ALIMENTOS ENTRE EX-CONJUGES
ALIMENTOS DEFINITIVOS
ALIMENTOS PROVISÓRIOS
EFEITOS
CESSAÇÃO DA OBRIGAÇÃO
Sumário

I - O direito a alimentos entre ex-cônjuges, assentando num dever assistencial que perdura para além do casamento, tem atualmente carácter subsidiário, excecional e temporário.
II - Tendo cessado as circunstâncias que determinaram a fixação de “alimentos definitivos” ao ex-cônjuge, os alimentos deixam de ser devidos desde a data da propositura da ação de cessação de alimentos, produzindo a sentença que declara cessada tal obrigação, efeitos ex tunc.

Texto Integral

Processo n.º 304/11.7TMPRT - C.P1

SUMÁRIO:
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Acordam os Juízes do Tribunal da Relação do Porto:
I - RELATÓRIO
B…, requerente nos autos, intentou a ação com processo comum contra C…, pedindo que seja decretada a cessação da obrigação de pagamento da prestação de alimentos à sua ex - cônjuge, no valor de 200€, alegando, em suma que, decorridos quase 7 anos desde a data em que ficou obrigado ao pagamento da prestação de alimentos à ex - cônjuge (Agosto de 2012), estes atualmente já não se justificam, pois que a manter-se a situação de desemprego da requerida, tal se deve à vontade da mesma, consubstanciada na sua inércia e comodismo. Por outro lado, alega que a requerida já não carece de alimentos, pois tem capacidade financeira e bens próprios de que pode dispor para fazer face às suas próprias necessidades.
Foi realizada a conferência sem que tenha sido possível obter o acordo das partes.
A requerida veio contestar, alegando que deverá manter-se a obrigação do requerente de prestar os alimentos, uma vez que o mesmo tem condições para o fazer e a requerida continua a necessitar dos mesmos, visto que a sua situação de desemprego e carência económica se mantém.
Teve lugar a audiência de julgamento e no final, foi proferida sentença com a seguinte parte decisória: “Decide-se julgar totalmente procedente a presente ação e, consequentemente, declarar cessada a obrigação de o requerente prestar alimentos à requerida, com efeitos desde a data de entrada em juízo da presente ação.
Custas a cargo da requerida, nos termos do art. 527.º, n.º 1 e 2 CPC (sem prejuízo do benefício do AJ concedido).
Inconformada C… interpôs o presente recurso de Apelação, tendo formulado as seguintes Conclusões:
“A. O Autor, por ação intentada a 04 Maio de 2018, concluiu o seu pedido da Petição inicial por dizer que: “Nestes termos deve a presente ação ser julgada provada e procedente decretando-se a extinção da pensão de alimentos a cargo do A.”
B. O Tribunal “a quo” proferiu por sentença “julgar totalmente procedente a presente ação, e consequentemente, declara cessada a obrigação de o requerente prestar alimentos à requerida, com efeitos desde a data de entrada em juízo da presente ação.”
C. Vem o presente recurso interposto da douta sentença reclamar quanto à parte do inicio dos efeitos da sentença “desde a data de entrada em juízo da presente ação”, que entende que a mesma deve ser anulada e revogada quanto a essa parte.
PARA TANTO INVOCA:
D. NÃO APLICABILIDADE DO ARTIGO 2006º CC ao caso em apreço, em virtude do mesmo não se referir a uma situação análoga à dos presentes autos, E/OU VIOLAÇÃO DO DEVER DE FUNDAMENTAÇÃO uma vez que o Tribunal a quo aplicou o mencionado artigo por referência ao acórdão Ac TRL de 19.2.2013, sem interpretação e fundamentação da norma e jurisprudência invocada, impondo ausência de motivação que impossibilite a revelação das razões que levaram à opção final, constituindo um causa de nulidade desta parte da sentença (Art. 678º alínea b) CPC).
E. PRINCÍPIO DA NÃO RESTITUIÇÃO; Sendo verdade que existe uma disposição clara quanto ao princípio da não restituição dos alimentos provisórios, contido no n.º2 do artigo 2007º CC, não faria sentido que o mesmo já não sucedesse quanto aos definitivos, em virtude da natureza e força de sentença atribuída. O princípio subjacente é de que os alimentos não se restituem, uma vez que se destinam a ser consumidos por aquele, que deles carece. Princípio esse também defendido por L.Moitinho de Almeida, Os Alimentos no Código Civil de 1966, na revista da ordem dos advogados de 1968 página 104 e plasmado no acórdão da Relação de Guimarães de 25-01-2006 no âmbito do processo 2498/05-2, pelo que a sentença deverá produzir apenas efeitos “ex nunc”.
