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ACTIVIDADES PERIGOSAS
PRESUNÇÃO DE CULPA
Sumário
Sumário (da relatora):
.1- É possível entender-se como atividade perigosa para os efeitos previstos no artigo 493º nº 2 do Código Civil e o recurso à especial presunção de culpa para a responsabilização do locador do material próprio para a prática de kitesurf, a locação de todo o material necessário para o efeito, junto ao local onde vai ser realizada tal modalidade desportiva perigosa, porquanto o locador nessas circunstâncias está a promover diretamente a prática de kitesurf, organizando para esse efeito um conjunto de meios físicos e humanos, exigindo-se, então, a quem comercializa, que arque também com o ónus de zelar de forma mais cuidada pela segurança daqueles que utilizam o conjunto de elementos que compôs.
2- No entanto, o aluguer de apenas alguns dos componentes do kit essencial para a prática do kitesurf, mas não toda a parafernália, desprovido, entre o mais, da própria prancha, sem quaisquer outras características que possam levar a concluir que tal atividade comercial implica o fornecimento da experiência da prática desse desporto, visto que o cliente deterá já os demais elementos que virão a ser necessários para o seu usufruto, afasta o locador de contexto que permita inserir tal locação no âmbito da promoção dessa atividade ou organização dos meios destinados ao exercício dessa atividade, pelo que não pode ser relacionado de forma direta com o posterior uso que dele foi efetuado.
3- Por isso, a simples locação de uma asa e barra de kitesurf não pode ser considerada uma atividade perigosa para os efeitos previstos no nº 2 do artigo 493º do Código Civil.
Texto Integral
Acordam no Tribunal da Relação de Guimarães
Autor e ApelanteP. C. (..) casado, contribuinte fiscal número (…), residente na Rua (…),Porto
Ré e Apelada: Companhia de Seguros (…)., pessoa coletiva nº (…), com sede na Rua (…) Lisboa
Autos de: apelação (em ação declarativa de condenação com processo comum)
I- Relatório
O Autor pediu que fosse proferida sentença, pela qual se decidisse condenar a Ré a pagar-lhe:
a) A quantia de € 36.506,00;
b) A quantia a liquidar em sede de execução de sentença pela perda da capacidade ganho futuro e dano biológico;
c) Quantias estas acrescidas de juros de mora à tW legal de 4% contados desde a citação até efetivo e integral pagamento.
Para tanto, alegou, em síntese, que alugou um kite e barra à sociedade “X Desporto e Aventura, Lda”, que comercializa e aluga material técnico destinado a desportos náuticos, equipamento para a prática de Kitesurf e porque esta não procedeu ao ajustamento e afinações dos equipamentos que lhe alugou, sofreu acidente, de que aquela foi a única responsável; uma vez que o Kitesurf é considerado um desporto radical e configura uma atividade perigosa, quer quanto à atividade em si mesma, quer quanto aos meios utilizados para a pôr prática, por envolver riscos acrescidos de lesões corporais e matériais, presume-se a culpa de quem tem o encargo da vigilância da sua prática.
Por contrato de seguro titulado pela Apólice n.º 203247559, a sociedade X Desporto e Aventura, Lda” transferiu para a Ré a responsabilidade civil pelo pagamento de indemnizações por danos causados a terceiros decorrentes da sua atividade de operador marítimo turístico, no caso, emergentes do aluguer do uso de equipamentos para a prática de Kitesurf.
A Ré contestou, invocando, em súmula, que o sinistro ficou a dever-se a culpa exclusiva do Autor; o mesmo enquadra-se, tout cout, no âmbito da cobertura dos seguros desportivos obrigatórios e não no âmbito da apólice aqui demandada adequada às outras atividades prosseguidas pela segurada da Ré, porquanto a locação de equipamentos desportivos não pode ser considerada como uma atividade perigosa, tendo em conta a natureza do contrato de aluguer.
Saneados os autos, realizou-se julgamento e foi proferida sentença, ora sob recurso, a qual julgou a ação totalmente improcedente e absolveu a Ré de todos os pedidos formulados.
No recurso que interpôs, o Autor, pugnando pela procedência da ação formulou as seguintes conclusões:
“1. Entende o Recorrente ter sido incorretamente e parcialmente julgado o ponto 13 dos factos com base: na decisão proferida sobre a matéria de facto, remetendo para as gravações do depoimento da testemunha N. L., inquirida na sessão de julgamento do dia 26/03/2019, cujo depoimento se encontra gravado em suporte digital com início às 14h07m:08s e termo às 10h52:19s (minuto 10:25 a 11:00, minuto 11:15 a 11:27, minuto 24:12 a 24:40 e minuto 25:00 a 25:20) - Ata de 26/03/2019 - e das declarações da parte-Autora P. C. prestadas na sessão de julgamento do dia 2/04/2019, se encontram gravados em suporte digital com início às 16h10m:13s e termo às 16h53:57s (minuto 6:20 a 7:08) - ata de 2/04/2019 - efetuadas através do sistema de gravação digital disponível no Tribunal, cujas passagens estão transcritas e se dão por reproduzidas (art.640.º do CPC). 2. Para além dos factos provados em 13: Sucedeu então que nessa manobra, o kite subiu, tendo projetado o Autor a cerca de 2 metros de altura, outra factualidade também deveria ter sido julgada provada, atentos os depoimentos prestados. 3. Face ao exposto a decisão do ponto 13 dos factos provados deve passar a ter a seguinte redação: Sucedeu então que nessa manobra, o kite subiu com um potência anormalmente excessiva e totalmente imprevisível, tendo projetado o Autor a cerca de 2 metros de altura. 4. Face aos factos provados, não restam bem ao Recorrente nem Tribunal dúvidas ser a prática de kitesurf uma atividade perigosa, um desporto radial, isto é “desporto (pt) radical, de aventura ou de ação são usados para designar desportos com maior grau de risco físico, dado às condições de altura, velocidade ou outras variantes em que são praticados. Tais desportos são assim considerados por oferecerem mais riscos do que os desportos em geral” (wikipédia https://pt.wikipedia.org/wiki/Esporte_de_aventura) “Exemplos de esportes radicais: kitesuf (wikipédia). São desportos radicais, pela sua natureza, a navegação marítima, como o Kitesurf, a circulação de motos de água (Ac. STJ de 30/11/2004, CJ-STJ, 2004, III, p.127) ou o karting (Ac. RG de 11/05/2017, P.526/13.6TBFAF.G1) 5. Discorda-se da douta sentença na parte em que refere não ser o aluguer de equipamento de kitesurf por parte da segurada na Recorrida X, Lda uma atividade perigosa demarcando-a da praticada pelo Autor. Na verdade, deve ser considerada atividade perigosa aquela que possui uma especial aptidão para produzir danos, um perigo especial, uma maior suscetibilidade ou aptidão para provocar lesões de gravidade e mais frequentes. 6. O aluguer do equipamento para prática da atividade perigosa de kitesurf coloca o locador aqui Recorrente (que pagou o preço para o utilizar) sob a alçada do art.493.