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LOCALIZAÇÃO CELULAR
REGISTO DE CONVERSAÇÕES
OBTENÇÃO DE DADOS
REGIME GERAL
COMUNICAÇÕES EM TEMPO REAL
DADOS ARQUIVADOS
Sumário
I - O artigo 189º, n.º 2 do CPP, regula a obtenção de dados sobre a localização celular ou de registos da realização de conversações ou comunicações em tempo real. II - Por seu turno, a Lei 32/2008, que transpôs para a ordem jurídica interna a Directiva 2006/24/CE, do Parlamento Europeu e do Conselho, de 15 de março, relativa à conservação de dados gerados ou tratados no contexto da oferta de serviços de comunicações electrónicas publicamente disponíveis ou de redes públicas de comunicações, aplica-se aos dados passados, ou seja, já arquivados. III - A Lei 32/2008 só é aplicável a dados relativos a crimes graves tal como nela se encontram enumerados.
Texto Integral
Proc. nº 463/18.8PASTS-A.P1
Tribunal da Relação do Porto (2ª Secção Criminal – 4ª Secção Judicial)
Acordam, em conferência, na 2ª Secção Criminal do Tribunal da Relação do Porto:
I – RELATÓRIO:
Inconformado com o despacho datado de 03/04/2019 em que o JIC decidiu indeferir a promoção de obtenção de faturação detalhada, a identificação de IMEI e a localização celular de dois números de telemóvel, no período compreendido entre o dia 20/10/2018 e 30/11/208, ao abrigo do disposto nos artigos 187º, nº 1, al. a), 188º, 189º e 269º, todos do Código de Processo Penal, dele veio o Ministério Público interpor recurso nos termos que constam de fls. 2 a 16 destes autos, aqui tidos como renovados, tendo formulado, a final, as seguintes conclusões (transcrição):
O recurso foi regularmente admitido (cfr. fls. 5).
Não há respostas.
Já neste tribunal, e com vista nos autos, o Ex.mo PGA emitiu o parecer junto a fls. 61 a 63, aqui tido como reproduzido, através do qual preconizou a improcedência do recurso.
No cumprimento do artigo 417º, nº 2, do Código de Processo Penal, nada mais foi aduzido.
Após exame preliminar, colhidos os vistos e realizada a conferência, cumpre decidir, nada obstando a tal.
* II – FUNDAMENTAÇÃO:
a) a decisão recorrida:
No que aqui importa reter, o despacho recorrido é do teor seguinte (transcrição):
“Iniciaram-se os presentes autos para investigação de um alegado crime de furto qualificado, previsto pelos arts. 203°/1 e 204°/1 a) do Código Penal, para cuja existência concorrem aparentemente os elementos documentados a fls. 4, 32/33, 38/39 e 50/5 1.
Todavia, não é de excluir, a partir das reservas derivadas de diligências entretanto empreendidas e plasmadas nomeadamente a fls. 36, 56 a 75 e 82 a 85, a possibilidade de estarmos antes diante um crime de simulação de crime, previsto pelo art. 366°/1 do Código Penal [e/ou porventura de uma falsificação do documento que consubstancia a participação do pretenso sinistro, ou da data deste, à entidade seguradora, previsto pelo art. 256°/1 d) a f) do Código Penal, e/ou uma burla qualificada tentada prevista pelos arts. 217°/1 e 218°/1j.
Ora, as informações cuja obtenção se pretende por via da nossa intervenção inscrevem-se no art. 4°/1 da Lei n° 32/2008, de 17/07.
E nessa medida, a transmissão de tais dados para os autos apenas poderia ocorrer se estivéssemos diante ilícitos que coubessem no conceito de «crimes graves», tal como estes se encontram definidos pelo art. 2°/1 g) da Lei n° 32/2008, de 17/07, o que não é o caso (cfr. ainda os arts. 4° e 9°); o art. 189°/2 do Código de Processo Penal, lido de forma concatenada com o regime legal que deixámos citado, reporta-se à obtenção e junção de dados sobre a localização celular ou de registos da realização de conversações ou comunicações em tempo real (vide o Ac. da RL de 7/03/2017, relatado por Artur Vargues, e demais jurisprudência aí mencionada).
