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INEPTIDÃO DA PETIÇÃO INICIAL
DESPACHO DE APERFEIÇOAMENTO
NULIDADE ABSOLUTA
Sumário
I - a causa de pedir é a realidade concreta resultante do mundo empírico, simples ou complexa que subsumível às normas aplicáveis irá fundamentar a pretensão da parte. II - A ineptidão da petição inicial existe quando ocorrer uma falta de exposição essencial da causa de pedir e não apenas mera deficiência ou lacuna de alegação. III - Como critério auxiliar para determinar essa distinção pode-se utilizar a previsão do art. 5º, do CPC, por forma apurar se a causa de pedir omitida de forma parcial é ainda uma realidade/facto essencial, que não pode ser densificada ou complementada por outros factos. 4. Quando isso ocorrer existe uma nulidade absoluta que não deve ser objecto de despacho de aperfeiçoamento nos termos do art. 590º, do CPC.
Texto Integral
Processo n.º 20.395/18.3T8PRT.P1
* 1. Relatório
B…, e C… intentam a presente acção declarativa de condenação, em processo comum contra o R D…, pedindo que: a) Declarar-se os AA. como donos e legítimos proprietários da raiz dos prédios identificados no artigo 1.º da presente petição;
b) Condenar-se o R. a restituir aos AA. as partes dos imóveis que vem ocupando ilicitamente, demolindo tudo o que neles construíram e restituindo-os à situação em que se encontravam inicialmente;
O Réu contestou invocando a ineptidão da petição inicial.
O tribunal por despacho de 6.5.19 dispensou a realização de audiência prévia e, considerando verificada essa ineptidão absolveu o réu da presente instância.
Inconformados vieram os AA recorrer formulando as seguintes conclusões:
1. Não se verificam os invocados Requisitos de Ineptidão da Petição Inicial;
2. Mesmo que tais Requisitos se verificassem, sempre o Tribunal “a quo” teria, como obrigação imediata, de convidar o AA. a retificar/corrigir a sua primeira peça processual e apresentar nova Peça Inicial.
3. O Tribunal “a quo” não o fez, antes optando por proferir Sentença de absolvição da Instância do R.;
4. Ao fazê-lo e omitindo a obrigatoriedade de notificação prevista nos arts. 6º e 590º do CPC violou, o Tribunal “a quo” o conteúdo destes dois artigos;
5. Tal violação/omissão traduz-se em nulidade processual, nos termos e para os efeitos do disposto no art. 195º do mesmo Código de Processo Civil que aqui e agora se invoca.
6. O momento e o ato processual para invocar tal Nulidade são os próprios e adequados;
7. Devendo, pelo exposto, o Tribunal de Recurso ordenar a Nulidade da Sentença proferida e a sua substituição por Despacho que convide os AA. a apresentar Petição Inicial retificada;
8. Sempre por respeito e ao abrigo do disposto nos arts. 6º e 590º do Código de Processo Civil.
9. Violou, por isso, ao proferir a Sentença proferida, desta forma e desde logo, o conteúdo dos arts. 6º, 590º e 195º todos do Código de Processo Civil;
10. Pugnando-se, por isso, que o Tribunal de Recurso profira Decisão que altere o sentido da Decisão Recorrida nos moldes suprarreferidos,
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Notificado para o efeito veio o réu apresentar contra-alegações, nas quais formulam as seguintes conclusões:
1. Os AA. e ora Recorrentes não esclareceram na sua petição inicial, com a necessária precisão e sem margem para dúvida razoável (indicando a exacta localização e área) qual a parcela ou parcelas de terreno ou logradouro, ou parte do muro ou parede, que afirmam ser suas e que supostamente estariam a ser ilicitamente ocupadas pelo R., ora Recorrido.
2. Também não indicaram a causa de aquisição da concreta parcela do imóvel que pretendem ver declarada sua, limitando-se os AA. e ora Recorrentes a invocar a causa de aquisição derivada sem demonstrar que a transmissão incluiu as parcelas que reclamam, sem terem demonstrado sucessivamente quanto às transmissões derivadas anteriores até atingirem uma transmissão originária.
