DISSOLUÇÃO DE UNIÃO DE FACTO
ATRIBUIÇÃO DE CASA DE MORADA
Sumário


I- Não tendo os unidos de facto filhos comuns, em caso de dissolução da união de facto, a casa deve ser atribuída ao membro que mais precise dela, sendo irrelevante a culpa pela dissolução.

II- Cabe ao unido de facto que pretende que lhe seja atribuída a casa de morada de família alegar e provar que necessita mais que o outro da referida casa.

III- A necessidade da habitação deve ser apurada mediante a apreciação global das circunstâncias particulares do caso.

IV- Na apreciação da necessidade da casa releva a situação patrimonial dos membros da união de facto, mas também um conjunto de factores complementares, designadamente o estado de saúde e a idade de cada um.

V- Sendo as situações patrimoniais semelhantes e reveladoras de algum desafogo económico, mas tendo o requerido 75 anos de idade e um quadro de saúde de síndrome demencial (designadamente doença de Alzheimer), enquanto a requerente tem 38 anos de idade e não padece de doença, deve concluir-se que o requerido necessita mais que a requerente da casa de morada de família.

Texto Integral


Acordam no Tribunal da Relação de Guimarães:

I – RELATÓRIO

1.1. N. M. instaurou procedimento cautelar comum contra C. P., pedindo que seja reconhecida «a forte probabilidade de vir a ser declarada, em ação principal, a existência de União de Facto entre a Requerente, N. M., e Requerido, C. P., desde o ano de 2007, por estes viverem em condições análogas às dos cônjuges e, em consequência», seja declarada «a existência do direito de permanência na habitação da casa de morada de família sito, Avenida … – Caminha, que se pretende por parte da Requerente».
Alegou, em síntese, que mantêm uma união de facto desde finais de 2006, altura em que a Requerente e o seu filho menor foram viver para uma casa do Requerido sita em ..., e que desde essa data que vivem à vista de toda a gente como se de uma família se tratasse.
Ao Requerido foi diagnosticada, em 2016, a doença de Alzheimer e, actualmente encontra-se medicado contra os efeitos desta doença.
Há cerca de dois meses, a filha do Requerido, H. P., inibiu o pai de qualquer tipo de administração dos seus bens e, no dia 01.10.2018, impediu o pai de pernoitar na sua casa e obrigou a Requerente a entregara sua medicação. Mais dirigiu à Requerente um ultimato no sentido de abandonar a casa de morada de família até ao final do dia 02.10.2018 e ameaçou cortar a electricidade e a água.

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O Requerido deduziu oposição, onde conclui pela improcedência do procedimento cautelar.
Alega que adquiriu a casa em Dezembro de 2006, depois do início da sua relação com a Requerente, após o que a passaram a habitá-la com o filho da Requerente. Um mês após a aquisição, o Requerido legou à Requerente a casa e no período que se seguiu adquiriu com o seu dinheiro os bens que colocou em nome da Requerente. Em 2015, vendeu, simuladamente, à Requerente um prédio rústico de lavradio sito na freguesia da .... Devido à diferença de idade entre Requerente e Requerido e ao ascendente que a Requerente exercia sobre o Requerido, consentiu que aquela passasse a ser co-titular de contas bancárias, com dinheiro exclusivamente do Requerido, pois na verdade a Requerente não tinha qualquer património e auferia apenas o salário de € 580,00.
Entretanto, a Requerente começou a desinteressar-se pelo estado e condição de vida do Requerido, que passou estar mal alimentado e a apresentar-se desleixado na sua aparência. No dia 01.10.2018, o Requerido pediu auxílio à filha H. P., pois não queria outorgar uma procuração que iria conferir amplos poderes de administração e disposição dos seus bens à Requerente. Nesse dia, decidiu o Requerido separar-se da Requerente e refugiou-se aos cuidados da filha.
Sustenta que não dispõe de outra casa onde possa morar e que, devido à sua idade e condição física, é ele que mais precisa da casa para morar. Em contraposição, a Requerente tem pouco mais de 40 anos, dispõe de uma condição financeira muito folgada, totalmente proporcionada pelo Requerido e que lhe permite adquirir ou arrendar, sem dificuldade, uma casa para si e para o seu filho.
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Realizada a audiência final, foi proferida decisão a «julgar improcedente a presente providência cautelar, absolvendo da mesma o requerido».
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1.2. Inconformada, a Requerida interpôs recurso de apelação, formulando as seguintes conclusões:

«1. O presente recurso interposto da douta decisão que decidiu «Por tudo o que vai exposto, decido julgar improcedente a providência cautelar, absolvendo da mesma o requerido».
2. Tal decisão merece reparo por parte de V/Exas.
1) Da nulidade da sentença pela oposição entre a fundamentação e a decisão
3. Estabelece o art.º 205.º, n.º 1 da CRP que “As decisões dos tribunais que não sejam de mero expediente são fundamentadas na forma prevista na lei” – e a decisão em crise não é de mero expediente!
4. Fundamentar é enunciar explicitamente as razões ou motivos que conduziram ao Tribunal a tomar aquela decisão, é enunciar as premissas de facto e de direito.
5. A obrigação de fundamentação representa um importante sustentáculo da legalidade, e o direito à fundamentação constitui um instrumento fundamental da garantia contenciosa, pois que é elemento indispensável na interpretação da decisão judicial.
6. O processo cautelar, apesar de ter a natureza de processo urgente, não deixa igualmente de estar sujeito, nas decisões a proferir, a tal dever de fundamentação, conforme claramente decorre do art.º 363.º, que remete para o art.º 607.º, todos do Cód. de Processo Civil.
7. Resumidamente, a requerente intentou a presente providência cautelar pedido para que, num primeiro momento, lhe fosse reconhecido a forte probabilidade de vir a ser declarada, em ação principal, a existência de União de Facto entre requerente e requerido desde do ano de 2007, por estes viverem em condições análogas às dos cônjuges, e, fruto da separação, num segundo momento, atribuir o direito de permanência na habitação da casa de morada de família a esta.
8. A requerente conseguiu provar a existência da União de Facto, pois considerou, o Douto Tribunal, como facto provado que estes, ponto 5 e 6 da fundamentação e da motivação que refere que - “… não há dúvidas que requerente e requerido viveram em união de facto pelo menos desde inícios de 2007…”.
9. Pelo que devia ter sido decretada parcialmente procedente o pedido da requerente.
10. Não sendo, como foi, conclui-se pela oposição entre os fundamentos e a decisão e, consequente, nulidade da sentença.
11. Tal entendimento decorre do Ac. STJ, de 19.2.1991: AJ, 15.º/16.º-31, que refere que, “Para que exista nulidade da sentença prevista no art. 668º, n.º1, al) c), de CPC é necessário que a fundamentação da decisão aponte num sentido e que esta siga caminho oposto ou, pelo menos, direção diferente”.
12. Sendo que o raciocínio supra aponta, pelo menos, para uma direção diferente.
13. Consequentemente, devia o tribunal a quo ter julgado procedente e decretar o reconhecimento da união de facto entre requerente e requerido, e, eventualmente, absolver o requerido quanto ao pedido referente a casa de morada de família.
14. Não tendo sucedido considera-se existir oposição entre a fundamentação e a decisão a qual equivale a sua ininteligibilidade e que justificam a decisão, determina, consequentemente, as nulidades previstas nas als. c) do n.º 1 do art.º 615.º do Cód. Proc. Civil,
Sem prescindir ou caso assim não se entenda;

2) Da nulidade da sentença pela omissão de pronúncia

15. Em face da sentença em crise, concede-se que o Tribunal a quo tenha fundamentado e motivado a sua convicção quanto a união de facto entre requerente e requerido, porém não decidiu quanto a esta.
16. Bem como existe falta de pronúncia, quanto aos imóveis alienados pelo requerido na pendência da presente ação, dezembro de 2018, e com o qual teve um proveito de cerca de € 300.000,00 (trezentos mil euros).
17. Refira-se que, atribui, o Tribunal a quo, a casa de morada família ao requerido por considerá-lo a parte mais fraca.
18. Este facto nunca foi objecto de análise, nem tampouco foi confrontado com a situação económica da requerente.
19. Essa diferença de património económico entre requerente e requerido é de cerca de € 100,000,00 (cem mil euros) que o requerido tem a mais que a requerente, requerimento datado de 29 de março de 2019, referência citius 2315971.
20. Mais se entende, devia, o Tribunal a quo, ter oficiosamente requerido uma análise acerca da situação económica do requerido, isto porque se discutiu a atribuição da casa de morada de família.
21. Assim, a nulidade prevista na 1.ª parte da al. d)do art. 615º do C.P.C., está diretamente relacionada com o comando fixado no n.º 2 do art. 608.º, segundo o qual “ O juiz deve resolver todas as questões que as partes tenham submetido à sua apreciação, excetuadas aquelas cuja decisão esteja prejudicada pela solução dada a outras; não pode ocupar-se senão das questões suscitadas pelas partes, salvo se a lei lhe permitir ou impuser o conhecimento oficioso de outras.”
22. Consequentemente, deveria o tribunal a quo ter julgado procedente e decretar a união de facto entre requerente e requerido, devendo também, ter-se pronunciado quanto ao lucro da venda dos imóveis que integrou o património do requerido e assim decidir da atribuição da casa de morada de família à requerente.
23. Assim, a omissão dos fundamentos de facto e de direito - à qual equivale a sua ininteligibilidade – que justificam a decisão, determina, consequentemente, as nulidades previstas nas als. d) do n.º 1 do art.º 615.º do Cód. Proc. Civil,…
24. … que se deixam expressamente invocadas, e que, a serem julgadas procedentes, como se impõe, deverão levar, nos termos e para os efeitos previstos no n.º 5 do art.º 662.º do Cód. Proc. Civil, a que se ordene ao Tribunal recorrido que fundamente a decisão apelada.

Caso não se decida pela procedência da(s) nulidade(s) referidas:

3) Da apreciação incorrecta da prova produzida

25. Ficou provado, a muito custo, que o requerido padece da doença de Alzheimer, ponto 8 da douta sentença, apesar de constantemente desmentido pela própria filha do requerido, e consequentemente pelo próprio requerido.
26. No ponto 12 o tribunal a quo considera como provado que a filha do requerido ameaçou cortar a água e a luz da, única, habitação da requerente e do seu filho menor.
27. Deverá o referido ponto ser alterado uma vez que é falso tendo filha do requerido consumido tais ameaças, além de ter trocado as fechaduras das portas da casa.
28. Tendo sido necessária a intervenção do Tribunal a quo para restabelecer o fornecimento de água, requerimento datado de 17/10/2018 e com a referência citius n.º 2110801 e despacho datado do 22/10/2018, referência citius n.º 43096095.
29. No ponto 23 da sentença deu o Tribunal a quo ficamos sem saber se terá sido por causa da requerente, desinteresse, ou por causa do seu envelhecimento que este aparece desleixado.
30. Nunca poderia o Tribunal a quo ter dado esse facto como provado, nem o referido nos pontos 24 a 30, esses ou são pessoais à requerente e disso dificilmente ou nunca se faz prova, ou foram depreendidos apenas pelos depoimentos das testemunhas arroladas pelo requerido, mas sem afastar o depoimento das arroladas pela requerente.
31. As regras da experiência ensinam que, caso um familiar ou próximo passe por uma situação similar, ninguém teria ficado sem reagir durante mais de 4 anos, muito menos uma filha.
32. Considerou o douto Tribunal na sua motivação que foram importante para o apuramento dos factos os depoimentos de, A. S., irmã do ex-marido da requerente, a testemunha M. S., ex-sogra da requerente, a testemunha B. M., filho da requerente, das testemunhas M. Q. e F. F., respetivamente, cunhada e irmão da ex- mulher do requerido, tios da filha do requerido H. P., arroladas pela requerente, e ainda da testemunha G. B., primo em segundo grau do requerido, J. F., irmão da ex-mulher do requerido, tio da filha do requerido, José, P. V., empregado do talho do requerido desde 2016 e por fim de H. P., filha do requerido, que, com procuração para o efeito representa o requerido nesta ação.
33. Reitera-se que, em momento algum foi dito que o depoimento das testemunhas, quer arroladas pela requerente, quer pelo requerido, seriam menos credível, menos valorados ou mesmo que não poderia ser considerado de todo, valendo portanto todos por igual.
34. Contudo, apenas foi favorecida, e escolhida, a versão das testemunhas arroladas pelo requerido, mas sem nunca fundamentar essa escolha.
35. Razão pela qual discorda a requerente da decisão proferida, principalmente por testemunhas arroladas pelo requerido terem mentido em audiência.
36. Como a testemunha G. B., refere no seu depoimento que privava com o requerido mas nada refere quanto a doença deste, apenas que estava muito melhor do que com a requerente e que esta última nunca trabalhava no talho apesar de ser funcionária.
37. Convenhamos que a doença de Alzheimer é algo de notório para quem convive e vê com o passar do tempo o seu próximo a definhar gradualmente sem nada por fazer.
38. Portanto, ou a referida testemunha G. B. não via o requerido há bastante tempo ou mentiu em audiência acerca ao estado de saúde deste.
39. Pelo exposto, o depoimento da testemunha G. B. não devia ter sido, em todo, valorado.
40. O mesmo sucede com depoimento da testemunha J. F. que mentiu em audiência, quanto a um anexo que afirmava não pertencer ao talho e lá apenas ia buscar lenha.
41. Pois, à mesma pergunta respondeu diferentemente a testemunha P. V., testemunha arrolada pelo requerido referiu que esse anexo era um armazém do talho e que lá trabalhava a requerente.
42. Ora, duas opiniões distintas acerca do mesmo local, J. F. e P. V..
43. E duas opiniões distintas acerca do trabalho realizado pela requerente no talho, G. B. e P. V..
44. Trata-se incongruência entre os depoimentos, sendo certo que, em Tribunal e sob juramento não existem mentiras inocentes.
45. Pelo que, nenhum desses depoimentos podiam ou deviam ter sido valorados pelo Tribunal a quo.
46. A testemunha José apenas referiu que o requerido estava mais magro e debilitado, sem nunca especificar se o conhecia e se ainda convivia com o requerido.
47. Pelo que não deveria o Tribunal a quo ter valorado esse depoimento.
48. Já a testemunha P. V., que trabalha no talho, desde 2016, pertencente ao requerido, e do qual a filha do requerido é gerente, referiu que se apercebeu aos poucos que o requerido apresentava-se menos cuidado e que por vezes cheirava mal.
49. Refira-se que a testemunha P. V., foi a única testemunha que referiu que o requerido cheirava mal.
50. O depoimento dele demonstrou incongruências com outros depoimentos, é atualmente funcionário do talho, dirigido pela filha do requerido, o que poderá ter levado a uma certa parcialidade no depoimento deste, não devendo o depoimento dele ser valorado.
51. Por fim quanto à testemunha H. P., filha do requerido, é testemunha e procurador do requerido neste processo.
52. Quando lhe foi perguntado se o seu pai padecia de uma doença grave, esta respondeu, perentoriamente, que não.
53. As regras da experiência ditam que a doença de Alzheimer, por enquanto, é uma doença grave, a testemunha sabia e sabe condição clinica do seu pai uma vez que o acompanhava, e acompanha, ao Centro de Saúde e controla a sua medicação.
54. Assim, quer pela parcialidade notória e mentira sucedida, devia o tribunal a quo não ter valorado os depoimentos de G. B., J. F., José, P. V. e de H. P. e não ter dado como provado do ponto 23 a 30.
55. Devia ter valorado os depoimentos das testemunhas A. S., M. S., B. M., M. Q. e F. F..

3.1) Das situações económicas da requerente e do requerido e da atribuição da casa de morada de família ao requerido:

56. Foi dado como provado que a requerente e possuidora dos bens imóveis, todos rústicos, descritos no pontos 17 a 20.
57. Que é detentora de contas a prazo no valor de € 90.000,00.
58. Conta depósito a ordem no valor de € 9.589,84.
59. Apólices de seguro no valor de € 117.994,00.
60. Ou seja, a requerente é detentora de 5 prédio rústico e de cerca de € 227.000,00.
61. Quanto ao requerido apenas se referiu que este é proprietário de um talho.
62. Em requerimento datado de 28 de março de 2019, referência citius 32003951, constam duas escrituras de compra e venda que indicam que o requerido, por meio de uma procuração outorgada a favor da sua filha H. P., procedeu a venda de dois imóveis tendo lucrado com a venda a quantia global de € 295.000,00.
63. Não se pronunciou o Tribunal a quo acerca desse facto que se considera relevante para a atribuição da casa de morada de família.
64. Apenas achou por relevante o facto do requerido ter 74 anos de idade e padecer da doença de Alzheimer.
65. Porém, fez uma apreciação errónea da doença.
66. A doença de Alzheimer é degenerativa, e fará com que, dentro em breve o requerido não consiga ficar nessa casa isolado, ..., sem acompanhamento permanente.
67. Pelo que, atendendo à situação económica e ao estado de saúde do requerido somos de considerar a requerente, e o seu filho menor, serão a parte mais fraca desta relação.
68. Pelo exposto deveria o Tribunal a quo ter atribuído a casa de morada de família à requerente, ainda que condicionada ao pagamento de uma renda pela requerente ao requerido.
69. Desta forma retiraria o requerido uma renda mensal para suportar as despesas mensais que se avizinham uma vez que a sua dependência para com terceiros aumenta a cada dia que passa.
70. Tal análise poderá chocar pela sua frieza, no entanto não poderemos deturpar uma realidade que é de per si grave e preocupante.
71. In casu, resulta dos autos que deveria, não só ter reconhecido na sua decisão a existência da união de facto entre requerente e requerido desde inícios de 2007, bem como ter atribuído a casa de morada de família à requerente e ao seu filho menor, devido à disparidade de rendimento existente entre estes, cerca de € 100,000,00 que o requerido tem a mais que a requerente, e, infelizmente, à dependência do requerido derivado a sua doença.
Finalmente, caso assim não se entenda,

4) Da reforma da sentença

72. Por fim, caso V/Exas. considerem que as nulidades supra alegadas não tenham sustentação jurídica, nem darão provimento ao presente recurso, apesar dos factos alegados quanto à apreciação errónea da provada feita pelo Tribunal a quo.
73. Requer a V/Exas. que procedam à reforma da sentença devendo nesta constar que é procedente e que se reconhece a existência da união de facto entre requerente e requerido desde inícios de 2007, atribuindo-se a casa de morada de família ao requerido, ficando as custas a cargo da requerente e requerido em partes iguais».
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O Recorrido apresentou contra-alegações, pugnando pela improcedência do recurso.
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O recurso foi admitido como sendo de apelação, com subida imediata, nos próprios autos e com efeito meramente devolutivo.
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Foram colhidos os vistos legais.
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1.3. QUESTÕES A DECIDIR

Em conformidade com o disposto nos artigos 635º, nºs 2 a 4, e 639º, nº 1, do Código de Processo Civil, o objecto dos recursos é delimitado pelas conclusões neles insertas, salvo as questões de conhecimento oficioso. Por outro lado, os recursos não visam criar decisões sobre matéria nova, sendo o seu âmbito delimitado pelo conteúdo do acto recorrido, não podendo o tribunal ad quem analisar questões que não foram anteriormente colocadas pelas partes ao tribunal a quo. Em matéria de qualificação jurídica dos factos a Relação não está limitada pela iniciativa das partes – artigo 5º, nº 3, do CPC.

Neste enquadramento, são questões a decidir:

i) Nulidades da sentença por verificação das causas previstas no artigo 615º, nº 1, alíneas c) e d), do CPC (oposição entre os fundamentos e a decisão e omissão de pronúncia);
ii) Verificar se existiu erro no julgamento da matéria de facto, no que respeita aos pontos de facto indicados pela Recorrente;
ii) Quanto à matéria de direito, em consonância com a modificação da matéria de facto proposta pela Recorrente e as correspondentes conclusões, saber se a decisão recorrida deve ser revogada, substituindo-se por outra que julgue procedente o procedimento cautelar.
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II – FUNDAMENTOS

2.1. Fundamentos de facto

2.1.1. A decisão recorrida considerou sumariamente provados os seguintes factos:

1. Requerente e Requerido iniciaram uma relação de namoro no ano de 2006.
2. O casamento da Requerente foi dissolvido em 29.11.2009 e o casamento do requerido em 19.11.2006.
3. A Requerente nasceu no dia -.10.1981 – certidão de fls. 7.
4. O Requerido nasceu no dia -.10.1944 – certidão de fls. 9.
5. Em finais do ano de 2006, passaram a viver juntos na casa de ... adquirida pelo Requerido no dia 28 do mês de Dezembro desse mesmo ano, juntamente com o filho da Requerente, então com 4 anos de idade.
6. Aí viveram Requerente e Requerido desde então, como se de um verdadeiro casamento se tratasse, celebrando festas de anos, festividades e férias.
7. No dia 26.01.2007, o Requerido legou à Requerente N. M. o prédio urbano composto por casa de rés-do-chão e logradouro, situado na freguesia de ..., concelho de Caminha, referido em 5 – escritura de fls. 12 a 13.
8. O Requerente padece de alguns problemas de saúde, tendo sido diagnosticado Demência de Alzheimer.
9. No dia 01.10.2018, o Requerido já não dormiu na casa de ..., com a Requerente.
10. No dia 01.10.2019, a filha do Requerido apresentou-se na casa referida no ponto 5, acompanhada de elementos da GNR, que acabaram por pedir à Requerente que entregasse a medicação do Requerido.
11. A casa referida no ponto 5 é a única residência da Requerente.
12. A filha do Requerido ameaçou cortar a luz e água da referida habitação.
13. Através de notificação judicial avulsa, foi a Requerente notificada pelo Requerido para, no prazo de oito dias, desocupar a habitação em causa.
14. O Requerido é dono e explora há dezenas de anos um estabelecimento comercial de venda de carnes denominado “Talho de …”, localizado no Largo …, Viana do Castelo – certidão do registo comercial de fls. 66 vº e ss.
15. Em 16.09.2004, a Requerente foi contratada como empregada desse estabelecimento comercial.
16. Essa situação propiciou uma convivência entre Requerente e Requerido que veio a culminar no relacionamento afectivo entre ambos.
17. O prédio rústico composto de mato e carvalhos, sito na ..., freguesia da União de Freguesias de Na ..., do concelho de Viana do Castelo, está inscrito a favor da Requerente na respectiva matriz predial rústica sob o artigo nº … - certidão de fls. 70.
18. O prédio rústico composto de um pinhal, sito na ..., freguesia da União de Freguesias de na ..., do concelho de Viana do Castelo, está inscrito a favor da Requerente na respectiva matriz predial rústica sob o artigo nº … - cfr. certidão de fls. 70 vº.
19. O prédio rústico composto de pinhal, sito na ..., freguesia da União de Freguesias de na ..., do concelho de Viana do Castelo, está inscrito a favor da Requerente na respectiva matriz predial rústica sob o artigo nº … - certidão de fls. 71.
20. A Requerente comprou os seguintes bens imóveis:
- Em 2011, o prédio rústico composto de pinhal, sito na ..., freguesia da União de Freguesias de na ..., do concelho de Viana do Castelo, inscrito na respectiva matriz predial rústica no artigo nº … - cfr. escritura pública de fls. 72 e ss.
- Em 2015, comprou ao Requerido, o prédio rústico de lavradio, sito em …, freguesia da ..., do concelho de Viana do Castelo, inscrito na respectiva matriz predial rústica no artigo nº … - cfr. escritura pública de fls. 74 e ss.
21. O Requerido consentiu que a Requerente passasse a ser co-titular de contas bancárias, com dinheiros seus.
22. Antes de se relacionar com o Requerido e durante o tempo que viveram juntos, a Requerente tinha como rendimento único o seu salário no talho no valor mensal de mensal de € 580,00, acrescido de subsídio de alimentação e de subsídio de carne.
23. A Requerente passou paulatinamente a desinteressar-se pelo estado e condição de vida do Requerido, e este passou a aparecer desleixado no seu aspecto físico em consequência inevitável do envelhecimento e consequente perda de saúde.
24. O Requerido não se alimentava bem, pelo que emagreceu gradualmente; apresentava-se mal cuidado no seu vestuário e aspecto exterior;
25. A certa altura, o Requerido passou a ter necessidade de passar a tomar o pequeno-almoço todos os dias num café perto do talho, sozinho, assim como passou a almoçar também sozinho.
26. A partir de então, o Requerido sentiu-se abandonado, mal tratado, triste e preocupado com a falta de controlo sobre os seus bens.
27. No dia 01.10.2018, dia do seu 74º aniversário, o Requerido foi levado pela Requerente a um Cartório Notarial em Viana do Castelo, para outorgar uma procuração à Requerente, com amplos poderes de administração e disposição, dos seus assuntos e do seu património.
28. Procuração que o Requerido não quis outorgar.
29. Perante essa situação o requerido pediu auxílio à sua filha H. P., que foi ao seu encontro.
30. Tal acto despoletou no Requerido a decisão de romper com a Requerente e apartar-se da mesma, refugiando-se nos cuidados da filha, em casa desta, que o acolheu.
31. Foi neste circunstancialismo que, em 11.10.2018, requereu a notificação judicial avulsa da Requerente para que abandonasse e entregasse livre de pessoas e dos seus bens pessoais a casa objecto dos autos.
32. O Requerido não dispõe de outro prédio onde possa morar.
33. A Requerente, além dos prédios supra mencionados, é titular das seguintes contas bancárias:
- conta nº 530.15.101762-7, do Banco ..., cujo saldo era, em 18.12.2018, de € 40.000,00;
- conta nº 530.15.101943-3, do Banco ..., cujo saldo era, em 18.12.2018, de € 50.000,00;
- conta DO nº 530.10.459202-3, do Banco ..., cujo saldo era, em 18.12.2018, de € 7011,79;
- conta DO nº 000315068075020, do Banco …, cujo saldo era, em 02.01.2019, de € 1320,00;
- conta DO nº 45328409237, do Banco …, cujo saldo era, em 21.02.2019, de € 1257,00.
34. A Requerente é titular das seguintes apólices da … – Companhia de Seguros de Vida, S.A.:
- ULA0096482, no valor de € 53.634,25;
- ULA0096521, no valor de € 53.634,25;
- ULA0096814, no valor de € 10.762,87.
35. Corre termos no 2º Juízo Local Cível de Viana do Castelo, com o nº 4247/18.5T8VCT, o processo de Maior Acompanhado, em que é requerente A. P. e requerido C. P. – fls. 186 e ss.
*
2.1.2. A decisão recorrida considerou que não se provaram os seguintes factos:

«- Há cerca de dois meses que a filha do requerido, H. P., subjuga o seu pai, inibindo-o de qualquer tipo de administração de seus bens, intrometendo-se de forma abusiva na sua vida de casal, restringindo todos os gastos do requerido, nomeadamente os domésticos;
- No dia 1/10/19, a filha do requerido impediu-o de dormir na casa deste, junto da requerente;
- Em 2008, o requerente comprou com o seu dinheiro e pôs em nome da requerente o veículo automóvel ligeiro de passageiros marca Renault, modelo Clio, com a matrícula GJ, no valor de quase 15.000€ e, em 2013, o veículo automóvel ligeiro de passageiros Mercedes E 220, com a matrícula NZ, por 30.000,00 €;
- Os bens imóveis descritos nos pontos 17 a 20 situam-se em zonas destinadas a construção urbana;
- O valor real actual dos prédios descritos nos pontos 17 a 21 é muito superior ao declarado nas respectivas escrituras de compra e venda;
- A requerente gastava a totalidade do seu rendimento nas suas despesas pessoais e do filho;
- A requerente sistematicamente fazia levantamentos da ordem dos 300€ e 400€, de uma conta do requerido, sem autorização deste, conta esta que que era provisionada com os rendimentos provenientes da exploração do seu estabelecimento do talho, montantes muito superiores ao necessário para a satisfação das necessidades efectivas do requerido e da sua habitação;
- A requerente nunca suportou com rendimentos ou bens próprios qualquer despesa quer com o requerido, quer com o seu património;
- A requerente não dava ao requerido a medicação essencial para manter as suas capacidades físicas e intelectuais».
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2.2. Do objecto do recurso

2.2.1. Nulidade da sentença por «oposição entre a fundamentação e a decisão»

Nas conclusões 3 a 14 das suas alegações, a Recorrente sustenta que o Tribunal a quo deu como provada a existência de união de facto nos pontos 5 e 6 dos factos provados e na motivação refere que «não há dúvidas que requerente e requerido viveram em união de facto pelo menos desde inícios de 2007», pelo que ao considerar improcedente o primeiro pedido da Requerente, «conclui-se pela oposição entre os fundamentos e a decisão e, consequente, nulidade da sentença».

Dispõe o artigo 615º, nº 1, alínea c), do CPC, que é nula a sentença quando os fundamentos estejam em oposição com a decisão ou ocorra alguma ambiguidade ou obscuridade que torne a decisão ininteligível. Trata-se de um vício formal, em sentido lato, traduzido em error in procedendo ou erro de actividade que afecta a validade da sentença.
Entre os fundamentos e a decisão não pode haver contradição lógica pelo que se, na fundamentação da sentença, o julgador segue determinada linha de raciocínio apontando para determinada conclusão e, em vez de a tirar, decide em sentido divergente, ocorre tal oposição.(1) Trata-se de um erro lógico-discursivo nos termos do qual o juiz elegeu determinada fundamentação e seguiu um determinado raciocínio mas decide em colisão com tais pressupostos. A nulidade em questão ocorre quando a fundamentação aponta num certo sentido que é contraditório com o que vem a decidir-se e, enquanto vício de natureza processual, não se confunde com o erro de julgamento, que se verifica quando o juiz decide mal ou porque decide contrariamente aos factos apurados ou contra lei que lhe impõe uma solução jurídica diferente (2).
Realidade distinta desta é o erro na subsunção dos factos à norma jurídica ou erro na interpretação desta, ou seja, quando – embora mal – o juiz entenda que dos factos apurados resulta determinada consequência jurídica e este seu entendimento é expresso na fundamentação ou dela decorre, o que existe é erro de julgamento e não oposição nos termos aludidos (3). Por outras palavras, se a decisão está certa, ou não, é questão de mérito e não de nulidade da mesma (4).
A oposição entre os fundamentos e a decisão da sentença só releva como vício formal, para os efeitos da nulidade cominada na alínea c) do nº 1 do artigo 615º do CPC, quando se traduzir numa contradição nos seus próprios termos, num dizer e desdizer desprovido de qualquer nexo lógico positivo ou negativo, que não permita sequer ajuizar sobre o seu mérito. Se a relação entre a fundamentação e a decisão for apenas de mera inconcludência, estar-se-á já perante uma questão de mérito, reconduzida a erro de julgamento e, por isso, determinativa da improcedência da acção (5).
Em suma, existe incompatibilidade entre os fundamentos e a decisão quando a fundamentação aponta num sentido que contradiz o resultado final.
A eventual contradição entre a fundamentação da decisão sobre a matéria de facto e a mesma decisão não integra a nulidade da sentença prevista na 1ª parte da alínea c) do artigo 615º do CPC, podendo, eventualmente, consistir em erro de julgamento na apreciação da matéria de facto provada (6).

No caso em apreço não ocorre tal vício lógico da sentença porquanto, como bem destacou a Exma. Juiz no despacho em que se pronunciou sobre a arguição de nulidades, «um dos pedidos da petição inicial consistia em “confirmar a forte probabilidade de vir a ser declarada, em acção principal, a existência da união de facto entre a requerente (…) e requerido (…) desde 2007, por estes viverem em condições análogas às dos cônjuges”. No entanto, se é certo que resultou provado que requerente e requerido viveram em condições análogas às dos cônjuges, aliás pressuposto do direito peticionado, também ficou assente que a união de facto tinha cessado em momento anterior à proposição da acção, mais concretamente no dia 1/10/2018 – pontos 29 e 30 dos factos provados da decisão em crise. Assim, não podia ser outra a decisão a esse respeito».

No fundo, a Requerente alegou e pretendeu ver declarada uma actual união de facto, por ainda subsistente à data da instauração do procedimento cautelar. O Tribunal a quo pronunciou-se sobre esse pedido nos exactos termos em que ele estava formulado: julgou-o improcedente por a união de facto já ter cessado antes da instauração do procedimento cautelar, ao contrário do que a Requerente pretendia. Efectivamente, houve união de facto, que ficou demonstrada nos pontos 5 e 6 dos factos provados, mas foi no passado e o pedido foi formulado por referência ao presente. O problema não está no que foi decidido mas sim no que foi pedido. Se se pede que se declare que existe uma união de facto, o tribunal tem de se pronunciar sobre se existe união de facto; se existiu no passado e já não existe no presente, o tribunal só tem que se pronunciar sobre a pretensão em conformidade com aquilo que é a realidade. Foi isso que fez o Tribunal a quo, pelo que não se verifica a nulidade apontada pela Recorrente.
Por outro lado, tal pedido era inapropriado a um procedimento cautelar comum. Não se podem confundir três realidades distintas num procedimento cautelar: os factos demonstrativos do fundado risco de que outrem cause lesão grave e dificilmente reparável ao seu direito, o direito que se pretende acautelar e a providência cautelar requerida.
Tinha que demonstrar sumariamente os factos reveladores de união de facto entre Requerente e Requerido, bem como os referentes ao risco de lesão, e afirmar a existência do direito tutelado. Demonstrados tais factos, a provável existência do direito emergiria destes (fumus boni juris).
Mas num procedimento cautelar, por natureza, tem de requerer-se uma concreta providência para acautelar o direito em risco de lesão e cabe ao requerente explicitar qual a providência que pretende. Tal providência pode ser conservatória ou antecipatória. A providência concretamente requerida é o objecto do pedido; é a pretensão que se pretende ver apreciada pelo tribunal. Pede-se uma concreta medida cautelar que permita assegurar o direito ameaçado.
A Requerente pretendia continuar a viver na casa em causa nos autos e que o Requerido respeitasse tal direito, uma vez que, segundo alegara, a filha deste, agindo em nome daquele, pretendia desalojá-la da habitação. Portanto, a providência requerida deveria ter-se circunscrevido a esta medida cautelar destinada assegurar o seu direito e não mais do que isso. Tudo o mais já não consubstanciava qualquer providência, mas uma mera excrescência desfasada do objecto de um procedimento cautelar. Como resulta perfeitamente claro do artigo 368º, nºs 1 e 2, do CPC, o tribunal pronuncia-se sobre a providência, decretando-a ou não: é nisto que consiste a decisão sobre o pedido.
Finalmente, uma coisa é fazer valer direitos com base numa união de facto subsistente e outra, já diversa, com fundamento na respectiva dissolução.
A Lei nº 7/2001, de 11 de Maio, dispõe no artigo 8º, nº 2, que «a dissolução prevista na alínea b) do número anterior [dissolução por vontade de um dos seus membros] apenas tem de ser judicialmente declarada quando se pretendam fazer valer direitos que dependam dela». Nesse caso, nos termos do nº 3 do referido artigo 8º, «a declaração judicial de dissolução da união de facto deve ser proferida na acção mediante a qual o interessado pretende exercer direitos dependentes da dissolução da união de facto, ou em acção que siga o regime processual das acções de estado».
No caso dos autos, a Requerente alicerçava o procedimento cautelar numa alegada união de facto subsistente à data da sua instauração.
Demonstrado que já nessa altura tinha ocorrido a ruptura da união de facto, pretende, agora, no âmbito do recurso, exercer um direito com base na dissolução da união de facto, o que representa uma alteração da causa de pedir e do fundamento por que demandou o Requerido. Não foi sobre isso que o Tribunal a quo foi chamado a pronunciar-se, pelo que se está perante uma questão nova, insusceptível de ser apreciada em via de recurso (7).

Termos em que improcede a invocada nulidade.
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2.2.2. Nulidade da sentença por omissão de pronúncia

Nas conclusões 15 a 24 das suas alegações, a Recorrente invoca a nulidade da decisão recorrida, por omissão de pronúncia, com três fundamentos:

a) Por nada ter decidido quanto à união de facto entre Requerente e Requerido (v. conclusão 15);
b) Por não se ter pronunciado «quanto aos imóveis alienados pelo requerido na pendência da presente acção, dezembro de 2018, e com o qual teve um proveito de cerca de € 300.000,00 (trezentos mil euros)»;
c) O Tribunal a quo deveria «ter oficiosamente requerido uma análise acerca da situação económica do requerido, isto porque se discutiu a atribuição da casa de morada de família».