F. PRINCÍPIO DA SEGURANÇA JURÍDICA E DA PROTECÇÃO DA CONFIANÇA DOS CIDADÃOS assumem-se como princípios classificadores do Estado de Direito Democrático, e que implicam um mínimo de certeza e segurança nos direitos das pessoas e nas expectativas juridicamente criadas a que está imanente uma ideia de proteção da confiança dos cidadãos e da comunidade na ordem jurídica e na atuação do Estado. Ora, a Recorrente quando recebeu os montantes, recebe-os com toda a legitimidade e despendeu por força da pensão de alimentos que lhe foi fixada por sentença;
Acresce que tal normativo não está legalmente previsto no campo do direito das obrigações e também não deve a Recorrente ser penalizada pela morosidade do processo;
G. EXCESSO DE PRONÚNCIA: O Autor limitou-se a peticionar “extinção da pensão de alimentos a cargo do A.”, com vista a uma pretensão futura “a extinção”, e não do passado com a devolução de montantes que viessem a ser pagos na pendência da ação. Acresce que o facto de no pedido não constar o efeito retroativo, não permitiu à Recorrente acautelar a possibilidade da procedência da ação.
O princípio do dispositivo é ainda prevalecente no processo civil e, como seu corolário, cabe às partes definir o objeto do litígio e alegar os factos que integrem a causa de pedir ou que sirvam de fundamento às suas pretensões, de tal modo que o juiz só pode fundar a decisão nestes.
Dispõe o n.º1 do artigo 609º CPC que “ A sentença não pode condenar em quantidade superior ou em objeto diverso do que se pedir”, constituindo assim causa de nulidade quando o “juiz ordene em quantidade superior ou em objeto diverso do pedido” Art. 615º n.1 alínea e) CPC”.
O Apelado B…, respondeu ao recurso, oferecendo contra-alegações, pugnando pela improcedência daquele, dizendo em suma que não ocorre qualquer nulidade de sentença e que o pedido formulado na ação não foi um pedido futuro, mas sim formulado com base em factos que decorriam na altura, pelo que a decisão tem de ser proferida reportada a essa data e não com efeitos futuros.
Admitido o recurso, cumpre decidir.
II - OBJETO DO RECURSO
O objeto do recurso delimitado pela recorrente nas conclusões das suas alegações (artigos 635.º, n.º 3 e 4 e 639.º, nºs 1 e 3, ambos do Código de Processo Civil), salvo questões do conhecimento oficioso (artigo 3.º, n.º 3, do diploma legal citado), consubstancia-se nas seguintes questões:
- nulidade da sentença por excesso de pronúncia e por falta de fundamentação da decisão;
- saber se a sentença que declara cessada a obrigação de prestar alimentos ao ex-cônjuge produz efeitos desde a data da petição inicial ou desde a data da sentença.
III - FUNDAMENTAÇÃO:
Com interesse para a decisão da causa, resultaram apurados os seguintes factos:
1. O requerente e a requerida contraíram matrimónio em 31 de Maio de 1987;
2. Através de sentença proferida em 21 de Maio de 2010, no processo que correu termos no 1° Juízo do Tribunal de Família e Menores do Porto, com o n.º 1136/09.8TMPRT, transitada em julgado em 24.6.2010, foi decretada a dissolução do aludido casamento;
3. Por sentença proferida nos autos de procedimento cautelar de alimentos provisórios, datada de 28.12.2018, que correu termos no apenso A destes autos, foi fixada a prestação de alimentos a cargo do aqui requerente a favor da aqui requerida no valor de €200 mensais;
4. Por Ac. TRP de 10.7.2013 foi confirmada a decisão proferida nos autos de procedimento cautelar de alimentos provisórios;
5. Tendo em consideração que a providência cautelar deu entrada em juízo no mês de Agosto de 2012, o requerente ficou obrigado ao pagamento da referida prestação desde aquela data;
6. Sendo certo que, escrupulosamente, tem pago a prestação fixada a favor da sua ex-mulher, desde o referido mês de Agosto de 2012 até à presente data;
7. Entretanto, na ação de alimentos definitivos de que estes autos são apensos, foi mantida a referida prestação de alimentos, por sentença datada de 19.9.2019, confirmada posteriormente pelo Ac. TRP de 1.4.2014;
8. A fixação de alimentos a favor da requerida ficou a dever-se à sua situação desempregada e consequente falta de rendimentos de trabalho, após o encerramento do infantário onde exerceu funções;