º/2 do CC, “Efectivamente, quem tem uma actividade que é perigosa para terceiros [utilizadores], colhendo naturais e concomitantes benefícios dessa actividade, terá que tomar todas e provar que tomou todas as providências para obviar ao despoletar das consequências dos riscos inerentes para que não seja responsabilizado civilmente, pois que, a não ser assim, então teríamos terceiros a sofrerem danos ente, pois que, a não ser assim, então teríamos terceiros a sofrerem danos e a serem eles próprios a arcarem, sem qualquer ressarcimento, com as consequências das actividades perigosas de outros e que delas tiram proveito” (Ac. STJ de 17/05/2017, P. 1506/11.1TBOAZ.P1.S1). 7. Aliás, se assim não fosse não haveria razão para a segurada da Ré “X – Desporto e aventura, Lda”, operador marítimo turístico que se dedica ao aluguer de material destinado a desportos náuticos, não estar obrigado a efetuar um seguro obrigatório de responsabilidade civil com a cobertura mínima de € 50.000,00 por danos causados aos utilizadores e a terceiros – arts.5.º, 14.º e n.º 1 e 5, a) do Anexo II do DL 149/2014, de 10 de outubro. 8. Face ao exposto, uma vez que o art.493.º/2 do CC estabelece uma presunção de culpa de quem exerce uma atividade perigosa, invertendo o ónus da prova (art.344.º do CC), “o lesante [X /seguradora] só poderá exonerar-se da responsabilidade, provando que empregou todas as providências exigidas pelas circunstâncias para os evitar” (PIRES DE LIMA / ANTUNES VARELA, Código Civil anotado, cit. p.496) 9. Não tendo a Recorrida provado ter a sua segurada X, Lda adotadas todas as precauções e/ou informações que as circunstâncias do caso reclamavam ou alegado e provado factos que excluíssem essa responsabilidade, é aplicável in casu este comando normativo, tendo esta violado o disposto no art.493.º/2 do CC. 10. Por outra sorte, o facto de ter sido celebrado um contrato de aluguer entre o Recorrente e a segurada da Recorrida, não conduz à inaplicabilidade do disposto no art.493.º/2 do CC, inserido na secção V do Código Civil reservada à responsabilidade civil extracontratual por factos ilícitos, como parece decorrer da sentença recorrida, ao chamar à colação o instituto da responsabilidade contratual (art.798.º e ss do CC) para excluir a responsabilidade da segurada da Ré. 11. Por ser praticamente pacífico na doutrina e jurisprudência o entendimento de que se um facto é simultaneamente gerador de responsabilidade extracontratual e contratual, tal não obsta, por ter ocorrido a violação de direitos absolutos do Autor (art.483.º e ss do CC), ofensa à sua integridade física – contusões e lesões pulmonares, traumatismo torácico com fratura do esterno, dorsal, duas costelas e coluna vertebral que lhe causaram fortes e intensas dores -, a que seja aplicável o regime que lhe for mais favorável no caso, ou seja, o extracontratual (art.493.º/2 do CC) é que “com o contrato, se não exclui o dever geral de não ofender os direitos ou interesses de outrem protegidos pelas regras da responsabilidade delitual, querendo-se, antes, reforça-lo; e que, por isso, a responsabilidade contratual não exclui a delitual” (VAZ SERRA, RLJ, 102.º/ p.313). Razão por que é aplicável ao acidente estatuído no art.493º/ 2 do CC. 12. Provado que o Autor, em consequência do acidente: foi projetado a uma altura da reia de cerca de 2 metro, caiu na areia tendo perdido a consciência, e, em seguida e já inanimado, foi arrastado uns metros pelo areal; sofreu contusões e lesões pulmonares, traumatismo torácico com fratura do esterno, dorsal, duas costelas e coluna vertebral que lhe causaram fortes e intensas dores; precisou de usar colar cervical e colete spinomed; não podia levanta-se nem deambular, tendo permanecido imobilizado na cama do hospital durante 25 dias; Teve alta no dia 27 de Julho de 2016 (24 dias após o acidente), tendo-lhe sido ministrada até então medicação para aliviar as intensas dores que sentia na região cervical, dorsal, tórax e externo; medicação que continuou a tomar após alta clínicas;fruto das lesões sofridas e acima descritas, o Autor permaneceu em casa deitado e dependente da ajuda de uma terceira pessoa para o auxiliar nas suas tarefas básicas como alimentação e higiene pessoal; as semanas que se seguiram ao acidente foram de grande sofrimento para si; sentia fortes dores; sentia-se desanimado e deprimido devido à condição física em que se encontrava, que o impedia de manter a sua normal rotina diária e vida ativa; em janeiro de 2017, retomou a atividade profissional de médico veterinário e teve de utilizar um colete específico para efetuar intervenções cirúrgicas, a fim de atenuar as dores; desde que retomou a atividade profissional de médico veterinário, em Janeiro de 2017, teve de utilizar um colete específico para efetuar intervenções cirúrgicas, que realiza diariamente, a fim de atenuar as dores; à data com 44 anos, sempre foi uma pessoa muito ativa, dinâmica e autónoma; deixou de praticar Kitesurf, ténis, futebol e snowboard. 13. Mostra-se adequada (até parcimoniosa) a condenação da Recorrida Companhia de Seguros Y no pagamento, pela compensação pelos danos não patrimoniais sofridos pelo Autor (art.496.º do CC), na quantia de € 20.000,00, acrescida de juros de mora devidos desde a citação da Ré até pagamento. Subsidiariamente, 14. Ainda que se considere, como fez a sentença recorrida, que a atividade de kitesurf praticada pelo Autor é, conjuntamente, com a segurada da recorrida, configurável como atividade perigosa, o certo é que, da factualidade provada resulta que aquele adotou as precauções e cuidados que as circunstâncias objetivamente exigiam, a saber: detinha formação acumulada ao longo dos últimos seis anos com professores de kitesurf, em locais como Cabo Verde, Tarifa, Algarve, Esposende e Viana do Castelo; aprendeu as regras de segurança e conhecia os riscos que a prática deste desporto radical acarreta; nesse dia, ao iniciar a prática de kitesurf, colocou-se na “janela” do vento ao mesmo tempo que um outro praticante da modalidade o auxiliava a levantar a asa; confirmou que as linhas do Kite estavam corretamente alinhadas e sem cruzamentos; deu então instrução ao outro praticante para libertar o kite. sucedeu então que nessa manobra, o kite subiu com um potência anormalmente excessiva e totalmente imprevisível, tendo projetado o Autor a cerca de 2 metros de altura. 15. Atento o supra exposto, ficou demonstrado ter o Autor empregado todas as providências por si conhecidas e que as circunstâncias concretas reclamavam para evitar qualquer acidente, pelo que, e ao contrário da Recorrida que nada sobre o ponto provou, este não poderá ser responsabilizado por violação do segmento final do art.493.º/2 do CC. 16. Neste termos deve a sentença recorrida ser revogada e a Ré ser condenada a pagar ao Autor a importância de € 20.000,00 acrescida dos respetivos juros, bem como a quantia a liquidar em execução de sentença pela perda da capacidade de ganho futuro e dano biológico, valor dos óculos, fato isotérmico e colete de proteção.”
