil, isto apesar de as ditas transcrições não se mostrarem devidamente especificadas quanto à sua concreta localização na gravação [com indicação da respectiva duração, balizada pelo início e fim de cada específico trecho].

Neste sentido aponta a melhor jurisprudência sobre esta temática.

Senão vejamos:

«II. Na verificação do cumprimento dos ónus de impugnação previstos no citado artigo 640º, os aspetos de ordem formal devem ser modelados em função dos princípios da proporcionalidade e da razoabilidade.

III. Nesta conformidade, enquanto a falta de especificação dos requisitos enunciados no nº1, alíneas a), b) e c) do referido artigo 640º implica a imediata rejeição do recurso na parte infirmada, já, quanto à falta ou imprecisão da indicação das passagens da gravação dos depoimentos a que alude o nº 2, alínea a) do mesmo artigo, tal sanção só se justifica nos casos em que essa omissão ou inexatidão dificulte, gravemente, o exercício do contraditório pela parte contrária e/ou o exame pelo tribunal de recurso.

IV. Tendo os recorrentes indicado, nas suas alegações de recurso, apenas o início e o termo de cada um dos depoimentos das testemunhas e das declarações de parte, sem acompanhar essa indicação de qualquer transcrição dos excertos das declarações e depoimentos tidos pelos recorrentes como relevantes para o julgamento do objeto do recurso, impõe-se concluir que os recorrentes não cumpriram o núcleo essencial do ónus de indicação das passagens da gravação tidas por relevantes, nos termos prescritos nº art. 640º, nº 2, al. a) do CPC, na medida em que, nestas circunstâncias, a falta de indicação das passagens concretas de tais excertos torna extramente difícil, quer a respetiva localização por parte do Tribunal da Relação, quer o exercício do contraditório pelos recorridos.».[2]

Termos em que, sem necessidade de maiores considerações, improcede o suscitado nesta questão prévia.

                                                           *

4 – FUNDAMENTAÇÃO DE FACTO

4.1 – Como ponto de partida, e tendo em vista o conhecimento dos factos, cumpre começar desde logo por enunciar o elenco factual que foi considerado fixado/provado pelo tribunal a quo, ao que se seguirá o elenco dos factos que o mesmo tribunal considerou/decidiu que “não se provou”, sem olvidar que tal enunciação terá um carácter “provisório”, na medida em que o recurso tem em vista a alteração parcial dessa factualidade.   

            Tendo presente esta circunstância, consignou-se o seguinte na 1ª instância em termos de factos provados:

«1. Pela apresentação n.º 1787 de 11.03.2013, a propriedade do prédio urbano composto por casa de habitação com rés do chão e 1.º andar, pátio e garagem anexos, sito no Lugar (...) , (...) , (...) , actualmente inscrito na respectiva matriz predial da União de Freguesias de (...) e (...) sob o artigo 704 e descrito na CRP de (...) sob o artigo 855 ( (...) ), encontra-se registada a favor dos AA.

2. O prédio referido em 1. foi adquirido pelos AA. a D (…) e esposa O (…)por escritura pública de compra e venda lavrada em 23.08.1978.

3. Os AA., por si e antepossuidores, encontram-se na posse do prédio referido em 1. há mais de 20, 30, 50 anos,

4. Tendo, após a sua aquisição, procedido à reconstrução e ampliação da casa, arrancado sobrados de madeira e construído, no seu lugar, as lajes em betão apoiadas sobre pilares e vigas de cimento e ferro e montaram uma nova cobertura para o telhado,

5. Construíram uma garagem anexa à casa e sobre aquela edificaram um novo andar de habitação.

6. Durante mais de 20, 30 e 50 anos, os AA. e seus antepossuidores, por si ou por intermédio de outrem, ocuparam o prédio como coisa sua, depositando lenha na loja do rés do chão, cereais e arados e ferramentas, guardando na garagem as viaturas, ocupando o primeiro andar com mobílias, roupas e electrodomésticos, residindo nesse prédio dia e noite, com os seus familiares, sempre que se encontram em (...) ,

7. Tudo à vista e com conhecimento de todos na localidade, ano após anoa, sem interrupção nem oposição de quem quer que fosse e convictos de estarem a exercer direito próprio e sem lesão de direito de terceiros.

8. Pela apresentação n.º 2 de 12.10.2000, a propriedade o prédio urbano composto por casa de habitação com dois pisos e pátio, sito no Lugar (...) , (...) , (...) , actualmente inscrito na respectiva matriz predial da União de Freguesias de (...) e (...) sob o artigo 686 e descrito na CRP de (...) sob o artigo 75 ( (...) ) encontra-se registada a favor dos RR.

9. O prédio referido em 8. foi adquirido pelos RR. a L (…) e esposa M (…) por escritura de compra e venda celebrada a 18.08.2000.

10. Que, por seu lado, o havia adquirido aos herdeiros de L (…), M (…) e A (…)) por escritura de compra e venda lavrada em 27.12.1994.

11. O prédio referido em 8. confronta com o prédio referido em 1. pelo seu lado sul,

12. De poente e norte com M (…).

13. Ambos os prédios, pelo lado nascente, confrontam com a via pública.

14. Sobre o prédio referido em 8., e em benefício do prédio referido em 1., encontra-se constituída, por usucapião, uma servidão de passagem a pé e de animais à rédea, exercida através de um caminho com cerca de 3 metros de largura que parte da via pública, segue em sentido nascente – poente e desemboca no prédio pertencente a M (…) e cujo leito se apresenta demarcado, antes de terra batida calcada, e, à presente data, com gravilha.

15. Tal servidão foi judicialmente reconhecida através de sentença datada de 30.04.1992, transitada em 05.03.1993, proferida no âmbito do processo 5/1991 que correu os seus termos no (ora extinto) Tribunal Judicial da Comarca de Moimenta da Beira.

16. O referido processo 5/1991 foi instaurado, em 30.01.1991, pelos aqui AA. contra L (…) e esposa, M (…), e no qual aqueles peticionaram, além do mais, a condenação dos (ali) RR. no reconhecimento de que se encontrava constituída, por usucapião, uma servidão de passagem, não apenas com o conteúdo descrito em 14., mas também com passagem de carro ou tractor.

17. Tal pedido foi julgado improcedente.

18. No âmbito da sentença referida em 15., e para o que interessa ao caso vertente, foram dados como provados, além do mais, os seguintes factos:

2.7. Há cerca de quatro anos, os AA. construíram uma garagem anexa à casa aludida em 2.7.

2.18. No limite sul do prédio aludido em 2.14. existe um caminho com cerca de 3 metros de largura que parte da estrada, segue em sentido nascente – poente e desemboca no prédio pertencente a M (…)

2.19. Tal caminho parte da estrada, no limite sul – nascente do prédio aludido em 2.14., onde está uma portaleira, segue junto à extrema do lado sul deste prédio até ao enfiamento da entrada para a loja aludida em 2.1. e para a garagem aludida em 2.7.

2.20. Desde há mais de 20 anos que os anteriores donos da casa aludida em 2.1. passavam no aludido caminho a pé e com animais à rédea quando se dirigiam para o rés do chão dessa casa.

2.21. Desde há 15 – 16 anos que os anteriores donos dessa casa continuaram a passar pelo mesmo caminho quando se dirigiam também para o primeiro andar.

2.22. Nos últimos 12 anos, os AA. também passavam no aludido caminho com viaturas para a casa aludida em 2.1.”

19. Há cerca de 7 ou 8 anos, os RR. fizeram obras de vedação do seu prédio e, nessa altura, colocaram um portão em chapa de ferro, com cerca de 3,70 metros de comprimento, a abrir para dentro.

20. Nessa altura, os RR. entregaram uma chave do portão referido em 19. aos AA.

21. Desde as circunstâncias descritas em 10., os AA., nos períodos em que se encontravam em (...) , passaram com viaturas no caminho referido em 14. para aceder ao seu prédio,

22. Até que, em Dezembro de 2015, os RR. alteraram o portão referido, colocaram cadeados e uma tranca em ferro,

23. Permitindo aos AA. o acesso apenas através de uma parte do portão que apenas possibilita a passagem a pé.

24. Em Fevereiro de 2016, os RR. deixaram estacionada uma viatura no leito do caminho referido em 14., impedindo os AA. de acederem, pelo respectivo leito, com as suas viaturas.

25. Os AA. estão emigrados em França há mais de 20 anos,

26. Regressando ao prédio referido em 1. nas quadras festivas e por curtos períodos de tempo.

27. Os RR. residem em X (...) Portugal desde 1982,

28. Passando alguns dias por ano no prédio referido em 8.

29. Nos 2 – 3 anos que se seguiram ao Verão de 2009, os RR. não se deslocaram ao prédio referido em 8.

30. O A. e M (…), através do seu mandatário, enviaram aos RR. carta datada de 11.08.2015 e da qual consta, entre o mais, o seguinte: “Por sentença datada proferida na acção com processo n.º 5/1991, que correu os seus termos pelo Tribunal Judicial da Comarca de Moimenta da Beira, foi reconhecida a existência de uma servidão de passagem, de carro e a pé, constituída por usucapião, que onera o prédio urbano pertencente actualmente a V.Exa. em benefício dos prédios urbanos propriedade dos meus constituintes. (…) Sucede que ontem desloquei-me a (...) e pude constatar no local que V. Exa. tinha a sua viatura estacionada no leito do referido caminho de servidão impedindo que o mesmo fosse utilizado para passagem de carro para acesso ao prédio do referido M (…). Assim deve V.Exa. retirar a viatura e manter o leito do caminho da passagem desobstruído em toda a sua extensão pois, de contrário, teremos de mover acção executiva contra V.Exa. para cumprimento da citada sentença judicial.”