9. Foi também levado em consideração que este desemprego da requerida, face à crise económica que, à data se vivia em Portugal, se manteria por mais algum tempo, o que justificava a fixação da prestação de alimentos até que a requerida pudesse garantir a sua subsistência económica;
10. A fixação da prestação de alimentos visou permitir à requerida reorganizar a sua vida, após o divórcio, de modo a conseguir obter rendimentos próprios capazes de assegurar a sua subsistência;
11. À data da dissolução do casamento, requerente e requerida eram proprietários de uma habitação, correspondente à fração autónoma designada pela letra T, do prédio denominado …, n.º .. e … e Travessa …, n.º .. e …, da freguesia …, descrito na Conservatória do Registo Predial sob o n.º 1739 e inscrito na matriz predial urbana sob o art. 3637;
12. No seguimento do divórcio foi instaurado respetivo processo de inventário onde se integrava a referida fração autónoma;
13. À data da partilha, a referida fração tinha valor patrimonial de 72.759,16€, sendo que o casal era devedor ao Banco D… da quantia de 24.790,48€, referente capital em dívida do empréstimo concedido para, aquisição dessa mesma fração;
14. Em sede de licitações, a requerida licitou a adjudicação dessa fração pelo valor de 73.759,16€, sido este bem imóvel adjudicado à mesma;
15. Assumindo igualmente a obrigação de pagar ao banco credor o valor do capital em dívida;
16. Consequência desta adjudicação, bem como das adjudicações dos restantes móveis que integravam o património comum do casal efetuados por ambos cônjuges e ainda da assunção pela requerida do referido passivo, resultou para esta a obrigação de pagar ao requerente, a título de tornas, a quantia de 26.675,52€;
17. Pagamento que efetuou através de depósito efetuado à ordem do processo de inventário em 25.5.2017;
18. Na presente data, a requerida é a única proprietária do referido bem imóvel;
19. Trata-se de uma fração autónoma destinada a habitação T3+1, que integra um condomínio fechado e tem cerca de 13 anos de construção;
20. A requerida habita sozinha a referida fração, uma vez que a filha do casal já adquiriu a sua autonomia financeira, fruto do exercício da sua atividade profissional;
21. Se a requerida pretender manter a sua situação de inatividade profissional, sempre poderá rentabilizar esse património imobiliário, através da sua venda ou arrendamento, de forma a garantir a sua subsistência;
22. Compatibilizando essa possibilidade com o recurso a uma habitação alternativa mais económica;
23. A requerida é educadora de infância, tirou licenciatura em 1988 e trabalhou cerca de 12 anos nessa área;
24. A requerida não exerce qualquer atividade remunerada desde 2008;
25. A requerida tem atualmente 52 anos de idade;
26. A requerida não consegue obter colocação na sua área profissional;
27. Embora tenha ficado com o imóvel que constituía a casa morada de família, o valor em dívida ao Banco é de 19.440,70€ e o valor mensal ao empréstimo e de 286€, e desse montante, 143€ são pagos pela requerida, sendo a outra metade paga pela sua irmã E…;
28. A requerente tem as seguintes despesas mensais:
■ Água: 24,74€,
■ Luz: 55,83€,
■ NOS: 43,99€,
■ Quotas de Condomínio: 45,39€;
29. A estes valores ainda acrescem as despesas alimentícias e medicamentosas, com uma média de 100€ mês;
30. A requerida recebe 200€ do requerente, montante manifestamente insuficiente, dependendo por isso da ajuda financeira da sua irmã e dos seus pais ao longo destes anos;
31. O pagamento do valor de 26.675,52€ a título de tornas devidas ao requerente foram pagos pelos pais da requerida;
32. Relativamente ao imóvel adquirido em partilhas pela requerida, existe ainda uma dívida de 19.440,70€ ao banco (em 1.6.2018), e o valor mensal do empréstimo de 286€ é mais baixo do que o pagamento de uma renda de um T1;
33. A venda do imóvel não iria resolver o problema da requerida, pelo menos a longo prazo, pois necessitava de pagar uma renda noutro imóvel, de igual valor ou até superior;
34. Contudo, ainda que quisesse vender o imóvel a requerida não o pode fazer;
35. O valor dos 26.675,52€ emprestados pelos pais da requerente para pagamento de tornas ao requerente, foi feito na condição de o imóvel passar também para o nome da sua irmã, E…, para que essa não saísse prejudicada em termos de futuras partilhas;