Foi apresentada resposta, com as seguintes conclusões:
A. Não resulta, nem do depoimento da testemunha N. L., nem das declarações de parte do Autor que “o kite subiu com uma potência anormalmente excessiva e totalmente imprevisível”, B. razão pela qual deverá manter-se a redacção do ponto 13º da matéria de facto dada como provada na sentença recorrida. C. Ainda que se pudessem extrair ais conclusões que o A/Recorrente invoca, dos referidos depoimento por si referidos e declarações de parte – no que não se concede -, as mesmas não seriam idóneas a atribuir a causa do sinistro a qualquer avaria/desconformidade/desafinação dos equipamentos alugados pelo autor à Segurada da Ré. D. Não obstante, as causas do sinistro não terem resultado apuradas, este pode ter ocorrido devido a vários factores, verificados isoladamente ou em conjugação, tais como, o mau posicionamento do kite; vento forte e muito rajado; imperícia do Autor, etc. E. Todavia, nenhum deles ficou provado que se tivesse ficado a dever e/ou relacionado com o equipamento locado. F. Assim, também por este conjunto de razões se deverá manter inalterado o ponto 13º dos factos dados como provados pelo Tribunal recorrido. G. Entre o Autor e a segurada da Ré foi celebrado um contrato de locação de equipamento destinado à prática de kitesurf, razão pela qual o sinistro se enquadraria no domínio da responsabilidade civil contratual – Artºs 798º e seguintes do C. Civil. H. A locação de equipamentos de kitesurf não é uma actividade perigosa, não obstante já a prática de kitesurf pode e deve ser considerada como tal, perigosa. I. Assim sendo, em qualquer circunstância, face aos factos provados, sempre o sinistro estria afastado da previsão do nº 2 do Artº 493º do C. Civil. J. A recorrida logrou afastar a presunção de culpa que sobre a sua segurada, X, impendia – nº 1 do Artº 799º do C. Civil, uma vez que, K. provou que esta agiu com a diligência de um bom pai de família (nº 2 do Artº 799º e Artº 487º do C. Civil) – vide factos provados 2, 3, 6 e factos não provados 2.º, 7.º e 8.º parágrafos. L. O contrato de locação foi cumprido pontualmente, razão pela qual nenhuma responsabilidade pode ser assacada à X e, consequentemente, à Y. M. Constata-se, da prova produzida, não terem resultado provados três dos pressupostos da obrigação de indemnizar: a ilicitude; a culpa da segurada da Y - traduzidas estas no incumprimento ou no cumprimento defeituoso do contrato de aluguer -, nem a existência de nexo de causalidade entre o aluguer do equipamento/equipamento alugado e o sinistro, N. pelo que, têm que ser julgadas improcedentes todas as pretensões indemnizatórias do Autor peticionadas nos autos. O. A sentença recorrida fez uma correcta interpretação dos factos e uma inquestionável e ponderada aplicação do Direito aos factos que considerou provados,
II- Objeto do recurso
O objeto do recurso é definido pelas conclusões das alegações, mas esta limitação não abarca as questões de conhecimento oficioso, nem a qualificação jurídica dos factos (artigos 635º nº 4, 639º nº 1, 5º nº 3 do Código de Processo Civil).
Este tribunal também não pode decidir questões novas, exceto se estas se tornaram relevantes em função da solução jurídica encontrada no recurso ou sejam de conhecimento oficioso e os autos contenham os elementos necessários para o efeito. - artigo 665º nº 2 do mesmo diploma.
Face teor das alegações e conclusões importa verificar:
--- se deve ser alterada a matéria de facto provada (ponto 13º dos factos provados), no sentido pretendido pelo Recorrente e em caso afirmativo as suas consequências na aplicação do Direito. --- se deve considerar como atividade perigosa, para efeitos do preenchimento do artigo 393º nº 2 do Código Civil, o aluguer de material de kitesurf.
I. Fundamentação de Facto
Neste capítulo, além de se elencar a matéria de facto provada e não provada tal como foi fixada na sentença, desde já, para facilidade de compreensão deste acórdão e simplicidade na sua futura consulta, sublinhar-se-á o factos impugnado e anotar-se-á a decisão que infra se tomará sobre essa impugnação.
A--Factos provados:
.1. O Autor é praticante de Kitesurf, desporto aquático onde é utilizada uma prancha e uma vela (kite) presa à cintura por um dispositivo denominado arnês, permitindo-lhe navegar sobre o mar impulsionado pelo vento;
.2. Modalidade que praticava com regularidade, entre outros locais, na praia do Cabedelo, em Viana do Castelo, onde se iniciou neste desporto, tendo tido formação ao longo dos últimos seis anos com professores da aludida modalidade em locais como Cabo Verde, Tarifa, Algarve, Esposende e Viana do Castelo;
.3. Neste período temporal o Autor teve a oportunidade de aprender as regras de segurança e conhecer os riscos que a prática deste desporto radical acarreta;
.4. No dia 2 de Julho de 2016, entre as 10h e as 13h, o Autor esteve a praticar Kitesurf na Praia do Cabedelo, em Viana do Castelo, utilizando, para o efeito, o seu equipamento;
.5. Devido à alteração das condições de vento, pelas 14h o Autor dirigiu-se à loja da “X – Desporto e Aventura, Lda.”, que comercializa e aluga material técnico destinado a desportos náuticos, a fim de alugar um equipamento para a prática de Kitesurf, concretamente um kite North de 7 metros de 2016;
.6. Foi-lhe transmitido pelo funcionário daquela empresa que todos os kites de 7 metros de 2016 tinham sido vendidos ou alugados, mas que lhe poderia ser alugado um kite Noth EVO 7 metros de 2011 juntamente com uma barra North de 4 linhas de 2016;
.7. A associação destes dois componentes foi efetuada naquele momento, provenientes de diferentes embalagens;
.8. O Autor alugou o referido material;
.9. Dirigiu-se à praia e montou o kite;
.10. Em seguida, colocou-se na “janela” do vento ao mesmo tempo que um outro praticante da modalidade o auxiliava a levantar a asa;
.11. O Autor confirmou que as linhas do Kite estavam alinhadas e sem cruzamentos;
.12. Deu então instrução ao outro praticante para libertar o kite; .13. Sucedeu então que nessa manobra, o kite subiu, tendo projetado o Autor a cerca de 2 metros de altura. - facto este que se manterá infra.