31. Por carta datada de 04.11.2015, os RR. responderam aos AA. afirmando que a sentença proferida no âmbito do processo 5/1991 apenas reconheceu a existência de uma servidão de passagem a pé e com animais à rédea e, entre o mais, o seguinte: “Assim, informo V.Exa. que o conteúdo da sua carta encontra-se assente em pressupostos errados. Como tal irei proceder à reparação do portão de entrada, deixando uma passagem com um metro de largura de forma a permitir a passagem de pessoas a pé e com animais à rédea. (…)”.

32. No âmbito do processo 16/16.5T8MBR, os RR. requereram a notificação judicial avulsa dos AA. Por via da notificação judicial ocorrida no âmbito do processo referido em 32., os RR. deram a conhecer aos AA. que não tinham direito à passagem no seu prédio com carro.

33. Por via da notificação judicial ocorrida no âmbito do processo referido em 32., os RR. deram a conhecer aos AA., a 28.01.2016, que não tinham direito à passagem no seu prédio com carro.

34. O logradouro nascente do prédio referido em 1., delimitado por um muro em pedra, deita para a via pública, e nele inexistem culturas ou árvores.

35. É possível assegurar o acesso, com carros, ao prédio referido em 1., efectuando um desaterro com máquina retroescavadora no local da abertura do caminho com largura de 3 metros,

36. Construindo um muro de suporte do terreno do caminho no limite sul do leito do mesmo,

37. Efectuando o corte do portão e da grade de ferro actualmente existentes no limite norte do logradouro do prédio referido em 1. por onde é feito o acesso a pé daquela casa com o respectivo logradouro,

38. Construindo o pavimento do leito do caminho com três metros de largura,

39. Montando um portão em chapa de ferro, na entrada do caminho, a deitar para a via pública,

40. Obras cujo valor total ascende ao montante de 1.324,37 euros.

41. O caminho descrito em 34. a 38., para além da passagem a pé e com animais à rédea, permite o acesso de veículos de categoria B à garagem do prédio referido em 1., descrevendo a manobra de entrada de frente, e a de saída de marcha-atrás, sem invadir o prédio referido em 8.»

                                                                       ¨¨

E que se consignou o seguinte em termos de “factos não provados”:

«a) O acesso da rua ao prédio dos AA., com tractores e outras viaturas, é, desde há mais de 37 anos, feito através do caminho referido em 14.

b) Desde há mais de 15, 20, 30 e 50 anos que os AA. e seus antepossuidores passavam no caminho referido em 14. com tractores e outras viaturas,

c) À vista de todos e sem oposição de quem quer que fosse, incluindo os RR.,

d) Convictos de exercerem direito próprio e sem lesão de direitos de terceiros.

e) Nas circunstâncias descritas em 24., os RR. mandaram estacionar uma viatura, pertencente a um seu familiar, tendo ficado demonstrado apenas o ali vertido.

f) Por força da situação descrita em 24., os AA. têm andado muito nervosos, com dificuldades em adormecer,

g) O A. marido passou a tomar ansiolíticos e calmantes para conseguir descansar e adormecer,

h) E sofreram cansaço, arrelias e incómodos decorrentes da necessidade de assegurar deslocações de França para Portugal e efectuar despesas com transportes e diligências necessárias para intentar a presente acção.

i) Nas circunstâncias de tempo descritas em 21. e 22., a passagem dos AA. com veículos ocorreu à vista de todos, designadamente, de L (…) e esposa M (…) e, depois, dos RR.,

j) E sem oposição destes.

k) Nas circunstâncias descritas em 21. e 22., os AA. utilizaram o caminho descrito em 14. para a com veículos de forma contínua e ininterrupta sempre na convicção de exercerem direito de servidão que onera o prédio referido em 8.»

                                                                       *

            5.2 – Os AA./recorrentes invocam o erro na decisão da matéria de facto, que  levou ao incorreto julgamento da matéria de facto, a saber, da constante das alíneas a), b), c), d), i), j) e k) da factualidade não provada [que relativamente à alínea a), a factualidade da mesma devia ser considerada totalmente provada; que relativamente à alínea b), a resposta devia ser «provado apenas que desde há mais 15, 20 e 30 anos os AA. passavam no caminho referido em 14. com viaturas»; que relativamente à alínea c), a resposta devia ser «provado apenas que os AA. passaram à vista de todos incluindo os Réus, apenas com oposição em 5/11/90 de L (…) e mulher, e com a oposição dos Réus a partir de Dezembro de 2015»; que relativamente à alínea d), a factualidade da mesma devia ser considerada totalmente provada; que relativamente às alíneas i), j) e K), a factualidade das mesmas devia ser considerada totalmente provada]

O primeiro grupo deste elenco diz respeito aos factos dados como “não provados” sob as alíneas a), b), c) e d).

Relembremos, antes de mais, o seu teor literal:

«a) O acesso da rua ao prédio dos AA., com tractores e outras viaturas, é, desde há mais de 37 anos, feito através do caminho referido em 14.»

«b) Desde há mais de 15, 20, 30 e 50 anos que os AA. e seus antepossuidores passavam no caminho referido em 14. com tractores e outras viaturas.»

«c) À vista de todos e sem oposição de quem quer que fosse, incluindo os RR..»

«d) Convictos de exercerem direito próprio e sem lesão de direitos de terceiros.»

Como é bom de ver, dizem respeito estes pontos de facto ao invocado acesso dos AA., de carro, desde a rua pública até à casa destes, passando pelo caminho do prédio dos RR., há mais de 30 anos, publica e pacificamente na convicção de que exerciam um direito próprio sem lesar direitos de terceiros.

Impondo-se fazer a análise e decisão correspondente com o necessário detalhe e pormenor, vejamos ponto por ponto a situação, sem prejuízo da sua análise conjunta, se disso for caso.

Quanto à factualidade constante da alínea a), consideram os AA./recorrentes que a mesma devia ser considerada totalmente provada e quanto à da alínea b), que a resposta devia ser «provado apenas que desde há mais 15, 20 e 30 anos os AA. passavam no caminho referido em 14. com viaturas».

De referir que estamos a fazer a apreciação conjunta destas duas alíneas, na medida em que se reportam ao mesmo trecho da vida real [passagem com tractores e viaturas, nomeadamente por aquele ser o acesso], com a variação praticamente circunscrita ao período temporal em causa numa e noutra, a saber, de mais de 37 anos nessa passagem [alínea a)] e de mais de 15, 20, 30 e 50 anos nessa passagem [alínea b)].

Em apoio da resposta pretendida, os AA./recorrentes apresentam a transcrição de parte dos depoimentos das testemunhas (…) sustentando que na motivação da sua decisão, a Exma. Juíza a quo não fez alusão aos depoimentos destas testemunhas.

Que dizer?

Desde logo, que não é verdade que os depoimentos em causa tenham sido olvidados na apreciação e valoração da prova testemunhal constante da sentença recorrida: atente-se que depois de na “motivação” em causa se terem elencado todos os depoimentos produzidos na audiência, foram apresentadas as razões da maior ou menor credibilidade de vários dos depoimentos, vincando que «o sentido do depoimento das testemunhas arroladas por uma parte e outra, na sua maioria, é essencialmente dissonante, sendo difícil apontar pontos de contacto das versões apresentadas e que permitam ao tribunal aferir da credibilidade das mesmas. Não obstante, e constatadas as relações familiares ou de proximidade vivencial das testemunhas com as partes, o tribunal valorou essencialmente os depoimentos que, tendo em conta tais aspectos, demonstraram mais equidistância e um discurso menos apaixonado do que o das partes aquando da prestação dos depoimentos de parte», acabando por particularizar tal asserção relativamente às testemunhas (…)pela seguinte forma:«a testemunha (…) num discurso que se pautou mais por ilações do que pela reprodução de factos que objectivamente reportasse (iniciando as suas respostas constantemente com a expressão “com certeza que..” deixando a dúvida de se aquilo que acabara de referir era do seu conhecimento directo ou ilação) de forma renitente acaba por referir a existência de “problemas” com L (…)ainda que claramente os desvalorize, em discurso ostensivamente alinhado com os interesses dos AA. e “depurando” da sua versão de que a passagem pelos AA. sempre se fez com as viaturas o facto dos moldes da passagem nunca terem sido pacíficos como atesta a existência do processo judicial; da mesma forma (inverosímil, por incompatível com o quadro de litigiosidade vindo de referir), a testemunha J (…), cujo depoimento ficou marcado pela constante repetição das perguntas a instâncias dos RR, numa clara forma de ganhar tempo para “afeiçoar” às respostas aos interesses das partes relativamente às quais é mais próximo, os AA., retirando indelevelmente credibilidade ao seu discurso, refere de forma inusitada que a “passagem sempre foi pacífica” (!)»