3. Assim como, também, não indicaram as exactas linhas de demarcação ou confrontação entre os vários prédio e, muito menos, juntaram documento que provasse tais factos, baseando a sua pretensão na presunção que decorre do artigo 7.º do Código de Registo Predial (pela junção à petição inicial de certidões da Conservatória do Registo Predial do Porto, caderneta predial e escritura de compra e venda) que não abrange áreas, limites ou confrontações dos prédios descritos.
4. Por outro lado, e contrariamente ao que os AA. ora Recorrentes afirmam, o R. e ora Recorrido não entendeu nem conseguiu identificar as parcelas, a localização das mesmas e respectivas áreas que supostamente estaria a ocupar ilegitimamente, não se podendo tirar do teor do artigo 18.º da contestação a ilação que os mesmos pretendem: que o R. havia compreendido o pedido.
5. Nem se pode, dos artigos 41.º a 54.º da contestação, retirar a ilação de que o R. e ora Recorrido compreendeu a causa de pedir da acção e que identificou tais parcelas, áreas e sua localização.
6. O que o R. e ora Recorrido mais não fez nos artigos 41.º a 54.º da sua contestação, foi afirmar e provar que - apesar de não conseguir localizar quais as parcelas e áreas a que os AA. se referiam - o seu prédio, sempre teve a sua configuração e área actuais.
7. A petição inicial dos presentes autos é ininteligível por falta de causa de pedir, não podendo ser considerada uma petição inicial deficiente ou incompleta, no que concerne à descrição dos factos constitutivos do direito nela invocado, não podendo ser passível de correcção.
8. O vício de que a mesma enferma não é possível de ser sanável, não se trata de suprir irregularidades, nem de suprir insuficiências ou imprecisões, pois trata-se de uma inexistência de causa de pedir.
9. Razão pela qual esteve bem o Tribunal a quo quando não convidou os AA. ora Recorrente a aperfeiçoar a sua petição inicial, de acordo com os artigos 590.º do Código de Processo Civil.
10. Não havendo, por conseguinte violação do artigo 590.º, n.º 6 do Código Processo Civil, não existindo qualquer nulidade processual nos termos do disposto do artigo 195.º do Código de Processo Civil.
11. Padecendo a petição inicial de falta absoluta de invocação de factos, inexistindo qualquer matéria de facto sobre o qual as partes possam incidir o seu esforço probatório, a petição inicial é inepta por falta de indicação de causa de pedir.
12. Por conseguinte, outra solução não teve o Tribunal a quo que não fosse julgar procedente a nulidade decorrente de ineptidão da petição inicial por falta de causa de pedir e em consequência absolver o R. da instância, com custas a cargo dos AA.
13. Ora, e ao contrário do que os ora recorrentes alegam, não houve qualquer errada apreciação da matéria de facto e de direito, qualquer aplicação errada ou sequer qualquer violação/omissão do Direito por parte do Meritíssimo Juiz do Tribunal a quo.
* III. Questões a decidir
Face ao teor das conclusões importa apenas apurar:
a) Se a petição inicial é ou não inepta
b) Se o tribunal a quo deveria ter convidado os AA. a corrigir a mesma.
* IV. Factualidade relevante
1. Os autores formularam o seguinte pedido: a) Declarar-se os AA. como donos e legítimos proprietários da raiz dos prédios identificados no artigo 1.º da presente petição; b) Condenar-se o R. a restituir aos AA. as partes dos imóveis que vem ocupando ilicitamente, demolindo tudo o que neles construíram e restituindo-os à situação em que se encontravam inicialmente;
2. Os AA alegam na sua petição, arts. 4 a 7 que são donos e legítimos proprietários dos seguintes prédios urbanos: a. “Casa de dois pavimentos e quintal, com capela contígua, sita na Rua …, n.º …, descrito na Conservatória do Registo Predial do Porto sob o número vinte e um mil duzentos e vinte e quatro, da União de Freguesias de …, … e …, e, inscrita na matriz predial respetiva sob os artigos 1399 e 1400 (cfr. Doc. n.º 3 que ora se junta e cujo conteúdo se dá por integralmente reproduzido); “Morada de Casa de um andar, sita na Rua …, n.º …, descrito na Conservatória do Registo Predial do Porto sob o número trinta mil seiscentos e quarenta e dois, da União de Freguesias de …, … e …, e inscrito na matriz sob os artigos 1401” (Cfr. Doc. n.º 4 que ora de junta e cujo conteúdo se dá por integralmente reproduzido).Os prédios dos AA., confrontam a nascente e sul com o prédio do R. Ora, os AA. adquiriram os referidos prédios em 15/12/1994, por escritura pública (cfr.Doc. n.º 5 que ora se junta e cujo conteúdo se dá por integralmente reproduzido), vendendo, os 1.ºs outorgantes da mesma, o direito de usufruto dos referidos prédios a E… e F… – pais dos aqui AA., (Cfr. Doc. n.º 6 que ora se junta e cujo conteúdo se dá por integralmente reproduzido).