Face ao exposto, decidimos indeferir o requerido”.
*
b) apreciação do mérito:
Antes de mais, convirá recordar que, conforme jurisprudência pacífica[1], de resto, na melhor interpretação do artigo 412º, nº 1, do Código de Processo Penal, o objeto do recurso deve ater-se às conclusões apresentadas pelo recorrente, sem prejuízo, obviamente, e apenas relativamente às sentenças/acórdãos, da eventual necessidade de conhecer oficiosamente da ocorrência de qualquer dos vícios a que alude o artigo 410º, do Código de Processo Penal[2], devendo sublinhar-se que importa apreciar apenas as questões concretas que resultem das conclusões trazidas à discussão, o que não significa que cada destacada conclusão encerre uma individualizada questão a tratar, tal como sucede no caso vertente.
*
Neste contexto, e em face daquilo que se apreende das efetivas conclusões trazidas à discussão pelo recorrente, importa saber apenas se para a obtenção dos dados requeridos pelo Ministério Público deverá aplicar o Código de Processo Penal ou a Lei nº 32/2008, de 17/07.
Vejamos, pois.
Assinalando que a questão de saber qual a legislação que deve ser invocada para se obter informação sobre dados de tráfego para a investigação penal não é pacífica, o Ministério Público adianta que a interpretação da lei feita no despacho recorrido inviabiliza a obtenção de dados de tráfego gravados para investigar os crimes puníveis com pena de prisão superior, no seu máximo, a 3 anos de prisão, bem como muitos dos crimes previstos no artigo 187° do Código Processo Penal, não tendo tido em conta o pensamento legislativo e a unidade do sistema jurídico, pelas razões que depois adianta argumentação que desenvolve e que, no essencial, vem vertida nas correspondentes conclusões supra transcritas[3] e que, por economia, aqui se considera renovada, razão pela qual sustenta que o JIC deve pedir os referenciados dados de tráfego, mesmo relativamente a comunicações ocorridas no prazo de um ano, por força do disposto no artigo 11º, n° 2 da Lei do Cibercrime e artigo 6° da Lei n° 32/2008, de 17/07.
Não há respostas.
No aludido parecer, e louvando-nos na doutrina citada em anotação ao artigo 189º in “Comentário Judiciário do CPP”, de António Gama e outros, o Ex.m PGA veio sublinhar que não é aqui aplicável o artigo 189, nº 2, do Código de Processo Penal, pelo que entendia que o recurso deve ser julgado improcedente.
Apreciando.
Cremos que não assistirá razão ao recorrente, adiante-se.
Na verdade, o artigo 189º, nº 2 do Código de Processo Penal, e verificados que sejam os demais pressupostos, destina-se, à obtenção de dados sobre a localização celular ou de registos da realização de conversações ou comunicações em tempo real, ao passo que a Lei nº 32/2008, de 17/07, lei especial relativamente àquela codificação, e tal como decorre do seu preâmbulo, “Transpõe para a ordem jurídica interna a Diretiva n.º 2006/24/CE, do Parlamento Europeu e do Conselho, de 15 de março, relativa à conservação de dados gerados ou tratados no contexto da oferta de serviços de comunicações eletrónicas publicamente disponíveis ou de redes públicas de comunicações”.
Assim sendo, e tal como resulta sumariado no acórdão do TRL datado de 07/03/2017, “O regime dos artigos 187º a 189º, do CPP, aplica-se aos dados sobre a localização celular obtidos em tempo real e interceção das comunicações entre presentes, enquanto o consagrado na Lei nº 32/2008, de 17/07, tem como âmbito de aplicação os dados que concernem a comunicações relativas ao passado, ou seja, arquivada”[4].