            Mas será que se pode efetivamente considerar que as testemunhas invocadas pelos AA./recorrentes fizeram uma prova concludente no sentido de se dever concluir pela afirmativa, tal como pretendida, relativamente à factualidade constante das duas referidas alíneas [a) e b)] ?

Parece-nos bem que não, pelo menos no que ao seu teor integral concerne.

Atente-se que o que está verdadeiramente em causa na dita alínea a), é que aquele fosse o acesso – com o sentido de único acesso! – à casa dos AA./recorrentes, sendo consequentemente por ali que se fazia a passagem.

Por outro lado, o aspeto dessa passagem se fazer “há mais de 37 anos” está relacionado com o que já havia sido apurado na anterior ação que correu termos, a saber, proferida no âmbito do processo 5/1991 que correu os seus termos no (ora extinto) Tribunal Judicial da Comarca de Moimenta da Beira, através de sentença datada de 30.04.1992 (cf. facto “provado” sob “15.”), isto é, na medida em que nessa ação ficou provado que «Nos últimos 12 anos, os AA. também passavam no aludido caminho com viaturas para a casa aludida em 2.1.»[cf. facto “provado” sob18./2.22.”],  os AA./recorrentes pretendiam estar provada uma passagem englobando todo o período temporal desde 1978/1979 ao presente [portanto desse a aquisição do prédio pelos mesmos, ocorrida em 1978, cf. facto “provado” sob “2.”], donde um total de 37 anos!

Ora se assim é, mais coerente e lógico seria a alegação de uma passagem “pelo menos nos últimos 37 anos”, tanto mais que, tanto quanto nos é dado perceber, não foi feita qualquer prova relativamente à eventual passagem feita pelos anteproprietários em causa [(…)], como não foi feita em termos de passagem efetiva e concreta por “tractores”…

Como quer que seja, o aspeto decisivo e determinante aqui em causa, isto é, aquele ser o acesso – com o sentido de único acesso! – não resultou de forma consistente apurado nos autos.

É certo que algumas das testemunhas invocadas pelos AA./recorrentes aludiram de forma generalista e mais ou menos convicta a uma tal passagem, em alguns segmentos dos seus depoimentos, mas a consistência desses depoimentos nem resiste a uma apreciação mais aprofundada.

Vejamos.

A testemunha J (…), começou efectivamente por aludir a:

«Adv. dos AA. : Tem alguma ideia de há quantos anos é que este senhor terá comprado o palhal ao D (...) , mais ou menos ?

Testemunha: Quando o comprou não sei . Ele começou a construir …entre 75, 76 para aí. Sim, porque foi quando eu comecei a minha.

Adv. AA. : Sabe como é que este senhor levava lá os materiais para casa dele?

Testemunha: Era por esse caminho.

Adv.AA : Por esse qual?

Testemunha: Por onde tem passado.»

Sucede que quando à pergunta do Exmo. Mandatário dos AA. no sentido de «Conhece lá mais algum sítio para ele entrar para a garagem dele?», respondeu «A entrada dele era por ali», em bom rigor contornou a pergunta ou respondeu-lhe de forma enviesada, acrescendo que, conforme bem sublinharam os RR./recorridos nas suas contra-alegações, essa mesma testemunha igualmente esclareceu ao Minuto 59:40 a 59:50 da respetiva gravação áudio do seu depoimento, o seguinte:

«Advogado dos RR.: Como é que ele vai para casa? Como é que o Sr. (…)s entra para casa?

Testemunha (minuto 59:50): Por cima… (minuto 59:54) Passa por cima, por trás da casa dele.»

Ademais, temos que igualmente esclareceu o seguinte ao subsequente minuto 1.25:31 a 1.25:40:

«Drª Juiz (minuto 1:25:31): Então antes deste volvo, e uma vez que não se lembra do Sr. A (...) ter outro carro que não este, então a única passagem que era feita pelo Sr. A (...) era a pé?

Testemunha (minuta 1:25:40): Era»

Sendo certo que esta mesma testemunha reconheceu um pouco antes (minuto 1.21) que nesse período anterior havia lá umas pedras naquela passagem que impossibilitavam a passagem de veículo automóvel, assim como havia reconhecido (ao minuto 1.25) que o dito veículo de marca “Volvo” foi detido pelo Sr. A(…) só após o ano de 1997…

Aliás, igualmente reconheceu (minuto 1.28:40), que depois de o Sr(…) ter começado a reconstruir a casa, “começou a guerra” entre eles!

Ora se assim é, relativamente a este depoimento, cremos que está encontrada a justificação para a conclusão de ele ter sido pouco consistente e concludente no particular duma passagem com viatura automóvel no período temporal mais alargado em causa, ou de aquele ser o único acesso…

Acresce que quanto a este último ponto – o do único acesso! – existiu prova exuberante [rectius, contraprova] por parte dos RR. de que assim não era: veja-se o depoimento das testemunhas (…) [o qual aludiu não só a uma passagem do A. “por cima” (minuto 08:40 da restiva gravação audio), como a o A. ter passado com os materiais para a obra pelos quintais dele próprio (minuto 24:35 a 25:50)], M (…) [a qual relatou que afirma que “dantes”, em 1985, a passagem para os palhais (antes das casas dos AA e RR serem construídas) era feita por um carreiro, e que não existia passagem para carros (particularmente ao minuto 07:00 a 07:40), ilustrando o seu depoimento com uma fotografia que consta dos autos]; L (…); M (…) [esposa da anterior testemunha e anteproprietária como ela,  a qual especificamente atestou que o A.  passava com as malas à mão pelo largo em cima, largo de S. Y (...) (assim no minuto 12:37 a 12:55)].

De referir que estas testemunhas se mostraram, em nosso entender, mais isentas e objetivas nos seus depoimentos.

O que serve, desde logo, para dizer que os meios de prova invocados em sede recursiva pelos AA./recorrentes não foram omitidos ou ignorados, antes foram referenciados e tidos em conta, ainda que para serem desatendidos ou desvalorizados – como o foram pela sentença recorrida!

Ademais, será sempre em função da concreta “motivação” constante da sentença em recurso que a apreciação dos fundamentos recursivos neste particular terá que ser operada.

Nesta linha de entendimento, sempre foi sublinhado que «A admissibilidade da respectiva alteração por parte do Tribunal da Relação, mesmo quando exista prova gravada, funcionará assim, apenas, nos casos para os quais não exista qualquer sustentabilidade face à compatibilidade da resposta com a respectiva fundamentação.»[3]

Assim, se o julgador de 1ª instância tiver entendido valorar diferentemente dos ora Recorrentes tais depoimentos, não pode nem deve a Relação pôr em causa, de ânimo leve, a convicção daquele, livremente formada, tanto mais que dispôs de outros mecanismos de ponderação da prova global que este tribunal ad quem não detém na presente sede (v.g. a inquirição presencial das testemunhas – os princípios da imediação e oralidade).[4]

Aliás, em consonância com este entendimento se mostra a circunstância de se manter no atual art. 640º, nº1, al.b) do n.C.P.Civil o dever (melhor, ónus) para o recorrente de concretizar quais os pontos de facto que considera incorretamente julgados e de indicar os meios probatórios, constantes do processo ou do registo ou gravação nele realizada, que impunham decisão diversa, donde ter ele que ser conjugado com o artº 607, nº5 do mesmo n.C.P.Civil – que atribui ao tribunal o poder de apreciar livremente as provas, decidindo os juízes segundo a sua prudente convicção acerca de cada facto – pelo que, dos meios de prova concretamente indicados como fundamento da crítica ao julgamento da matéria de facto deve resultar claramente uma decisão diversa, sendo por essa razão que a lei utiliza o verbo “impor”, com um sentido diverso de, por exemplo, “permitir”.

E, sobretudo, porque importa não olvidar, como já doutamente foi a este propósito salientado, que o recorrente ao enunciar os concretos meios de prova que devem conduzir a uma decisão diversa, «deve fundar tal pretensão numa análise (crítica) dos meios de prova, não bastando reproduzir um ou outro segmento descontextualizado dos depoimentos. Exige-se, pois, o confronto desses elementos com os restantes que serviram de suporte para a formulação da convicção do Tribunal de 1ª instância (e que ficaram expressos na decisão), com recurso, se necessário, aos restantes meios probatórios, v.g., documentos, relatórios periciais, etc., apontando as eventuais disparidades e contradições que infirmem a decisão impugnada e é com esses elementos que a parte contrária deverá ser confrontada, a fim de exercer o contraditório, no âmbito do qual poderá proceder à indicação dos meios de prova que, em seu entender, refutem as conclusões do recorrente», donde, neste contexto, ser compreensível que se exija da parte do recorrente a explicitação da sua discordância fundada nos concretos meios probatórios ou pontos de facto que considera incorrectamente julgados, «ónus que não se compadece com a mera alusão a depoimentos parcelares e sincopados, sem indicação concreta das insuficiências, discrepâncias ou deficiências de apreciação da prova produzida, em confronto com o resultado que pelo Tribunal foi declarado», face ao que, nesta perspectiva, «não cumprem as exigências legais de especificação a mera indicação, sem mais de um determinado meio de prova (salvo casos excepcionais em que o mesmo deixe dúvidas quanto ao desacerto da decisão proferida pela 1ª instância), e também se revela insuficiente no que respeita à prova testemunhal, o extracto de uma simples declaração da testemunha, sem correspondência com o sentido global do depoimento produzido de tal modo que não permita consolidar uma determinada convicção acerca de matéria controvertida.»[5].