Nos termos do artigo 615º, nº 1, alínea d), do CPC, a sentença é nula quando o juiz deixe de pronunciar-se sobre questões que devesse apreciar ou conheça de questões de que não podia tomar conhecimento. Trata-se de um vício formal, em sentido lato, traduzido em error in procedendo ou erro de actividade que afecta a validade da sentença.
Esta nulidade está directamente relacionada com o disposto no artigo 608º, nº 2, do CPC, segundo o qual «o juiz deve resolver todas as questões que as partes tenham submetido à sua apreciação, exceptuadas aquelas cuja decisão esteja prejudicada pela solução dada a outras; não pode ocupar-se senão das questões suscitadas pelas partes, salvo se a lei lhe permitir ou impuser o conhecimento oficioso de outras».
Neste enquadramento, há que distinguir entre questões a apreciar e razões ou argumentos aduzidos pelas partes. Conforme já ensinava Alberto dos Reis (8), «são, na verdade, coisas diferentes: deixar de conhecer de questão de que devia conhecer-se, e deixar de apreciar qualquer consideração, argumento ou razão produzida pela parte. Quando as partes põem ao tribunal determinada questão, socorrem-se, a cada passo, de várias razões ou fundamentos para fazer valer o seu ponto de vista; o que importa é que o tribunal decida a questão posta; não lhe incumbe apreciar todos os fundamentos ou razões em que elas se apoiam para sustentar a sua pretensão». Quer isto dizer que a omissão de pronúncia circunscreve-se às questões/pretensões formuladas de que o tribunal tenha o dever de conhecer para a decisão da causa e de que não haja conhecido, realidade distinta da invocação de um facto ou invocação de um argumento pela parte sobre os quais o tribunal não se tenha pronunciado (9).
Esta nulidade só ocorre quando não haja pronúncia sobre pontos fáctico-jurídicos estruturantes da posição dos pleiteantes, nomeadamente os que se prendem com a causa de pedir, pedido e excepções e não quando tão só ocorre mera ausência de discussão das “razões” ou dos “argumentos” invocados pelas partes para concluir sobre as questões suscitadas (10). A questão a decidir não é a argumentação utilizada pelas partes em defesa dos seus pontos de vista fáctico-jurídicos, mas sim as concretas controvérsias centrais a dirimir e não os factos que para elas concorrem. Deste modo, não constitui nulidade da sentença por omissão de pronúncia a circunstância de não se apreciar e fazer referência a cada um dos argumentos de facto e de direito que as partes invocam tendo em vista obter a (im)procedência da acção (11). Segundo Tomé Gomes (12), «já não integra o conceito de questão, para os efeitos em análise, as situações em que o juiz porventura deixe de apreciar algum ou alguns dos argumentos aduzidos pelas partes no âmbito das questões suscitadas. Neste caso, o que ocorrerá será, quando muito, o vício de fundamentação medíocre ou insuficiente, qualificado como erro de julgamento, traduzido portanto numa questão de mérito». O juiz não tem que analisar um por um todos os argumentos ou razões invocados pelas partes, ainda que tenha de dar resposta (resolução) às questões por elas invocadas; não se lhe impõe, por outro lado, que indique, uma por uma, as disposições legais em que se baseia a decisão, bastando que faça alusão às regras e princípios gerais em que a ancora (13).
Não há omissão de pronúncia quando a matéria, tida por omissa, ficou implícita ou tacitamente decidida no julgamento da matéria com ela relacionada, competindo ao tribunal decidir questões e não razões ou argumentos aduzidos pelas partes (14). O juiz não tem que esgotar a análise da argumentação das partes, mas apenas que apreciar todas as questões que devem ser conhecidas, ponderando os argumentos na medida do necessário e suficiente (15).
Assim, incumbe ao juiz conhecer de todos os pedidos deduzidos, todas as causas de pedir e excepções invocadas e todas as excepções de que oficiosamente deve conhecer (artigo 608º, nº 2, do CPC), salvo daqueles cujo conhecimento esteja prejudicado pelo anterior conhecimento de outros. O conhecimento de uma questão pode fazer-se tomando posição directa sobre ela, ou resultar da ponderação ou decisão de outra conexa que a envolve ou a exclui (16). Não ocorre nulidade da sentença por omissão de pronúncia quando nela não se conhece de questão cuja decisão se mostra prejudicada pela solução dada anteriormente a outra (17).
Como actualmente a sentença contém tanto a decisão sobre as questões de direito como a decisão sobre a matéria de facto, um vício semelhante ao referido no artigo 615º, nº 1, al. d), do CPC, também pode emergir da decisão da matéria de facto.
Porém, o regime e respectivas consequências não são inteiramente coincidentes, uma vez que a invocação dos vícios da decisão sobre a matéria de facto é feita nos termos do artigo 640º do CPC, não decorrendo necessariamente do reconhecimento dos mesmos a anulação da decisão. Isto porque em regra a Relação, em recurso, substitui-se ao tribunal recorrido.
Feitas estas considerações gerais, vejamos a sua pertinência no caso concreto.
Quanto à primeira alegada causa de nulidade da sentença por omissão de pronúncia, verifica-se que a sentença apreciou se existiu ou não união de facto entre Requerente e Requerido, tanto que deu como demonstrados dois factos que a consubstanciam (pontos 5 e 6), aludiu-lhe na motivação e fez constar da fundamentação de direito que «requerente e requerido viveram em união de facto pelo menos desde inícios de 2007 (pontos 6 e 7 dos factos provados). No entanto tal união dissolveu-se, conforme resulta dos pontos 27 a 30 dos factos provados, por vontade do requerido, no dia 1/10/18». Além disso, decidiu sobre o concreto pedido a ela concernente, tal como já vimos em 2.2.2..

No que respeita à segunda alegada causa de nulidade da sentença, verifica-se que a Requerente não alegou no requerimento inicial factos que pudessem sustentar a sua posição de carência económica face ao Requerido, nem tão pouco que necessitava mais da casa de morada de família. Alegou apenas que é legatária da casa, que esta é a sua única residência e que as benfeitorias realizadas pelo casal nos últimos dez anos foram pagas por ambos (18). Portanto, era isso que o Tribunal recorrido tinha que apreciar. Como essa apreciação foi feita, não existe omissão de pronúncia.
Aliás, salvo o devido respeito, o argumento agora apresentado é inconcludente: o património do Requerido não aumentou por ter vendido dois prédios, pois, se os vendeu é porque os tinha no seu património, pelo que este é exactamente o mesmo que antes, apenas agora tendo o sucedâneo em dinheiro.
Mais: nenhuma das partes alega qualquer espécie de carência económica, pelo que não era por aí que se decidiria a sorte do procedimento cautelar. Pelo contrário, no essencial, verifica-se que ambas as partes beneficiam de desafogo financeiro.

Finalmente, tendo presente que a Recorrente não estribou a causa de pedir em motivos de ordem económica para permanecer na casa de morada de família, é inapropriada a invocação da nulidade por omissão de pronúncia sobre factos não alegados, a coberto de uma alegada iniciativa oficiosa, quando está apenas em causa a prova ou não de dois factos alegadamente resultantes da junção aos autos de dois documentos.
O problema é de apreciação da relevância e demonstração de dois factos e não propriamente de nulidade. E se assim, estamos perante um eventual vício da decisão sobre a matéria de facto, cuja invocação é feita nos termos do artigo 640º do CPC.
Por isso, improcedendo enquanto causa de nulidade, será tal questão apreciada na impugnação da decisão sobre a matéria de facto, que é o lugar próprio para o efeito.

Termos em que se desatende a arguição da alegada nulidade.
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2.2.3. Da impugnação da decisão da matéria de facto

2.2.3.1. Em sede de recurso, a Recorrente impugna a decisão sobre a matéria de facto proferida pelo Tribunal de 1ª instância.
Estão efectivamente atribuídos à Relação poderes de reapreciação da matéria de facto no âmbito de recurso interposto, que a transformam num tribunal de instância que também julga a matéria de facto, garantindo um duplo grau de jurisdição.

Para que a Relação possa conhecer da apelação da decisão de facto é necessário que se verifiquem os requisitos previstos no artigo 640º do CPC, que dispõe assim:

«1. Quando seja impugnada a decisão sobre a matéria de facto, deve o recorrente obrigatoriamente especificar, sob pena de rejeição:
a) Os concretos pontos de facto que considera incorrectamente julgados;
b) Os concretos meios probatórios, constantes do processo ou de registo ou gravação nele realizada, que impunham decisão sobre os pontos da matéria de facto impugnados diversa da recorrida;
c) A decisão que, no seu entender, deve ser proferida sobre as questões de facto impugnadas.
2. No caso previsto na alínea b) do número anterior, observa-se o seguinte:
a) Quando os meios probatórios invocados como fundamento do erro na apreciação das provas tenham sido gravados, incumbe ao recorrente, sob pena de imediata rejeição do recurso na respectiva parte, indicar com exactidão as passagens da gravação em que se funda o seu recurso, sem prejuízo de poder proceder à transcrição dos excertos que considere relevantes;
b) Independentemente dos poderes de investigação oficiosa do tribunal, incumbe ao recorrido designar os meios de prova que infirmem as conclusões do recorrente e, se os depoimentos tiverem sido gravados, indicar com exactidão as passagens da gravação em que se funda e proceder, querendo, à transcrição dos excertos que considere importantes.
3. O disposto nos nºs 1 e 2 é aplicável ao caso de o recorrido pretender alargar o âmbito do recurso, nos termos do nº 2 do artigo 636º».

No fundo, recai sobre o recorrente o ónus de demonstrar o concreto erro de julgamento ocorrido, apontando claramente os pontos da matéria de facto incorrectamente julgados, especificando os meios probatórios que impunham decisão diversa da recorrida e indicando a decisão que, no seu entender, deverá ser proferida sobre a factualidade impugnada.
Em todo o caso importa enfatizar que não se trata de uma repetição de julgamento, foi afastada a admissibilidade de recursos genéricos sobre a decisão da matéria de facto e o legislador optou «por restringir a possibilidade de revisão de concretas questões de facto controvertidas relativamente às quais sejam manifestadas e concretizadas divergências por parte do recorrente» (19).

Delimitado pela negativa, segundo Abrantes Geraldes (20), o recurso respeitante à impugnação da decisão da matéria de facto será, total ou parcialmente, rejeitado no caso de se verificar «alguma das seguintes situações:

a) Falta de conclusões sobre a impugnação da decisão da matéria de facto (arts. 635º, nº 4, e 641º, nº 2, al. b);
b) Falta de especificação, nas conclusões, dos concretos pontos de facto que o recorrente considera incorrectamente julgados (art. 640º, nº 1, al. a);
c) Falta de especificação, na motivação, dos concretos meios probatórios constantes do processo ou nele registados (v.g. documentos, relatórios periciais, registo escrito, etc.);
d) Falta de indicação, na motivação, das passagens da gravação em que o recorrente se funda;
e) Falta de posição expressa, na motivação, sobre o resultado pretendido relativamente a cada segmento da impugnação».
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Aplicando os aludidos critérios ao caso que agora nos ocupa, verifica-se que a Recorrente, relativamente alguns dos pontos de facto que considera incorrectamente julgados, não cumpre o aludido ónus, enquanto relativamente a outros pontos de facto cumpriu minimamente o ónus estabelecido no citado artigo 640º do CPC.
No que respeita à falta de cumprimento do ónus estão em causa, sobretudo, a falta de especificação dos meios probatórios que imporiam decisão diversa e a falta de menção expressa da decisão que, no seu entender, deveria ter sido proferida sobre as questões de facto controvertidas.
Abordaremos tal questão quando analisarmos, um por um, os respectivos pontos de facto.
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2.2.3.2. Por referência às suas conclusões, extrai-se que a Recorrente considera incorrectamente julgados os pontos 12 e 23 a 30 dos factos provados.
Deduz-se indirectamente do alegado que pretende que os pontos 23 a 30 sejam considerados não provados.
Não indica, designadamente na motivação qual o resultado pretendido relativamente ao ponto 12 dos factos provados.
Aponta dois lapsos materiais nos pontos 2 e 10 dos factos provados.
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2.2.3.3. O Tribunal a quo exprimiu a motivação da decisão sobre a matéria de facto nos seguintes termos:

«A convicção do Tribunal assentou conjunção dos depoimentos das testemunhas arroladas e da análise dos documentos juntos aos autos. Assim, foram relevantes os seguintes documentos:
- carta de fls. 6 vº e fotografias de fls. 14 a 19;
- notificação judicial avulsa de fls. 40 e ss; informações bancárias de fls. 119, 133, 134, 159, 208 e 210 a 214;
- relatório de exame pericial do requerido no processo de Maior Acompanhado, junto a fls. 222 a 225;
Foram ainda importantes para o apuramento dos factos os depoimentos das seguintes testemunhas:
- A. S., irmã do ex-marido da requerente e M. S., ex-sogra da requerente, as quais esclareceram que desde que a requerente se divorciou mantiveram uma relação de amizade com ela e continuaram a conviver com a mesma; foi assim que conheceram o requerido (que era patrão da requerente no talho) e perceberam que iniciaram uma vida a dois que durou cerca de 10/12 anos, tendo vivido na casa de ...; mais referiram que o filho da requerente era como um filho para o requerido; por fim, disseram que foi notório que o estado de saúde do requerido se agravou nos últimos dois anos e que ele se perdia muito nas conversas; de qualquer forma, referiram que viam o requerido limpo e cuidado;
- B. M., de 16 anos de idade, filho da requerente, disse que se dava bem com o requerido, com quem vive desde os seus 3/4 anos de idade na casa de ...; reparou que, ultimamente, ele já não era o mesmo, já não queria jogar às cartas como antes e ficava na sala a ver televisão, sozinho;
- M. Q. e F. F., respectivamente, cunhada e irmão da ex-mulher do requerido, referiram que estão de relações cortadas com esta e com a filha do requerido; ambos revelaram ter convivido com o requerido e com a requerente enquanto estes viveram juntos na casa objecto dos autos, como um verdadeiro casal; segundo estas testemunhas, há cerca de 1 a 2 anos que o requerido andava a ficar mais esquecido, mas a sua aparência era normal;
- G. B., primo em segundo grau do requerido, afirmou que apenas falou com a requerente duas vezes, pois vivia no Brasil até há cerca de dois anos; estava com o primo ocasionalmente e reparou que ultimamente este não era a mesma pessoa, estava mais magro e apresentava-se descuidado na aparência física, por vezes sujo; esta testemunha contou que no último aniversário do requerido, esteve com ele de manhã e almoçou com ele e com a filha H. P. num restaurante (a requerente não esteve presente); depois do almoço encontrou-o e perto de um Notário e percebeu que ele não estava bem; por esse motivo ligou para a filha do requerido que veio de imediato ter com ele; nessa noite dormiu em casa da testemunha a pedido da filha, pois esta tinha de ir buscar as roupas e medicação do pai à casa de ...; a partir daí, o requerido tem vivido em casa desta filha;
- J. F., irmão da ex-mulher do requerido, referiu não conhecer a requerente, mas sabe que a mesma era empregada do talho e que os dois passaram a viver juntos, na casa de ..., desde que ele se divorciou; esta testemunha chegou a trabalhar para o requerido e era seu amigo; depois de começar o relacionamento com a requerente, disse-lhe que se ia afastar da família e dedicar-se mais à família da requerente N. M.; revelou saber que o requerido saiu de casa no dia 1/10/19 e que desde então vive com a filha e os dois netos, num T3;
- José, padrinho de casamento do requerido, casado com uma irmã da ex-mulher do requerido, de relevante referiu que nos últimos tempos achou-o mais magro do que o habitual, mais debilitado; agora vive em casa da filha, com esta, o seu companheiro e dois filhos;
- P. V., empregado do talho do requerido desde 2016, mencionou que o Sr. C. P. aparecia todos os dias no dia, logo de manhã; a filha do requerido também trabalhava lá, mas o requerido é que dava as ordens; a testemunha referiu que desde que começou a trabalhar no talho foi reparando que o requerido, aos poucos, começou a apresentar-se menos cuidado, sujo, por vezes a cheirar mal; o requerido almoçava perto do talho, sozinho; percebia que a filha estava preocupada com o pai, pois queria que ele fosse bem tratado e, de facto, na sua opinião, não estava a ser; segundo soube, o requerido e a requerente N. M. já não vivem juntos desde o aniversário deste, em 1/10/18;
- H. P., filha do requerido, referiu que quando voltou a trabalhar no talho do pai, em 2006, já a requerente N. M. era empregada do pai; disse que por volta dessa altura deram início à relação e depois passaram a morar juntos na casa de ...; durante todos estes anos, o pai não a convidava para sua casa pois dizia-lhe que não queria “problemas”; nos últimos anos, desde 2015 começou a desabafar mais com ela e disse que tinha feito muitas “asneiras” e não a queria prejudicar; durante esse tempo era ela que o levava ao Centro de Saúde e controlava se tomava os medicamentos; nos últimos tempos, o pai tomava o pequeno-almoço e almoçava sozinho e passou a andar mais descuidado, com falta de higiene; contou que no dia 1/10/18, dia de aniversário do pai, convidou o primo para almoçar com ela e com o pai; depois do almoço, este primo ligou-lhe e disse que tinha visto o pai a sair do Notário; dirigiu-se para lá, falou com a Notária que lhe disse que o pai não tinha assinado a procuração; depois encontrou-o já perto do tribunal, tendo o pai pedido que o levasse com ela; de acordo com esta testemunha, o pai não tem outra residência, pois a casa situada em cima do talho não tem licença de habitabilidade e a casa situada no jardim D. F. F. está em ruína; existe ainda uma casa na ... onde vive a cunhada e sobrinha; o pai dorme agora no quarto do seu filho.
Considerando estes depoimentos, não há dúvida que a requerente logrou provar a união de facto alegada, a qual perdurou, pelo menos, desde finais de 2006 até 1/10/18, altura em que o requerido passou a viver com a sua filha, a pedido deste e não, como alegado no requerimento inicial, por imposição da filha H. P..
Os factos não provados resultaram do facto de não se ter efectuado prova suficiente quanto aos mesmos».
*
2.2.3.4. Revistos os meios de prova produzidos, em especial os invocados pela Recorrente, esta Relação formula uma convicção idêntica à do Tribunal recorrido.
Entendemos que a prova foi devidamente apreciada pelo Tribunal a quo, cuja argumentação no essencial acompanhamos.

*
2.2.3.5. Dos lapsos materiais

Tal como aponta a Recorrente, os pontos 2 e 10 contêm lapsos materiais no que respeita à data do divórcio da Requerente, que é 29.11.2006 (v. certidão do assento de nascimento junto aos autos a fls. 8, onde conta averbada a data da dissolução do casamento), e também à data em que a filha do Requerido se apresentou na casa que era a residência de ambas as partes acompanhada de elementos da GNR, o que ocorreu no dia 01.10.2018 (v. alegação nos artigos 15º, 16º e 18º do requerimento inicial).

Termos em que se ordena a correcção dos aludidos pontos da matéria de facto, que passarão a ter a seguinte redacção:

«2. O casamento da Requerente foi dissolvido em 29.11.2006 e o casamento do requerido em 19.11.2006. (…)
10. No dia 01.10.2018, a filha do Requerido apresentou-se na casa referida no ponto 5, acompanhada de elementos da GNR, que acabaram por pedir à Requerente que entregasse a medicação do Requerido.».
*
2.2.3.6. Das conclusões 56 a 71 – documentos juntos com o requerimento de 28.03.2019 (ref. 32003951)

A Recorrente propugna pela ampliação da matéria de facto, com o aditamento do facto relativo à venda pelo Recorrido de dois imóveis e à inerente obtenção da quantia global de € 295.000,00.
Argumenta que o Tribunal recorrido detalhou a situação patrimonial da Requerente, mas «[q]uanto ao requerido apenas se referiu que este é proprietário de um talho» (conclusão 61), sendo que «[e]m requerimento datado de 28 de março de 2019, referência citius 32003951, constam duas escrituras de compra e venda que indicam que o requerido, por meio de uma procuração outorgada a favor da sua filha H. P., procedeu a venda de dois imóveis tendo lucrado com a venda a quantia global de € 295.000,00».

Como melhor desenvolveremos aquando da apreciação da apelação em matéria de direito, na atribuição da casa de morada de família é feita mediante ponderação das necessidades de cada um dos membros da união de facto.
Na avaliação da premência da necessidade da casa deve o tribunal ter em conta, em primeiro lugar, a situação patrimonial das partes, ou seja, os seus bens e rendimentos, em contraposição com as suas despesas e encargos.
Nesse enquadramento, quaisquer factos que revelem a situação patrimonial das partes são relevantes. Por isso, a venda de imóveis, comprovada pelo competente documento, enquanto facto que contribui para esclarecer essa situação patrimonial, deve ser levada à matéria de facto.
No caso em apreço, através dos documentos juntos com o seu requerimento de 28.03.2019, a Recorrente demonstrou que o Recorrido alienou dois imóveis. Embora essa matéria não tenha interferência decisiva na sorte do recurso, deve a mesma constar dos factos provados.

Termos em que se ordena o aditamento à factualidade apurada dos seguintes dois factos:

«36. Por escritura pública de compra e venda outorgada a 14.12.2018, C. P. e R. F. venderam a P. C., pelo preço de setenta mil euros, o prédio urbano, composto por rés-do-chão, primeiro andar e logradouro, sito na Praça …, freguesia de Viana do Castelo (...) e ..., concelho de Viana do Castelo, descrito na Conservatória do Registo Predial de Viana do Castelo sob o número …, da freguesia de Viana do Castelo (...), e inscrito na respectiva matriz da freguesia de ... sob o artigo ….
37. Por escritura pública de compra e venda, mútuo com hipoteca, outorgada a 17.12.2018, C. P. vendeu a P. F. e C. A., pelo preço de duzentos e vinte e cinco mil euros, o prédio urbano, composto de rés-do-chão e primeiro andar, sito no Largo de …, união das freguesias de Viana do Castelo (...) e ..., concelho de Viana do Castelo, descrito na Conservatória do Registo Predial de Viana do Castelo sob o número …, da freguesia de Viana do Castelo (...), e inscrito na respectiva matriz da freguesia de …, ... e ... sob o artigo ….».
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2.2.3.7. Do ponto 12 dos factos provados

Neste ponto de facto deu-se como provado que «12. A filha do Requerido ameaçou cortar a luz e água da referida habitação».

A Recorrente, nas conclusões, que reproduzem o que consta da motivação das suas alegações, impugna a decisão relativamente a tal facto com os seguintes fundamentos:

«26. No ponto 12 o tribunal a quo considera como provado que a filha do requerido ameaçou cortar a água e a luz da, única, habitação da requerente e do seu filho menor.
27. Deverá o referido ponto ser alterado uma vez que é falso tendo filha do requerido consumido tais ameaças, além de ter trocado as fechaduras das portas da casa.
28. Tendo sido necessária a intervenção do Tribunal a quo para restabelecer o fornecimento de água, requerimento datado de 17/10/2018 e com a referência citius n.º 2110801 e despacho datado do 22/10/2018, referência citius n.º 43096095».
Embora alegue «que é falso», conclui que «Deverá o referido ponto ser alterado».
Os dois segmentos são contraditórios: ou o facto é falso e, por isso, deve ser considerado não provado ou é parcialmente incorrecto e deve a sua redacção ser corrigida.
Todavia, independentemente do vício, em lado algum das alegações indica qual o resultado pretendido relativamente a este segmento da pretensa impugnação.
Não indicando a decisão que, no seu entender, deverá ser proferida sobre esse ponto, incumpriu o ónus imposto no artigo 640º, nº 1, al. a), do CPC, pelo que se verifica um fundamento para rejeição da impugnação.
Apesar disso, não deixa de se sublinhar que tal facto foi alegado pela própria Requerente no artigo 24º do requerimento inicial, onde consta: «24. Ameaçou-a também que iria proceder ao corte de energia e água, recorrendo a uma procuração antiga outorgada pelo seu pai a favor dela». De duas, uma: ou a Requerente alegou um facto pessoal que sabia ser falso, pelo que deveria ser sancionada como litigante de má-fé, ou o facto é efectivamente verdadeiro, por ter ocorrido no dia 01.10.2018. Mas o facto não deixa de ser verdadeiro por posteriormente, em outra data, terem alegadamente sido concretizadas as ameaças.
Termos em que se rejeita nesta parte a impugnação.
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2.2.3.8. Dos pontos de facto nºs 23 a 30

A impugnação da decisão da matéria de facto sobre os pontos 23 a 30 dos factos provados padece de várias deficiências que comprometem a viabilidade e o êxito da mesma.
Para começar, verifica-se que a Recorrente não indica expressamente o resultado pretendido relativamente a cada segmento da impugnação. Só implicitamente se consegue deduzir qual o resultado pretendido, quando tal indicação tem de ser expressa, tal como impõe o artigo 640º, nº 1, al. c), do CPC. Isto porque a Recorrente não diz expressamente que tais factos devem ser julgados não provados, antes se limita a utilizar expressões como «nunca poderia o Tribunal a quo ter dado esse facto como provado, nem o referido nos pontos 24 a 30», «e não ter dado como provado do ponto 23 a 30» e «não deveria o douto Tribunal ter dado como provado os factos». Deduz-se que pretendia com isso dizer que tais factos devem ser considerados totalmente não provados e é nesse pressuposto que apreciaremos a impugnação.
Depois, o artigo 640º, nº 1, al. b), do CPC, impõe como ónus, sob pena de rejeição, a indicação dos «concretos meios probatórios, constantes do processo ou de registo ou gravação nele realizada, que impunham decisão sobre os pontos da matéria de facto impugnados diversas da recorrida», ou seja, o recorrente tem de especificar no recurso os meios probatórios que impunham decisão diversa da recorrida. Mas além disso, quando se invoquem meios probatórios constantes de gravação, nos termos do artigo 640º, nº 2, al. a), do CPC, «incumbe ao recorrente, sob pena de imediata rejeição do recurso na respectiva parte, indicar com exactidão as passagens da gravação em que se funda o seu recurso, sem prejuízo de poder proceder à transcrição dos excertos que considere relevantes».
Ora, a Recorrente só cumpriu tal ónus relativamente a alguns dos segmentos da gravação dos depoimentos das testemunhas J. F., P. V., H. P. e G. B., pois não só transcreveu os excertos relevantes como indicou com exactidão as respectivas passagens da gravação. Relativamente a esses segmentos, iremos apreciar a respectiva argumentação.
Porém, a Recorrente invoca os depoimentos dessas e de outras testemunhas, resumindo o que elas terão dito sem indicar as passagens da gravação onde constam e sem proceder à transcrição dos respectivos excertos (v., por exemplo, XCVI, XCVII, XCIX, C, CI, CII, CIII, CX, CXI, CXXV, CXXVI, CXXXVI, CXXXIX, CXL, CXLI, CXLIX, CLVIII e CLXXXVI das alegações).
Nessa parte, tal invocação não é apta a cumprir o ónus que sobre a Recorrente recaía, pelo que não se considerarão os elementos invocados em desconformidade com o referido ónus.