Neste mesmo sentido, foi recentemente sustentado em acórdão proferido neste TRP que “…a Jurisprudência publicada é unânime, no sentido que a recolha de dados de tráfego armazenados por uma Operadora telefónica, respeitantes a um passado recente, é matéria que passou a estar legislativamente enquadrada na alçada das Lei n.º 32/2008,de 17.7 e Lei n.º 109/2008, de 17.7 (leia-se, 109/2009, de 15/09)”. Não há que equacionar um paralelismo disjuntivo, com recurso ao CPP (via art.º 189.º do CPP), porque na realidade ocorreu, no que concerne a tais dados pertencentes ao passado, uma “revogação sistemática”[5].
Acresce que a aplicação daquela lei nº 32/2008 só poderá abranger os dados que constam elencados no seu artigo 4º, pois que quanto aos demais que ali não estejam previstos já regula a Lei nº 109/2009, de 15/09 (Lei do Cibercrime, atinente a ataques contra sistemas de informação).
Ora, no caso presente é mais que evidente que os dados que o Ministério Público pretende obter estão previstos no artigo 4º daquela primeira lei, pelo que será a mesma a aqui aplicável.
Verificado este pressuposto, e tal como se anota na decisão recorrida, não poderá esquecer-se que a obtenção ou a transmissão de tais dados para os autos apenas poderia ocorrer se estivéssemos diante
ilícitos que coubessem no conceito de «crimes graves»[6], tal como estes se encontram definidos pelo artigo 2º, nº1, al. g) da referida Lei n° 32/2008, de 17/07, o que não é manifestamente o caso, pelo que deverá manter-se o indeferimento da pretensão do Ministério Público, com a inerente confirmação do despacho recorrido.
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Sem tributação, dada a legal isenção do recorrente (cfr. artigo 522º, nº 1 do Código de Processo Penal).
* III – DISPOSITIVO:
Nos termos e pelos fundamentos expostos, os juízes nesta Relação acordam em negar provimento ao recurso interposto pelo Ministério Público em consequência do quedecidem confirmar o despacho recorrido.
Sem tributação.
Notifique.
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Porto, 04/12/2019[7]
Moreira Ramos
Maria Deolinda Dionísio
____________________ [1] Vide, entre outros no mesmo e pacífico sentido, o acórdão do STJ, datado de 15/04/2010, in http://www.dgsi.pt, no qual se sustenta que “Como decorre do art. 412.º do CPP, é pelas conclusões extraídas pelo recorrente na motivação apresentada, em que resume as razões do pedido que se define o âmbito do recurso. É à luz das conclusões da motivação do recurso que este terá de apreciar-se, donde resulta que o essencial e o limite de todas as questões a apreciar e a decidir no recurso, estão contidos nas conclusões, excetuadas as questões de conhecimento oficioso”. [2] Conhecimento oficioso que resulta da jurisprudência fixada no Acórdão nº 7/95, do STJ, in DR, I série-A, de 28/12/95. [3] As quais foram transcritas precisamente porque reproduzem a base argumentativa crucial que consta da motivação ou argumentação recursiva e, por isso, e até por razões de economia, permite-nos não a repetir neste lugar. [4] Aresto que vem citado no despacho recorrido e cujo sumário foi extraído da anotação ao artigo 1º daquela lei inserta no site da PGDLisboa; é também esse o entendimento dos autores “Comentário Judiciário do CPP”, de António Gama e outros. [5] Trata-se do acórdão datado de 20/11/2019, proferido no processo nº 54/19.6GDSTS-A.P1, relatado pelo Ex.mo Desembargador Borges Martins, ainda inédito, mas a aguardar publicação no site da DGSI. [6] Conforme se sublinha no aresto citado na nota anterior, esta solução poderá ser criticável e não foi perfilhada em Espanha, pois que “…a correspondente lei espanhola não estabeleceu um catálogo de crimes graves … deixou a respetiva concretização para os juízes”. [7] Texto escrito conforme o acordo ortográfico, convertido pelo Lince, composto e revisto pelo relator (artigo 94º, nº2, do Código de Processo Penal).