Assim, na medida em que não existe prova testemunhal/pessoal ou documental  concludente, que sustente a reclamada alteração da redacção dada aos aludidos pontos de facto constantes das alíneas a) e b), improcede inapelavelmente essa pretensão.

Sem embargo do vindo de dizer, e tendo presente que uma passagem com viaturas por aquele local ajuizado, mais ou menos pontual e esporádica, teve efetivamente lugar por parte dos AA., como, aliás decorre do que já consta dado como “provado” sob “21.”, a saber, que «Desde as circunstâncias descritas em 10., os AA., nos períodos em que se encontravam em (...) , passaram com viaturas no caminho referido em 14. para aceder ao seu prédio», até para evitar uma contradição nesse particular, impõe-se retirar da alínea b) em referência a alusão a tal circunstância, cujo teor, no demais, é em grande medida repetição do já constante da precedente alínea alínea a). 

Pelo que, operando uma reapreciação da prova feita, determina-se tão-somente a eliminação da parte final do constante da alínea b) dos factos  “não provados” (cf. «e outras viaturas»), donde passar a figurar a dita alínea pela seguinte forma:

«b) Desde há mais de 15, 20, 30 e 50 anos que os AA. e seus antepossuidores passavam no caminho referido em 14. com tractores.»

                                                           ¨¨

Vejamos agora das subsequentes alíneas c) e d) dos factos “não provados”.

De referir que a redacção proposta pelos AA./recorrentes para a alínea c), a saber, «provado apenas que os AA. passaram à vista de todos incluindo os Réus, apenas com oposição em 5/11/90 de L (…) e mulher, e com a oposição dos Réus a partir de Dezembro de 2015», partindo da afirmação de princípio do que nele está nuclearmente em causa – a passagem pelos AA. à vista de todos, incluindo os RR. – ressalva os dados de facto incontornáveis face ao demais já constante dos autos, mais concretamente, no que concerne aos anteproprietários L (…) a e mulher, o teor da sentença de fls. 21 – DOC 12 junto à p.i – extraída do Processo nº 5/1991, e, no que concerne aos ora RR.., o que consta igualmente do facto “provado” “22.” [alusivo à data em que os Réus alteraram o portão da entrada].

Mas será que se pode efetivamente afirmar, face à prova produzida, que existiu uma passagem pelos AA., pelo dito caminho, à frente de todos os sucessivos anteproprietários do prédio em causa – L (…) e mulher, L (…) e mulher e RR., por esta ordem temporal – sem oposição de qualquer deles, com a exceção das duas situações melhor descritas na redacção proposta?

Salvo o devido respeito, não assiste qualquer razão aos AA./recorrentes nesta parte.

É que, a prova produzida, devidamente interpretada e concatenada, não suporta de todo esta pretensão, mormente face à contraprova feita pelos RR..

Sendo certo, quanto a nós, que decisivo para uma tal asserção é o próprio teor dos depoimentos dos anteproprietários L (…) e esposa, M (…), no que aos próprios e demais anteproprietários concerne, por não se vislumbrar nenhuma razão para depreciar esses depoimentos, dado o seu confessado desinteresse na sorte dos autos, acrescendo o conhecimento direto e pessoal que sobre a matéria necessariamente tinham.

Vejamos, então, o que se extrai de tais depoimentos.

L (…) foi muito perentório e convicto na afirmação de que, tendo a noção e consciência exata de qual era o direito dos AA. no que dizia respeito a uma tal passagem [isto é, que “podiam ali passar ou a pé ou com uma burra a rédeas”], nunca autorizou os AA. a lá passar (cf. minuto 15:25), mais acrescentando que os AA. também nunca lhe pediram para passar,  sem prejuízo de reconhecer que  os mesmos “eram capazes de passar quando eu lá não estava” (cf. (minuto 15:41); mais adiantou que  antes de vender esse prédio, disse ao A. que ia tapar a passagem e, no outro dia, já lá estava este com o seu advogado por causa de ter dito que ia tapar aquela passagem (cf. minuto 15:57), e bem assim que transmitiu aos aqui RR., quando lhes vendeu o prédio, que os AA. só tinham direito de passar a pé e com animais à rédea, exactamente o que o anteproprietário L (…)havia transmitido ao próprio (cf. minuto 46:51 a 46:57, particularmente no final com “Foi isso que me transmitiram a mim, e que eu transmiti a quem eu vendi”).

M (…), por sua vez, relatou, no essencial, que lhes foi dito no momento da aquisição pelo L(…) que os AA. só podiam passar a pé (cf. minuto 04:54), que se os AA. tentassem passar de carro era sem ordem ou autorização dela (cf., ao minuto 9:27, “Se passou alguma vez foi sem ordem, que a minha nunca me pediu, nem nunca eu dei autorização para isso”), sendo que nunca ali viu o carro do A., que descarregava as coisas pelo largo em cima, largo de S. Y (...) (cf. minuto (minuto 12:39 a 12:54), e, com o maior relevo, o que o R. (…) ficou sabedor quando lhe vendeu (cf., ao minuto 17:34, “Sim, ele sabia, eu disse-lhe que nós tínhamos aquele palhal quando nos o vendaram a nós, que foi o Sr. (…), o que nos foi transmitido foi que podia passar a pé ou com uma burra a rédea, mais nada. Foi aquilo que transmitimos ao Sr. (…) quando nos comprou”).

Assim, não se pode afirmar que as testemunhas L (…) e esposa, M (…) [donos do palhal em causa, no período de 1994 a 2000], depuseram no sentido de não se terem oposto a que os Autores passassem com os carros no referido caminho em causa.

Por sua vez, no que aos anteproprietários L (…) e mulher concerne, em reforço do vindo de dizer, temos que nenhuma prova concludente foi feita nos autos no sentido de que os mesmos não se tivessem oposto à passagem pelos AA. de carro, tanto mais que se afigura como mais consistente a prova feita no sentido de que, ao tempo desses, nem se podia passar com viatura automóvel (dadas as pedras /fragas existentes), para além de que nem o A. de tal carecia, por não o ter; por outro lado, que litígio houve quanto a uma pretendida passagem por carro resulta insofismável pela circunstância da propositura do processo 5/1991 que correu termos no Tribunal Judicial da Comarca de Moimenta da Beira, proposto pelos AA. contra os ditos L (…) e mulher visando o reconhecimento, além do mais, de tal direito de passagem com carro, processo esse que foi por eles contestado e de cuja procedência parcial recorreram.

Ora se assim é, como afirmar que a prova feita apenas suporta a afirmação de que os ditos L (…) e mulher apenas se opuseram em 5/11/90 à passagem por carro dos AA.?

Salvo o devido respeito, não assiste qualquer razão aos AA./recorrentes…

E o mesmo se diga relativamente ao que pretendem ver afirmado relativamente aos ora RR..

Sustentam os AA./recorrentes que desde que os RR. adquiriram o seu prédio em 2000, até 2015, nunca se opuseram à sua passagem com carro, e, inclusive, que há 7/8 anos entregaram uma chave do portão a eles AA., o que seria demonstrativo dessa contemporização, senão mesmo autorização.

Será assim?

Quanto a nós, parece-nos mais plausível, por digno de verosimilhança, o que foi relatado em audiência pelas testemunhas (…) os quais, não obstante serem os filhos dos RR.., relataram de modo convincente a oposição a essa passagem com carro pelos AA., sabedores que eram do direito mais restrito que aos AA. havia sido reconhecido no anterior processo judicial [passagem a pé ou com animais à rédea], pelo que havia oposição à passagem de carros pelo seu, sendo que foi para evitar os abusos por parte dos AA. que estavam a ocorrer, que o R. alterou o portão de acesso ao caminho.

Assim como se nos afigura para este efeito relevante o que foi dito pela testemunha (…) em termos de oposição concreta por parte da Ré mulher [irmã dessa testemunha], mais concretamente quando relatou que o A. chegou a ameaçar a dita Ré, com uma sachola, porque esta o proibiu de ali passar com o carro e não queria que o portão ficasse aberto (minuto 16:04 a 16:40 e minuto 19:30 a 19:40).

A este propósito, e depois de perfilhar o entendimento de que houve oposição à passagem por carro dos anteproprietários L (…) e mulher, discorreu a Exma. Juíza na motivação da sentença recorrida o seguinte:

«Este “estado de coisas” não resultou, a nosso ver, alterado com a transmissão da propriedade do prédio para os RR. E não resultou essencialmente devido a dois aspectos. Em primeiro lugar, ficou para nós absolutamente claro que os RR. sabiam da existência e âmbito da servidão, como transmitido pelo anterior proprietário, a testemunha L (…), conhecimento admitido pelas testemunhas (…) filhos dos RR. que justamente por apresentarem tal qualidade familiar se encontram em condições de, com propriedade, o referirem.

