CASSAÇÃO DA LICENÇA DE CONDUÇÃO
Sumário


I - Apenas quando está em causa a cassação do título de condução no âmbito do artigo 101.º do C.P. é necessário formular um juízo sobre a potencial perigosidade (al. a) do nº 1) ou inaptidão para a condução do infractor (al. b) do nº 1) para se decidir, ou não, pela aplicação de tal medida de segurança.

II - Não já assim quando se trata da cassação do título de condução nos termos do artigo 148.º do Código da Estrada, no âmbito do qual a mesma decorre necessária e automaticamente da verificação de zero pontos na carta do infractor, resultante de condenações anteriores em penas acessórias de proibição de conduzir.

C - Tal entendimento em nada ofende qualquer preceito constitucional, designadamente, os artºs 18.º, nº 2, 32.º, nºs 4, 5, 7 e 10, 29.º, nº 5, 30.º, nº 4, 27.º, nº 2 e 202.º da C.R.P..

Sumariado pelo relator

Texto Integral


RELATÓRIO

No processo de recurso de contra-ordenação oriundo do juízo local de Setúbal – J4, foi proferida decisão por despacho, julgando improcedente o recurso interposto por NM da decisão da A.N.S.R. que determinou a cassação da sua carta de condução, por virtude de o mesmo registar duas condenações em pena acessória de proibição de conduzir, na sequência da prática de dois de crimes rodoviários.

Inconformado com tal decisão, recorreu o mesmo, tendo terminado as suas alegações de recurso com as seguintes conclusões:

1) Decidindo manter inalterada a decisão administrativa de cassação do título de condução, proferida pela Autoridade Nacional de Segurança Rodoviária (adiante designada ANSR), com fundamento na aplicação do disposto no Art.º 148º, nº 2; n.º4, alínea c); nº 10 e n.º 11 do Código da Estrada (adiante designado CE), a douta Sentença, viola os artigos 18º nº 2; 32º nº 4, 5, 7 e 10; 29º, n.º 5; 30º, n.º 4; 27º, n.º 2 e 202º, da Constituição da Republica Portuguesa, (adiante designada CRP), uma vez às condutas submetidos a julgamento não podem os tribunais aplicar normas que infrinjam o disposto na CRP ou os princípios nela consignados (cfr. Art.º 204º da CRP).

2) No plano jurídico substantivo resulta do Art.º 148º, nº 2; n.º4, alínea c); nº 10 e n.º 11 do Artigo 148º do CE, que a perda de pontos decorre direta e automaticamente de condenação em pena acessória de proibição de conduzir, independentemente da coima concretamente aplicada ou do grau de culpa concretamente apurado, bem como da perda da totalidade de pontos decorre a cassação do título de condução.

3) Não pode resultar da interpretação e aplicação das normas do Art.º 148º do CE que o trânsito em julgado das decisões penais a que o mesmo se refere, tenha o desiderato da aceitação das consequências legais automáticas da perda de pontos, já que as decisões penais bastam-se em si mesmas, tendo uma finalidade em si mesmas.

4) Qualquer que seja a natureza jurídica instituída no regime da Carta por pontos, introduzido pela Lei 116/2015 de 28/08 - sanção acessória, medida de segurança ou verificação de uma condição negativa do direito, - a aplicação do sistema acontece em violação do princípio consignado no Artigo 2º da CRP, já que a decisão da ANSR, de natureza administrativa, em processo autónomo, decorre diretamente da soma das estritas infrações que a determinam.

5) Discute-se na jurisprudência a natureza jurídica da cassação do título de condução prevista no Art.º 148º do CE, em que, para numa vertente atende-se à Lei e qualifica-se a mesma como sanção acessória, cfr. Ac. T.R.P. de 22/04/2015, Processo: 73/13.6PCVCD.P1 in www.dgsi.pt; para outra vertente, como a defendida no Acórdão citado na Sentença em crise - Ac. T.R.P. de 09/05/2018, Proc. 644/16 in www.dgsi.pt, - é entendida como uma medida de segurança e ainda para outra vertente, conforme jurisprudência aposta no Ac. do T.R.P. de 30/04/2019, Proc. 316/18.0T8CPV.P1 in www.dgsi.pt, uma condição negativa do direito.

6) Ainda que se discuta a qualificação jurídica da cassação do título de condução, com fundamento no disposto no nº4 alínea c), nº10 e n.º11do Art.º 148 do CE, dúvidas não podem restar que, a decisão administrativa do procedimento autónomo decorrente da subtração automática de pontos, constitui-se como uma sanção que pune os infratores nos termos em que o mesmo artigo o determina.

7) A aplicação ao caso concreto da alínea c) do nº 4, n.º 10 e n.º 11 do artigo 148º do Código da Estrada, atento o efeito automático da perda de pontos, reveste uma importância determinante, já que este constitui-se como o único fundamento para uma decisão administrativa decorrente de um procedimento administrativo que reveste natureza manifestamente sancionatória, sendo certo que a autorização permissiva, expressa na licença de condução, a partir da sua titularidade, inscreve-se na esfera do seu titular como um direito, com limitações e obrigações que também não podem deixar de respeitar a Lei geral e a Lei fundamental (Art.º 121º CPA e CRP).

8) Atentos os efeitos da cassação da licença de condução cfr. N.º nº11 do Art.º 148º do CE, o sistema dos pontos não terá essencialmente um sentido claramente pedagógico, de satisfação de necessidades de prevenção, fundamentalmente de ressocialização, Ac. TRP, de 22/04/2015, Processo: 73/13.6PCVCD.P1 in www.dgsi.pt) já que, atenta a manifesta necessidade no dia a dia, de deslocações utilizando veículo automóvel, o que se agrava quando o titular da licença de condução tem a condução de veículos por profissão, como é o caso do ora Recorrente evidenciar o contrário, revelando assim o sistema antes um sentido repressivo, entendido como uma forma de pedagogia para satisfazer necessidades de prevenção, o qual foi abandonado em Portugal, em abril de 1974.

9) A (in)constitucionalidade das normas do Art.º 148.º do CE, por alegada violação do Art.º 30º nº 4 da CRP, foi conhecida no Acórdão do TRP de 30/04/2019, Proc. 316/18.0T8CPV.P1, in www.dgsi.pt, este sustentando o seu fundamento no Acórdão que serviu de guia à Sentença, o qual conclui a propósito do sistema por pontos do CE, que não estamos perante a perda de um direito adquirido, mas perante a verificação de uma condição negativa de um direito.

10) No entanto, na esfera do seu titular, ainda que a lei determine que o mesmo esteja sujeito a uma condição negativa relativa ao bom comportamento rodoviário, o mesmo tem de respeitar a Constituição, mormente no referente à restrição de direitos, como determina o nº2 do Art.º 18º da CRP.

11) Assim, a norma prevista na alínea c) do nº 4, Nº 10 e N.º 11 do CE deve ser considerada inconstitucional, quando aplicada no sentido de ser fundamento bastante da cassação do título de condução a verificação de uma condição negativa, já que os efeitos decorrentes da cassação são manifestamente sancionatórios, não revestindo qualquer natureza pedagógica, de satisfação de necessidades de prevenção, muito menos de ressocialização, bem como não se limitam ao necessário para salvaguardar outros direitos ou interesses constitucionalmente protegidos, por violação do nº2 do Art.º 18º da CRP.

12) O juízo prévio de inaptidão para o exercício da condução assente fundamentalmente no número das condutas só é admissível salvaguardados que esteja a estrutura acusatória do processo, as garantias de defesa e o controlo jurisdicional, donde resulte uma decisão final com respeito pelas normas constitucionais, sendo que, interpretando-se as normas do Art.º 148º do CE, no sentido em que o legislador prescreveu a cassação da licença de condução como uma medida de segurança, o processo nos termos em que o determina o mesmo artigo, não respeita as normas constitucionais, designadamente Art.º 20º); nº 1 e n.º 4 do Art.º 30º; nº 1 e nº 10 do Art.º 32º e nº2 do Art.º 202º, todos da CRP.