3. Nos arts 16 e 17: “De facto, o R. passou a ocupar ilicitamente por meio de construções, todo o pátio situado a norte do edifício descrito em “a.”, bem como, parte do quintal do prédio descrito em “b.”, situado também a norte, mas num nível superior, Anexando estes espaços ao prédio do R., confundindo intencionalmente os seus limites com os prédios dos AA.Na confrontação nascente do prédio dos AA., ao nível da sacristia da capela, o edifício do R. foi aumentado, passando a estar apoiado sobre parte da parede do prédio dos AA. uma vez que, lhe foram acrescentados mais dois andares.
4. Nos arts. 21, 22 e 27 que : “Tendo sido construída uma parede em tijolo no interior do prédio dos AA., cerca de meio metro descontando a espessura das paredes, criando um “quarto secreto” indetetável a olho nu, ao qual acedem por uma abertura com uma porta, escavada na parede norte da mesma sacristia, na parte em que esta confronta a norte com o pátio acima referenciado. A ante possuidora do R. construiu ainda uma janela no novo segundo andar, na parede que confronta a norte com o prédio dos AA. (descrito em “a.”), janela essa dotada de parapeito ao nível da cintura, com dimensões que permitem que uma pessoa nela se debruce. Nesta sequência os AA., vieram a apurar no presente ano, que o R., a partir do pátio acima aludido, onde hoje tem instalada uma cozinha, construiu uma abertura na parede nascente do prédio descrito em “b.”, tendo retirado terra suficiente para construir mais um “quarto secreto”, com tijolos e argamassa de cimento, destinado a quarto de dormir e, dotado de casa de banho.
5. Nos arts. 35, 26 e 34 que “Mais se diga que, no caso do quarto escavado por baixo do prédio identificado em “b.”, fazendo perigar a solidez do edifício. Em face de tal situação, o 1.º A. procedeu a outras diligências com vista a apurar a origem das vibrações e ruídos que eram sentidos pela inquilina do prédio identificado em “b.”, que se encontra construído ao nível do quintal acima aludido, sobre um aterro num patamar superior ao do prédio descrito em “a.”. Subtraindo aos imóveis em causa, importantes partes, mormente área coberta e descoberta, alterando a sua traça e, diminuindo o seu valor.
* V. Discussão
É pacífico e decorre do art. 581º, do CPC que o pedido é a concreta tutela jurisdicional pretendida pela parte. Por seu turno a causa pedir consiste no facto real, concreto que fundamenta essa mesma tutela (teoria da substanciação consagrada no art. 581º, nº4, do CPC).
In casu, estamos perante a defesa de uma alegada violação do direito de propriedade dos AA, sendo que a tutela da propriedade pode dar origem a um concreto pedido de reivindicação (na qual a parte pede a devolução e entrega do bem indevidamente nas mãos de um terceiro), e cumulativamente a cessação dessa “agressão”, bem como o pagamento de uma indemnização pelo dano resultante dessa ocupação ilícita. A acção de reivindicação de propriedade, é pois uma acção declarativa de condenação, pressupondo um facto ilícito ou a violação de um direito do Autor, visando em primeira linha a defesa do direito de propriedade.