Por outro lado, e mais uma vez, também os RR., como os AA., são “proprietários ausentes”, residindo em X (...) Portugal e pouco se deslocando ao local, circunstância que, mais uma vez, permitiu que as partes pouco coincidissem na permanência em cada um dos seus prédios e tornasse mais plausível uma actuação fortuita e furtiva dos AA. na passagem com viaturas (em bom rigor, há inclusivamente um hiato de 2-3 anos após o ano de 2009, em que os RR., devido a um acidente do R. marido – corroborado quer pela sua filha, numa alusão (o coma do pai) para evocação da data da colocação dos portões em 2009, emprestando circunstancialismo temporal ao seu depoimento que imprimiu credibilidade ao mesmo – não se deslocou ao prédio)

Só neste contexto se percebe a admissão pelos próprios RR., na sua contestação, no artigo 17.º, de que entregaram a chave do portão que colocaram aos AA.: essa entrega, admitida pelos RR., lembramos, destinava-se a garantir o respeito pela servidão de passagem a pé ou de animais à rédea que ambas as partes sabiam existir. Mais: a colocação dos portões surge, como referido pela testemunha (…) na sequência do reporte pela sua tia, a testemunha (…), que reside perto dos prédios e passa quase diariamente no local para aceder à sua propriedade e visitar a mãe, de situações de passagem dos AA. com veículos a que os RR. quiseram atalhar.

É também assim que se compreende a mudança de atitude dos RR. no Verão de 2015 com a alteração do portão de forma a garantir que o mesmo apenas conferia o acesso naqueles termos (impedindo a sua abertura em toda a sua extensão): na verdade, a passagem “furtiva” pelos AA. continuava a acontecer, potenciada essencialmente pela circunstância, repete-se, das partes, até cerca de 2012, raramente se cruzarem - como referido pela testemunha (…) que, com propriedade decorrente dos laços familiares, e de forma plausível, o veiculou – situação com a qual os RR., com a sua presença mais amiudada no prédio, foram mais frequentemente confrontados e que vem a suscitar aquela mudança de comportamento.»

De referir que os RR./recorridos juntaram nas suas contra-alegações a reprodução dos excertos tidos por relevantes destes concretos depoimentos, compulsados os quais nos surge como completamente inquestionável a sua validação.

Naturalmente que é por assim ser que não nos merece em nenhuma medida acolhimento a crítica feita neste particular.

Desde logo porque o controlo da matéria de facto tem por objeto uma decisão tomada sob o signo da livre apreciação da prova, atingida de forma oral e por imediação, i.e., baseada numa audiência de discussão oral da matéria a considerar e numa perceção própria do material que lhe serve de base (arts. 604º, nº 3 e 607º, nº 5 do n.C.P.Civil).

A esta luz, importa sempre ter em conta que as decisões judiciais não pretendem constituir verdades ou certezas absolutas.

Senão vejamos: «a verdade judicial é uma verdade relativa, não só porque resultante de um juízo em si mesmo passível de erro, mas também porque assenta em prova, como a testemunhal, cuja falibilidade constitui um conhecido dado psico-sociológico».[6]

Acresce que a convicção do juiz é uma convicção pessoal, sendo construída, dialeticamente, para além dos dados objetivos fornecidos pelos documentos e outras provas constituídas, nela desempenhando uma função de relevo não só a atividade puramente cognitiva mas também elementos racionalmente não explicáveis e mesmo puramente emocionais.

Nesta conformidade – e como em qualquer atividade humana – existirá sempre na atuação jurisdicional uma margem de incerteza, aleatoriedade e erro.

Mas tal é inelutável: o que importa é que se minimize o mais possível tal margem de erro.

O que passa, como se viu, pela integração da decisão de facto dentro de parâmetros admissíveis em face da prova produzida, objetiva e sindicável, e pela interpretação e apreciação desta prova de acordo com as regras da lógica e da experiência comum.

E tendo-se presente que a imediação e a oralidade dão um crédito de fiabilidade acrescido, já que por virtude delas entram, na formação da convicção do julgador, necessariamente, elementos que em caso algum podem ser importados para a gravação da prova, e fatores que não são racionalmente demonstráveis.

Sendo que estes princípios permitem ainda uma apreciação ética dos depoimentos – saber se quem depõe tem a consciência de que está a dizer a verdade – a qual não está ao alcance do tribunal ad quem.[7]

Donde se sancionar plenamente a opção do Tribunal a quo em consignar no elenco dos factos “não provados” a factualidade da alínea c).

                                                           ¨¨

Vejamos, para finalizar este primeiro grupo de factos objeto da impugnação à decisão sobre a matéria de facto, a situação atinente à factualidade constante da alínea d).

Rememore-se, mais uma vez, o teor literal desta:

«d) Convictos de exercerem direito próprio e sem lesão de direitos de terceiros.»  

 Consabidamente está neste ponto de facto diretamente em causa um dos requisitos essenciais para a procedência da invocada usucapião, a saber, a boa fé no exercício da posse a tanto conducente.[8]

Sendo que os AA./recorrentes, após terem procedido à transcrição de alguns excertos da prova testemunhal produzida, e de terem enunciado a síntese de demais depoimentos relevantes, sustentam que a resposta devia ter sido afirmativa, com a seguinte argumentação conclusiva:

«Relativamente ao facto da alínea d), o mesmo deve ser considerado provado, visto que os AA. sempre passaram com as viaturas no caminho em causa para acesso ao seu prédio na convicção do exercício de um direito próprio e de não lesarem direitos de terceiros.»

            Só que, salvo o devido respeito, isso era o “quoad demonstrandum” [isto é, o que importava demonstrar], não o tendo sido.

            Não se olvida que está em causa uma convicção subjectiva, dificilmente apreensível, e, consequentemente, sobre a qual a falibilidade da prova testemunhal será por demais evidente.

Em todo o caso, não se descortina na prova testemunhal produzida qualquer elemento probatório, indiciário que fosse, que se possa considerar de sentido positivo.

Muito pelo contrário.

Com efeito, a concatenação de toda a prova produzida, à luz das regras da experiência e da normalidade, conduz-nos inexoravelmente à conclusão de que os AA./recorrentes quando passavam com carro no caminho ajuizado, não podiam ter a convicção de que exerciam um direito próprio, assim como não podiam ter a convicção de que não lesavam os direitos dos aqui RR..

Atente-se que a existência e exercício de um direito de passagem pelos AA. no local [“servidão”], sendo litigiosa, tinha sido definida/judicialmente reconhecida através de sentença datada de 30.04.1992, transitada em 05.03.1993, proferida no âmbito do processo 5/1991 que correu os seus termos Tribunal Judicial da Comarca de Moimenta da Beira (cf. facto “provado” sob “15.”).

Sucede que essa sentença, devidamente transitada em julgado, apenas reconheceu aos AA. uma servidão de passagem a pé e de animais à rédea  (cf. facto “provado” sob “14.”), donde, a convicção dos mesmos não podia ter sido outra senão a de que apenas gozavam de uma tal servidão mais restrita.

Ora se assim é, não vislumbramos de todo como é que, no momento seguinte/imediato nasce ou se concretiza para os AA. a convicção de serem titulares do direito de serventia de passagem com carro.

Acresce que, como já foi doutamente sublinhado, «só pode invocar boa-fé quem, sem culpa, desconheça certa ocorrência, invocando as seguintes características do nosso sistema jurídico nesta questão:

- a juricidade do sistema: o Direito não associa consequências a puras causalidades como o ter ou não conhecimento de certa ocorrência; o Direito pretende intervir nas relações sociais; ora, ao lidar com uma boa fé subjectiva ética ele está, de modo implícito, a incentivar o acatamento de deveres de cuidado e de diligência;

- a adequação do sistema: uma concepção puramente psicológica de boa fé equivale a premiar os ignorantes, os distraídos e os egoístas, que desconheçam mesmo o mais evidente; paralelamente, ir-se-ia penalizar os diligentes, os dedicados e os argutos, que se aperceberiam do que escapa ao cidadão comum;

- a praticabilidade do sistema: não é possível (nem desejável) provar o que se passa no espírito das pessoas; assim e em última análise, nunca se poderá demonstrar que alguém conhecia ou não certo facto; apenas se poderá constatar que o sujeito considerado, dados os factos disponíveis, ou sabia ou dia saber; em qualquer das hipóteses, há má-fé.»[9]

A esta luz, é de perfilhar o entendimento de que «quando o art.º 1260º do C. Civil diz que a posse é de boa-fé quando o possuidor ignorava, ao adquiri-la, que lesava o direito de outrem, estamos perante a exigência de uma ignorância qualificada. O estado cognitivo de ignorância, enquanto ausência de uma representação da realidade, é um simples antecedente psicológico da boa-fé, a qual exige um plus que consiste na diligência no apuramento da situação real. Assim, são equiparadas às situações de conhecimento da lesão do direito de outrem todas aquelas em que o possuidor, apesar de não se ter apercebido dessa lesão, tinha todas as condições para a conhecer, o que só não aconteceu porque não teve o cuidado que normalmente seria de esperar de um cidadão diligente, com os seus condicionantes, naquelas circunstâncias. Só o desconhecimento justificado ou, pelo menos, desculpável da lesão do direito de outrém é que permite a qualificação da posse como de boa-fé.»[10]

            Tendo em conta estes ensinamentos, não vislumbramos como dar acolhimento à pretensão dos AA./recorrentes no que à alínea d) do elenco da factualidade dada como “não provada” diz respeito, a qual, assim, deve subsistir enquanto tal.