13) A decisão de cassação do título de condução a que se refere a alínea c) do nº4 do Artigo 148º do C.E. ordenada em processo autónomo pela ANSR, iniciado após a ocorrência da perda total de pontos atribuídos ao condutor e bastando-se com a sua verificação, sem mais, não respeita a estrutura acusatória do processo, que não existe, como não se prevê qualquer fase ou procedimento que tome em consideração qualquer elemento subjetivo, não estando garantida a defesa e o controlo jurisdicional da mesma, o que é atentatório de um efetivo direito de audiência e defesa, princípio constitucional expresso no Art.º 32º, nº 10 da C.R.P.

14) Ainda que se aceite a decisão administrativa de cassação de licença de condução como uma medida de segurança, só se aceita como admissível se estiver salvaguardada a estrutura acusatória do processo, as garantias de defesa e o controlo jurisdicional no procedimento autónomo a que alude o nº10 do art.º 148º, donde resulte uma decisão final com respeito pelas normas constitucionais Art.º 18º, nº 2 e Art.º 32º, nº4, nº 5, nº7 e nº10 da CRP..

15) Apenas uma eventual conduta material que processualmente venha a ser determinada, poderá constituir-se como fundamento para uma decisão de cassação de licença de condução, a qual pressupõe um juízo autónomo com base em critérios legais, aquilatada no caso concreto, a fim de se averiguar da ponderação da necessidade da perda de um direito, não fazendo a Lei depender de qualquer elemento subjetivo, tal decisão de cassação da Licença de condução é manifestamente atentatória de um efetivo direito de audiência e defesa, princípio constitucional expresso no Art.º 32º, nº 10 da C.R.P

16) Assim, deve a norma prevista na alínea c) do nº 4 do art.º 148º , Nº 10 e N.º11 do CE ser considerada inconstitucional quando aplicada no sentido de ser fundamento bastante da cassação do título de condução a ocorrência da perda da totalidade de pontos, devendo apenas tal constituir-se como um reflexo ou um índice da gravidade das infrações cometidas, respeitando-se a estrutura acusatória do processo, o princípio do contraditório, garantias de defesa e controlo jurisdicional efetivo. uma decisão final com respeito pelas normas constitucionais: Art.º 18º, nº 2 e Art.º 32º, nº4, nº 5, nº7 e nº10 da CRP

17) Existe uma evidente correlação entre a interpretação dos efeitos jurídicos das normas do Art.º 148º do CE e o entendimento da natureza jurídica da cassação da licença de condução determinada nos termos do mesmo artigo, sendo que na jurisprudência recente transposta para o Acórdão do TRP de 30/04/2019, Proc. 316/18.0T8CPV.P1, entende-se dever considerar-se a vertente da jurisprudência do Tribunal Constitucional, não diretamente relacionada com o regime do artigo 148.º do Código da Estrada, mas que diz respeito à caducidade da licença. (Vide Acórdão n. 461/2000, in www.tribunalconstitucional.pt, reafirmado nos acórdãos nºs 574/2000, 45/2001 e 472/2007, in www.tribunalconstitucional.pt.

18) A analogia efetuada pelo Acórdão do TRP de 30/04/2019, Proc. 316/18.0T8CPV.P1 a partir da qual se conclui pela interpretação do Art.º 148º do CE no sentido de na decisão de cassação da licença de condução não estarmos perante a perda de um direito adquirido, mas perante a verificação de uma condição negativa, revela-se com efeitos práticos devastadores e esquece que na situação são aplicadas as normas do Ilícito de mera ordenação social (DL n.º 433/82, de 27 de Outubro ( 7ª versão e mais recente da Lei 109/2001, de 24/12) e subsidiariamente pelas normas do Código Penal (Art.º 32º), estas que enquadram no Art.º 1º o princípio da legalidade, não permitindo o recurso à analogia para definir um estado de perigosidade ou determinar a pena ou medida de segurança que lhes corresponde.

19) Acresce que o Acórdão do Tribunal Constitucional em referência N.º 461/2000 (in www.tribunalconstitucional.pt, transcrito no Acórdão do TRP de 30/04/2019, Proc. 316/18.0T8CPV.P1 in www.dgsi.pt, trata de uma situação do direito de conduzir referente a caducidade da licença provisória o que enquadra situação muito diferente, já que, estando em causa nestes autos a titularidade de uma licença provisória, o direito titulado pela licença ainda não se efetivou na esfera do seu titular.

20) Considerando-se que a cassação da licença de condução, com fundamento no art.º148 do CE, se enquadra na verificação de uma condição negativa de atribuição do título de condução, já que a tese assenta na ideia de que a atribuição de licença de condução não é um direito absoluto e incondicional e que é legítimo que o legislador estabeleça requisitos positivos e negativos para a sua atribuição, sempre resultará tal raciocínio da necessidade de uma “força maior” de controle jurisdicional sobre a situação.

21) Do ponto de vista naturalístico, o que está em causa no Art.º 148º do CE, não é uma nova punição pela prática das contra - ordenações, mas o sancionamento pela prática reiterada de contra-ordenações graves ou muito graves, segundo o legislador, reveladoras de inidoneidade para o exercício da condução de veículos a motor.

22) Ora, na verdade, o ora Recorrente não foi julgado pela prática das mesmas contra - ordenações, mas por um facto novo: a perda total de pontos atribuídos ao título de condução. (Cfr. Nº 10 do Artigo 148º da Lei 116/2015 de 28 de agosto).

23) No entanto, quer do ponto de vista naturalístico, quer do ponto de vista normativístico, quer ainda, do “ponto de vista do concreto pedaço de vida” há violação ne bis in idem pois os factos são os mesmos, as normas aplicáveis são as mesmas e o “pedaço de vida” também é o mesmo.

24) Pese embora no Art.º 148º do CE não refira expressamente sanção acessória, mas cassação do título de condução, o que é certo é que uma coisa e outra são exatamente a mesma coisa: num determinado período o arguido/condutor, efetivamente, não pode conduzir veículos automóveis:

25) Por referência à situação dos presentes autos, o Recorrente foi condenado em duas sanções acessórias de conduzir veículos automóveis, as quais foram ponderadas em função do grau da ilicitude e da culpa, tendo as mesmas transitadas em julgado, o que já não acontece com a sanção acessória de cassação do título de condução.

26) Entendido nesta vertente, afigura-se manifesto que o Recorrente está a ser punido “duas vezes” pela prática dos mesmos factos, sendo que destas duas condenações e a não proceder o presente recurso, o que só por mera facilidade de raciocínio se admite, ainda vai resultar posteriormente uma outra condenação, a cassação do título de condução, que se pode chamar de medida cautelar ou condição negativa de atribuição do título de condução, mas não é, uma vez que o efeito pretendido tanto com a sanção acessória decretada pelo Tribunal, como pela cassação do titulo de condução ordenada pela ANSR é exatamente o mesmo: inibição de conduzir veículos automóveis durante um determinado período de tempo.

27) Como é sabido, ninguém pode ser julgado mais do que uma vez pela prática do mesmo crime, conforme prevê o princípio non bis in idem, plasmado o nº 5 do artigo 29º da Constituição da República Portuguesa, retirando-se da situação em presença que caso se mantenha a decisão da ANSR, afigurando-se que o mesmo acontecerá em violação do principio atras referido e igualmente da citada norma constitucional.

28) Atenta jurisprudência a propósito, do principio non bis in idem, nomeadamente o acórdão do TRL de 27/09/2017, Proc. 1873/16.0T8TVD.L1-3, in www.dgsi.pt, e aplicando os seus ensinamentos nos presentes autos, a cassação do titulo de condução aplicada pela ANSR ao ora Recorrente assenta nos mesmos factos, os quais já deram origem a igual sanção, havendo uma duplicação de sanções idênticas: inibição de conduzir, assentando ambas nos mesmos factos.