.14. Tendo o Autor, em seguida, caído desamparado na areia;
.15. Ato contínuo, e com a força do vento, o Kite levantou-se novamente arrastando o Autor, então inanimado, uns metros ao longo do areal;
.16. Por contrato de seguro titulado pela apólice n.º 203247559, a sociedade “X Desporto e Aventura, Lda.” transferiu para a Ré a responsabilidade civil pelo pagamento de indemnizações imputáveis ao sinistrado, destinadas a cobrir danos decorrentes da sua atividade como operador marítimo-turístico, causados a utilizadores e a terceiros;
17. Por ter sido projetado a uma altura da areia de cerca de 2 metros, o Autor caiu na areia tendo perdido a consciência e, em seguida e já inanimado, foi arrastado uns metros pelo areal;
18. Após o acidente, o Autor foi transportado na caixa de uma pick-up da Polícia Marítima até a uma ambulância do INEM e daí para a Unidade Local de Saúde do Alto Minho, onde lhe foram diagnosticadas contusões e lesões pulmonares, traumatismo torácico com fraturas do esterno, costelas e coluna vertebral;
19. Posteriormente, foi transferido para o Hospital de São João no Porto;
20. As lesões mencionadas em 18 dos factos provados foram causadas pelo acidente acima descrito;
21. O Autor permaneceu nesta unidade hospitalar onde foi submetido a vários exames médicos que lhe diagnosticaram fraturas do esterno, coluna cervical, dorsal e duas costelas;
22. O Autor precisou de usar colar cervical e colete spinomed;
23. O Autor não podia levantar-se nem deambular, tendo permanecido imobilizado na cama do hospital durante 25 dias;
24. O Autor teve alta no dia 27 de Julho de 2016, tendo-lhe sido ministrada até então medicação para aliviar as intensas dores que sentia na região cervical, dorsal, tórax e esterno;
25. Medicação que continuou a tomar após a alta clínica;
26. Fruto das lesões sofridas e acima descritas, o Autor permaneceu em casa deitado e dependente da ajuda de uma terceira pessoa para o auxiliar nas suas tarefas básicas como alimentação e higiene pessoal;
27. As semanas que se seguiram ao acidente foram de sofrimento para o Autor;
28. Esteve em repouso total na cama, incapaz de se levantar e de andar;
29. O Autor sentia dores fortes;
30. Sentia-se desanimado e deprimido devido à condição física em que se encontrava, que o impedia de manter a sua normal rotina diária e vida activa;
31. Em Janeiro de 2017, o Autor retomou a atividade profissional de médico veterinário e teve de utilizar um colete específico para efetuar intervenções cirúrgicas, a fim de atenuar as dores;
32. Antes do acidente o Autor era uma pessoa activa, dinâmica e autónoma;
33. Após o acidente deixou de praticar Kitesurf, ténis, futebol e snowboard;
34. O Autor nasceu no dia 25 de Maio de 1972;
35. É médico veterinário e aufere € 1000,00 mensais como sócio gerente da Clínica Veterinária de ..., Lda.;
36. Deixou de receber esta remuneração mensal desde o acidente até 31/12/2016;
37. Após o acidente, a fim de assistirem o Autor, os médicos do INEM tiveram rasgar o fato isotérmico ION que usava, bem como um colete de protecção;
38. Por indicação médica realizou fisioterapia desde Agosto de 2016 a Março de 2017;
39. Partiu os óculos;
40. Em 5 de Junho de 2015, entre a Y e sociedade X Desporto e Aventura Lda., foi celebrado um contrato de seguro de Responsabilidade Civil Marítimo-Turística – Operador Marítimo-Turístico, titulado pela Apólice nº 203247559;
41. Nos termos do contrato mencionado em 40 dos factos provados, “A Y Portugal garante ao Tomador de Seguro e demais partes contratantes que o presente contrato obedece a todos os princípios, direitos e obrigações legais, decorrentes da legislação aplicável aos Contratos de Seguro, mesmo que tal não decorra expressamente do descrito nesta Apólice” – fls. 17 dos autos (Parte II das Condições Gerais);
42. Nos termos do aludido contrato - Condições Particulares, Capítulo I, páginas 3 e 4, sob a epígrafe “Risco Seguro” (fls. 15v), “1.Identificação do Tomador: Nome: X DESPORTO E AVENTURA LDA Morada: Urbanização … VIANA CASTELO, NIF:…; 2. Embarcações Seguras: a. Embarcações dispensadas de registo Tipo de embarcações/Nº embarcações Pranchas de surf 14, Pranchas de Kitesurf 4, Pranchas de Paddle Surf 4; b. Embarcações a motor de uso exclusivo como embarcações de apoio e assistência à actividade marítimo-turística de aluguer de pequenas embarcações dispensadas de registo e serviço de reboque de equipamento de carácter recreativo; 3. Utilização: no âmbito da Actividade Marítimo-Turística da Empresa/aluguer ou utilização de pequenas embarcações dispensadas de registo/Actividades com Pranchas de SURF, KITESURF, PADDLE SURF; 4. Limite de navegação: Portugal Continental; 5. Período seguro: por ano e seguintes, com data início a 05.05.2015; 6. Coberturas: Responsabilidade Civil Marítimo-Turística (do Operador Marítimo-Turístico) Garantia de pagamento de indemnizações legalmente imputáveis ao Segurado, nos termos da legislação em vigor, destinadas a cobrir danos decorrentes da sua actividade como Operador Marítimo-Turístico, causados aos utilizadores e a terceiros.; 7. Limite por sinistro, conjunto de sinistros e anuidade: 50.000,00 EUR; 8. Franquia: Sem franquia; 9. Prémio comercial anual (365 dias) Eur 175,00; 10. Seguro condicionado a:Existência de toda a documentação válida para o período do seguro, nomeadamente licença para o exercício da Actividade Marítimo/Turística como Operador Marítimo-Turístico. Derrogando e/ou complementando o que em contrário se encontrar definido nas Condições Gerais: Riscos Cobertos Derrogando o Artigo 3, na sua totalidade, a presente apólice garante todos os danos patrimoniais e não patrimoniais, causados a terceiros exclusivamente em consequência da Responsabilidade Civil do Operador Marítimo-Turístico do Tomador do Seguro/Segurado identificado nas Condições Particulares”;
43. Foi accionado o seguro obrigatório de acidentes pessoais, titulado pela Apólice 203233055 da aqui Ré, dando origem ao processo de sinistro com o nº …, no âmbito da qual a Ré assumiu a responsabilidade pelo sinistro, tendo pago todas as despesas de tratamento do Autor até ser esgotado o capital contratado - € 3.792,24;
44. À data do acidente o Autor encontrava-se medicado com Zolof e Victan;
45. O Autor accionou um seguro da W e as despesas médicas foram pagas por tal seguro (fls. 192 e 252-261 dos autos);
46. O Autor esteve de baixa pelo serviço nacional de saúde e recebeu o seu salário pela segurança social;
47. Em consequência das lesões sofridas, o Instituto da Segurança Social, I.P. pagou ao Autor o montante de € 3.789,62 (três mil, setecentos e oitenta e nove euros e sessenta e dois cêntimos), nos períodos compreendidos entre 4 de Julho de 2016 a 15 de Julho de 2016, 1 de Agosto de 2016 a 9 de Janeiro de 2017, a título de subsídio de doença;