36. Esse é também um dos motivos pelos quais a irmã da requerida paga metade do empréstimo do imóvel, pois oportunamente o imóvel passará a ser também sua propriedade;
37. Assim sendo, a requerida paga 143€ mensais de empréstimo e não arranjaria outro imóvel para arrendar pelo mesmo valor;
38. Em Setembro de 2018, a requerida não apresentava quaisquer contribuições, assim como não auferia quaisquer prestações, subsídios ou pensões (fls. 40);
39. Em 9 de Outubro de 2018, o IEFP, IP veio informar que:
a) A requerida se inscreveu no Centro de Emprego e Formação Profissional F… no dia 26.10.1993, tendo tal inscrição sido anulada em 14.2.1994, por falta a convocatória;
b) A requerida se inscreveu no Centro de Emprego e Formação Profissional F… no dia 14.10.1998, tendo tal inscrição sido anulada em 9.6.1998, por falta a convocatória;
c) A requerida se inscreveu no Centro de Emprego e Formação Profissional F… no dia 28.7.2016, tendo tal inscrição sido anulada em 28.7.2016, por falta ao controlo;
40. Mais informou o IEFP que a requerida não frequentou qualquer formação desenvolvidas pelo IEFP e que, em 8.8.2012 a requerida foi apresentada para oferta de emprego, nas foi recusada pela entidade empregadora;
41. Em 28 de Novembro de 2018, o Gabinete de Inserção Profissional – Junta de Freguesia G… informou que a requerida não se encontrava inscrita naquele GIP, embora já tenha estado presente no referido serviço, em 19.04.2018, por motivo de comparência a convocatória;
42. A fls. 88 a 96 encontram-se cópias de publicações feitas pelo GIP- G…, relativamente a propostas/ofertas de emprego, não só como educadora de infância, mas também empregada de mesa/ajudante de cozinha/ajudante de copa/empregada de andares, auxiliar de educação de infância, educadores de infância, nanny, auxiliar de geriatria, empregada de refeitório, auxiliar de ação educativa, operador de produção, funcionária de lavandaria, nanny externa, nanny interna, ajudante de ação educativa, educadora/ auxiliar de educação, mães SOS, auxiliar de ação direta, funcionária de loja, educador social, etc.
E considerou não provados os seguintes factos:
a) O imóvel que a requerida adquiriu em partilhas tem atualmente um valor de mercado de, pelo menos, 120.000€;
b) O requerente não tem capacidades económicas para adquirir a sua habitação própria e permanente, pelo que vive num apartamento arrendado e de menores dimensões do que aquele que foi adquirido pela requerida;
c) A requerida não tem formação, nem os requisitos exigidos para alguns dos anúncios referidos no ponto 42) dos factos provados, ou que tem qualificações a mais para os mesmos, razão pela qual é rejeitada;
d) Anúncios como os da H… ou empregada de refeitório preferem sempre pessoas mais jovens do que a requerida;
e) A requerida, apesar de tentar, não consegue obter colocação na sua área profissional;
f) Quando a requerida envia candidaturas para auxiliar de educação, categoria que exercia antes de tirar a sua licenciatura, é-lhe dito que tem habilitações a mais e que a sua candidatura não poderá sequer ser equacionada;
g) A requerida envia com frequência currículos para outras áreas de atividade, mas em virtude da sua idade e falta de experiência profissional, nunca passa à segunda fase da entrevista de emprego.
IV - APLICAÇÃO DO DIREITO
Como decorre das alegações de recurso, a aqui Apelante apenas recorre da parte decisória da sentença que estabeleceu como data do início dos efeitos da sentença “a data de entrada em juízo da presente ação”, defendendo que a mesma deva ser anulada e revogada quanto a essa parte.
Na sentença proferida foi decretada a extinção da pensão de alimentos devidos á aqui Apelante por parte do Apelado, seu ex-cônjuge.
Defende a Apelante que não tendo o Apelado formulado na petição inicial um pedido expresso para a cessão da obrigação de alimentos retroagir á data da petição inicial, ocorre violação, na sentença, do disposto no n.º1 do artigo 609º CPC que dispõe que “ A sentença não pode condenar em quantidade superior ou em objeto diverso do que se pedir”, ocorrendo desta forma a causa de nulidade Art. 615º n.1 alínea e) CPC”: o “juiz ordene em quantidade superior ou em objeto diverso do pedido” Art. 615º n.1 alínea e) CPC”.