29) Ainda a propósito da violação do princípio ne bis in idem, importa citar também o acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães, de 20/03/2006, Proc. 95/06-1, in www.dgsi.pt, podendo retirar-se dos seus ensinamentos que, tendo havido condenação por factos ilícito/criminais, a cassação do titulo de condução ordenada pela ANSR, entidade diferente da primeira condenação, constitui-se como uma segunda condenação do mesmo sujeito e decorrente dos mesmos factos, já que se basta pelo somatório automático dos pontos, o que significa violação do já citado principio non bis in idem e do nº 5 do artigo 29º da C.R.P..

30) A decisão de cassação do título de condução, atento o procedimento autónomo previsto no Art.º 148º do CE, subsequente ao trânsito em julgado das condenações em inibição de conduzir, por cada uma das contraordenações, viola o princípio constitucional ne bis in idem, consagrado no artigo 29.º, n.º 5, da CRP, o qual prescreve que ninguém pode ser julgado mais do que uma vez pela prática do mesmo crime, devendo as normas previstas na alínea c) do nº 4; n.º 10º e n.º 11 do art.º 148º do CE ser considerada inconstitucional por violação do artigo 29.º, n.º 5, da CRP se aplicada no sentido de ser fundamento bastante da cassação do título de condução a ocorrência da perda automática da totalidade de pontos, já que se configura tal como uma condenação suplementar.

31) O Ac. do T. R. G. , Proc.: 66/12.0GTVCT.G1 de 21-01-2013 a propósito do princípio constitucional aposto no nº4 do Artigo 30º, remete para conceções ressocializadoras na intervenção penal e na retirada de instrumen­tos sancionatórios jurídico-penais de qualquer efeito jurídico infamante ou estigmatizante, bem como enquadrando a decisão em Sentença condenatória em função da ponderação concreta da culpa do agente, não podendo a lei fazê-los resultar automaticamente da condenação como seu efeito neces­sário, o que não é considerada na aplicação as normas do Artº 148º do CE a proibição de conduzir veículos com motor na via pública pode retirar o direito ao trabalho e a prover à subsistência, como no caso dos presentes autos, revelando-se manifesto, atento o que supra jurisdicionalmente se disse a violação do nº 4 do Artigo 30º da Lei fundamental.

32) A questão das normas o artigo 148º do CE relativas à cassação da carta de condução enfermarem de inconstitucionalidade material por serem contrárias ao princípio consignado no artigo 30.º, n.º 4 da Constituição foram analisadas no Acórdão da Relação do Porto, proc. 644/16.9PTPRT-A.P1 de 9 de maio de 2018, referido na Sentença recorrida e no Acórdão do TRP de 30/04/2019, Proc. 316/18.0T8CPV.P1., sendo que, porque entendem de forma diferente a natureza jurídica do instituto, enquadram conclusões diferentes, sendo certo que a cassação do título de condução decorrente do artigo 148.º do Código da Estrada não depende de qualquer operação de mediação judicial perante a situação concreta, uma vez que ela decorre da subtração de pontos que são consequência necessária de determinadas condenações.

33) Na situação como a dos presentes autos, de cassação da licença de condução em que a mesma seja indispensável para o infrator/arguido prover ao seu sustento, a negação do direito de conduzir implica a impossibilidade de prover ao sustento o que necessariamente obriga a uma ponderação diferente atenta a finalidade as penas e medidas de segurança, não fazendo a Lei depender de qualquer elemento subjetivo, qualquer decisão de cassação da Licença de condução é manifestamente atentatória de um efetivo direito de audiência e defesa, princípio constitucional expresso no Art.º 32º, nº 10 da CRP, além da proibição da perda de direitos expresso no Art. º 30º, nº 4 da mesma Lei e atentatório do fim das penas.

34) Nos termos do disposto no nº 4 do artigo 169º do Código da Estrada, a cassação do título de condução é uma competência conferida ao Presidente da Autoridade Nacional de Segurança Rodoviária, cuja decisão como a que emerge do artigo 69º do Código Penal, importa uma restrição de direitos fundamentais, nomeadamente o direito ao trabalho (artigo 58º da C.R.P.).

35) Ora, estando em causa a restrição de direitos fundamentais, como seja o direito a conduzir veículos automóveis, que não pode deixar de ser integrado no direito à cidadania previsto no artigo 26º nº 1 da C.R.P., a supressão de um qualquer deles obriga a que seja doseada em função da ilicitude e da culpa, conforme preveem os artigos 71º nº 1 e 2, 101º e 102º, todos do Código Penal.

36) Não sendo a Autoridade Nacional de Segurança Rodoviária uma entidade com poderes soberanos, como é o Tribunal, não pode a mesma ser investida de competências que só aos Tribunais são conferidas, conforme decorre do artigo 32º da C.R.P., nomeadamente dos números 4, 5, 7 e 10.

37) Assim, o nº 4 do artigo 169º do C.E, que atribui competência ao Presidente da ANSR, para decidir sobre a verificação dos respetivos pressupostos e ordenar a cassação do titulo de condução, é materialmente inconstitucional, uma vez violar os artigos 27º nº 2 e 202º da CRP.

38) Nestes termos, e nos demais de direito aplicável, e sempre com o mui douto suprimento de V. Exas., deve declarar-se que as normas previstas na alínea c) do nº 4, n.º 10 e n.º 11 do art.º 148º da Lei 116/2015 de 28/08 - Código da Estrada – são inconstitucionais por violação:

i. Do n.º2 do Art.º 18º da CRP por considerar ser fundamento bastante da cassação do título de condução a subtração automática de pontos, atentos os efeitos decorrentes da cassação serem manifestamente sancionatórios, não revestirem qualquer natureza pedagógico, de satisfação de necessidades de prevenção ou ressocialização, nem qualquer limitação ao necessário para salvaguardar outros direitos ou interesses constitucionalmente protegidos, sendo que estando em causa a restrição de um direito integrado no direito à cidadania previsto no artigo 26º nº 1 da C.R.P., a supressão de um qualquer deles obriga a que seja doseada em função da ilicitude e da culpa, conforme preveem os artigos 71º nº 1 e 2, 101º e 102º, todos do Código Penal.

ii. Do n.º 4, n.º 5, n.º 7 e n.º 10 do Art.º 32º da CRP por via do procedimento de cassação do título de condução não prever uma estrutura acusatória do processo, qualquer fase que tome em consideração qualquer elemento subjetivo, não estando salvaguardadas as garantidas a defesa e controlo jurisdicional, devendo a perda da totalidade de pontos, constituir-se como um reflexo ou um índice da gravidade.

iii. Do n.º 5, do Art.º 29º da CRP, porquanto a decisão da ANSR constitui-se como uma condenação suplementar do mesmo sujeito, já que decorre de condenação anterior por factos ilícito/criminais; e decorrente dos mesmos factos, bastando-se apenas no somatório automático dos pontos, o que significa violação do principio non bis in idem.

iv. Do n.º 4 do Art.º30 da CRP pela aplicação ao caso concreto da decisão de cassação do título pela ANSR de proibição de conduzir veículos com motor na via pública retirar o direito ao trabalho e a prover à subsistência, não atendendo o normativo em referência à finalidade das penas e medidas de segurança.

Ainda,

v. Do nº 2 do Art.º 27ºe 202º porquanto à ANSR não pode ser investida de competências que só aos Tribunais são conferidas, conforme decorre do artigo 32º n.º 4, 5, 7 e 10 da CRP, sendo que a atribuição da competência ao Presidente da ANSR para decidir sobre a verificação dos respetivos pressupostos e ordenar a cassação do titulo de condução o artigo, por decorrência do previsto no Art.º169º nº 4 do Código da Estrada, que lhe atribui tal competência, é materialmente inconstitucional.