48. Recebeu, ainda, a título de prestação compensatória de subsídio de Natal de 2016 o valor de € 253,37.
B- Factos não provados
Sendo exatamente esta a medida que a maioria dos cerca de 20 praticantes de Kitesurf, que se encontravam na água àquela hora, utilizavam.
Nesse momento apercebeu-se do estado deteriorado do tecido da vela e das linhas “pigtails”.
Esta operação ocorreu num local a cerca de 30 metros do mar.
O Autor tinha até auxiliado, momentos antes, um outro praticante com um peso corporal bastante inferior ao seu a levantar um kite de 7 metros sem ter ocorrido nenhuma adversidade ou complicação.
Posteriormente ao acidente o Autor teve conhecimento, junto dos Representantes da North Kites em Tarifa e em Tenerife, de que, sem afinação especifica, a barra de 2016 que utilizou colocou o kite de 2011 em “overpower”, ou seja, excesso de potência.
A barra North de 2016 por si alugada requeria afinações nas “backlines” - linhas de potência - de forma a que o kite North de 2011 ficasse equilibrado, afinações essas que deveriam ter sido efectuadas pelo funcionário da loja “X” aquando do aluguer do equipamento.
Com a sua conduta, a sociedade “X Desporto e Aventura, Lda.” foi a única e exclusiva responsável pelo acidente, designadamente por não ter procedido ao ajustamento dos equipamentos, sendo certo que o Autor efectuou todas as diligências de segurança que lhe incumbiam.
Além disso, o desgaste apresentado pelo material também contribuiu para o acidente.
Os valores alegados nos artigos 50º, 53º e 54º da petição inicial.
Teve ainda necessidade de contratar/afectar um médico veterinário para o substituir na clínica de que é sócio gerente – Clínica Veterinária de ..., Lda” – desde 2/07/2016 até Dezembro desse ano, no que despendeu € 7.800,00 (€ 1.300 x 6 meses).
II. Fundamentação
a) Dos critérios para a apreciação da impugnação da matéria de facto
Na reapreciação dos meios de prova deve-se assegurar o duplo grau de jurisdição sobre essa mesma matéria - com a mesma amplitude de poderes da 1.ª instância-, efetuando-se uma análise crítica das provas produzidas.
É à luz desta ideia que deve ser lido o disposto no nº 1 do artigo 662º do Código de Processo Civil, o qual exige que a Relação faça nova apreciação da matéria de facto impugnada.
É patente que a falta da imediação de que padece o tribunal de recurso limita, por natureza, o acesso a uma mais profunda apreciação da convicção com que são proferidas as declarações dos intervenientes processuais (veja-se que a comunicação humana não é apenas verbal, exigindo a sua correta interpretação que as palavras e inflexões da voz sejam contextualizados com os gestos, a postura corporal, os olhares, todos estes demais elementos, consistentes na comunicação não verbal e tantas vezes afastadas da possibilidade de controlo do declarante e por isso mais fidedignas).
No entanto, como explanado no Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 16-10-2012 no processo 649/04.2TBPDL.L1.S1, (sendo este e todos os acórdãos citados sem menção de fonte consultados no portal www.dgsi.pt ) “A reapreciação das provas que a lei impõe ao Tribunal da Relação no art. 712.º, n.º 2, do CPC, quando haja impugnação da matéria de facto que haja sido registada, implica que o tribunal de recurso, ponderando as razões de facto expostas pelos recorrentes em confronto com as razões de facto consideradas na decisão, forme a sua prudente convicção que pode coincidir ou não com a convicção do tribunal recorrido (art. 655.º, n.º 1, do CPC). A reapreciação da prova não se reduz a um controlo formal sobre a forma como o Tribunal de 1.ª instância justificou a sua convicção sobre as provas que livremente apreciou, evidenciada pelos termos em que está elaborada a motivação das respostas sobre a matéria de facto.”
Visto que vigora também neste tribunal o princípio da livre apreciação da prova, há que mencionar que esta não se confunde com a íntima convicção do julgador.
Este princípio impõe uma análise racional e fundamentada dos elementos probatórios produzidos, que estes sejam valorados tendo em conta critérios de bom senso, razoabilidade e sensatez, recorrendo às regras da experiência e aos parâmetros do homem médio.
A formação da convicção não se funda na certeza absoluta quanto à ocorrência ou não ocorrência de um facto, em regra impossível de alcançar, por ser sempre possível equacionar acontecimento, mesmo que muito improvável, que ponha em causa tal asserção, havendo sempre a possibilidade de duvidar de qualquer facto, mas numa certeza mais relativa, quando se mostra seguro que tal facto ocorreu, por, face a todos os elementos probatórios que foram produzidos ou que era admissível prever que seriam produzidos naquele caso concreto, se concluir pela elevadíssima probabilidade de o mesmo ter ocorrido.