            O que tudo serve para dizer que por não se constatar qualquer erro de julgamento neste particular, conclui-se, sem necessidade de maiores considerações, pela improcedência desta pretensão dos AA../recorrentes.

                                                                       ¨¨

            Falta apreciar a impugnação à decisão sobre a matéria de facto na parte que tem por objeto a factualidade “não provada” constante das alíneas i), j) e K) do correspondente elenco, pugnando os AA./recorrentes no sentido de que a factualidade das mesmas devia ser considerada totalmente “provada”.

            Que dizer?

            Que a resposta está diretamente conexionada com o que nelas está em causa.

            Vejamos, então, do seu teor literal:

            «i) Nas circunstâncias de tempo descritas em 21. e 22., a passagem dos AA. com veículos ocorreu à vista de todos, designadamente, de L (…) e esposa M (…) e, depois, dos RR..»

«j) E sem oposição destes.»

«k) Nas circunstâncias descritas em 21. e 22., os AA. utilizaram o caminho descrito em 14. para a com veículos de forma contínua e ininterrupta sempre na convicção de exercerem direito de servidão que onera o prédio referido em 8.»

 Como é bom de ver, está neles em causa factualidade que em grande medida, senão exclusivamente, já é repetição dos factos vindos de analisar.

Ora se assim é, tendo em conta a convicção prevalecente afirmada na resposta dada à apreciação dos mesmos, a resposta quanto a estes últimos já inteiramente se adivinha, pelo que dando aquela justificação aqui por reproduzida, se declara sem mais improcedente esta última pretensão.

                                                           *

6 - FUNDAMENTAÇÃO DE DIREITO

Cumpre agora entrar na apreciação das questões neste particular supra enunciadas, estas já diretamente reportadas ao mérito da sentença, na vertente da fundamentação de direito da mesma.

Começando pela apelação dos AA.

Nesta foi suscitado o incorreto julgamento de direito [no que respeita à improcedência do pedido de reconhecimento do direito de servidão de passagem com carros, nomeadamente porque foi desconsiderada a presunção do animus da posse por parte dos AA. (cf. o nº2 do art. 1252º do C.Civil), pelo que incumbia aos Réus demonstrarem a inexistência por parte dos AA. de convicção de que exerciam tal direito de serventia].

Vejamos.

Salvo o devido respeito esta pretensão naufraga inapelavelmente.

É que ela estava dependente do positivo acolhimento da impugnação deduzida pelos AA./recorrentes à decisão sobre a matéria de facto, particularmente e por estar em causa a aquisição de uma servidão por usucapião, o dar-se como “provada” uma material e efetiva passagem pelos AA., com carro, ao longo do período temporal que estava invocado, e que essa atuação tivesse lugar em circunstâncias que revelassem a convicção dos AA. de que exerciam a posse de um tal direito de serventia.

Consabidamente a posse correspondente ao exercício de um direito de propriedade é um poder de facto que se manifesta quando alguém atua de um modo que se assemelha ao exercício daquele direito – art. 1251º do C. Civil – e é integrada por dois elementos: o corpus - elemento material - que consiste no domínio de facto sobre a coisa, traduzido no exercício efectivo dos poderes materiais próprios do direito de propriedade sobre ela ou na possibilidade desse exercício e o animus – elemento intelectual ou volitivo – que consiste na intenção de exercer sobre a coisa como seu titular o direito real correspondente àquele domínio de facto.

A prática de actos materiais (actuação de facto) correspondentes ao exercício do direito de propriedade (corpus) com a intenção de exercício deste direito (animus) e a duração e permanência dessa situação, são, pois, os elementos deste «modo de aquisição originária de direitos reais, pela transformação em jurídica de uma situação de facto, de uma mera aparência, em benefício daquele que exerce a gestão económica da coisa.»[11]

Assim sendo, a invocação, com sucesso, da posse, depende da demonstração desses dois elementos, material e psicológico, que presidem ao exercício do direito de propriedade, ou seja, ao gozo pleno e exclusivo dos direitos de uso, fruição e disposição das coisas, dentro dos limites da lei e com observância das restrições por ela impostas – art. 1305º do C. Civil –, durante um período de tempo fixado na lei, que varia conforme as características da posse.

In casu, até podem estar plenamente demonstrados alguns atos de posse pelos AA./recorrentes (dito corpus da posse), in casu, a passagem de carro pelo local .

Sucede que não o está provado todo o corpus da posse – não lograram provar que sobre o referido caminho existente no prédio dos RR passam ou passaram de carro durante mais de 20 anos de forma pública, pacífica e de boa fé!

Acresce que não o está seguramente o animus à usucapião igualmente necessário.

Com efeito, tal como sublinhado na sentença recorrida, e ao que damos o nosso integral acolhimento, «(…) ainda que tenha ficado demonstrada a utilização pontual ou fortuita do caminho pelos AA. (factos 21) e 22) do elenco dos factos provados), não resultou demonstrado que tal actuação tivesse lugar em circunstâncias que denotadamente revelassem a convicção dos AA. de que exerciam tal direito de serventia (factos b) a d) do elenco dos factos não provados). Muito pelo contrário. Da prova produzida, primeiro, e da factualidade assente, depois, ressalta um conflito instalado acerca da utilização do caminho pelos sucessivos proprietários dos prédios em causa, quadro factual que é incompatível com actos de posse (correspondente ao direito em causa, o de servidão) pelos AA. que permitam fundar, na sua esfera jurídica, a aquisição de tal direito por via da usucapião que, evidentemente, não se basta com uma utilização esporádica, fortuita ou tributária de alguma tolerância dos RR.».

Dito de outra forma: se os AA. /recorrentes nada de indiciariamente provaram quanto a terem dado conhecimento aos RR.. da mudança de convicção deles AA. – quanto à extensão e âmbito da servidão de passagem que estava a ser exercida – designadamente comunicando-lhes, judicial ou extrajudicialmente, e de forma categórica, a sua intenção de exercício de um direito de servidão diverso e mais amplo [passagem com carro], não vislumbramos como podem invocar um  animus de posse [mais ampla], quando apenas se evidencia o exercício de singelos atos materiais [passagem fortuita e esporádica, senão mesmo furtiva].

E nem se argumente – como fazem os AA./recorrentes nas suas alegações recursivas – que houve erro de julgamento de direito nesta parte, na medida em que foi indevidamente desconsiderada a presunção do animus da posse por parte dos AA. (cf. o nº2 do art. 1252º do C.Civil), pelo que incumbia aos Réus demonstrarem a inexistência por parte dos AA. de convicção de que exerciam tal direito de serventia.

É que, ao não terem provado integralmente o corpus da posse, ou seja, os poderes de facto correspondentes ao exercício do seu direito de passagem [que sobre o referido caminho existente no prédio dos RR passam ou passaram de carro durante mais de 20 anos de forma pública, pacífica e de boa fé], não podem eles querer beneficiar do animus da posse, isto é, sem o corpus da posse não se pode presumir o seu animus.

Sobre isto a jurisprudência é perfeitamente pacífica.

Senão vejamos:

«A presunção estabelecida no art.º 1252.º, n.º 2, do CC só actua em caso de dúvida, e não quando se trate de uma situação definida, que exclua a titularidade do direito.»[12]

O que tudo serve para dizer que ocorrendo uma clara insuficiência do corpus possessório não pode ter aplicação a presunção estabelecida no nº 2 do artigo 1252.º do C.Civil.[13]

Termos em que, sem necessidade de maiores considerações, improcede a apelação dos AA./recorrentes.

                                                           ¨¨

Passando agora à apelação dos RR.

Nesta foi suscitado o incorreto julgamento de direito da decisão recorrida na parte em que julgou totalmente improcedente o pedido reconvencional deduzido [pois que nem sempre é suposto para se reconhecer a desnecessidade, que a servidão deixe de ter qualquer utilidade/proveito (absoluta inutilidade), acrescendo que, no tocante ao meio alternativo à servidão existente, se quem pretender fazer valer este direito, deverá alegar e realizar as obras necessárias à construção desse meio alternativo, ou a sua disponibilidade para proceder nos autos ao depósito da quantia necessária à realização dessas obras, sucedia que «Os RR disponibilizaram-se para pagar tais custos com a abertura deste novo acesso, o que farão logo que notificados para esse efeito»]

Que dizer?

Recorde-se que a sentença recorrida, com alguma linearidade e singeleza, no que ao pedido reconvencional respeitava [tendo como objetivo quer a extinção da servidão de passagem de carro, caso fosse reconhecida pela presente lide a sua constituição, quer, e com base nos mesmos fundamentos, a extinção da servidão de passagem a pé e com animais à rédea, já judicialmente reconhecida], decidiu que o mesmo improcedia, mormente por não ter ficado demonstrado que existia um atual e efectivo acesso, a pé ou com animais à rédea, alternativo relativamente ao acesso garantido com a servidão de passagem existente, donde, não era possível afirmar a desnecessidade da servidão de passagem existente, antes mantendo tal encargo predial a sua necessidade.