Mas, como resulta da petição os AA nunca identificam qual a faixa de terreno alegadamente ocupada pelo Ré sabendo apenas que: Foi ocupado” todo o pátio situado a norte do edifício descrito em “a.”, bem como, parte do quintal do prédio descrito em “b”;
Ainda mais importante é que os AA não esclarecem também qual a forma de aquisição originária que fundamenta o seu alegado direito de propriedade sobre qualquer parte da parcela. Na verdade, parecem confundir a presunção derivada do registo com a necessária comprovação dos efectivos limites do seu terreno cuja confrontação também omitem.
Ora, conforme salientam Antunes Varela, Bezerra e Sampaio e Nora, in Manual de Processo Civil, 234-235, “não basta, para o preenchimento da exigência legal, a indicação vaga ou genérica dos factos em que o autor fundamenta a sua pretensão, dizendo, v.g., na acção possessória de manutenção, que o réu tem praticado actos de perturbação do seu direito; na acção de divórcio, que o réu tem violado os deveres conjugais, sem mais precisão, na acção de reivindicação não indicando todos os factos concretos que interessa à aquisição do domínio”.(nosso sublinhado)
Por seu turno, Anselmo de Castro, Direito Processual Civil Declaratório, I, 207 e ss, afirmava que deve o autor, na p.i., expor “os factos e as razões de direito que servem de fundamento à acção”, ou seja, de fazer a indicação dos factos concretos constitutivos do direito, não se podendo limitar à indicação da relação jurídica abstracta.
Mais recentemente Teixeira de Sousa, in Estudos sobre o novo Processo Civil, 269, ao tratar do conteúdo formal da p.i., afirma que na narração, o autor deve expor os factos e as razões de direito que servem de fundamento à acção aí se contendo a alegação dos factos principais, bem como dos instrumentais para os quais seja oferecida prova documental que deva ser junta à p.i.. E, nos mesmos termosLebre de Freitas, “Ação Declarativa Comum, Á Luz do C. P. Civil de 2013”, pág. 41, para quem a causa de pedir “corresponde ao núcleo fáctico essencial tipicamente previsto por uma ou mais normas como causa do efeito de direito material pretendido”, e é delimitada pelos factos jurídicos dos quais procede a pretensão que o autor formula, cumprindo a este a alegação desses factos (cf. Prof.º Remédio Marques, “Ação Declarativa à Luz do Código Revisto”, 3.ª Edição, pág. 226/227).
Ou seja, parece consensual que neste caso os AA apresentaram uma petição que não é modelar e eles mesmos alegam que o fizeram porque não lhes foi possível situar no espaço o terreno alegadamente apropriado.
Mas, com o devido respeito, esse problema (localização da parcela afectada) nem sequer é o mais relevante. Com efeito, os AA, ao contrário do que agora alegam em sede de recurso nunca indicaram a causa de aquisição originária a seu favor das parcelas em causa e muito menos indicam qual é a concreta linha de demarcação com o prédio do Réu. Daí decorre que, mesmo que a acção prossiga e essa sua alegação venha a ser completamente demonstrada nunca se poderá determinar qual é a estrema em confronto e qual a linha divisória dos prédios. Sem linha divisória, como é evidente, não se pode determinar se a acção do Réu violou os direitos dos AA e é por isso ilícita. E, sem ser ilícita a pretensão dos AA irá soçobrar, mas desta feita formando o (possível) caso julgado material e impedindo-os de corrigir a sua petição e intentar nova acção.
Ou seja, é seguro que não foram alegados pelos AA factos concretos, sensíveis e relevantes directamente captáveis pelas percepções do homem[1] - "ex propriis sensibres, visus et audictus), (cfr. Antunes Varela, Manual cit, pág. 392) que possam ser usados para o deferimento da sua pretensão. E, por isso, é manifesto concluir que não existe uma concreta e efectiva exposição da causa de pedir.
Como salientava Alberto dos Reis in Comentário, II, pgs. 371 a 374: “Podem dar-se dois casos distintos: a) a petição ser inteiramente omissa quanto ao acto ou facto de que o pedido procede; b) expor o acto ou facto, fonte do pedido, em termos de tal modo confusos, ambíguos ou ininteligíveis, que não seja possível apreender com segurança a causa de pedir. Num e noutro caso a petição é inepta, porque não pode saber-se qual a causa de pedir.”