“Por princípio, a prova alcança a medida bastante quando os meios de prova conseguem criar na convicção do juiz – meio da apreensão e não critério da apreensão – a ideia de que mais do que ser possível (pois não é por haver a possibilidade de um facto ter ocorrido que se segue que ele ocorreu necessariamente) e verosímil (porque podem sempre ocorrer factos inverosímeis), o facto possui um alto grau de probabilidade e, sobretudo, um grau de probabilidade bem superior e prevalecente ao de ser verdadeiro o facto inverso. Donde resulta que se a prova produzida for residual, o tribunal não tem de a aceitar como suficiente ou bastante só porque, por exemplo, nenhuma outra foi produzida e o facto é possível.” cf o Acórdão do Tribunal da Relação do Porto de 26-06-2014 no processo 1040/12.2TBLSD-C.P1
A convicção do julgador é obtida em concreto, face a toda a prova produzida, com recurso ao bom senso, às regras da experiência, quer da vida real, quer da vida judiciária, à diferente credibilidade de cada elemento de prova, à procura das razões que conduziram à omissão de apresentação de determinados elementos que a parte poderia apresentar com facilidade, a dificuldade na apreciação da prova por declarações e a fragilidade deste meio de prova.
Igualmente importa a “acessibilidade dos meios de prova, da sua facilidade ou onerosidade, do posicionamento das partes em relação aos factos com expressão nos articulados, do relevo do facto na economia da ação.” (mesmo Acórdão).
Por outro lado, fora de qualquer situação de especial dificuldade probatória, mormente pela inexistência de outros elementos demostrativos face à natureza do facto, e sem quaisquer elementos secundários que permitam ao tribunal estribar-se em elementos objetivos, mais desinteressados ou regras evidente das experiência comum, permitir que, sem mais, o tribunal formasse a sua convicção nas simples declarações das partes, implicaria, quase, o desvirtuar da regra do ónus da prova, contentando-se o tribunal com a mera alegação dos factos, desta feita presencial.
Isto posto, vejamos se os elementos probatórios produzidos são suficientes para a procedência da impugnação da matéria de facto pugnada pela Recorrente.
Ouvida a prova gravada e analisados os documentos, cumpre concatenar tais elementos, apreciando das razões do Recorrente, visto que a sentença é quase nula nessa parte, porquanto para justificar a falta de prova de todos os factos que elencou apenas elaborou a seguinte frase: “Os factos não provados deveram-se à total ausência de prova ou à ausência de prova credível nas matérias em questão.”
--da impugnação da matéria de facto provada e não provada
Pretende o Recorrente que em vez de se dar como provado, no ponto 13º que “Sucedeu então que nessa manobra, o kite subiu, tendo projectado o Autor a cerca de 2 metros de altura” se dê como provado que “Sucedeu então que nessa manobra, o kite subiu com uma potência anormalmente excessiva e totalmente imprevisível, tendo projetado o Autor a cerca de 2 metros de altura.”
Desde já se diga que a noção de “potência anormalmente excessiva e totalmente imprevisível” são conceitos muito genéricos, subjetivos, porquanto implicam que se tenha uma norma quanto a essa potência, que aqui se não apurou e bem assim que se soubesse o que um utilizador de kitesurf sensato e conhecedor da arte pudesse prever na concreta situação em que se encontrava o Autor.
Ouvida a prova, verifica-se que a testemunha N. L. disse que a asa não se colocou a 90º, como esperava, mas a 45º, zona onde tem maior potência, não que a mesma terá subido com uma potência anormal. Podia-se, no entanto, dar como provado que o kite subiu de forma diferente da que era esperada pelo Autor e por esta testemunha, mas tal não corresponde ao pretendido por este, porquanto o mesmo pretende que se retire uma conclusão objetiva com base na sua perceção do ocorrido.
Não se, pode, no entanto, saber se o Autor foi surpreendido pela subida da asa, nos termos em que ocorreu, mais rápido e forte do que esperava, porque esta tomou um angulo que o vento não faria prever, como afirmou a testemunha N. L., se foi o próprio vento que mudou ou o autor que a provocou pela forma como terá movido a barra.
Da mesma forma, como se verá, não se sabe se o que determinou tal comportamento da asa menos esperado pelo autor se deveu às características do material, como este pretende apontar (referindo na petição inicial, quer o facto de estar gasto, quer necessitar de ajuste, mas nenhum se provando), se às circunstâncias do momento em que foi largada, como a existência de rajadas ou turbilhão ou devido a algum movimento rápido do Autor a movimentar a barra.
Com efeito, face às explicações dadas por R. L., também conhecedor do desporto, não é possível assumir que houve um comportamento inesperado do Kite, diferente do que teria qualquer outro nas mesmas circunstâncias de tempo e lugar, atentos os múltiplos fatores que podiam determinar que o levantamento do mesmo tivesse como consequência a projeção do autor, como o vento estar sujo e com rajadas e/ou a barra ter sido impulsionada de forma brusca. Sendo assim, não se pode, face às declarações do autor, contrariadas por esta testemunha, com propriedade, centrar a causa do arrastamento do Autor numa “imprópria” (inesperada ou potenciada) reação do kite às circunstâncias.
Ao ouvir a prova, deve-se analisá-la toda de forma global, sendo que as declarações do Autor podem ser ouvidas tendo também em conta os demais depoimentos que se mostraram esclarecidos e credíveis. Temos por certo que as declarações de parte, pelo menos nos casos em que a prova possa ser efetuada por outros meios e não tenha uma natureza pessoal, em regra, não deve ser suficiente para, desacompanhada de outros elementos que sustentem a sua veracidade, sustentar a verificação de factos.
Ora, quer as declarações do autor, se bem que em parte sustentadas pelo depoimento de N. L., quer as desta testemunha, são, na prática, postas em causa pela testemunha R. L., que explicou de modo coerente, com conhecimento de causa e de forma desinteressada, o modo como opera a asa e todas as circunstâncias que podiam originar a queda e subsequente arrastamento do Autor.
Assim, face às explicações dadas pela testemunha R. L. explicando os fenómenos que podiam determinar que o Autor não tivesse podido controlar asa e fosse arrastado, não existem elementos que possam centrar no próprio kite a imprevisibilidade ou potência no seu levantamento.
Termos em que se mantém a matéria de facto nos exatos termos em que foi dada como provada.
.3- Da aplicação do direito aos factos apurados
A questão que aqui cumpre resolver prende-se com os pressupostos da responsabilidade civil.