Vejamos se é assim.
O disposto no art. 609º nº 1 do CPC é um corolário do princípio do dispositivo. A decisão tem de coincidir com os petita partium.[1]
Ora não se vê que a sentença tenha ultrapassado aquilo que o Autor pediu - que se julgasse cessado o direito a alimentos da autora - para o que o tribunal atendeu aos factos invocados na petição inicial.
A ação mostra-se julgada de acordo com a situação existente no momento da propositura da ação. Este é o princípio processual aplicável, mesmo nas ações de natureza constitutiva.
Só não se trata de um princípio rígido, porque a lei manda atender, em determinadas situações, aos factos supervenientes, isto é aos factos ocorridos entre a data em que a ação é proposta e a data em que a sentença é proferida desde que se tratem de factos que segundo o direito substantivo aplicável tenha influência sobre a existência ou o conteúdo da relação controvertida (cfr. art. 611º do CPC).
A ação interposta pelo Autor, ora Apelado tem por efeito obter a extinção da obrigação de alimentos á sua ex-cônjuge.
Visa assim, a autorização judicial duma mudança na ordem jurídica existente, tendo por isso a natureza de ação constitutiva- art. 10º al c) do C.P.C.
Com estas ações pretende-se a produção de um novo efeito jurídico, seja criando uma relação jurídica nova, seja modificando ou extinguindo uma relação jurídica já existente.
As ações constitutivas são o instrumento processual adequado ao exercício de certos direitos potestativos, justamente aqueles cujos efeitos só se conseguem através duma ação judicial.
Cumpre ao juiz verificar se o autor reúne na sua esfera jurídica condições para desencadear o efeito pretendido.
No caso estamos perante uma ação constitutiva extintiva, já que o autor dirigiu-se ao tribunal pretendendo a extinção da obrigação de pagamento de alimentos ao seu ex-cônjuge.
E o autor alega na causa de pedir, os factos constitutivos da extinção de tal obrigação, ocorridos na data da propositura da ação.
As sentenças proferidas nas ações constitutivas operam uma modificação jurídica. No caso, o direito potestativo exercitado através da ação foi, declarado extinto, nada impedindo, porém que os efeitos “extintivos” retroajam á data da propositura da ação.
Assim sendo, não se pode entender que tenha ocorrido violação dos limites da condenação impostos pelo art. 609º do C.P.C., e excesso de pronúncia por parte do tribunal, que reconhecendo, na sentença que deixaram de subsistir, pelo menos desde a data da propositura da ação, os pressupostos daquela obrigação, determinou a sua cessão desde essa data, ou seja, desde a data em que tal extinção foi peticionada em juízo.
Invoca ainda a Apelante a nulidade da sentença por falta de fundamentação, uma vez que o Tribunal a quo aplicou o artigo 2006º do C.C. por referência ao acórdão do TRL de 19.2.2013, sem interpretação e fundamentação da norma e jurisprudência invocada, impondo ausência de motivação que impossibilite a revelação das razões que levaram à opção final, constituindo um causa de nulidade desta parte da sentença (Art. 678º alínea b) CPC).
Também aqui é manifesta a falta de razão da Apelante.
Decorre do disposto no art.º 615.º, n.º 1, alíneas b) e d), do Código de Processo Civil que a sentença é nula – entre o mais – quando o juiz deixe de pronunciar-se sobre questões que devesse apreciar ou não especifique os fundamentos de facto e de direito que justificam a decisão.
Trata, tal como o anterior analisado, de vício de natureza formal e não substancial.
Decorre do disposto no art.º 608.º, n.º 2, do CP Civil que “O juiz deve resolver todas as questões que as partes tenham submetido à sua apreciação, excetuadas aquelas cuja decisão esteja prejudicada pela solução dada a outras (…).
Remetendo-se para a interpretação que vem sendo feita reiteradamente pelo Supremo Tribunal de Justiça, devem considerar-se “questões” para este efeito “os temas alegados pelas partes que constituem, de forma direta e imediata, dados integradores dos elementos constitutivos ou impeditivos dos direitos cuja tutela é procurada pelas partes na instância, na lógica e na perspetiva dos pedidos.” [2] Por outro lado, a doutrina e a jurisprudência têm decidido de forma reiterada e unânime que a falta de fundamentação só existe no caso de se verificar uma absoluta e total falta de fundamentação, quer ao nível do quadro factual apurado quer no que respeita ao respetivo enquadramento legal.