Ora, é isso que acontece no presente caso. Pois, com algum esforço o tribunal poderia vir a situar a parcela de terreno ocupada, mas sempre teria dúvidas na sua dimensão (quantos metros de largura) e mais importante do que isso na sua configuração (linha de demarcação recta?), e fundamentalmente qual a forma de aquisição originária (usucapião?).
E, note-se que esta exigência visa para além de proteger o sistema judicial (assegurando que irá ser formado um caso julgado efectivo e que as questões são decididas com contraditório efectivo), defender também os próprios AA. que assim poupam actividade processual inútil, na medida em que a decisão final nunca poderia vir a satisfazer o seu interesse.
1.2. Da sanação da nulidade
É certo que segundo o artº 186º nº 3 do Código de Processo civil (CPC), “se o réu contestar, apesar de arguir a ineptidão com fundamento na alínea a) do número anterior, a arguição não é julgada procedente quando, ouvido o autor, se verificar que o réu interpretou convenientemente a petição inicial”.
Mas, como é evidente esta norma não pode ser aplicada, pois, neste caso, o réu não interpretou de forma relevante qualquer ambiguidade da petição, pois defende-se apenas alegando que: “Quando em 1994, os AA. adquirem a propriedade dos seus prédios (ver artigo 6.º da Douta Petição Inicial), já o prédio do R. tinha a configuração actual”.
Concluímos, pois, que os AA não alegaram de forma relevante factos concretos que densifiquem de forma suficiente a sua concreta causa de pedir, nomeadamente: qual a causa da sua aquisição originária; bem como a concreta linha de demarcação, e de forma precisa a localização da parcela de terreno alegadamente ocupada.
* 2. Da violação do dever de proferir despacho de correcção pelo tribunal
Alegam os AA que o tribunal deveria, não obstante a anterior conclusão, tê-los convidado a corrigir os eventuais lapsos de alegação.
Vejamos.
A ineptidão da petição inicial determina a nulidade de todo o processo. Nos termos do art. 186º, nº1, do CPC, nulidade essa de conhecimento oficioso (art. 196º), até à prolação do despacho saneador (art. 200º, nº 2, do CPC) ou, não havendo lugar a despacho saneador, até à sentença final, a qual constituiu uma excepção dilatória, pois a sua verificação determina a nulidade de todo o processo (artigo 577. alínea b), do actual CPC.
Daí decorre que a ineptidão é insuprível e não determina qualquer despacho de correcção a ser proferido pelo tribunal[2], pelo contrário a petição deficiente deve ser objecto de correcção.
* 2.1. Mas qual o critério para distinguir a petição inepta da meramente deficiente?
A nossa jurisprudência é pacífica nesta matéria[3] ao consagrar que a distinção deriva da essencialidade ou não da omissão praticada:
1. Ac da RC de 27.9.2016, nº 220/15.3T8SEI.C1: “ A petição inicial apenas é inepta, por falta de causa de pedir, quando o autor não indica o núcleo essencial do direito invocado, tornando ininteligível e insindicável a sua pretensão. Se tal não se verifica a petição é, quando muito, deficiente, devendo o juiz proferir despacho de aperfeiçoamento – artºs 6º e 590º nº4 do CPC”.
2. Ac da RC de 18.10.2016 nº 203848/14.2YIPRT.C1: Não é de convidar à correcção da petição inicial (nos termos do art. 590º, nºs 2, al.b), 3 e 4 do CPC) quando a petição seja inepta nos termos do art. 186º do mesmo diploma, uma vez que só um articulado que não padeça dos vícios mencionados neste último preceito pode ser objecto desse convite à correcção e isto porque se a parte declinar tal convite tal comportamento de inércia não obsta a que a acção prossiga os seustermos, contrariamente à consequência para a ineptidão que é a de determinar a nulidade de todo o processo.