Em consequência, sendo inaplicáveis as ditas normas como fundamento da cassação do título de condução do ora arguido, deve ser revogada a decisão proferida pelo Tribunal a quo, e substituída por douto Acórdão que, dando provimento ao presente recurso nos termos ora formulados, absolva o arguido e ora Recorrente da decisão de cassação do título de condução, fazendo-se assim, e como sempre e mais uma vez, sã, serena e objetiva

JUSTIÇA!!!

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A Digna Magistrada do Ministério Público respondeu ao recurso de forma genérica, tendo terminado a sua resposta pugnando pela improcedência do recurso.

Já neste tribunal da Relação o Exmº Magistrado do Ministério Público emitiu parecer de forma mais substancial, pugnando pela procedência do recurso, embora por razões diferentes das aduzidas pelo recorrente.

Com efeito, enquanto este, como acima se referiu, centra a sua discordância na inconstitucionalidade das normas jurídicas aplicadas, já quele entende que o recurso deve proceder uma vez que “… do elenco dos factos julgados provados não consta nenhum facto que, analisado isoladamente ou na conjugação com outros também julgados provados, demonstre a existência de um estado de perigosidade ou inaptidão do recorrente para a prática da condução de veículos com motor, analisadas uma e outra decisões fica por saber se a cassação se ficou a dever ao eventual estado de perigosidade ou à hipotética inaptidão, já que só um destes pressupostos (ou ambos, cumulativamente) a tal pode fundamentadamente conduzir.”

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APRECIANDO

Considerando que as conclusões do recurso delimitam o âmbito de intervenção deste Tribunal e que nos termos do artº 75º, nº 1, do D.L. 433/82 de 27/10 só a matéria de direito pode estar em causa, a questão que importa solucionar é a de se saber se a cassação da carta prevista no artº 148º do Cód. da Estrada, operando de forma automática, assenta em normas inconstitucionais, ou em interpretações igualmente viciadas de inconstitucionalidade, como pretende o recorrente.

A questão abordada pelo Exmº Magistrado do Ministério Público junto deste Tribunal, acima referida, será igualmente abordada, até porque se prende com algumas das questões suscitadas pelo recorrente.
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Na parte que interessa, a decisão recorrida tem o seguinte conteúdo:

2. Fundamentação de facto:

Considerando o acervo probatório (de índole documental) junto aos autos, tem o Tribunal por assente a seguinte factualidade:

1.O arguido é titular da carta de condução n.º E-23---, emitida inicialmente em 29/01/1999, para as categorias A, , B, BE, C, C1E e CE;

2.O arguido/recorrente foi condenado no âmbito do processo penal n.º --/17.1PTSTB, que correu termos neste Juízo Local Criminal de Setúbal (J4) pelo cometimento, em 7/08/2017, de 1 (um) crime de condução de veículo em estado de embriaguez, p. e p. pelo artigo 292º, n.º 1 do Código Penal;

3.A sentença condenatória foi proferida e notificada ao arguido em 8/08/2017, tendo transitado em julgado em 2/10/2017;

4.Por via de tal condenação foi aplicada ao arguido pena acessória de proibição de conduzir na medida de 3 (três) meses;

5.Consequentemente, implicou tal decisão a dedução de 6 (seis) pontos ao seu título de condução (artigo 148º, n.º 2 do Código da Estrada);

6.O arguido/recorrente foi ainda condenado no âmbito do processo penal n.º --/18.5GELSB, que correu termos neste Juízo Local Criminal de Setúbal (J4) pelo cometimento, em 1/04/2018, de 1 (um) crime de condução de veículo em estado de embriaguez, p. e p. pelo artigo 292º, n.º 1 do Código Penal;

7.A sentença condenatória foi proferida e notificada ao arguido em 3/04/2018, tendo transitado em julgado em 3/05/2018;

8.Por via de tal condenação foi aplicada ao arguido pena acessória de proibição de conduzir na medida de 4 (quatro) meses e 15 (quinze) dias;

9.Consequentemente, implicou tal decisão a dedução de 6 (seis) pontos ao seu título de condução (artigo 148º, n.º 2 do Código da Estrada);

10.O arguido é solteiro, vivendo em união de facto com MS;

11.Tem, do indicado relacionamento, um filho em comum com a companheira, nascido em 29/10/2013, o qual integra o agregado familiar pelos mesmos formado;

12.A companheira do arguido/recorrente exerce atividade profissional na Santa Casa da Misericórdia …., auferindo o equivalente ao ordenado mínimo nacional;

13.O arguido vivenciou(a) período de baixa médica por doença, tendo-lhe visto atribuído subsídio de €679,50;

14.Com os referidos rendimentos, carecem de fazer face às suas despesas correntes, entre as quais se contempla renda habitacional de €430,00;

15.Não se descortinam, no RIC do arguido, outras infrações que não as contempladas supra.
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Não se provou:
A)Que o arguido exerça ou perspetiva vir a exercer em breve a condução de veículos pesados de longo curso.

Não se toma por relevante para a presente sede decisória qualquer outra factualidade, designadamente:

I – Que os factos que ditaram as condenações penais supra hajam ocorrido fora do exercício profissional da condução;
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Fundamentação fáctica:
Para formar a sua convicção quanto à factualidade apurada – não questionada, na sua essência, pelo recorrente -, baseou-se o Tribunal, desde logo, na análise do registo de infração de condutores (RIC) de fls. 1 e 2, print informativo da carta de condução emitida em nome do arguido (de fls. 4), elementos informativos extraídos dos processos penais atrás identificados (fls. 5 a 13) e documentação junta pelo arguido/recorrente, respeitante à sua condição vivencial, familiar e económica (constante de fls. 30 a 37).
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3. Enquadramento jurídico:
Apurados os factos, cabe, agora, proceder ao seu enquadramento jurídico.

Tendo por fundamento o disposto no artigo 148º, n.ºs 2 e 10 do Código da Estrada, foi determinada a cassação do título de condução emitido em nome do arguido, atenta a circunstância de ter o mesmo sofrido duas condenações penais por cometimento de crimes do foro rodoviário, implicando a aplicação de penas acessórias de proibição de conduzir.