A responsabilidade civil que constituiu o lesante na obrigação de reparar os danos que causou, pode assumir tanto a modalidade de responsabilidade contratual, quando provém da “falta de cumprimento das obrigações emergentes dos contratos, de negócios unilaterais ou da lei”, como a modalidade de responsabilidade extracontratual, também designada de delitual ou aquiliana (com origens na Lex Aquilia), quando resulta da “violação de direitos absolutos ou da prática de certos actos que, embora lícitos, causam prejuízo a outrem” - cfr. Antunes Varela, in “Das Obrigações em Geral”, Vol. I, 10ª Edição, pág. 519. Acresce à mesma, ainda, a responsabilidade objetiva, em casos contados, de que aqui se não trata.
No entanto, na base e no essencial, são os mesmos os elementos constitutivos da responsabilidade civil quer provenha da violação de um contrato ou de um outro tipo de ilícito: o ato ilícito, a culpa, o dano, o nexo de causalidade adequada entre o facto e o dano.
Atenta a dificuldade de prova de todos estes elementos, o legislador estabeleceu casos em que se presume a culpa do agente, onerando-o com a prova de que o evento se não deveu a culpa sua.
Um desses casos encontra-se previsto no artigo 493º nº 2 do Código Civil e consiste no exercício de “uma actividade, perigosa por sua própria natureza ou pela natureza dos meios utilizados”.
Cabe à jurisprudência e doutrina, bem como aos demais intérpretes da lei, descortinar o que o nosso sistema jurídico pode considerar como atividade perigosa, visto que este artigo as não elenca. Tem-se entendido que há que recorrer a todas as circunstâncias do caso para apurar tal perigosidade, em face do contexto do acidente, mas não dos concretos resultados danosos do acidente, visto que há atividades que em geral não causam perigo, mas por circunstâncias especiais e até imprevisíveis podem causar grande dano.
Mantém-se ainda hoje como central o critério apontado por Vaz Serra (1), considerando como atividades perigosas aquelas que «que criam para os terceiros um estado de perigo, isto é, a possibilidade ou, ainda mais, a probabilidade de receber dano, uma probabilidade maior do que a normal derivada das outras actividades».
E assim, entendem-se como perigosas as atividades que em si possuem especial aptidão para criarem danos, pela sua frequência e gravidade.
Encontra-se na jurisprudência a nomeação de um conjunto de atividades perigosas, como a utilização de uma retroescavadora adaptada com grua numa vala, a realização de provas de karting e exploração de recinto dedicado ao karting, tendo sido afastada atividade ligada ao futebol. (2)
Tem particular interesse neste caso a discussão efetuada no acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 07/09/2015 no processo 385/2002.E1.S1, atenta a similitude com o presente caso: “as instâncias não qualificaram, nem seria legítimo que qualificassem como “actividade perigosa” o aluguer de auto-gruas com as dimensões e com as características daquelas que foram utilizadas na construção da barragem. Obviamente que tal atividade de natureza meramente comercial não importa, por si, qualquer especial perigosidade, embora as referidas auto-gruas sejam de classificar como estruturas suscetíveis de gerar, na sua utilização, riscos acrescidos quanto à existência de danos. É esse risco que tem levado o legislador nacional, em transposição de Directivas Europeias, a zelar por que o fabrico, a venda ou a utilização de certas máquinas obedeçam a requisitos que previnam, na medida do possível, certos riscos que poderiam decorrer de uma total desregulação desses produtos. Exigências que, sendo especificamente aplicáveis a determinadas máquinas como as gruas móveis ou imoveis, são complementares relativamente a outras condições de segurança que devem ser respeitadas em determinadas actividades …Mas, como se disse, o risco atinente a maquinismos com as características das auto-gruas apenas ganha relevo autónomo, para efeitos do art. 493º, nº 2, do CC, quando as mesmas sejam utilizadas efectivamente nas actividades a que se destinam”.
Pode ter-se como assente, tal como também aqui o afirmaram a 1ª instância, o Recorrente e o recorrido que o desporto que aqui se cuida é uma atividade perigosa: considerado como um desporto radical, implica a deslocação dos seus praticantes, em grandes velocidade, em elementos para os quais os humanos estão menos adaptados, como o ar e a água, impulsionados por força da natureza imprevisíveis e por vezes de grande força como o vento e o mar, exigindo grande destreza física e rapidez de ação aliadas ao conhecimentos técnicos e de utilização dos aparelhos utilizados, já sofisticados, com vários riscos, como quedas, lesões com os cabos, choques com pessoas e coisas e até afogamento, entre muitas, as quais ocorrem com frequência.
A questão põe-se, não ao nível do exercício dessa atividade, mas da (simples) locação do material necessário para a sua prática.
Recorrendo ao conceito supra apontado importa verificar se se pode considerar que a locação deste material cria para terceiros um estado de perigo tal que se pode considerar que quem exerce tal atividade tem a obrigação de o evitar. Tal decorre do nº 2 do artigo 493º do Código Civil que remete para a tomada de providências exigidas pelas circunstâncias com o fim de os prevenir por parte daquele que exerce a atividade perigosa. (3)
Assim, exige-se que a atividade em causa, pela sua natureza ou materiais utilizados cause perigo; ora o material de kitesurf não é por si perigoso (como o são materiais explosivos, mas já não as gruas), mas o uso que dele se faz.
Tudo passa por verificar se se pode fazer a paridade entre a locação de material destinado à prática do kitesurf e a efetiva prática do desporto. Não há dúvidas que o fabrico desse material não tem tal equivalência (sem prejuízo, claro, de haver que responsabilizar o fabricante pelos erros nessa produção), nem a sua venda e a sua locação financeira. Da mesma forma, também se afastará da própria atividade o aluguer por longos períodos, longe de locais de veraneio (vg nas grandes superfícies).
Diferem destes, aqueles casos onde o agente económico coloca de imediato, junto do local onde vai ser utilizado, à imediata disposição dos utentes, todos os materiais necessários para a prática desse desporto, procedendo a uma organização de meios, para que o veraneante aproveite da experiência, visto que aí o agente económica fornece mais do que algum material, mas já um conjunto de meios para usufruir da atividade em si, estando a, aproveitar-se do local onde se situa, integrando-o no produto que oferece, e que consiste não só na permissão do uso de algumas coisas, mas no usufruto da atividade, incentivando-a mediante a organização de meios que coloca à disposição naquele momento e local, onde acaba por se integrar a sua situação geográfica, junto do sitio onde disponibiliza o gozo da experiência. Atua, no fundo, como o impulsionador dessa atividade, exigindo-se-lhe, pois, na organização dos meios para tal fim, que tenha cuidados acrescidos com a implementação dos elementos que defendam a segurança dos que praticam esse desporto sob a sua chancela ou égide.