Posto isto, vejamos as concretas questões que a Recorrente suscita relativamente aos depoimentos das testemunhas J. F., P. V., H. P. e G. B..

Verifica-se que a Recorrente utiliza os excertos que transcreve com vista a que não sejam valorados os depoimentos dessas quatro testemunhas, como é patente na parte em que afirma:

«CLV. Assim, quer pela parcialidade notória e mentira sucedida, deveria o tribunal a quo não ter valorado os depoimentos de G. B., J. F., José, P. V. e de H. P..
CLVI. Todos têm incongruência, mentiras e/ou refletem parcialidade».
E na conclusão 25 afirma que «discorda a requerente da decisão proferida, principalmente por testemunhas arroladas pelo requerido terem mentido em audiência».
Por isso, vejamos se os segmentos transcritos demonstram que as testemunhas mentiram, foram parciais ou prestaram depoimentos incongruentes.
Quanto ao depoimento de J. F., a Recorrente alega que «este mentiu deliberadamente em audiência, pois sabia que o referido anexo funcionava como uma extensão do referido talho».
Sobre isto não se detecta qualquer mentira no depoimento desta testemunha.
Depois de se falar sobre o talho e onde este se situava, a questão que foi colocada à testemunha pelo Exmo. Mandatário da Requerente foi esta (26m10s): «Tem mais algum estabelecimento aqui ao lado?». Qualquer pessoa interpretaria a pergunta, naquele contexto, sobre se o Requerido tinha mais algum estabelecimento ao lado do talho. E a resposta da testemunha, em inteira conformidade com a realidade, foi negativa. É então a testemunha confrontada com a afirmação de que o talho tem um anexo, ao que responde (entre 26m20s e 26m30s): «Esse faz parte da casa da ...»; «Não é anexo do talho» (26m24s), querendo com isso dizer que não está ao lado do talho, que não é fisicamente próximo do talho. E repetiu: «É anexo da casa da ...» (26m29s). Aliás, estando a ser confrontado com uma questão factual que para si, em termos espaciais, era evidente e não percebendo o alcance da pergunta (ou seja, se porventura lhe estava a ser perguntado algo que o seu entendimento não conseguia alcançar), a testemunha disse que não estava a perceber, mas o Exmo. Advogado não o deixou esclarecer a dúvida (interrompeu-o e expressou: «Posso acabar?» (26m42s)).
Perguntado «destina-se a fazer o quê?» (26m53s), respondeu expressamente: «Tudo o que faça falta para a casa e para o talho». Foi-lhe também perguntado se já lá tinha ido e a testemunha respondeu afirmativamente, por exemplo «buscar lenha» (o que teria acontecido «sexta-feira passada», mas não tinha a certeza do dia).
Eis como, com base numa pergunta incorrecta, se cria artificialmente um “incidente”, sobre uma matéria que nenhum interesse tem para o caso dos autos, e se apelida uma testemunha de mentirosa («CXXXIV. É de referir que em Tribunal e sob juramento não existem mentiras inocentes. CXXXV. Pelo que, nenhum desse depoimento poderia ou deveria ter sido valorado pelo Tribunal a quo»).
Pior: argumenta-se no recurso que existe uma incongruência entre este depoimento e o prestado pela testemunha P. V., empregado do talho desde 2016, por terem «duas opiniões distintas acerca do mesmo local» (CXXIX).
Sucede que à testemunha P. V. não foi perguntado se o talho «Tem mais algum estabelecimento aqui ao lado?» ou se tem um «anexo». O que se lhe perguntou foi sobre se o armazém (foi assim qualificado pela testemunha) da ... «é uma extensão do talho» e a testemunha confirmou que assim é. Explicitou que funciona «tipo armazém», quando «precisam de sacas vão lá buscar» e é lá que são feitos os enchidos («as chouriças»), confirmando que é nesse armazém que a Requerente fazia as chouriças e que chegou a ir lá ajudá-la uma ou duas vezes, mas não dava vazão por não saber fazer chouriças e perder por isso muito tempo.
Portanto, salvo o devido respeito, não se vê onde está a discrepância, a não ser na forma diferente como foram feitas as perguntas. Aliás, ainda se tentou aprofundar mais o “incidente” perguntando à testemunha P. V. se tinha lenha na ..., mas a testemunha respondeu que tinha que ter, «tinha cá fora» (22m50s a 22m55s), pelo que nem sequer nisso existe discrepância com o depoimento da testemunha J. F., pois este afirmou que foi lá buscar lenha e a testemunha P. V. confirmou que havia lá lenha (aliás, se era nesse sítio que se faziam as “chouriças” e existia fumeiro, o normal seria aí existir lenha).
Mais, resulta de ambos os depoimentos que no armazém da ... se trabalha «para o talho», sendo que o maior desenvolvimento da resposta de uma testemunha relativamente à outra resulta da sua razão de ciência (e até nas suas limitações de linguagem/iliteracia, pois a testemunha J. F., a pergunta da Sra. Juiz sobre se o Requerido estava a definhar, revelou não saber o que era “definhar”, tendo de ser reformulada a pergunta): uma é proprietária de um talho, está naturalmente condicionado por a sua vida se centrar no seu local de trabalho e só ocasionalmente contactar com o seu amigo de infância, passando pelo talho deste (agora já é diferente, uma vez que aos fins-de-semana estão juntos, como confirmou a testemunha H. P.), enquanto a outra trabalha no talho do Requerido, pelo que tem um conhecimento pormenorizado relativamente aos aspectos relacionados com este.

A Recorrente acusa a testemunha G. B., primo do Requerido de ter mentido «acerca do estado de saúde deste» (CXIX) e que pretendeu demonstrar que «é um familiar e amigo íntimo do requerido» (CXX). Mais alega que «é incongruente o depoimento deste face à débil saúde que apresenta o requerido» (CXXI), pois «como a testemunha G. B., refere no seu depoimento que privava com o requerido mas nada refere quanto a doença deste, apenas que estava muito melhor do que com a requerente e que esta última nunca trabalhava no talho apesar de ser funcionária» (conclusão 36).
Afirma que «nem faria sentido o requerido confessar ou pedir auxílio, à testemunha G. B. com quem já não priva há mais de 20 anos, apenas nos seus dias de anos» (CXXII).
E conclui: «39. Pelo exposto, o depoimento da testemunha G. B. não devia ter sido, em todo, valorado».

Revisto todo o depoimento desta testemunha, verifica-se que a testemunha é familiar do Requerido por ser primo deste. Sobre esse ponto não há dúvida nenhuma, nem qualquer pessoa afirmou o contrário, pelo que a testemunha não tem necessidade de demonstrar que “é um familiar”, pois, é-o de facto. Quanto a ser um amigo íntimo, em lado algum a testemunha se referiu a ser «íntimo» do Requerido. Explicitou quais foram os contactos existentes entre ambos em termos que não oferecem dúvidas.
Também não resulta de qualquer elemento dos autos (ninguém o afirmou e inexiste qualquer documento que o indicie) que a testemunha «já não priva há mais de 20 anos» com o Requerido. Pelo contrário, a testemunha afirmou que foi imigrante no Brasil, que enquanto esteve a viver no Rio de Janeiro o seu primo ficou hospedado na sua casa por três vezes (e ensina a experiência comum que ninguém fica na casa de uma pessoa, no estrangeiro e em férias, se não se tiver com ela alguma relação de proximidade, pois nem é habitual ficar em casa de pessoas estranhas nem se franqueia a casa como hospedaria a um estranho), a primeira vez ainda na década de oitenta e a última quando fez 50 anos, em 1994 (posteriormente o Requerido voltou lá, ao Rio de Janeiro, mas ficou na casa de um tio da testemunha), que vinha a Portugal de dois em dois anos, alturas em que contactava com o Requerido, e que regressou do Brasil e fixou-se cá cerca do ano de 2016, momento a partir do qual passou a contactar com mais regularidade com o primo, tendo até estado em dois dos seus aniversários. Desde que reside em Portugal, costuma passar pelo talho do seu primo, embora sem indicar a exacta frequência. É esta a relação existente entre ambos, nem mais nem menos.
No que respeita ao estado do Requerido, a testemunha disse que o via debilitado e magro, que já não tinha o brilho nos olhos de antigamente e que agora está melhor (afirmou que não está bem, mas que está melhor do que quando estava com a Requerente). Daí não é possível inferir que a testemunha tentou deliberadamente ocultar qualquer doença do Requerido, mas sim que não está verdadeiramente a par da mesma (o que é crível, pois a testemunha também afirmou que o seu primo é uma pessoa reservada - «ele é muito fechado» - e por isso nunca o terá inquirido sobre as suas moléstias). Aliás, importa referir que nenhuma testemunha afirmou que o Requerido tem uma «débil saúde», mas sim que sofre de Alzheimer e por vezes perde-se nas conversas (isto à data das duas sessões da audiência final e entretanto já decorreu um ano desde a primeira, pelo que é natural que a situação se tenha agravado).
Finalmente, constata-se não ser verdadeira a afirmação da Requerente de que a testemunha G. B. disse que aquela «nunca trabalhava no talho apesar de ser funcionária». Por exemplo, a testemunha afirmou que às sextas-feiras a Requerida trabalhava no talho, pois via-a lá. Mais: como se pode ver aos 17m00s da gravação, a testemunha declarou que a Requerente «fazia enchidos» para o talho mas não sabe onde, pelo que não estando no talho durante quatro dias úteis da semana trabalhava para este). Aliás, também a testemunha salientou que a Requerente «é boa funcionária», pelo que não se lhe notou qualquer tendência para a desqualificar, pese embora resultar do seu depoimento que entende (mais uma opinião alicerçada na debilidade do Requerido e na sua aparência física e estado em que se apresentava) que não cuidava bem dele (baseado, ao que nos parece, no inevitável cliché de que os homens carecem dos cuidados das mulheres e que sem isso são uns incapazes no que respeita a roupa e alimentação, ficando com uma aparência desmazelada e emagrecendo).
Pelo exposto, também não é possível concluir que esta testemunha mentiu e que o respectivo depoimento deve ser inteiramente desvalorizado.