Estatui o citado dispositivo legal que:
“1 - A prática de contraordenação grave ou muito grave, prevista e punida nos termos do Código da Estrada e legislação complementar, determina a subtração de pontos ao condutor na data do caráter definitivo da decisão condenatória ou do trânsito em julgado da sentença, nos seguintes termos: a) A prática de contraordenação grave implica a subtração de três pontos, se esta se referir a condução sob influência do álcool, excesso de velocidade dentro das zonas de coexistência ou ultrapassagem efetuada imediatamente antes e nas passagens assinaladas para a travessia de peões ou velocípedes, e de dois pontos nas demais contraordenações graves; b) A prática de contraordenação muito grave implica a subtração de cinco pontos, se esta se referir a condução sob influência do álcool, condução sob influência de substâncias psicotrópicas ou excesso de velocidade dentro das zonas de coexistência, e de quatro pontos nas demais contraordenações muito graves. 2 - A condenação em pena acessória de proibição de conduzir e o arquivamento do inquérito, nos termos do n.º 3 do artigo 282.º do Código de Processo Penal, quando tenha existido cumprimento da injunção a que alude o n.º 3 do artigo 281.º do Código de Processo Penal, determinam a subtração de seis pontos ao condutor. 3 - Quando tiver lugar a condenação a que se refere o n.º 1, em cúmulo, por contraordenações graves e muito graves praticadas no mesmo dia, a subtração a efetuar não pode ultrapassar os seis pontos, exceto quando esteja em causa condenação por contraordenações relativas a condução sob influência do álcool ou sob influência de substâncias psicotrópicas, cuja subtração de pontos se verifica em qualquer circunstância. 4 - A subtração de pontos ao condutor tem os seguintes efeitos: a) Obrigação de o infrator frequentar uma ação de formação de segurança rodoviária, de acordo com as regras fixadas em regulamento, quando o condutor tenha cinco ou menos pontos, sem prejuízo do disposto nas alíneas seguintes; b) Obrigação de o infrator realizar a prova teórica do exame de condução, de acordo com as regras fixadas em regulamento, quando o condutor tenha três ou menos pontos; c) A cassação do título de condução do infrator, sempre que se encontrem subtraídos todos os pontos ao condutor. 5 - No final de cada período de três anos, sem que exista registo de contraordenações graves ou muito graves ou crimes de natureza rodoviária no registo de infrações, são atribuídos três pontos ao condutor, não podendo ser ultrapassado o limite máximo de quinze pontos, nos termos do n.º 2 do artigo 121.º-A. 6 - Para efeitos do número anterior, o período temporal de referência sem registo de contraordenações graves ou muito graves no registo de infrações é de dois anos para as contraordenações cometidas por condutores de veículos de socorro ou de serviço urgente, de transportes coletivo de crianças e jovens até aos 16 anos, de táxis, de automóveis pesados de passageiros ou de mercadorias ou de transporte de mercadorias perigosas, no exercício das suas funções profissionais. 7 - A cada período correspondente à revalidação da carta de condução, sem que exista registo de crimes de natureza rodoviária, é atribuído um ponto ao condutor, não podendo ser ultrapassado o limite máximo de dezasseis pontos, sempre que o condutor de forma voluntária proceda à frequência de ação de formação, de acordo com as regras fixadas em regulamento. 8 - A falta não justificada à ação de formação de segurança rodoviária ou à prova teórica do exame de condução, bem como a sua reprovação, de acordo com as regras fixadas em regulamento, tem como efeito necessário a cassação do título de condução do condutor. 9 - Os encargos decorrentes da frequência de ações de formação e da submissão às provas teóricas do exame de condução são suportados pelo infrator. 10 - A cassação do título de condução a que se refere a alínea c) do n.º 4 é ordenada em processo autónomo, iniciado após a ocorrência da perda total de pontos atribuídos ao título de condução. 11 - A quem tenha sido cassado o título de condução não é concedido novo título de condução de veículos a motor de qualquer categoria antes de decorridos dois anos sobre a efetivação da cassação. 12 - A efetivação da cassação do título de condução ocorre com a notificação da cassação. 13 - A decisão de cassação do título de condução é impugnável para os tribunais judiciais nos termos do regime geral das contraordenações”.

Resulta claramente do normativo em referência que é a prática de contraordenações graves ou muito graves, ou, alternativamente, a existência de condenação penal em pena acessória de proibição de conduzir que determina a perda de pontos para efeitos de uma possível e futura cassação do título de condução, a que alude o nº 4, alínea c), do indicado artigo.

Dito de outra forma, o efeito de perda de pontos advém diretamente da verificação, num plano jurídico-substantivo, de uma determinada condenação, por via do cometimento de infração contraordenacional ou penal (estradal), independentemente da coima ou pena concretamente aplicada ou do grau de culpa do respetivo condutor concretamente apurado, ou as circunstâncias associadas ao cometimento da infração (ponderadas em sede e momento próprios).

No que concretamente releva para o caso dos autos, diz o nº 2 do mesmo artigo que a condenação em pena acessória de proibição de conduzir e o arquivamento do inquérito, nos termos do n.º 3 do artigo 282º do Código de Processo Penal, quando tenha existido cumprimento da injunção a que alude o n.º 3 do artigo 281.º do Código de Processo Penal, determinam a subtração de seis pontos ao condutor.

Como se refere, a este propósito, no Acórdão da Relação do Porto de 9/05/2018 (Relator: Francisco Mota Ribeiro – Proc. N.º 644/16, in www.dgsi.pt) “Ou seja, mais uma vez, agora de uma forma implícita, a perda de pontos é consequência da prática de uma infração, com reflexos na condução estradal, agora de natureza penal. Daí também a perda de pontos ser maior do que relativamente às contraordenações graves e muito graves. Circunstância que na projeção futura que os efeitos de tais condenações possam vir a ter, numa eventual cassação da carta de condução, evidencia o respeito que na atribuição de perda de pontos se teve pelo princípio da proporcionalidade, e nomeadamente na relação que resulta estabelecida entre a quantidade e qualidade das infrações cometidas, enquanto fundamento possível daquela cassação”.

Nesta medida, a verificação da infração penal, devidamente apreciada por sentença transitada em julgado, o que sucedeu quanto aos processos indicados pela entidade administrativa, traz como consequência automática, no caso do arguido, de 12 pontos (6 + 6).

Ora, o arguido, deixando transitar em julgado tais sentenças e, nessa medida, conformando-se com todos os efeitos inerentes às mesmas, aceitou também dessa forma, as consequências legais e automáticas da perda pontos, a que se refere o artigo 148º, nº 2, do CE.

E conforme se adianta na decisão que atrás se invocou “(…) o sistema de pontos traduz apenas uma técnica utilizada pelo legislador para sinalizar em termos de perigosidade os efeitos que determinadas condutas ilícitas penais ou contraordenacionais podem vir ou não a ter no futuro, no que toca a uma eventual reavaliação da autorização administrativa habilitante ou licença de condução de veículos automóveis, atribuída a um determinado particular, reavaliação essa que poderá culminar com a aplicação de uma medida de segurança, mais precisamente com a decisão de cassação da respetiva carta de condução. Decisão esta que tem caráter administrativo e pressupõe um juízo prévio de inaptidão para o exercício da condução, assente fundamentalmente no número e gravidade daquelas condutas ilícitas e do decurso do tempo que sobre elas se vier a verificar, nomeadamente e também para efeitos de recuperação ou não de pontos, nos temos do disposto no art.º 121º-A e 148º, nºs 5 e 7, do CE. Visando assim tal sistema apenas registar e evidenciar, através de um registo central, com um sentido claramente pedagógico, de satisfação de necessidades de prevenção, fundamentalmente de ressocialização, os efeitos penais ou contraordenacionais das infrações cometidas, segundo a respetiva gravidade, tendo fundamentalmente em conta, não as sanções aplicadas, mas as próprias infrações, como vimos supra. Sendo que o efeito que possam ter para a determinação da cassação da carta, em virtude de uma eventual perda total de pontos, nos termos do art.º 148º, nº 4, al. c), do CE, é apenas o de facilitação do cálculo do número de infrações cometidas e da sua gravidade, sendo certo que um tal resultado nunca será à partida certo, porquanto o próprio decurso do tempo e a posterior conduta do condutor tornarão contingentes os efeitos que daquelas infrações possam materialmente resultar, designadamente para a tal eventual cassação da carta, já que é a própria lei a prever que aos 12 pontos de que dispõe cada condutor, poderão ainda acrescer mais três, até ao limite máximo de 15 pontos, sempre que no final de cada período de três anos não exista registo de contraordenações graves ou muito graves ou crimes de natureza rodoviária no registo de infrações, ou ainda um ponto mais em cada período correspondente à revalidação da carta de condução, sem que exista registo de crimes de natureza rodoviária, não podendo ser ultrapassado o limite máximo de dezasseis pontos, sempre que o condutor de forma voluntária proceda à frequência de ação de formação, de acordo com as regras fixadas em regulamento”.

Quer dizer, o sistema de pontos tem um sentido essencialmente pedagógico, seja pela subtração de pontos efetuada proporcionalmente em função da gravidade de uma infração concretamente cometida, seja pela sua concessão, nos termos supra referidos, estimulando desse modo o condutor para comportamentos estradais de índole positiva, sendo que aquela subtração, e designadamente a que está diretamente em causa nos presentes autos, ocorre como efeito automático da infração cometida, sem que assuma, no entanto, em si, qualquer natureza sancionatória, sendo apenas reflexo ou um índice da gravidade da infração cometida e do relevo que esta possa ter no somatório de outras, tendo em vista aferir a dada altura a perigosidade do titular da licença de condução, em termos de saber se esta última se deve ou não manter, nos termos em que foi concedida pela administração.