Tendo presente que só tem interesse e justificação processual, nesta apreciação, a reclamada extinção da servidão de passagem a pé e com animais à rédea, já judicialmente reconhecida em processo anterior [na medida em que se manteve pela decisão imediatamente antecedente a não constituição da servidão de passagem com carro], será então que a sentença recorrida errou, desde logo, quanto à interpretação perfilhada relativamente ao conceito de desnecessidade [a qual é critério para a extinção da servidão, cf. art. 1569º, nº2 do C.Civil]?

Vejamos.

De referir que está em causa uma servidão de passagem constituída por usucapião.

Na verdade, importa distinguir a constituição de uma servidão de passagem por usucapião (como é a que está em causa nestes autos, e que dogmaticamente também é designada por servidão “voluntária”), das servidões “legais” de passagem.

 As denominadas servidões “legais”, a que alude o n.º 2 do artigo 1547º do C. Civil, podem ser constituídas por negócio jurídico (se as partes acordarem nos termos da sua constituição), por decisão judicial (na falta desse acordo por sentença constitutiva) ou por decisão administrativa (quando o suprimento do acordo, nos termos da lei, compete às autoridades administrativas).[14]

 A servidão “legal” é, pois, a faculdade (direito potestativo) de constituir coercivamente uma servidão, se verificados certos requisitos objectivos, como no caso da servidão legal de passagem em benefício de prédios encravados: com efeito, os proprietários de prédios que não tenham comunicação com a via pública, nem condições que permitam estabelecê-la sem excessivo incómodo ou dispêndio, têm a faculdade de exigir a constituição de servidão de passagem sobre os prédios rústicos vizinhos; e de igual faculdade goza o proprietário que tenha comunicação insuficiente com a via pública, por terreno seu ou alheio (cf. art. 1550º do C.Civil).

Por outro lado, não estando em causa nesta acção a constituição de uma servidão “legal” de passagem (“tout court”), naturalmente que é perfeitamente inócuo o argumento de que o prédio dos AA. confinava diretamente com a via pública a nascente…

Dito isto, passemos, sem mais, ao argumento da desnecessidade propriamente dita.

Com efeito, estando decisivamente em causa a alegada “desnecessidade” para o prédio dominante da servidão ajuizada, importa passar a apreciar um tal fundamento, designadamente se foi acertada a decisão de 1ª instância que respondeu negativamente a tal questão.

Efetivamente, o nº2 do art. 1569º do C.Civil permite que as servidões constituídas por usucapião possam ser judicialmente declaradas extintas, a requerimento do proprietário do prédio serviente, desde que se mostrem desnecessárias ao prédio dominante.

Contudo, não nos diz a lei, em que se traduz tal “desnecessidade”, nem se a mesma tem que ser originária ou superveniente à constituição da servidão.

Segundo o Prof. Oliveira Ascensão[15], a “desnecessidade” tem de ser objetiva, típica e exclusiva da servidão, caracterizada por uma mudança na situação objetiva do prédio dominante verificada em momento posterior à constituição da servidão, e, em consequência da qual, perdeu utilidade para o prédio dominante.

Dito de outro modo: traduz-se numa situação em que se conclui que o prédio dominante não precisa da servidão.

Por outro lado, parte da jurisprudência vinha entendendo que a desnecessidade supunha uma alteração no prédio dominante posterior à constituição da servidão[16], mas na doutrina, o Prof. Luís Carvalho Fernandes[17], sustenta que o que está em causa no nº 2 do art. 1569º é a desnecessidade superveniente, que consiste na cessação das razões que justificavam a afectação de utilidades do prédio serviente ao prédio dominante.

Mais recentemente, o acórdão do S.T.J. de 16-03-2011[18] pronunciou-se no seguinte sentido (sumário):

«1. A desnecessidade de uma servidão de passagem tem de ser aferida em função do prédio dominante, e não do respectivo proprietário.

2. Em princípio, a desnecessidade será superveniente em relação à constituição da servidão, decorrendo de alterações ocorridas no prédio dominante.

3. Só deve ser declarada extinta por desnecessidade uma servidão que deixou de ter qualquer utilidade para o prédio dominante; fazer equivaler a desnecessidade à indispensabilidade não é consistente com a possibilidade de extinção por desnecessidade de servidões que não sejam servidões legais.

4. Incumbe ao proprietário do prédio serviente que pretende a declaração judicial da extinção da servidão o ónus da prova da desnecessidade.»

Concordamos com esta última interpretação, por nos parecer que está mais de acordo com o espírito e a letra da lei.

De facto, e como já foi doutamente sublinhado, «…uma interpretação mais restritiva do requisito, fazendo-o equivaler a indispensabilidade, não se harmoniza com a possibilidade de extinção por desnecessidade de servidões que não sejam servidões legais (no sentido de poderem ser impostas coactivamente)”. Com efeito, continua o mesmo Acórdão, “…pensando na servidão de passagem, por ser a que está em causa, pode constituir-se por usucapião uma servidão em situações que não preenchem os requisitos para a imposição de um direito legal de passagem. Dito por outra forma: a circunstância de não ser indispensável a servidão de passagem (por não ocorrer o encrave, absoluto ou relativo, exigido pelo artigo 1550º do Código Civil) não obsta à constituição do direito correspondente por usucapião. Seria contraditório que fosse permitido ao titular do prédio serviente provocar a extinção da servidão que onera o seu prédio, invocando uma desnecessidade que não impediu a respectiva constituição.»[19]

Por outro lado, em regra, a “desnecessidade” é aferida pela situação existente no momento em que a acção é proposta, e não só, por exemplo, após a realização de alterações (obras) a levar a cabo no prédio dominante determinada na sentença.

Este é aspecto que resulta expressamente da letra da lei, ao exigir que a servidão se mostre desnecessária na altura em que é invocada, e não que sejam realizadas alterações que determinem essa situação de “desnecessidade”, sob pena de se entender que tais alterações são uma consequência da declaração de extinção[20].

Este foi o entendimento da sentença recorrida como flui do seu seguinte segmento:

«Não obstante, a situação de “desnecessidade”, com o recorte acima perfilado, tem de ser aferida pela situação existente no momento em que a acção é proposta, e não só após a realização de alterações (obras) a levar a cabo no prédio dominante determinada na sentença: na verdade, é a nosso ver, esse o alcance do elemento literal do art.1569.º n.º 2 CC quando exige que a servidão se mostre desnecessária na altura em que é invocada e não que o venha a fazer depois de realizadas alterações que determinem essa situação de “desnecessidade”. A não ser assim, caímos na incongruência da situação de desnecessidade – que apenas se verifica depois de realizadas as alterações no prédio dominante – ser declarada antes de efectivamente ocorrer (tornando incompreensivelmente as alterações que são um pressuposto da extinção, numa consequência da sua declaração).

Ora, no caso vertente e cotejando os factos provados, não se vislumbra neles conteúdo bastante para consubstanciar este fundamento legal extintivo justamente: face ao quadro existente à data da propositura da acção, inexistiam (como inexistem ainda) alterações do prédio dominante que possibilitassem um acesso alternativo (face ao acesso através do prédio dos RR.) ao prédio dos AA., a pé e com animais à rédea e que, assim, tornariam o acesso pelo prédio dos RR. dispensável.

Com efeito, o acesso ao prédio dos AA., provindo da via pública, à custa apenas e somente do seu prédio, implica necessariamente a realização de obras do logradouro nascente daquele prédio que, no presente, se encontra murado – facto 34) do elenco dos factos provados – obras essas que, para garantir tal acesso, passariam necessariamente pela demolição de parte do referido muro e corte do portão e da grade de ferro actualmente existentes no limite norte do logradouro do prédio referido em 1., pavimentação e colocação de portão na nova entrada – cfr. factos 35) a 39) do elenco dos factos provados, na parte relevante para a criação de um acesso a pé e com animais à rédea.

Do exposto, resulta assim indemonstrado que exista um actual e efectivo acesso, a pé ou com animais à rédea, alternativo relativamente ao acesso garantido com a servidão de passagem existente, não sendo possível afirmar a desnecessidade nos termos atrás expostos, mantendo tal encargo predial a sua necessidade, nada mais restando senão fazer improceder a pretensão reconvencional.»

Contudo, cremos que não se decidiu nesse particular com total acerto.

É que sendo essa a regra, há situações que a excecionam: são os casos em que a desnecessidade depende da realização de obras.

Na verdade, em tais situações, «cabe ao titular do prédio serviente, requerente da extinção da servidão, alegar [e provar] que a servidão de passagem é desnecessária e, dependendo essa desnecessidade da realização de obras, que das mesmas não resultará incómodo excessivo para o prédio dominante, bem como alegar que está disposto a suportar o respectivo custo»[21]

O que bem se compreende, na medida em que se a solução passar pela realização de obras de acessibilidade ao prédio dominante, este facto concorre para o juízo de ponderação sobre a desnecessidade, e, como tal, deve ser concretamente alegado pelo requerente.

Por outro lado, como já foi doutamente enfatizado, «à semelhança do que sucede em situações idênticas (v.g. acção de execução específica ou de exercício de direito de preferência) deve o requerente da extinção da servidão revelar a sua vontade de proceder ao pagamento do custo das obras necessárias à construção do meio alternativo à servidão existente, consignando-o em depósito à ordem do respectivo processo, em prazo fixado pelo tribunal, previamente à prolação da sentença.»[22]

Dito de outra forma: o ónus da prova dos elementos necessários à avaliação da desnecessidade e sobre o juízo de proporcionalidade, designadamente sobre a viabilidade de eventuais obras e de que o incómodo e dispêndio com a alteração não são excessivos, compete ao requerente da extinção, por consubstanciarem factos constitutivos do seu direito (art. 342º nº1 do C.Civil).