Quanto ao depoimento da testemunha P. V., a Recorrente afirma que «o depoimento dele demonstrou incongruências com outros depoimentos, é atualmente funcionário do talho, dirigido pela filha do requerido, o que poderá ter levado a uma certa parcialidade no depoimento deste, não devendo o depoimento dele ser valorado».
A Recorrente não especifica uma única incongruência baseada no confronto entre uma passagem da gravação do depoimento da testemunha P. V. e passagens da gravação dos depoimentos de outras testemunhas, nem indica onde as mesmas se localizam na gravação, pelo que esta argumentação não pode ser considerada, atento o incumprimento do disposto no artigo 641º, nº 2, al. b), do CPC.
Em todo caso, revisto todo o depoimento da testemunha P. V., verifica-se que efectivamente afirmou que ultimamente o Requerido apresentava-se menos cuidado e que por vezes “cheirava mal”.
Não se vislumbra onde é que a testemunha mentiu ou foi parcial: face à restante prova produzida (designadamente aos depoimentos de J. F., H. P. e G. B.), tal como o Tribunal recorrido, está esta Relação convicta de que o Requerido se apresentava com um aspecto pouco cuidado. Quanto ao por vezes cheirar mal, a testemunha afirmou-o e explicitou o respectivo circunstancialismo, mas essa matéria, por irrelevante, nem sequer foi levada aos factos provados.
A Recorrente questiona isso por a testemunha ser «funcionário do referido talho e que se duvida que convivesse diariamente com o requerido de maneira próxima e constante» (CXLIII). Essa dúvida não tem razão de ser: até 30.09.2018, o Requerido ia todos os dias para o talho, era esta testemunha que abria a porta do mesmo (e logo a seguir o Requerido entrava no talho), e estavam juntos a trabalhar, no mesmo local de trabalho, que era circunscrito espacialmente, desde as 7.30 horas ou 7.45 horas até cerca, pelo menos, das 16.00 horas. Salvo melhor opinião, isto é conviver diariamente e de maneira próxima e constante como uma pessoa, pelo que é natural que a testemunha se tenha apercebido do odor que refere, embora essa questão, como tantas outras que se discutiram na audiência final, nenhum relevo tenha para a decisão da causa (não se vai atribuir a casa de morada de família pelo cheiro de cada um).

Finalmente, sustenta a Recorrente, relativamente ao depoimento de H. P., que, «podendo ter um interesse na causa, não deveria o Tribunal a quo ter valorado o seu depoimento». Além disso, alega que «quando lhe foi perguntado se o seu pai padecia de uma doença grave, esta respondeu, perentoriamente, que não».
Atenta a relação existente entre o Requerido e a testemunha, este depoimento tinha de ser apreciado com algum cuidado. Lida a motivação da decisão, não parece resultar da mesma que o Tribunal a quo o não teve.
Revisto todo o depoimento, afigura-se que a testemunha prestou no geral um depoimento minucioso, consistente e por isso credível. Vários dos elementos que trouxe ao conhecimento do Tribunal mostram-se secundados por outros meios probatórios.
Porém, no que respeita à doença de que padece o Requerido, o seu depoimento foi uma verdadeira “fuga em frente”, ou seja, referiu-se aos problemas de saúde do seu pai, designadamente, à diabetes, confirmou os “esquecimentos” (que atribuiu à falta de cuidado por parte da Requerente), mas em momento algum mencionou a doença de Alzheimer, que acabou por negar, sendo certo que era ela que o acompanhava ao médico.
Nessa parte, o seu depoimento não merece qualquer crédito, como não mereceu ao Tribunal recorrido, tanto que deu como demonstrada a doença.
Porém, isso não inquina todo o restante depoimento. Aliás, sendo certo que na base de tal negação poderão estar outros interesses controvertidos, pois não era então difícil de antecipar que a situação teria outros desenvolvimentos (aliás, como decorreu muito tempo entre a audição das testemunhas e as alegações orais dos mandatários, já foi referido nos autos que foram instaurados outros processos), a negação da situação de doença até era desfavorável ao Requerido no contexto do presente procedimento cautelar: não estando o Requerido doente dificilmente se poderia considerar que tinha mais necessidade da casa do que a Requerente.
Agora não tenhamos ilusões, na audiência formaram-se dois blocos: para as testemunhas da Requerente, esta é quase uma “santa”, sem nada que se lhe aponte, e o Requerido, a não ser a doença e os esquecimentos inerentes à mesma, estava óptimo e era muito bem tratado pela companheira, que mais não fazia do que estar atenta a todas as suas necessidades; para as testemunhas do Requerido, a Requerente, 35 anos mais nova (facto em que estavam sempre a “embater” durante os respectivos depoimentos), é uma oportunista que se apossou de quase todo o património do companheiro e deixou-o arrastar-se para um estado de completa degradação física e anímica. Como é fácil de ver, analisados os depoimentos na sua globalidade, na sua intrínseca coerência, cingindo-os aos factos e expurgando-os das opiniões e juízos de valor que emitiram, chega-se à conclusão de que «nem tanto ao mar nem tanto à terra». A realidade não corresponde a esses extremos.
Depois, em vez de se discutirem apenas os factos relevantes, que eram bem poucos, o procedimento cautelar foi arrastado para a discussão do “clima moral”, mais parecendo que se estava num processo de divórcio a tentar atribuir a culpa a alguns dos cônjuges, quando apenas estava em jogo saber quem tinha mais necessidade da casa. No âmbito do recurso, continua-se na mesma senda, a discutir questões sem nenhuma relevância efectiva.
Quanto às incongruências, elas existem nos depoimentos de quase todas as testemunhas, procurando favorecer com a sua versão a parte que as arrolou. As testemunhas do Requerido procuraram convencer de que o estado em que ele se encontrava se devia ao desinteresse e falta de tratamento por parte da Requerente e não à doença e ao envelhecimento. As testemunhas da Requerente, por sua vez, procuraram convencer de que ela era uma companheira extremosa, sempre atenta às suas necessidades, sem aludirem à elevada perda de peso que evidenciava e resumindo a doença a uns ocasionais esquecimentos (perder-se a meio de conversas).
O certo é que o relatório do exame pericial às faculdades mentais produzido em 03.05.2019 é inteiramente esclarecedor sobre a doença do Requerido e da sua gravidade. E tal relatório menciona vários registos dos médicos que o observaram ao longo do tempo, os quais contêm elementos que geram perplexidades, como sejam, o Requerido fazer-se acompanhar de familiares (a filha) quando vai aos médicos, em vez da companheira, como seria normal se a relação estivesse assim tão boa como afirmaram as testemunhas da Requerente; o estado de prostração, apatia, depressão e desinteresse em que se encontrava, que nenhuma das testemunhas da Requerente referiu; o incumprimento da medicação receitada; os sinais evidentes da doença, que nenhuma das testemunhas do Requerido identificou como tal, antes imputaram totalmente à Requerente; a clara rejeição do retomar da relação com a Requerente (consta do relatório pericial: «Foi notória a rejeição (pelo olhar angustiado e pelos gestos faciais e inquietação motora) da hipótese de ir viver de novo com a ex-companheira» e que «o beneficiário necessita ainda de viver em meio protegido, sendo que se encontra ainda em estado de poder escolher e decidir onde, e com quem quer viver (apesar dos constrangimentos que actualmente possam existir e que emocionalmente sejam perturbadores)»), enquanto as testemunhas da Requerente atribuíam a cessação da união de facto apenas à interferência da filha.
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Quanto ao ponto 23:

A Recorrente pretende que se dê como não provado o ponto 23, ou seja, que «A Requerente passou paulatinamente a desinteressar-se pelo estado e condição de vida do Requerido, e este passou a aparecer desleixado no seu aspecto físico em consequência inevitável do envelhecimento e consequente perda de saúde».
Sustenta que «ficamos sem saber se terá sido por causa da requerente, desinteresse, ou por causa do seu envelhecimento que este aparece desleixado» (conclusão 29) e que «não existe qualquer fundamento ou base probatória para que o Tribunal a quo tenha dado por provado tal facto» (LXXII da motivação das alegações).
Quanto à apontada dúvida, a mesma não tem razão de ser: a redacção do ponto de facto é esclarecedora sobre a articulação entre o desinteresse da Requerente e o desleixo no seu aspecto físico que o Requerido passou a exibir. O Requerido envelheceu, adoeceu e a Requerida não interveio substancialmente no sentido de suprir as menores capacidades deste.
No que respeita à inexistência de meios probatórios, sobre o estado de saúde do Requerido pronunciaram-se as testemunhas da própria Requerente (e existe nos autos o relatório do exame pericial ao Requerido – fls. 222 vº a 225), enquanto sobre o desinteresse desta e as consequências naquele, depuseram as testemunhas J. F., H. P. e G. B..
Por isso, concordando-se integralmente com o Tribunal recorrido, o facto não pode ser considerado não provado.
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Quanto aos pontos 24 a 30:

A Recorrente sustenta que tais factos nunca poderiam ser dados como provados, uma vez que «ou são pessoais à requerente e disso dificilmente ou nunca se faz prova, ou foram depreendidos apenas pelos depoimentos das testemunhas arroladas pelo requerido, mas sem afastar o depoimento das arroladas pela requerente».
Como já referimos atrás, embora invoque os depoimentos de várias testemunhas, resumindo o que elas terão dito sem indicar as passagens da gravação onde constam e sem proceder à transcrição dos respectivos excertos, a Recorrente não cumpriu o ónus que lhe era imposto pelo artigo 640º, nºs 1, al. b), e 2, al. b), do CPC.
Por outro lado, relativamente aos poucos segmentos da gravação dos depoimentos das testemunhas J. F., P. V., H. P. e G. B. cujas passagens indica e transcreve, verifica-se que das mesmas não resulta infirmado o que consta dos pontos 24 a 30 dos factos provados.
Depois, a Relação, para modificar a decisão do juiz de primeira instância sobre determinado facto, tem de conseguir rebater, de forma cabal e sem margem para dúvidas, a apreciação crítica da prova feita no tribunal a quo relativamente àqueles concretos pontos de facto. Se não consegue afirmar convictamente outra versão ou, nalgumas situações, afastar a versão que prevaleceu com base na existência de dúvida séria e legítima sobre a realidade do ponto de facto impugnado pelo recorrente, não deve a Relação alterar a decisão da primeira instância sobre a matéria de facto. Não estamos a preconizar que a intervenção da Relação se circunscreva à detecção dos “erros manifestos” na apreciação da prova, pois as situações patológicas são facilmente detectáveis pelos tribunais superiores, mas sim de, para contrariar uma decisão da primeira instância racionalmente motivada, ser necessário uma fundamentação reforçada que revele um erro de julgamento. Uma mera dúvida, não racionalmente fundamentada, é insuficiente para alicerçar uma modificação da matéria de facto, até porque a apreciação da impugnação da decisão sobre a matéria de facto não se reconduz a uma repetição do julgamento, mas sim, sendo um “recurso”, a uma mera reanálise da matéria sindicada.
Nos processos em que a actividade probatória se alicerça essencialmente na prova testemunhal, como sucede no caso vertente, a Relação, ao reponderar as questões de facto em discussão através da reapreciação dos meios probatórios, encontra-se numa situação de manifesta desvantagem em comparação com o tribunal de primeira instância, atentas as perdas significativas que se verificam nos factores da imediação e da oralidade.
Como muito bem salienta Abrantes Geraldes (21), «a gravação dos depoimentos por registo áudio ou por meio que permita a fixação da imagem (vídeo) nem sempre consegue traduzir tudo quanto pôde ser observado no tribunal a quo. Como a experiência o demonstra frequentemente, tanto ou mais importante que o conteúdo das declarações é o modo como são prestadas, as hesitações que as acompanham, as reacções perante as objecções postas, a excessiva firmeza ou o compreensível enfraquecimento da memória, sendo que a mera gravação dos depoimentos não permite o mesmo grau de percepção das referidas reacções que porventura influenciaram o juiz da 1ª instância. Na verdade existem aspectos comportamentais ou reacções dos depoentes que apenas são percepcionados, apreendidos, interiorizados e valorados por quem os presencia e que jamais podem ficar gravados ou registados para aproveitamento posterior por outro tribunal que vá reapreciar o modo como no primeiro se formou a convicção do julgador».
Se assim é na generalidade das acções, tal desvantagem ainda é maior nas acções em que as testemunhas produzem em audiência depoimentos substancialmente divergentes sobre a mesma realidade. Em tais casos, como o juiz não pode abster-se de julgar, através do mero recurso ao non liquet, e tem o dever de fazer justiça (e não possui detector de mentiras, para além daquele que resulta da sua experiência, intuição e interpretação racional do que observa durante a produção da prova), a matéria de facto é susceptível de ser decidida com base nos pormenores que a psicologia judiciária tem vindo a sinalizar, como sejam os que se retiram da «percepção do entusiamo, das hesitações, do nervosismo, das reticências, das insinuações, da excessiva segurança ou da aparente imprecisão» (22). No fundo, há todo um conjunto de elementos captáveis directamente no momento da produção da prova testemunhal (ou das declarações das partes) que dificilmente o tribunal superior consegue apreender na gravação, cujo processo de reapreciação pouco mais vai além da mera consideração das palavras proferidas, perdendo-se os elementos subtis e, em geral, o que se designa de comunicação não-verbal.
No caso dos autos, além de nos parecer que a decisão da matéria de facto está em conformidade com a convicção que se adquire da apreciação global da prova, também não se consegue afastar a versão que prevaleceu.