O sistema de pontos será assim também um sistema que permitirá à administração aferir se o titular da licença de condução reúne ou não as condições legais para poder continuar a beneficiar dela. Inserir-se-á, portanto, tal desidrato, no âmbito dos poderes de administração do Estado. Aliás, tanto a atribuição da licença de condução, em função da qual a lei faz conceder ao respetivo titular os referidos 12 pontos, como a sua cassação, pela perda de todos os pontos, mas perda esta que tem materialmente subjacente a condenação ou a verificação prévia de infrações contraordenacionais ou penais, nos termos supra referidos, traduzem decisões de caráter administrativo: a primeira um ato administrativo permissivo de conteúdo positivo, ou mais precisamente autorização permissiva expressa na licença ou carta de condução, ou habilitação, relativa a direito cujo exercício “pode importar em sacrifícios especiais para um quadro de interesses públicos que convém acautelar”, entendendo o legislador introduzir limitações no exercício da liberdade individual de modo a garantir em certas atividades um determinado padrão de competência técnica, fazendo-o através de atos que são pressuposto da atribuição daquela licença de condução; enquanto que a segunda se traduz numa medida de segurança, também de caráter administrativo, que pressupõe um juízo prévio de inaptidão para o exercício da condução, relativamente a alguém que já havia obtido a concessão de autorização-habilitação para conduzir, mas cujas condutas, material e processualmente determinadas, com respeito pela estrutura acusatória do processo, assim como pelas garantias de defesa e controlo jurisdicional efetivos, vieram revelar a existência daquela inaptidão, e em respeito, portanto, das normas constitucionais, designadamente das invocadas pelo recorrente - art.ºs 2º, 18º, nº 2, 20º, nº 1, 29º, nº 1, 30º, nº 4, 32º, nºs 1, 4, 5 e 10, 202º, nº 2, e 219º, nº 1, da CRP.

E sendo tais condutas o fundamento material da cassação que eventualmente venha a ser determinada e não propriamente a atribuição de pontos, sendo estes somente o índice ou uma tradução numérica daquela gravidade, ainda por cima de um modo que resulta ser proporcionado àquela gravidade, não vislumbramos onde possa estar a inconstitucionalidade das normas dos artigos 148º ou 149º do Código da Estrada.

Nessa medida, e não se julgando verificada a inconstitucionalidade invocada, também não se mostrando incorreta, nos seus pressupostos normativos e factuais, a decisão proferida pela ANSR, a qual entendeu declarar a cassação do título de condução do arguido, deverá tal decisão manter-se nos seus exatos termos, nessa medida improcedendo o recurso de impugnação ora apresentado.

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4. Decisão:
Atento o exposto, decide-se julgar totalmente improcedente o recurso apresentado por NM e, em consequência, mantenho inalterada a decisão administrativa proferida pela ANSR, posta em crise por via da apresentação do presente recurso.

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Como já acima se referiu, os factos a considerar são os considerados provados na decisão recorrida, nem isso está em causa nos presentes autos.

A questão é outra e é apenas de direito.

Vejamos:

1 - Na exposição de motivos que acompanhou a proposta de Lei 336/XII (a qual pode ser consultada no site da Assembleia da República), da qual veio a resultar a L. 116/2015 de 28/8 que alterou vários artigos do Cód. da Estrada, entre os quais o artº 148º, refere-se:

“A presente proposta de lei destina-se a alterar o Código da Estrada, aprovado pelo Decreto-Lei n.º 114/94, de 3 de maio, implementando o regime da carta por pontos.

O atual regime contempla já um sistema aproximado da carta por pontos, embora bastante mitigado. Trata-se, assim, de promover uma atualização do regime vigente, acompanhando a maioria dos países europeus, onde o regime da carta por pontos se encontra plenamente consagrado e estabilizado.

A carta por pontos constitui uma das ações chave da Estratégia Nacional de Segurança Rodoviária, aprovada pela Resolução do Conselho de Ministros n.º 54/2009, de 14 de maio. Pretende-se, com a sua implementação, aumentar o grau de percepção e de responsabilização dos condutores, face aos seus comportamentos, adoptando-se um sistema sancionatório mais transparente e de fácil compreensão.

A análise comparada com outros países europeus demonstra que é expetável que a introdução do regime da carta por pontos venha a ter um impacto positivo significativo no comportamento dos condutores, contribuindo, assim, para a redução da sinistralidade rodoviária e melhoria da saúde pública.”

Resulta, pois, que o que se pretendeu com a introdução da carta por pontos, ou melhor, com as suas melhor concretização e maior abrangência, foi o de provocar uma alteração no comportamento dos condutores, conhecido que é o elevado grau de sinistralidade existente no nosso país.

2 - É neste contexto que surge o actual artigo 148º do Código da Estrada, o qual, na parte que nos interessa, dispõe:

2 - A condenação em pena acessória de proibição de conduzir e (…) determinam a subtracção de seis pontos ao condutor.

4 - A subtração de pontos ao condutor tem os seguintes efeitos:
c) A cassação do título de condução ao infrator, sempre que se encontrem subtraídos todos os pontos ao condutor.

10 - A cassação do título de condução a que se refere a alínea c) do nº 4 é ordenada em processo autónomo, iniciado após a ocorrência da perda total de pontos atribuídos ao título de condução

11 - A quem tenha sido cassado o título de condução não é concedido novo título de condução de veículos a motor de qualquer categoria antes de decorridos dois anos sobre a efetivação da cassação.

13 - A decisão de cassação do título de condução é impugnável para os tribunais judiciais nos termos do regime geral das contraordenações.

Por outro lado, dispõe o artº 121º-A, nº 1, do Cód. da Estrada (também introduzido pela L. 116/2015 de 28/8) que a cada condutor são atribuídos 12 pontos.

Ora, no caso em apreço temos que:
- O recorrente foi condenado duas vezes na pena acessória de proibição de conduzir, na sequência de condenação nessas duas vezes pela prática de crime de condução sob o efeito do álcool;

- Na sequência disso (nº 2 do artº 148º acima referido) foram-lhe subtraídos 6 pontos por cada condenação na pena acessória;

- Em consequência dessas subtrações ficou sem pontos na carta:

- Tendo tal situação como consequência a cassação da carta (al. c) do nº 4 do artº 148º acima referido), foi-lhe instaurado processo autónomo para esse feito (nº 10 do artº 148º acima referido), do qual resultou a decisão o Presidente da A.N.S.R. de cassação da carta (cfr. fls. 52 dos presentes autos).

Adiantando desde já, diremos que temos para nós como certo que não só não ocorre qualquer inconstitucionalidade, como pretende o recorrente, como (questão conexa com aquela) não é necessário que a decisão da autoridade administrativa e/ou a sentença do tribunal façam qualquer juízo sobre a eventual perigosidade ou inaptidão do recorrente e, consequentemente, não é exigível que qualquer dessas decisões considere como verificados factos que a isso possam conduzir.

É que uma situação é a prevista no artº 101º do Código Penal, em que o tribunal pode determinar a cassação da carta e para isso terá que concluir que, em face do facto praticado e da personalidade do agente, há “fundado receio de que possa vir a praticar outros factos da mesma espécie” (al. a) do nº 1) ou o mesmo “dever ser considerado inapto para a condução de veículo com motor” (al. b) do nº 1), outra situação bem diferente é a prevista no artº 148º do Cód. da Estrada e que é a que está em causa nestes autos.

Só no caso do Cód. Penal, em que a cassação pode resultar de apenas uma condenação por crime praticado na condução de veículo com motor ou com ela relacionado, é que se torna necessário fazer um juízo de valor sobre o caso concreto, nos termos das disposições legais acabadas de referir acima. Tal situação nada tem que ver com a carta por pontos, com a cassação por inexistência de pontos, em suma, com o artº 148º do Cód. da Estrada. Não há, pois, aí (no Cód. Penal) qualquer aplicação automática da medida de segurança da cassação do título de condução e nem sequer as situações previstas no nº 2 do artº 101º do Cód. Penal são de funcionamento automático para se concluir pela inaptidão, como claramente resulta do emprego da expressão “é susceptível …” no nº 2 do referido artº 101º.