Por contraponto, a sentença que contenha uma fundamentação deficiente ou incompleta poderá padecer de vários vícios, mas não será, por esta via, nula.
No caso em apreço, como aliás a própria Apelante reconhece, a sentença na parte impugnada, cita uma norma jurídica e jurisprudência (o acórdão supra indicado), que sustentam a posição tomada, pelo que a decisão mostra-se devidamente fundamentada, improcedendo a nulidade invocada.
Detenhamo-nos agora na questão fulcral do recurso que é a de saber se a cessão da obrigação de prestar alimentos ao ex-cônjuge decretada em ação intentada para esse efeito, deve ou não retroagir á data da petição inicial.
O Autor intentou a presente ação de natureza constitutiva extintiva, como vimos, tendo em vista obter a declaração judicial da cessação da obrigação de alimentos que fora judicialmente decretada, invocando na p.i a desnecessidade de alimentos pela sua ex-cônjuge, por deles já não carecer, alegando que aquela passou a ter capacidade financeira e bens próprios de que pode dispor para fazer face às suas próprias necessidades.
Recai sobre quem invoca a alteração das circunstâncias determinantes da fixação dos alimentos o ónus de alegação e prova dessa alteração, ou seja, neste caso tal ónus incidirá sobre o autor da ação que tem em vista o reconhecimento dessa alteração (art.º 342.º n.º 1 do Código Civil), o que ocorreu, na situação em apreço, já que o tribunal na sentença proferida declarou cessada a obrigação do requerente prestar alimentos á requerida, por ter ficado demonstrada a situação de desnecessidade invocada.
Porém, não é contra esta decisão que a Requerida se insurge, mas sim, contra o facto do tribunal, na sentença, ter determinado que a cessação produz efeitos “desde a data da entrada em juízo desta ação”.
O tribunal determinou a cessação da obrigação de prestar alimentos, por ter julgado verificada a causa alegada na p.i da ocorrência de desnecessidade da pessoa a favor de quem os mesmos eram prestados.
Decorre da al. b) do nº 1 do art.º 2013º do Código Civil que a obrigação de prestar alimentos cessa quando aquele que os presta não possa continuar a prestá-los ou aquele que os recebe deixe de precisar deles.
A respeito da interpretação deste preceito legal, escrevem Pires de Lima e Antunes Varela [3], que “esta parte da disposição pode, em bom rigor, considerar-se desnecessária, visto ela constituir um mero arredondamento da solução consagrada na disposição anterior e um simples corolário da ideia fixada no artigo 2004º. Com efeito, se a alteração posterior das circunstâncias determinantes da prestação alimentícia, de harmonia com o disposto no artigo 2012º, pode determinar a redução dos alimentos, se diminuir ou afrouxar a necessidade do credor, bastará arredondar (ou completar) o pensamento dessa norma para concluir que a obrigação deve cessar, quando de todo em todo cesse, por qualquer circunstância, o stato di bisogno de quem dela beneficia”.
A alteração dos alimentos judicialmente fixados só pode ter por fundamento, nos termos do disposto no artigo 2012.º do Código Civil, a alteração de circunstâncias determinantes da sua fixação, o que entronca necessariamente na alteração das necessidades do alimentado, das possibilidades do alimentante, ou em ambas.
Sendo a obrigação alimentícia uma obrigação duradoura que assenta fundamentalmente em dois pilares básicos – as necessidades económicas de quem recebe versus as disponibilidades económicas de quem paga – e, sofrendo tais fatores, necessariamente, alterações, a lei permite que o quantitativo da prestação se adapte, através de um aumento, uma redução ou mesmo através da cessação da obrigação, a todo o momento, e em face da mutação daqueles fatores.
Na situação em apreço, está em causa a obrigação de alimentos entre ex-cônjuges.
“Por alimentos entende-se tudo o que é indispensável ao sustento, habitação e vestuário”. Na vigência da sociedade conjugal – lê-se no artigo 2015º - (…) os cônjuges são reciprocamente obrigados à prestação de alimentos, nos termos do artigo 1 675º”.
Com a reforma do C. Civil levada a efeito pela Lei 61/2008, de 31-10, inspirada nos Princípios de Direito da Família Europeu Relativos a Divórcio e Alimentos entre ex-cônjuges publicados em 2004, a Lei nº 61/2008 passou a atribuir cariz excecional àqueles, tendo o legislador afirmado, expressamente, o princípio de que, depois do divórcio, cada cônjuge deve prover à sua subsistência (cfr. n.º1, do art.º 2016º), o que já resultava das normas gerais sobre alimentos (cfr. n.º 2, do art. 2004º), deixando, contudo, expresso que o cônjuge credor não tem o direito de exigir a manutenção do padrão de vida de que beneficiou na constância do matrimónio (cfr. n.º3, do art.º 2016º-A).