Assim, a simples locação de alguns dos vários materiais necessários para a prática da atividade, mas não toda a parafernália, sem quaisquer outras características que possam levar a concluir que tal atividade comercial tem qualquer elemento que implique o fornecimento da experiência, visto que o cliente deterá já os demais elementos que virão a ser necessários, aproxima a situação da simples venda de alguns materiais necessários para fazer kitesurf.
Veja-se que nem sequer se especifica o período pelo qual foi a asa e barra foram locadas, sabendo-se apenas que “a associação” dos dois componentes foi efetuada no momento da locação, mas que a sua montagem foi já efetuada pelo Autor, depois de se dirigir à praia, pelo que não é possível relacionar a locação que foi feita desses elementos com a forma e circunstâncias em que foram utilizados, de forma a poder impor ao locador especiais deveres que prevenissem os riscos da prática desse desporto.
Mesmo que se não diga, como parte (minoritária) da doutrina e da jurisprudência, que o nº 2 do artigo 493º do Código Civil exige ao lesante mais do que a prova que agiu com os cuidados que um homem normal e de acordo com a diligência de um bom pai de família, mas também que tomou todas as providências com o fim de os prevenir, impondo-lhe o ónus de demonstrar uma diligência acrescida, certo é que é pressuposto desta norma que a atividade contém em si um perigo tal (pelos meios ou natureza) que quem a exerce está mesmo sujeito a tais deveres.
Ora, a forma como se descreve o simples aluguer deste material (mais a mais fora de qualquer contexto e que se possa considerar que tal locação foi efetuada no âmbito de qualquer promoção dessa atividade ou organização dos meios destinados ao exercício dessa atividade, vg, como poderia decorrer da colocação do material montado e à disposição na própria praia) não permite que se possa relacioná-lo de forma direta com o posterior uso que dele foi efetuado, nem que se verifique a exigência de especiais cuidados por parte do locador ao colocar elementos do kit necessário para a prática do desporto à disposição do locatário.
É certo que nos parece passível o recurso à especial presunção de culpa para a responsabilização com base no especial risco que envolve o desporto de kitesurf, a atividade de aluguer do material próprio para a sua prática, na própria praia, com a imediata disponibilização, no local onde vai ser exercido, de todos os elementos necessários para o efeito, possibilitando diretamente a atividade que promoveu, por implicar já uma organização de meios físicos e humanos que, mais do que permitir, promove e organiza a prática dessa atividade perigosa, exigindo-se, então, a quem a exerce que arque também com o ónus de zelar pela segurança daqueles que utilizam o conjunto de elementos que dessa forma organizou.
Nada disto se provou ou alegou neste caso.
Alega o Recorrente que a locadora dispunha do seguro a que se refere o DL 149/2014, o que demonstra que a locação desse material é uma atividade perigosa. Carece, no entanto, de razão, visto que a necessidade desse seguro não se funda diretamente no perigo da atividade, como decorre da exceção prevista no nº 1, alínea b), do artigo 28.º do Decreto-Lei n.º 95/2013 de 19 de julho, que que estabelece as condições de acesso e de exercício da atividade das empresas de animação turística e dos operadores marítimo- -turísticos, admitindo que caibam na sua previsão atividades que não apresentam riscos significativos para a saúde e segurança dos destinatários dos serviços ou de terceiros.
Prevêem-se como atividades marítimo -turísticas atividades de animação turística desenvolvidas mediante utilização de embarcações com fins lucrativos e ali se integram, entre outros, o aluguer de embarcações sem tripulação. As atividades marítimo –turísticas são atividades de animação turística desenvolvidas mediante utilização de embarcações. Dividem-se, por sua vez as atividades de animação turística em duas, as “ar livre” e as culturais, definidas as primeiras como aquelas que cumulativamente: i) Decorram predominantemente em espaços naturais, traduzindo -se em vivências diversificadas de fruição, experimentação e descoberta da natureza e da paisagem, podendo ou não realizar -se em instalações físicas equipadas para o efeito; ii) Suponham organização logística e ou supervisão pelo prestador; iii) Impliquem uma interação física dos destinatários com o meio envolvente (artigos 3º e 4º do Decreto -Lei n.º 108/2009, de 15 de maio, na redação dada pelo Decreto-Lei n.º 186/2015).
O facto da lei exigir para o exercício deste géneros de atividades um seguro especial não permite concluir que todas elas são perigosas por natureza (veja-se que a empresa, singular ou coletiva, que se dedique realização de e curtos passeios a pé, independentemente da sua duração e local, está, por regra, sujeita ao seguro), mais a mais para o efeito previsto o artigo 493º nº 2 do Código Civil.
Tudo posto, há que se concluir que a atividade em causa (o aluguer de asa e barra de kitesurf) não deve ser classificada como sendo perigosa e em consequência que nada permite imputar a culpa, mesmo a presumida, ao locador.
Falece, assim, a responsabilização da locadora pelos danos decorrentes da utilização do kite pelo Autor com fundamento da presunção de culpa prevista no nº 2 do artigo 493º do Código Civil, sendo certo que nenhuma responsabilidade da mesma com fundamento na culpa se encontra, por nada apontar para a violação de qualquer dever ou obrigação que tivesse assumido ou sobre ela recaísse, nomeadamente por nada se ter demonstrado que se pudesse apontar à asa e barra que aquela alugou.
Improcede a ação.
III- Decisão
Por todo o exposto, julga-se a apelação improcedente e em consequência mantém-se o decidido na sentença recorrida.
Custas pelo apelante. (artigo 527º, nºs 1 e 2 do Código de Processo Civil).
1. In “Responsabilidade pelos danos causados por coisas ou actividades”, separata do BMJ nº 85, págs. 377 e 378, nota 33, apud acórdão de 05/17/2017, no processo 1506/11.1TBOAZ.P1.S1, (sendo este e todos os demais acórdãos citados sem menção de fonte, consultados in dgsi.pt com a data na forma ali indicada: mês/dia/ano) 2. cf acórdãos proferidos nos processos nºs 1506/11.1TBOAZ.P1.S1, de 05/17/2017; 02B1620, de 06/06/2002, 108/09.7TBVRM.L1-7 de 07/09/2015, 2321/05.7TBVCT.G1, de 12/03/2009. 3. Como afirma Antunes Varela: este é o princípio “segundo o qual a pessoa que cria ou mantém uma situação de especial perigo tem o dever jurídico de agir, tomando as providências necessárias para prevenir os danos com ela relacionados” in “Anotação ao acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 26 de Março de 1980 (Continuado do nº 3683, pág. 41)”, in Revista de Legislação e Jurisprudência, Ano 114º, 1981-1982, nº 3684, pág. 79