3. Ac RC de 14.11.2017 nº 7034/15.9T8VIS.C1: A figura da ineptidão da petição inicial (que implica que, por ausência absoluta de alegação dos factos que integram o núcleo essencial da causa de pedir, o processo careça, em bom rigor, de um objecto inteligível) distingue-se e contrapõe-se à mera insuficiência na densificação ou concretização adequada de algum aspecto ou vertente dos factos essenciais em que se estriba a pretensão deduzida. Apenas nesta segunda situação a parte poderá/deverá ser convidada a completar o articulado, podendo ainda tal insuficiência ou incompletude vir a ser suprida em consequência da aquisição processual de tais factos concretizadores, se revelados no decurso da instrução - art.ºs 5º, n.º 2, alínea b) e 590º, n.º 4 do CPC.
4. Ac da RE de 8.10.2015 nº nº 855/12.6TBSLV.E1: «Se a petição for inepta, por falta ou ininteligibilidade da causa de pedir (…), o juiz não profere despacho de aperfeiçoamento; a petição é indeferida, sendo o réu absolvido da instância. O vício é tão grave, que já não há remédio, muito embora (…) o autor possa propor nova acção.» 5. Ac RL 24.1.2019 nº 573/18.1T8SXL.L1-6: “O princípio da cooperação deve ser conjugado com os princípios do dispositivo e da auto-responsabilidade das partes, que não comporta o suprimento, por iniciativa do juiz, da omissão de indicação do pedido ou de alegação de factos estruturantes da causa de pedir. O convite ao aperfeiçoamento de articulados previsto no artigo 590.º, n.ºs 2, alínea b), 3 e 4, do CPC, não compreende o suprimento da falta de indicação do pedido ou de omissões de alegação de um núcleo de factos essenciais e estruturantes da causa de pedir.
6. AC da RP de 10.9.2019 nº 11226/16.5T8PRT-A.P1: “o art. 590º, nº 4 do CPC estabelece um dever legal do juiz. Tal dever não tende à recuperação de petições ineptas, mas impõe-se para o aproveitamento de articulados minimamente aptos, mau grado insuficientes, deficientes ou imprecisos, de forma a prevenir que o curso do processo venha, sem alteração do seu conteúdo fáctico, a inviabilizar ulteriormente a completa identificação da fattispecie do instituto jurídico previamente apontado em sede de causa de pedir.
7. Ac do STJ de 9.6.1994 Processo nº 085685 “A petição inicial é inepta quando falta ou seja ininteligível a indicação do pedido ou da causa de pedir, sendo esta o facto jurídico concreto de que procede a pretensão deduzida. II - Os fundamentos ou razões de facto invocados pelo Autor são pontos de facto com função instrumental relativamente à causa de pedir; facto principal e decisório.
Na doutrina Prof. Teixeira de Sousa, ob. cit.,pág. 304, "o articulado é deficiente quando contenha insuficiências ou imprecisões na exposição ou concretização da matéria de facto (cf. art.º 508.º, n.º3), isto é, quando nele não se encontrem articulados todos os factos principais ou a sua alegação seja ambígua ou obscura”.
Ou seja, o Dever de Gestão Processualconsagrado nos arts.º 6º e 590º, n.º2 do CPC não visa obter a justa composição do litígio a todo o custo, mas deve ser limitado às situações em que se verifique “deficiência na concretização dos factos integrantes da causa de pedir, tanto mais queos AA podem sem quaisquer delongas, corrigir a sua alegação e interpor nova acção.
Para isso teremos de distinguir se a omissão de exposição da causa de pedir diz respeito a factos essenciais ou não da causa de pedir.
Como critério complementar, poderá ser útil utilizar a distinção legal contida no art. 5º, do CPC segundo o qual os factos podem ser classificados como essenciais e instrumentais ou complementares.
Como é evidente só a omissão de factos essenciais pode dar origem à ineptidão da petição e, dentro desta, apenas quando o facto/causa de pedir não possa ser “complementado ou concretizado” (art. 5º, nº3, do CPC).
Deste modo, para decidir se a petição é ou não inepta e se pode por isso ser ou não corrigida é preciso responder a duas perguntas simples: os AA omitem factos essenciais? se sim, essa omissão é feita de tal forma que não pode ser complementada ou concretizada ?