Com esta orientação o legislador visou explicitar, de uma forma clara, que o direito a alimentos na sequência do divórcio só se constitui se o ex-cônjuge não tiver possibilidades de prover à sua subsistência.
O legislador optou, claramente, por aderir ao chamado princípio da autossuficiência, conferindo, em regra, ao direito a alimentos entre ex-cônjuges carácter temporário e natureza subsidiária.
Assim sendo, o direito a alimentos entre ex-cônjuges, assentando num dever assistencial que perdura para além do casamento, passou a ter assumidamente carácter subsidiário, excecional e temporário.
“Com a redação dos n.s 1 a 3 do artigo 2016º e 2016º-A do CC, introduzida pela Lei n.º 61/2008, de 31-10, o princípio geral, em matéria de alimentos entre ex-cônjuges, após o divórcio ou a separação judicial de pessoas e bens, é o do seu carácter excecional, expressamente, limitado e de natureza subsidiária, com base na regra de que “cada cônjuge deve prover à sua subsistência” e de que “o direito a alimentos pode ser negado, por razões manifestas de equidade”.[4]
Quanto á questão de saber desde quando são devidos os alimentos e a partir de quando se devem considerar cessados os alimentos, há que atender ao disposto no art. 2006º do C.C que expressamente dispõe que os mesmos são devidos desde a proposição da ação.
Diz Abel Pereira Delgado a este propósito que “a lei consagrou a orientação que se baseia no princípio de que não são devidos alimentos quanto ao passado (nemo alitur in praeteritum; in praeterintum non vivitur). Aquele que é por lei obrigado a prestar alimentos, mas a quem eles não são pedidos, pode supor - diz a Revista de legislação e Jurisprudência- que o titular do direito aos alimentos prescinde deles ou não carece deles e gastar, por conseguinte, na satisfação das suas próprias necessidades, todos os seus réditos”.[5]
Porém, se o art. 2006º do C.Civil consagra o momento a partir de quando são devidos, nada diz quanto á ao momento da sua cessão.
Sabemos apenas que os alimentos cessam verificadas as circunstâncias elencadas no art.º 2013º do Código Civil.
No caso em apreço, a obrigação de prestar alimentos cessou porque aquele que os recebe deixe de precisar deles (nº 1 al b) da norma citada).
Se isto é assim relativamente aos alimentos definitivos, constata-se que, relativamente aos alimentos provisórios, o art. 2007º, no seu nº 2 expressamente consagra a regra da proibição da sua restituição, ao dizer: “Não há lugar, em caso algum, á restituição dos alimentos provisórios recebidos.”.
Coloca-se então a questão de saber se o legislador aceitou como princípio geral, o princípio segundo o qual os alimentos não se restituem, ou se acolheu este princípio, apenas relativamente aos alimentos provisórios.
A razão de ser deste princípio acolhido no art. 2007º é a de que os alimentos se destinam a ser consumidos por aquele que deles carece.
Mas se o legislador expressamente acolheu este princípio relativamente aos alimentos provisórios, mas não o fez, relativamente aos alimentos definitivos, mostra-se legitima a dúvida relativamente á questão de saber se relativamente a estes, pode haver lugar á sua restituição, em caso de, na ação de cessação de alimentos, ter ficado demonstrada (desde a propositura da ação), a desnecessidade de quem os recebe.
Já o Prof. Pereira Coelho ensinava, citando Vaz Serra e acompanhando o Ac. STJ de 07.05.1963 (in Boletim n.º 127; pág. 145), que “as mesmas razões que justificam o princípio de que não são devidos alimentos quanto ao passado justificarão, também, que não haja obrigação de restituir os alimentos já recebidos antes daquela declaração ou, pelo menos, antes de ter sido pedida a extinção ou redução de alimentos”. [6]
Na interpretação da posição tomada pelo legislador, concordamos com a posição defendida por Pereira Delgado, [7] quando exterioriza o seu raciocínio, que mantém toda a atualidade, desta forma:
“Não há a propósito dos alimentos definitivos, disposição similar á do art. 2007º nº 2 do Código Civil.