Por todo o exposto, excepto quanto ao aditamento atrás ordenado, julga-se improcedente a impugnação da decisão sobre a matéria de facto.
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2.2.2. Reapreciação de Direito

Estamos perante um procedimento cautelar que foi julgado improcedente na primeira instância e a Recorrente pretende que tal decisão seja revogada e substituída por outra que atribua a casa de morada de família à Requerente.

Nos termos do artigo 362º, nº 1, do CPC, «Sempre que alguém mostre fundado receio de que outrem cause lesão grave e dificilmente reparável ao seu direito, pode requerer a providência conservatória ou antecipatória concretamente adequada a assegurar a efectividade do direito ameaçado».
A Requerente requer uma tutela antecipatória do direito de que se arroga, uma vez que pretende, ao fim e ao cabo, continuar a usufruir do imóvel no qual vivia com o Requerido em união de facto, até que lhe seja reconhecido o respectivo direito na acção declarativa a intentar.

Em conformidade com o disposto nos artigos 362º e 368º, nºs 1 e 2, do CPC, o procedimento cautelar comum depende da concorrência dos seguintes pressupostos:

a) Probabilidade séria da existência do direito invocado pela requerente (fumus boni juris);
b) Fundado receio de que esse direito sofra lesão grave e de difícil reparação (periculum in mora);
c) Adequação da providência requerida à situação de lesão iminente;
d) Inaplicabilidade de qualquer uma das outras providências cautelares previstas no CPC;
e) O prejuízo resultante da providência não ser superior ao dano que com ela se pretende evitar (requisito negativo).

No caso dos autos, o imóvel é propriedade do Requerido, pelo que a «permanência na habitação da casa de morada de família» que a Requerente reclama só pode emergir da anterior situação de união de facto.
A Lei nº 7/2001, de 11 de Maio, adoptou medidas de protecção das uniões de facto e define, no seu artigo 1º, nº 2, o respectivo conceito como sendo «a situação jurídica de duas pessoas que, independentemente do sexo, vivam em condições análogas às dos cônjuges há mais de dois anos».
A Requerente e o Requerido viveram em união de facto desde finais do ano de 2006 até ao dia 01.10.2018, data em que o Requerido pôs fim a essa relação. Ocorreu então a ruptura da união de facto, sendo que o artigo 8º, nº 1, al. b), da Lei nº 7/2001 prevê expressamente a dissolução por vontade de um dos seus membros.
Durante a permanência da união de facto residiram sempre na casa sita na Avenida..., concelho de Caminha.
Estipula o artigo 3º, alínea a), da Lei nº 7/2001 que «as pessoas que vivem em união de facto nas condições previstas na presente lei têm direito a (…) protecção da casa de morada de família, nos termos da presente lei».
Nos termos do artigo 4º da referida Lei, essa protecção, no caso de ruptura da união de facto, é feita através de remissão para o disposto nos artigos 1105º e 1793º do Código Civil, que «é aplicável, com as necessárias adaptações».
E desta forma chegamos à norma reguladora da situação dos autos, que é o artigo 1793º, nº 1, do CCiv., onde se dispõe que «pode o tribunal dar de arrendamento a qualquer dos cônjuges, a seu pedido, a casa de morada de família, quer essa seja comum quer própria do outro, considerando, nomeadamente, as necessidades de cada um dos cônjuges e os interesses dos filhos do casal».
Para saber a quem deve ser concedida primazia na ocupação da casa a lei refere, com intenção declaradamente exemplificativa, dois factores: as necessidades de cada uma das partes e o interesse dos filhos do casal.

Não definindo a lei substantiva ou processual a hierarquia de interesses ou critérios a atender, a doutrina e a jurisprudência têm vindo a sustentar que a resolução da questão deve assentar predominantemente nos seguintes critérios, que aqui cingimos à vertente em causa nos autos – a ruptura da união de facto:

a) A casa deve ser atribuída ao membro da união de facto dissolvida que mais precise dela, sendo irrelevante a culpa pela dissolução;
b) Na apreciação da necessidade da casa releva a situação patrimonial dos membros da união de facto, havendo que apurar os rendimentos e proventos de cada um e os respectivos encargos;
c) Para a ponderação das necessidades de um e de outro, são ainda atendíveis razões resultantes da idade e estado de saúde de algum dos membros da união de facto, a localização da casa relativamente ao local de trabalho de cada um, a eventual possibilidade de um deles dispor de outra casa onde possa residir e a circunstância de um deles poder ser ou ter sido acolhido por terceiros que não estejam obrigados a recebê-lo, só o fazendo por mera tolerância;
d) Quanto ao interesse dos filhos, atender-se-á se é importante para aqueles viverem na casa que foi do casal com o progenitor guardião.

Compete ao unido de facto que pretende que lhe seja atribuída a casa de morada de família alegar e provar que necessita mais que o outro da referida casa, sendo que a necessidade da habitação é uma necessidade actual e concreta, a apurar segundo a apreciação global das circunstâncias particulares de cada caso.

In casu, não tendo o casal filhos comuns, para que a casa de morada de família possa ser dada de arrendamento à Requerente, devem ser ponderadas «as necessidades de cada um dos» ex-membros da união de facto.
A situação patrimonial das partes não permite no caso alicerçar qualquer decisão, seja a favor da Requerente ou do Requerido. Ambos têm uma situação patrimonial bastante confortável e desafogada, podendo dispor imediatamente de meios financeiros para fazer face a qualquer eventualidade. É verdade que não se demonstraram, por nem sequer terem sido alegadas, as despesas de cada uma das partes, pelo que se presume que são as normais para pessoas nas suas circunstâncias.
Podendo dizer-se que os activos patrimoniais do Requerido, apesar do elevado património (bens e meios financeiros) de que a Requerente dispõe, são superiores aos desta, devido à doença de que padece necessita «de apoios para conseguir a sua sobrevivência e para supervisão de todas as actividades, inclusivamente as quotidianas (alimentar-se, vestir-se, mobilizar-se) e outras que pretenda realizar», tal como foi apurado no exame pericial realizado no âmbito do processo nº 4247/18.5T8VCT (maior acompanhado), cujo relatório foi junto aos autos a requerimento da Requerente. Portanto, o Requerido necessita permanentemente da assistência de uma terceira pessoa, que terá de contratar, o que permite concluir que as suas despesas serão superiores às da Requerente. Nem a Requerente nem o Requerido dispõem de outra casa onde morar, a não ser a dos autos.
Porém, na apreciação global das circunstâncias particulares do caso dos autos, sobressaem a doença do Requerido e a sua idade.
O Requerido tem neste momento 75 anos de idade e apresenta um quadro de saúde de síndrome demencial, com diagnóstico de demência arteriosclerótica e demência de Alzheimer, enquanto a Requerente tem apenas 38 anos de idade e não consta que padeça de qualquer doença ou enfermidade, tanto que não a alegou.
O Requerido necessita de viver em meio protegido, com supervisão de uma terceira pessoa, e o seu estado ainda lhe permite escolher e decidir onde, e com quem. Atenta a posição que manifestou nos autos, pretende morar na casa que constituía a casa de morada de família, da qual é proprietário.
Neste quadro, conclui-se que o Requerido necessita mais do que a Requerente da casa.
Destarte, improcede a apelação, confirmando-se a decisão recorrida.
A Recorrente será responsável pelas custas respectivas nos termos do artigo 527º, nºs 1 e 2, do Código de Processo Civil.
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2.3. Sumário

1 – Não tendo os unidos de facto filhos comuns, em caso de dissolução da união de facto, a casa deve ser atribuída ao membro que mais precise dela, sendo irrelevante a culpa pela dissolução.
2 – Cabe ao unido de facto que pretende que lhe seja atribuída a casa de morada de família alegar e provar que necessita mais que o outro da referida casa.
3 – A necessidade da habitação deve ser apurada mediante a apreciação global das circunstâncias particulares do caso.
4 – Na apreciação da necessidade da casa releva a situação patrimonial dos membros da união de facto, mas também um conjunto de factores complementares, designadamente o estado de saúde e a idade de cada um.
3 – Sendo as situações patrimoniais semelhantes e reveladoras de algum desafogo económico, mas tendo o requerido 75 anos de idade e um quadro de saúde de síndrome demencial (designadamente doença de Alzheimer), enquanto a requerente tem 38 anos de idade e não padece de doença, deve concluir-se que o requerido necessita mais que a requerente da casa de morada de família.
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III – DECISÃO

Assim, nos termos e pelos fundamentos expostos, acorda-se em julgar improcedente a apelação, mantendo-se a decisão recorrida.
Condena-se a Recorrente no pagamento das custas, na vertente das custas de parte.
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Guimarães, 28.11.2019
(Acórdão assinado digitalmente)

Joaquim Boavida (relator)
Paulo Reis (1º adjunto)
Joaquim Espinheira Baltar (2º adjunto)


1. Cf. Acórdãos da Relação de Coimbra de 11.01.1994, Cardoso Albuquerque, BMJ nº 433, p. 633, do STJ de 13.02.1997, Nascimento Costa, BMJ nº 464, p. 524 e de 22.06.1999, Ferreira Ramos, CJ 1999 – II, p. 160.
2. Acórdão da Relação do Porto de 02.05.2016, Correia Pinto, 1556/14.
3. Lebre de Freitas, A Acção Declarativa Comum, Coimbra Editora, 2000, p. 298.
4. Acórdão do STJ de 08.03.2001, acessível em www.dgsi.pt.
5. Acórdão do STJ de 16.06.2016, relator Tomé Gomes, proc. 1364/06, disponível em www.dgsi.pt.
6. Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa, de 09.12.2014, Cristina Coelho, proc. 8601/12.
7. Para que não existam futuros erros aqui fica o resumo: a efectivação do direito à protecção da casa de morada de família decorrente da ruptura da união de facto, por vontade de um dos membros, implica que seja judicialmente declarada a cessação da união de facto, requerendo-se também, na mesma acção, que o tribunal decida sobre o destino a dar à casa onde a família vivia. Sendo a casa propriedade apenas de um dos membros, o outro pode requerer que o imóvel lhe seja dado de arrendamento.
8. Código de Processo Civil Anotado, vol. V, p. 143.
9. Cf. também os Acórdãos do STJ de 07.07.1994, Miranda Gusmão, BMJ nº 439, pág. 526 e de 22.06.1999, Ferreira Ramos, CJ 1999 – II, pág. 161, da Relação de Lisboa de 10.02.2004, Ana Grácio, CJ 2004 – I, pág. 105, de 4.10.2007, Fernanda Isabel Pereira, de 6.3.2012, Ana Resende, 6509/05, acessíveis em www.dgsi.pt/jtrl.
10. Acórdão do STJ de 21.12.2005, Pereira da Silva, acessível em www.dgsi.pt.
11. Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa de 23.04.2015, Ondina Alves, proc. 185/14, em www.dgsi.pt.
12. Da Sentença Cível, pág. 41.
13. Francisco Ferreira de Almeida, Direito Processual Civil, vol. II, Almedina, 2015, p. 370.
14. Acórdão da Relação do Porto de 09.06.2011, Filipe Caroço, proc. 5/11, em www.dgsi.pt.
15. Acórdão do STJ de 30.04.2014, Belo Morgado, proc. 319/10, em www.dgsi.pt.
16. Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 08.03.2001, Ferreira Ramos, acessível em www.dgsi.jstj/pt.
17. Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 03.10.2002, Araújo de Barros, acessível em www.dgsi.pt/jstj.
18. V. art. 22º do r.i.: «Convém referir, que para além de ser legatária desta casa, esta é também a sua única residência da Requerente, bem como a do seu filho menor, motivo pelo qual as benfeitorias realizadas pelo casal nestes últimos 10 anos foram pagas pelo casal, Requerente e Requerido».
19. Abrantes Geraldes, Recursos no Novo Código de Processo Civil, 5ª edição, Almedina, 2018, pág. 163. No mesmo sentido Francisco Ferreira de Almeida, Direito Processual Civil, vol. II, Almedina, 2015, pág. 463.
20. Ob. cit., págs. 168 e 169.
21. Recurso no Novo Código de Processo Civil, 5ª edição, Almedina, 2018, págs. 298 e 299.
22. Recursos no Novo Código de Processo Civil, 5ª edição, Almedina, 2018, pág. 299.