3- É por isso que a jurisprudência na qual se apoia o Exmº Magistrado do Ministério Público junto deste tribunal, com o devido respeito, pouco nos ajuda no caso concreto.

Na maior parte dos acórdãos referidos no parecer não estava em causa a cassação da carta no âmbito do artº 148º do Cód. da Estrada, mas sim (em quase todos eles) no âmbito do artº 101º do Cód. Penal.

Assim:
- no acórdão da Relação de Coimbra de 24/6/15 tratava-se de cassação da carta no âmbito de processo criminal, no qual o arguido foi condenado por condução com álcool, tendo-se entendido que não existiam factos que integrassem a al. b) do nº 1 do artº 101º do Cód. Penal;

- no acórdão da Relação de Lisboa de 23/12/16 estava em causa a cassação da carta no âmbito de processo criminal no qual o arguido foi condenado pela prática de homicídio negligente e condução perigosa;

- no acórdão da Relação de Coimbra de 29/4/15, estava em causa a cassação da carta no âmbito de processo criminal no qual o arguido foi condenado por crime de condução com álcool, considerando-se que na acusação não constavam factos relativos à eventual perigosidade.

Apenas no acórdão da Relação de Guimarães de 16/5/06 não estava inicialmente em causa a aplicação do artº 101º do Cód. Penal, mas sim a prática de contra-ordenações.

Acontece, porém, que nessa altura a redacção do artº 148º do Cód. da Estrada era completamente diferente da actual e a única questão que aí se decidiu foi relativamente à forma adequada de o Ministério Público “apresentar” o processo para o Juiz decidir, ou não, pela cassação da carta. À data estava em vigor a versão do artº 148º do Cód. da Estrada introduzida pelo D.L. 2/98 de 3/1 e, aí sim, estava expressamente previsto que o tribunal (pois era o tribunal que eventualmente aplicava a cassação da carta) fizesse um juízo de idoneidade do infractor, nos termos aí referidos.

Tal versão do artº 148º do Cód. da Estrada nada tem que ver com a actual.

Todo o raciocínio do Digno Magistrado do Ministério Público assenta, pois, no regime previsto no artº 101º do Cód. Penal ou no regime anteriormente previsto no artº 148º do Cód. da Estrada, o que não impede que, ainda assim, se deva entender que o regime daquela disposição legal do Cód. Penal possa/deva ser aplicável às situações do actual artº 148º do Cód. da Estrada.

Não se vislumbra, porém, qualquer razão para isso, nem o nosso entendimento resulta de interpretação que fira qualquer preceito constitucional.

4- E aqui entramos mais propriamente na apreciação das razões da discordância do recorrente.

Em 1º lugar a intervenção da autoridade administrativa, designadamente do Presidente da A.N.S.R. (cfr. artº 169º, nº 4, do Cód. da Estrada que lhe atribui competência exclusiva para aplicação da cassação da carta), nada tem que ver com atribuição de “poderes soberanos” que só aos tribunais são conferidos, como defende o recorrente.

O processo autónomo que é instaurado destina-se apenas a verificar se ocorrem os requisitos formais, digamos, assim, com vista à cassação da carta, designadamente se efectivamente ocorreram duas condenações (transitadas em julgado), em pena acessória de proibição de conduzir e se o infractor tem zero pontos, pois que com o desenrolar do tempo pode ter adquirido mais pontos.

É isto e nada mais. O Presidente da A.N.S.R. não faz qualquer juízo concreto sobre o que quer que seja. Quem já fez esse juízo anteriormente foram os tribunais ao condenarem por duas vezes o infractor na pena acessória de proibição de conduzir. É nesse momento anterior, ou melhor, nesses dois momentos anteriores, que o infractor tem toda a possibilidade de contrariar a aplicação das penas que têm como consequência necessária a perda de pontos, perda esta que por sua vez leva à cassação da carta.

No processo autónomo o infractor é ouvido apenas para eventualmente contrariar os acima referidos pressupostos formais e, ainda assim, pode recorrer para os tribunais.

Imagine-se, por exemplo, que a A.N.S.R. se engana na identificação dos processos que levam à perda dos pontos; imagine-se que a A.N.S.R. entende que o infractor tem zero pontos mas afinal está errada. É sobre questões deste tipo que o infractor tem possibilidade de se defender perante a autoridade administrativa e de recorrer para o tribunal, sendo certo que os tribunais da 1ª instância se limitam a comunicar as condenações e nada mais.

Tenha-se em atenção que a subtracção de todos os pontos não é a única causa de cassação da carta no âmbito do artº 148º do Cód. da Estrada.

Nos termos do seu nº 8, também a falta não justificada à acção de formação de segurança rodoviária ou à prova teórica de exame de condução, bem como a sua reprovação, conduzem à cassação da carta pelo Presidente da A.N.S.R..

Também aqui a intervenção da autoridade administrativa, designadamente do seu Presidente, se destina a apreciar se as referidas situações ocorreram efectivamente, ou não, inexistindo cobertura legal para que nestes casos seja necessário fazer um juízo de valor em concreto (repete-se, é no âmbito do artº 101º do C.P., e apenas aí, que tal juízo deve ser feito).

Não, há pois, qualquer violação dos artºs 27º, nº 2, e 201º da C.R.P., como pretende o recorrente.

5 - Com o que já ficou dito, facilmente se conclui que não ocorre violação de quaisquer outros preceitos constitucionais.

Antes de mais, importa referir que no Ac. da Rel. do Porto de 9/5/18, referido na decisão recorrida (e nela parcialmente transcrito, embora, certamente por lapso, a partir de determinada altura – onde se refere “Quer dizer…” – sem indicação de continuação de transcrição) e na motivação de recurso, não se debruçou concretamente sobre a cassação da carta no âmbito do artº 148º do Cód. da Estrada.

Para além de ser curioso que tanto a decisão recorrida que decidiu num determinado sentido, como o recorrente que pretende que se decida em sentido oposto, se apoiem no mesmo acórdão, há que ter em conta que o que estava nele em causa era se a comunicação do MºPº à A.N.S.R., de que o inquérito tinha sido arquivado nos termos do artº 282º, nº 3, do C.P.P., deve, ou não, ser feita, de forma automática, estando tal decisão sumariada da seguinte forma: “I - A comunicação/notificação à A.N.S.R. a que se refere o artº 148º 2 CE é uma mera consequência necessária da decisão. II - A subtracção de pontos ao condutor habilitado com carta de condução é efeito automático da infracção cometida e não assume em si mesma qualquer natureza sancionatória”.

Não se discutia aí se a cassação era, ou não, automática, pois estava em causa apenas uma comunicação para que o arguido perdesse 6 pontos, nos termos do artº 148º, nº 2, do Cód. da Estrada. Era a natureza da perda de pontos que estava em causa, o que não significa que as considerações tecidas na indicada decisão judicial não possam ter aqui aplicação, até porque na sua fundamentação se alude também à questão da cassação da carta, embora, repetindo, não era isso que directamente estava em discussão.

Com efeito, em determinado passo da fundamentação do referido acórdão, escreve-se a propósito da decisão de cassação da carta operada pela autoridade administrativa: “Decisão esta que tem carácter administrativo e pressupõe um juízo prévio de inaptidão para o exercício da condução, assente fundamentalmente no número e gravidade daquelas condutas ilícitas e do decurso do tempo que sobre elas se vier a verificar, nomeadamente para efeitos de recuperação ou não de pontos”.

Não é este (o do juízo prévio de inaptidão) o nosso caminho: para nós não só a perda de pontos é uma mera consequência necessária da decisão judicial (neste caso das duas decisões que aplicaram a pena acessória de proibição de conduzir), como a cassação da carta é uma mera consequência da situação da ocorrência de zero pontos, verificados que estejam os pressupostos formais da mesma, como já acima se referiu.