Revertendo agora ao caso ajuizado, o que é que temos?

Tendo em conta os factos dados como “provados” sob “34.” a “41.” [e independentemente de quem os alegou originariamente![23]], até nos parece de admitir, sem grande dificuldade, que a servidão de passagem existente é desnecessária, sendo certo que da realização das obras de acessibilidade necessárias não resultaria incómodo excessivo para o prédio dominante, e bem assim – estando como está em causa apenas uma servidão de passagem a pé ou com animal à rédea – que a entrada/acesso alternativo proporcionaria igual ou semelhantes condições de utilidade e comodidade de acesso ao prédio dominante dos AA., no confronto com o outro acesso existente, que se traduz na servidão de passagem ajuizada.

Sucede que surge um obstáculo intransponível à procedência deste pedido de extinção da servidão.

É ele o de que os RR./recorrentes – ao invés do que alegaram nas suas alegações recursivas – em momento algum anterior às suas ditas alegações recursivas, manifestaram a disponibilidade, nem para a realização das obras, nem a sua disponibilidade no pagamento do custo das obras necessárias, pelo que, dada a omissão destes elementos destinados ao juízo de proporcionalidade e de viabilidade da sua pretensão, nunca pode ser decretada a extinção da servidão requerida.[24]

Sendo certo ser inquestionável que o custo das obras não podia deixar de ser da responsabilidade do titular do prédio serviente [isto é, deles RR.], por argumento de maioria de razão com o previsto para a mudança de servidão (cf. art. 1568º do C.Civil).[25]

Deste modo, por razões diferentes das apontadas na decisão recorrida na parte atinente ao pedido reconvencional, deve esta manter-se, sendo consequentemente improcedente o recurso dos Réus.

                                                           *

7 – SÍNTESE CONCLUSIVA

I – A desnecessidade da servidão traduz-se numa situação em que se conclui que o prédio dominante não precisa da servidão.

II – A lei (art.1569º, nº2, do C.Civil) exige que a desnecessidade da permanência da servidão deve ser aferida pelo momento da introdução da acção em juízo, mas, em princípio, a desnecessidade será superveniente em relação à constituição da servidão, decorrendo de alterações ocorridas no prédio dominante.

III – E sendo a desnecessidade aferida, em regra, pela situação existente no momento em que a ação é proposta (objetiva e actual), pode haver casos em que a desnecessidade depende da realização de obras.

IV – Nestes últimos casos, em que a solução alternativa passa pela realização de obras de acessibilidade ao prédio dominante, este facto concorre para o juízo de ponderação sobre a desnecessidade, e, como tal, deve ser concretamente alegado pelo requerente, não podendo ser diferido para momento posterior à efectuação das obras, porque é elemento constitutivo do direito.

V – Compete ao requerente da extinção o ónus da prova dos elementos indispensáveis ao juízo da desnecessidade e da proporcionalidade, nomeadamente quanto à realização de obras de acessibilidade no prédio dominante, por consubstanciarem factos constitutivos do direito.

VI – É que, não podendo o custo das obras deixar de ser da responsabilidade do titular do prédio serviente, por argumento de maioria de razão com o previsto para a mudança de servidão (cf. art.1568º do C.Civil), é ao titular do prédio serviente, requerente da extinção da servidão, que incumbe alegar [e provar] que a servidão de passagem é desnecessária e, dependendo essa desnecessidade da realização de obras, que das mesmas não resultará incómodo excessivo para o prédio dominante, bem como alegar que está disposto a suportar o respectivo custo.

                                                                       *

8 - DISPOSITIVO

Pelo exposto, decide-se a final, pela total improcedência de ambas as apelações mantendo o sentido da sentença recorrida nos seus precisos termos, ainda que com fundamentação parcialmente diferente no tocante à improcedência do pedido reconvencional.  

Custas de cada um dos recursos pelo respetivo recorrente.            

Coimbra, 10 de Dezembro de 2019

   Luís Filipe Cravo ( Relator )

  Fernando Monteiro

Ana Márcia Vieira


[1] Relator: Des. Luís Cravo
  1º Adjunto: Des. Fernando Monteiro
  2º Adjunto: Des. Ana Vieira

[2] Assim pelo acórdão do STJ de 3.10.2019, proferido no proc. nº 77/06.5TBGVA.C2.S2, acessível em www.dgsi.pt/jstj.
[3] Assim no acórdão do S.T.J. de 21/1/2003, proferido no proc. nº 02A4324, cujo texto integral pode ser acedido em www.dgsi.pt/jstj.
[4] Neste sentido o acórdão do T.R. de Lisboa de 04/02/2014, proferido no proc. nº 982/10.4TVLSB.L1-1, acessível em www.dgsi.pt/jtrl.
[5] Assim ANA LUÍSA GERALDES, “ Impugnação e Reapreciação da decisão da matéria de facto ”, in www.cjlp.org /Ana Luísa Geraldes, a págs. 5-6.


[6] Assim no acórdão do STJ de 11.12.2003, no proc. nº 03B3893, acessível em www.dgsi.pt/jstj.
[7] Neste sentido o acórdão do STJ de 23.04.2009, no proc. nº 09P0114, igualmente acessível em www.dgsi.pt/jstj.              
[8] Cf. «A posse diz-se de boa-fé, quando o possuidor ignorava, ao adquiri-la, que lesava o direito de outrem» – art. 1260º, nº 1, do C.Civil.
[9] Assim por MENEZES CORDEIRO, in “Tratado de Direito Civil” I, Livª Almedina, 2005,a  págs. 966.
[10] Citámos, agora, o acórdão do T. Rel. de Coimbra de 08.05.2018, proferido no proc. nº 4668/17.0T8CBR.C1, acessível em www.dgsi.pt/jtrc.
[11] Assim PIRES DE LIMA e ANTUNES VARELA, in “Código Civil Anotado”, vol. III, 2.ª ed., Coimbra Editora, a págs. 64.


[12] Cf. acórdão do STJ de 20.03.2014, proferido no proc. nº 3325/07.0TJVNF.P1S2, acessível em www.dgsi.pt/jstj.
[13] Também neste sentido o acórdão do STJ de 12.05.2016, proferido no proc. nº 9950/11.8TBVNG.P1.S1, igualmente acessível em www.dgsi.pt/jstj, aliás, em direta apreciação sobre as condições de aplicação da doutrina do o AUJ do STJ, de 14/05/1996 [invocado nas alegações recursivas].
[14] Cf. PIRES DE LIMA e ANTUNES VARELA, in “Código Civil Anotado”, Vol. III, 2ª ed., a págs. 628.
[15] In “Desnecessidade e Extinção de Direitos Reais”, Separata da Revista da Faculdade de Direito de Lisboa, 1964, a págs. 10-12.
[16] Cf., inter alia, os Acs. da R.C. de 25/10/1983, in CJ, T4, a págs. 62, e de 16/04/2002, in CJ, T2 a págs. 23; da R.P. de 02/12/1986, in CJ, T5, a págs. 229, de 07/03/1989,in CJ, T2 a págs. 189, e de 26/11/2002, in CJ, T5, a págs.182
[17] In “Lições de Direitos Reais”, 2ª ed., a págs. 438.
[18] No proc. nº 263/1999.P1.S1, acessível em www.dgsi.pt/jstj.
[19] Citámos agora o acórdão do STJ de 16-01-2014, no proc. nº 695/09.0TBBRG.G2.S1, igualmente acessível em www.dgsi.pt/jstj.
[20] Dando particular relevância a este aspecto da actualidade da “desnecessidade”, veja-se o acórdão do T. Rel. de Coimbra de 13-11-2012, no proc. nº 472/10.5TBTND.C1, acessível em www.dgsi.pt/jtrc.
[21] Cf. acórdão do T. Rel. de Coimbra de 2/6/2009, proferido no proc. nº 459/06.2TBPCV.C1; no mesmo sentido o acórdão igualmente do T. Rel. de Coimbra de 6/12/2005, proferido no proc. nº 2564/05, ambos eles acessíveis em www.dgsi.pt/jtrc.
[22] Assim no acórdão citado em segundo lugar na antecedente nota.
[23] Foram os AA. no articulado de Réplica…
[24] Assim também no acórdão do T. Rel. de Lisboa de 06/03/2012, proferido no proc. nº 463/2002.L2-1, acessível em www.dgsi.pt/jtrl.
[25] Neste sentido, para além do acórdão citado na antecedente nota [22], vide o acórdão do T. Rel de Coimbra de 28/9/2004 (in Colectânea de Jurisprudência, ano XXIX, tomo I, p.18), o acórdão do T. Rel. de Coimbra de 6/12/2005 (in Col. Jur., ano XXX, tomo V, p. 30), e o acórdão do T. Rel. de Coimbra de 20/02/2001, proferido no proc. nº 2927/00 (este último com sumário acessível in www dgsi.pt/jtrc).