Ora, e precisamente por virtude desta disposição, parece que o legislador não aceitou o principio, segundo o qual, os alimentos não se restituem, uma vez que se destinam a ser consumidos por aquele que, deles carece.Com efeito, ou aceitava o princípio e não dizia nada, nem em relação aos alimentos provisórios nem em relação aos alimentos definitivos; ou não aceitava o princípio e, para não haver restituição, teria de o dizer.
Assim, e porque disse que não há restituição dos alimentos provisórios é porque não aceitou o princípio e, porque nada disse quanto aos alimentos definitivos, é porque há lugar á restituição destes."
O argumento preponderante a favor da possibilidade de restituição dos alimentos definitivos reside precisamente no facto do legislador, ter expressamente acolhido o princípio relativamente aos alimentos provisórios e nada dizer quanto aos definitivos, cabendo aqui o entendimento que não quis acolher a existência de tal restrição quanto a estes.
O legislador proíbe expressamente a “restituição dos alimentos provisórios recebidos”, mas não proíbe a restituição de alimentos definitivos que tenham sido recebidos.
A diversa natureza dos alimentos provisórios e definitivos [8] justifica a diversidade de tratamento operada pelo legislador.
No caso em apreço, considerando-se que o dever assistencial entre ex-cônjuges após o casamento passou a ter assumidamente carácter subsidiário e excecional, menos razão de ser tem o princípio que justifica a não restituição, porquanto os ex-cônjuges não podem ignorar a excecionalidade e o carácter subsidiário da prestação de alimentos.
Não se pode igualmente perder de vista a provisoriedade dos alimentos atribuídos.
Concluímos assim que, tendo cessado as circunstâncias de carater excecional que determinaram a fixação de alimentos á aqui Apelante, os alimentos deixam de ser devidos desde a data da propositura da ação - data em que se verificam as circunstancias que determinaram a extinção da obrigação de prestar alimentos.
Os alimentos deixam de ser devidos desde a data da propositura da ação de cessação de alimentos, produzindo a sentença proferida nesta ação que declara cessada tal obrigação, efeitos ex tunc.
Se o legislador (que optou por pronunciar-se expressamente sobre a questão da restituição dos alimentos) quisesse impedir tal efeito, teria de ter consagrado o princípio da não restituição dos alimentos relativamente aos alimentos em geral, fossem eles definitivos ou provisórios, princípio que, por opção, consagrou apenas relativamente aos alimentos provisórios.
Finalmente, não ocorre qualquer violação do princípio da segurança jurídica e da confiança, como defende a Apelante, porquanto a mesma não podia desconhecer a natureza excecional e provisória da decisão que lhe reconheceu o direito a alimentos, após o divórcio, em face do novo quadro legislativo em vigor na nossa ordem jurídica desde há mais de 10 anos.
O princípio geral vigente na nossa ordem jurídica é o que “cada cônjuge deve prover à sua subsistência”, sendo pois da sua responsabilidade a angariação dos meios necessários à sua subsistência, tal como determina o referido n.º 1 do artigo 2016º do Código Civil.
Assim sendo, confirma-se a sentença proferida.
V - DECISÃO
Pelo exposto e em conclusão, acordam os Juízes que compõem este tribunal em julgar improcedente o recurso, confirmando-se a sentença recorrida.
Custas pela Apelante.

Porto, 12 de Novembro de 2019.
Alexandra Pelayo
Vieira e Cunha
Maria Eiró
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[1] Referência á velha máxima romana “ne eat iudex ultra vel extra petita partium”.
[2] In Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 13/12/2000 proferido na Revista n.º 715/99 e constante de Sumários 37º. Veja-se, no mesmo sentido, Lebre de Freitas in “Do conteúdo da base instrutória” in Julgar, n.º 17, Coimbra Editora, pág. 71.
[3] Código Civil Anotado volume V, pág. 603.
[4] Ver o Ac. STJ de 3/3/1998, sumariado em www.dgsi.pt.
[5] Pereira Delgado, in Do Divórcio e Separação de Pessoas e Bens, Coimbra 1971, pg 218.
[6] Curso de Direito de Família; I - Direito Matrimonial - Tomo 2.º - pág. 364.
[7] Ob cit, pg. 219.
[8] Os alimentos provisórios funcionam como um primeiro auxílio, um “primeiro socorro” prestado em sede de medida cautelar urgente, a quem, em função da idade, das condições físicas ou de circunstâncias de ordem económica ou familiar, se encontra numa situação de carência no que concerne à satisfação do que é essencial à condição humana.