6 - Este nosso caminho é também o da Ac. da Rel. do Porto de 30/4/19, trazido à colação pelo recorrente na sua motivação de recurso, mas no qual se decidiu em sentido contrário ao que ele pretende.

Tal acórdão (este sim) versa sobre questão exactamente idêntica à dos presentes autos.

Como aí se entendeu, no seguimento do também entendido pela decisão da 1ª instância nesse outro processo, para a qual nesta parte se remeteu, não se vislumbra que haja violação do artº 30º, nº 4, da C.R.P. (“Nenhuma pena envolve como efeito necessário a perda de quaisquer direitos civis, profissionais ou políticos”), tal como se entendeu no Ac. do T.C. nº 461/2000 para caso semelhante relacionado com a caducidade da carta de condução provisória em caso de condenação na sanção acessória de inibição do direito de conduzir ou pela aprática de crimes e contra-ordenações rodoviárias.

Como bem se refere no citado Ac. da Rel. do Porto de 30/4/19 “Ao estabelecer um regime de carta “por pontos”, com a possibilidade de cassação da mesma em caso de subtracção de pontos decorrente de sucessivas condenações por crimes ou contra-ordenações rodoviárias, o legislador estabelece mais uma condição negativa para a atribuição do título de condução. Também neste aspecto não estamos perante a perda de um direito adquirido, mas perante a verificação de uma condição negativa de um direito que (não sendo absoluto e incondicional) a essa condição está sujeito. No fundo, com o sistema da “carta por pontos” nunca a licença de condução pode considerar-se definitivamente adquirida, pois que está continuamente sujeita a uma condição negativa relativa ao “bom comportamento rodoviário”.

A cassação da carta já decorre das próprias condenações anteriores e consequente redução dos pontos a zero, o que significa que já está subjacente a essas condenações. Só que não é o tribunal a pôr em prática essa outra consequência mas sim a autoridade administrativa. É que é disso mesmo que se trata: pôr em prática o que já resulta das circunstâncias anteriores.

Nem se faça apelo ao Ac. do Tribunal Constitucional nº 376/2018 de 4/7/2018, o qual decidiu (refere-se a decisão propriamente dita e parte da fundamentação para que melhor se compreenda o que está em causa):

“Tanto basta para que se conclua pela violação do princípio da proporcionalidade na vertente da necessidade e, em consequência, se formule um juízo de inconstitucionalidade da norma que faz depender o exercício da atividade de segurança privada da verificação do requisito negativo de não condenação prévia, por sentença transitada em julgado, pela prática de um crime na forma dolosa.

18. Pelo exposto, resta decidir em conformidade, ajuizando no sentido da inconstitucionalidade da norma constante da alínea d) do n.º 1 do artigo 22.º da Lei n.º 34/2013, de 16 de maio, e, quanto à remissão para a mesma feita, das normas constantes dos n.ºs 2, 3 e 4 do mesmo artigo, por violação do n.º 1 do artigo 47.º, em conjugação com o n.º 2 do artigo 18.º da Constituição.

III – Decisão
Nestes termos, declara-se a inconstitucionalidade com força obrigatória geral da norma constante da alínea d) do n.º 1 do artigo 22.º da Lei n.º 34/2013, de 16 de maio, e, quanto à remissão para a mesma feita, das normas constantes dos n.ºs 2, 3 e 4 do mesmo artigo, por violação do n.º 1 do artigo 47.º, em conjugação com o n.º 2 do artigo 18.º da Constituição.”

O que estava em causa no referido acórdão do Tribunal Constitucional era o condicionamento (inexistência de condenação anterior por crime doloso) do acesso à profissão de segurança privado.

Do que se tratava era do impedimento duradouro do acesso a uma profissão. Aqui não é assim: para além de não estar em causa o acesso ao exercício de uma profissão, o condutor a quem é cassada a carta pode “reavê-la”, decorrido que seja o período de 2 anos e depois de aprovação em novo exame de condução (cfr. artº 148º, nº 11, do Cód. da Estrada).

Nada há, pois, de definitivo e de acordo, parece-nos, com o que dispõe o nº 2 do artº 18º da C.R.P. – trata-se de uma restrição de direitos necessária e proporcional a a outros direitos constitucionalmente garantidos, sendo certo que a ocorrência de zero pontos na carta faz presumir, pelo menos, que ou há cassação da carta ou podem estar em risco o direito à vida e/ou à integridade física dos demais condutores e utentes da estrada (artºs 24º, nº 1 e 25º, nº 1, da C.R.P.).

Aliás, o mesmo subjaz à pena acessória de proibição de conduzir veículos com motor prevista no artº 69º do Cód. Penal, relativamente à qual não se colocou qualquer discussão acerca de eventual compatibilidade com o artº 18º, nº 2, da C.R.P..

Também aí está em causa a “comparação relativa” do direito a conduzir do temporariamente proibido de conduzir com o direito dos restantes a transitar na via pública (seja por que forma for).

A única diferença é que no caso da cassação da carta no âmbito do Cód. da Estrada a possibilidade de “agressão” do condutor que fica com zero pontos aos direitos dos restantes cidadãos é de tal ordem que só com nova atribuição do título de condução se considera que tal possibilidade fica afastada.

7 - Também, ao contrário do que defende o recorrente, não há qualquer violação do princípio ne bis in idem, tal como igualmente se entendeu no referido ac. da Rel. do Porto de 30/4/19.

Não há qualquer dupla condenação dos mesmos factos. O que acontece é que esses mesmos factos são punidos com vários tipos de penas e medida de segurança – no caso em apreço, multa, inibição do direito de conduzir e, posteriormente concretizada pela autoridade administrativa, uma vez que tem que haver reiteração, cassação do título de condução.

É precisamente o mesmo que acontece quando o infractor pelos mesmos factos é punido com prisão ou multa e com a pena acessória de inibição do direito de conduzir.

Não há, pois, violação de qualquer preceito constitucional.

8. – Foi precisamente este regime que foi querido pelo legislador e entendido como o único susceptível de contribuir para a diminuição da sinistralidade, como desde logo se referiu na exposição de motivos da proposta de lei respectiva: repetindo, “(…) é expetável que a introdução do regime da carta por pontos venha a ter um impacto positivo significativo no comportamento dos condutores, contribuindo, assim, para a redução da sinistralidade rodoviária e melhoria da saúde pública.”

Se, nos casos como o dos autos, a ocorrência de zero pontos tivesse como consequência a mera e reiterada aplicação da proibição de condução e não a cassação automática do título de condução, nos termos já referidos, de muito pouco valeria o novo sistema introduzido (melhorado), tal como aconteceu em muitos outros países.

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Concluindo:

A - Apenas quando está em causa a cassação do título de condução no âmbito do artº 101º do C.P. é necessário formular um juízo sobre a potencial perigosidade (al. a) do nº 1) ou inaptidão para a condução do infractor (al. b) do nº 1) para se decidir, ou não, pela aplicação de tal medida de segurança.

B - Não já assim quando se trata da cassação do título de condução nos termos do artº 148º do Código da Estrada, no âmbito do qual a mesma decorre necessária e automaticamente da verificação de zero pontos na carta do infractor, resultante de condenações anteriores em penas acessórias de proibição de conduzir.

C - Tal entendimento em nada ofende qualquer preceito constitucional, designadamente, os artºs 18º, nº 2, 32º, nºs 4, 5, 7 e 10, 29º, nº 5, 30º, nº 4, 27º, nº 2 e 202º da C.R.P..

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DECISÃO

Face ao exposto, acordam os Juízes em julgar improcedente o recurso, confirmando-se, assim, a decisão recorrida.

Atendo seu decaimento total, deverá o recorrente suportar 4 UCs de taxa de justiça.

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Évora, 3 de Dezembro de 2019

Nuno Maria Garcia


António Manuel Charneca Condesso