In casu, parece evidente que não.
Se, por um lado a efectiva localização da faixa de terreno ainda pode ser concretizada através da densificação do que é o “lado norte” ou qual a concreta parte do pátio; já a aquisição originária não foi sequer alegada e a linha de demarcação não faz parte da petição, nem de qualquer documento[4]. Logo, por apelo complementar ao critério do art. 5º, do CPC podemos concluir que a petição do autor é inepta e por isso não passível de correcção, já que estamos perante uma lacuna completa de alegação e não perante uma mera falta de densificação ou concretização de qualquer factualidade explícita ou implicitamente alegada.
E, por isso, o tribunal a quo não violou o seu dever de gestão processual.
Tanto mais que é ainda hoje paradigmático o já antigo Ac STJ de Acórdão do STJ, de 24 de Maio de 2004 (in www.dgsi.pt) que afirma: «Se é salutar a cooperação entre as partes, também se afigura importante a criação e desenvolvimento de uma cultura judiciária de responsabilidade, e de saber, que não tenha no juiz o limite corrector dessa responsabilidade (ou irresponsabilidade: inconsciente ou provocada) ou desse saber (ou ignorância: inconsciente ou provocada), quando se está perante uma clara ausência de um preceito legal, e de processo, que permita contar com a ajuda dos outros, suprindo faltas processuais graves, essenciais ao objecto do conhecimento, exactamente do que se pede ao tribunal, que conheça. (…). Em desfavor destas - das pessoas - vulgariza-se o princípio, igualmente respeitável, da preclusão processual civil, agravando o factor da incerteza do tempo da definição do direito; e introduz-se uma pedagogia processual negativa, a benefício do arbítrio ao convite, do uso e do abuso, sem critério, que em nada abona a confiança, a celeridade e a prontidão da justiça, acabando por conferir a esta, a imagem perigosa geradora do "deixar andar" ou do "erra que o juiz corrige!" (…) “O princípio da cooperação tem assim de ser temperado pelo princípio da responsabilidade das partes”. “Mas em qualquer das situações anteriormente contempladas, o convite só tem sentido se as deficiências forem estritamente formais, ou de natureza secundária, não reabrindo a possibilidade de reformulação substancial da própria pretensão ou da impugnação e dos fundamentos em que assentam, com vista a obter, por exemplo, novo prazo, nova formulação do pedido, neutralizando a eficácia do principio processual da preclusão da prática de actos processuais”.
* VI. DECISÃO
Pelo exposto, este tribunal julga o presente recurso de apelação improcedente e por via disso mantém integralmente o douto despacho saneador recorrido.
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Custas da apelação a cargo dos apelantes.
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Porto em 21.11.2019
Paulo Duarte Teixeira
Amaral Ferreira
Deolinda Varão
______________ [1] A este propósito Alberto dos Reis (Código de Processo Civil Anotado, III, 215), esclarecia que “o Tribunal Colectivo há-de ser perguntado sobre factos simples, e não sobre factos jurídicos, sobre meras ocorrências concretas e não sobre juízos de valor, induções ou conclusões a extrair dessas ocorrências“. [2] Como é evidente, para além da forma de sanação supra referida constante do nº3, do art. 186º, do CPC a qual decorre dos princípios da idoneidade dos actos (afinal atingiu o sue efeito) e economia processual. [3] Para além deste os Acórdãos do STJ de 2/7/1991 (Simões Ventura) e de 12/1/1995 (Araújo Ribeiro A omissão total corresponde “à falta absoluta de indicação de factos da causa de pedir” A omissão será funcional quando “o autor se limita a indicar vagamente” factos (cf. Acórdão do T. Rel. do Porto, de 29/11/2006 (Ataíde das Neves), em que não se está perante uma completa falta de factos que consubstanciam a causa de pedir, mas ocorre uma “grave insuficiência de alegação da matéria de facto que se traduza na falta de indicação da causa de pedir” -cf. Acórdão do STJ, de 6/7/2004 (Araújo Barros). [4] A mera junção de plantas sem indicação de qualquer demarcação não integra a alegação dessa realidade.